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CPF: 096.661.486-09
O presente recurso visa salientar determinados pontos postos como questão na defesa
oral do anteprojeto de mestrado. Justifica-se este recurso pelo desejo de pesquisar o tema
proposto, por sua reconhecida relevância clínico-teórica, pela recepção do anteprojeto e pela
nota recebida na avaliação de conhecimento específico (9,3), o que denota considerável
desempenho de escrita e defesa das ideias referentes à pesquisa. Dessa forma, serão
apresentados a seguir subsídios teóricos complementares às respostas dadas na defesa oral,
para que se justifique a revisão da nota conferida ao candidato.
A seguir, será feito um panorama das perguntas que exigiram um maior trabalho de
síntese da proposta de investigação.
Spinoza? Diante dessas questões, foi montado o tema: a relação epistemológica transversal
entre Spinoza e Lacan. Partiu-se da hipótese de que a epistemologia do desejo de Spinoza
poderia ser articulada de maneira transversal com a obra de Lacan, autor que defende uma
epistemologia do desejo, na medida em que o psicanalista faz da psicanálise uma práxis do
desejo, uma ética do desejo. O desejo é figura central para a ética e epistemologia dos dois
autores, mas de forma transversal, ou seja, “a transversalidade é capaz de provocar sínteses
insólitas entre elementos incompatíveis, gerando efeitos à distância sem transmissores
detectáveis, a partir de conexões locais” (Baremblitt, 2002, p 171).O ponto de partida é
apresentar o modelo de homem que decorre na noção de desejo (desidero, cupiditas) em
Spinoza, passando pela conceituação freudiana (Begierde, Wunsch) até Lacan, cuja nova
noção de desejo rompe com a proposição de uma noção de homem e produz com esse gesto
uma nova noção de sujeito, noção inclusive radicalmente diferente da noção filosófica por se
tratar de um sujeito subvertido pelo significante, pela falta, pela dialética do desejo. Ao final
do Seminário sobre o desejo, Lacan se pergunta:
O desejo é ou não subjetividade? Esta questão não esperou a psicanálise para ser
colocada. Ela está aí desde sempre, desde a origem disto que se pode chamar
experiência moral. O desejo é o que no coração mesmo de nossa subjetividade, é o
mais essencial ao sujeito. Mas ele é, ao mesmo tempo, alguma coisa que é também o
contrário, que aí se opõe como uma resistência, como um paradoxo, como um
núcleo rejeitado, como um núcleo refutável. É a partir daí, insisti nisso inúmeras
vezes, que uma determinada experiência ética é desenvolvida até que sejamos [...]
levados à fórmula enigmática de Espinosa “o desejo, cupiditas, é a própria essência
do homem. ” (LACAN, 1958-59/2002, p. 502).
Segundo Vieira (2001), haveria da parte de Lacan um “enquadre spinozista” para sua
proposição ética no que ela faz referência ao desejo, mesmo não sendo objetivamente citado:
Espinosa é o primeiro autor utilizado por Lacan para deslocar o edifício cartesiano.
A partir desta referência, os afetos, como as representações, poderão ser situados
sem que sua verdade seja atribuída ao real [mas] apesar de sua importância para a
teoria do afeto, Espinosa será relegado a um segundo plano quando Lacan passa a
privilegiar o paradigma da linguística estrutural. (VIEIRA, 2001, p. 129)
Do desejo e a proposição de seu agente, será investigada a passagem que Lacan opera
no “Seminário 14” quando propõe ser o desejo a essência da realidade. Vê-se nessa passagem
a oportunidade de investigar de maneira detalhada – o que Lacan (1962-63/2005) coloca em
termos de matema no “Seminário 10” sobre a Angústia – a passagem do grande Outro até a
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teorização de sua barra, para que o desejo seja fundamento da realidade na medida em que ela
se organiza em torno de uma falta significante, assim tem-se o sujeito dividido como resultado
da falta no Outro.
2ª pergunta: Por que trabalhar com esses autores, por onde você pretende começar o
trabalho? Qual o ponto de articulação?
A palavra desejo tem bela origem. Deriva-se do verbo desidero, que, por sua vez,
deriva do substantivo sidus (mais usado no plural, sidera), significando a figura
formada por um conjunto de estrelas, isto é, as constelações (CHAUÍ, 2011, p. 15).
Chauí, para apresentar o desejo em Spinoza, trabalha toda essa montagem para mostrar
que de figura objetiva, o desejo se torna marca de uma ação humana, uma ação de tornar
subjetivo o que era antes objetivo:
Pelo corpo astral, nosso destino está inscrito e escrito nas estrelas, e considerare é
consultar o alto para nele encontrar o sentido e o guia seguro de nossas vidas.
Desiderare, ao contrário, é estar despojado dessa referência, abandonar o alto ou ser
abandonado. Cessando de olhar os astros, desiderium é a decisão de tomar nosso
destino em nossas próprias mãos e, neste caso, o desejo chama-se vontade
consciente, nascida da deliberação, aquilo que os gregos chamavam bóulesis (Chauí,
2011, p. 15-16).
O desejo para Lacan é interpretado de outra forma. Mas sem esse contexto do qual ele
é destacado para ser o destino de seu sujeito sem qualidades (destino de sujeito desejante),
ele soa complexo às raias do impenetrável. Nesse sentido, o ponto de articulação da proposta
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de pesquisa é o desejo, em seu contexto e uso, pelos dois autores, com uma diferença de três
séculos de cultura latina, se for considerada a grande influência do latim na língua francesa.
A obra lacaniana se organiza em torno de sua experiência clínica, mas ela também se
efetiva em estreita articulação com os mais variados campos do saber, tanto clínicos, quanto
literários, filosóficos ou até matemáticos. Resta saber se essas articulações são propostas
necessárias para se pensar uma clínica do sujeito ou se Lacan poderia tê-la teorizado sem
essas articulações. Tudo indica que essas articulações são fundamentais ao campo clínico,
justamente por traduzirem o fundamental da hipótese do sujeito do inconsciente, a saber, que
ele é efeito do significante, mas que ainda assim resta um real, um ponto de impossível desde
o qual as articulações se avolumarão em torno para constituir a realidade do sujeito.
A hipótese, portanto, propõe pensar o Spinoza de Lacan como um filósofo que torna
evidente a passagem de um modelo de homem para um modelo de sujeito, subvertido e
dividido quanto ao seu desejo. O “racionalismo absoluto” (RAMOND, 2010, p. 32) de
Spinoza é um exemplo de como Lacan opera uma leitura dos personagens de sua articulação,
já que ela oferece o plano desde o qual tanto a liberdade quanto a investigação da realidade se
propõe como uma ética, o que nos leva a dizer, parafraseando Lacan, que o estatuto do
homem spinozista é também ético, na medida em que o desejo é sua essência. Quanto à noção
de homem de Spinoza, Lacan tem algo a dizer:
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E é exatamente por isso que, a partir dessa revelação até Freud, o desejo como tal,
em sua função – o desejo enquanto própria essência do homem, diz Spinoza, e cada
um sabe o que isso que dizer, o homem em Spinoza é o sujeito, é a essência do
sujeito – que o desejo se manteve, durante um número respeitável de séculos, como
uma função pela metade, a três quartos ou quatro quintos, ocultada na história do
conhecimento [...]. O sujeito de que se trata, aquele do qual seguimos o rastro, é o
sujeito do desejo e não o sujeito do amor, pela simples razão de que não se é sujeito
do amor; é-se ordinariamente, normalmente, sua vítima. (LACAN, 1961-62/2003, p.
157)
E frente a isso, a proposta dos pontos de convergência entre Lacan e Spinoza tem
como objetivo apresentar tanto o contexto latino do conceito de desejo, passando pelo ponto
alto de sua definição na filosofia setecentista de Spinoza até Lacan, pois, para os dois autores,
é pela concepção de desejo que se vai entender a essência do homem (ou do indivíduo) e da
realidade (ou do sujeito). As divergências: para Spinoza nada falta ao desejo porque ele é
potência em ato, expressão da capacidade de afetar e ser afetado. Então, o desejo seria menos
uma falta pulsante, do que uma pulsação desejante. Já para Lacan, o desejo se faria como
efeito do processo da demanda em torno de um objeto, é esse circuito em torno de um objeto
que vai produzi-lo como objeto posto ao desejo, mas só depois. Assim, se formula uma noção
de objeto (a) que funciona ao mesmo tempo como causa e efeito desse circuito pulsional.
Precisar a diferença com relação ao desejo para esses autores é fundamental para
entender a afirmação lacaniana de que “o desejo é a essência da realidade”. É nesse sentido
que se propõe a investigar o que foi descrito como o “Spinoza de Lacan”, pois é por meio de
Spinoza que Lacan (1966-67/2008, p. 19) afirma ser fundamental reconhecer o “desejo como
essência da realidade” ao invés de admiti-lo como Spinoza o faz como a “essência do
homem”. Lacan diz que a palavra homem seria um termo impossível de se conservar num
sistema a-teológico como o da psicanálise. Nesse sentido, Lacan está colocando em relevo
que a realidade da qual a psicanálise se interessa não poderia se reduzir integralmente ao que
seria tipificado como realidade humana, já que ela seria simbólico-imaginária restando ainda a
dimensão de real.
fantasma, vacila. A saber, a mesma coisa que o que Spinoza apreendeu quando ele
disse: o desejo é a essência do homem”. LACAN, 1966-67/2008, p. 19)
Do conceito de homem, tutelado por uma perspectiva racional spinozista que localiza
na potência do intelecto a liberdade humana, até a noção de sujeito proposta por seu
contemporâneo René Descartes, temos um conjunto de influências que circunscreve o
contexto setecentista no qual se gestou as bases do iluminismo. Essa aparente vitória da razão
foi contrastada não pela des-razão, mas pela lógica do desejo, ponto que nos permite retornar
a Spinoza com sua ciência dos afetos, que inclusive interessou a Freud. Nesse sentido, e em
contrapartida às localizações históricas postas pelos manuais, a ciência dos afetos proposta
por Spinoza permite localizar algo posto pelo descentramento da razão perpetrado por Freud
dois séculos depois, pois para a investigação spinozista a razão tem seu fundamento na
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afetividade, a força das paixões é constituinte de um modelo de razão. É nessa perspectiva que
o desejo é a essência do homem, pois o conatus (esforço) é a força desde a qual o sujeito se
reconhece em meio ao embate da natureza.
a natureza tem sua ironia. E é a ironia da natureza com relação ao significante [...].
Mesmo sendo sem corpo, é o significante, com sua lógica, que vai abrir o caminho,
juntamente com o pouco que se ordena a partir da biologia, para se chegar a um
saber sobre o gozo (MILLER, 1999, p. 21).
O saber sobre o gozo talvez seja “o único saber psicanalítico não-filosófico, o único
saber psicanalítico que temos sobre a vida, sobre o que é o ser vivo. O ‘gozar” do corpo vivo
seria, assim, tudo o que podemos saber dele” (LIMA citado por MILLER, 1999, p. 07).
Frente a isso, a torção de Lacan está em oferecer as bases desde as quais o sujeito pode
ser admitido como um derivado de uma outra natureza, ou da natureza atravessada pela
linguagem. Para tanto, é preciso personificar essa natureza na figura do grande Outro, ordem
simbólica que ao mesmo tempo perturba e determina o sujeito, colocando-o em irredutível
descompasso a qualquer objeto possível, admitindo sua definição como sujeito dividido.
Spinoza (2008) é claro quanto a isso ao dizer que o homem na natureza não pode ser tomado
como um império dentro de um império, apresentando uma noção de natureza que
fundamenta a determinação do homem:
Os que escreveram sobre os afetos e o modo de vida dos homens parecem, em sua
maioria, ter tratado não de coisas naturais, que seguem as leis comuns da natureza,
mas de coisas que estão fora dela. Ou melhor, parecem conceber o homem na
natureza como um império num império. Pois acreditam que, em vez de seguir a
ordem da natureza, o homem a perturba, que ele tem potência absoluta sobre suas
próprias ações, e que não é determinado por mais nada além de si próprio
(SPINOZA, 2008, p. 161).
O giro de Lacan frente à passagem do desejo como essência do homem para o desejo
como essência da natureza faz da ordem simbólica a natureza do sujeito, ali ele não é um
império dentro de um império, ele é em conformidade com sua natureza de linguagem,
natureza essa que inclusive faz do desejo um desejo de castração (JURANVILLE, 1987),
fazendo do grande Outro uma figura barrada pela falta de um significante capaz de lhe
conferir totalidade. O sujeito lacaniano é aquilo que um significante representa para um outro
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significante e se a palavra essência cabe aqui, ela só é admitida como recurso capaz de
sinalizar a falta-a-ser do sujeito. Nesse sentido, o Spinoza de Lacan é proposto como o
filósofo que apresenta uma ética na qual o homem só vai se libertar mediante uma tomada de
consciência da ciência dos afetos que regem e determinam as condições de sua ação, em
contrapartida e frente a essa leitura, Lacan apresenta uma ética na qual o homem – agora
sujeito – só vai se libertar (atravessar seu fantasma) a partir de uma tomada de posição frente
a sua relação de transferência com o sujeito suposto saber, ao reconhecer em seus atos a
atualização de seus conflitos inconscientes. E é pelo encontro – conceito fundamental para
Spinoza – que a transferência vai ser pensada no âmbito do que permite um aumento de
potência da parte do sujeito frente à castração do desejo.
O homem de Spinoza não serve a Lacan pela simples razão de que o sujeito proposto
pelo psicanalista é um sujeito marcado tanto pela dialética do desejo quanto por sua
subversão:
Concluindo, o candidato destaca que não foi tão bem quanto poderia ter ido na defesa
oral em função de ter ficado muito focado nas consequências diretas do anteprojeto (com o
qual continuei trabalhando desde sua submissão ao processo seletivo), mas que em função de
continuar sua pesquisa já dispunha de outros recursos para responder, mas julgou não poder
sair do enquadre textual do texto do anteprojeto. Destaco também que o processo de mestrado
foi muito produtivo e faço sinceros votos de que este recurso seja aceito para que eu possa
desenvolver a pesquisa que tanto movimenta meu desejo, deixando claro que estou disposto a
realizar as mudanças propostas pelo futuro orientador.
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REFERÊNCIAS
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correntes: teoria e prática. 5 ed. Belo Horizonte (MG): Instituto Felix Guattari, 2002.
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Inédito. Publicação não comercial para circulação interna da Associação Psicanalítica de
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SPINOZA, Benedictus. Ética demostrada à maneira dos geômetras. 2. Ed. Belo
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