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N° 18 | Março de 2012 U rdimento

Improvisação1
Charles Dullin2

Resumo

Este escrito tem por objetivo expor e analisar elementos de


um método de improvisação para a formação do ator. Tais
elementos visam a apresentar ao leitor exercícios práticos
e a proporcionar-lhe um meio de reflexão sobre problemas
decorrentes do trabalho de atuação. É enfatizada a necessidade
de o ator “sentir” antes de procurar expressar, “olhar” e “ver”
antes de descrever, “escutar” e “ouvir” antes de responder ao
interlocutor. A improvisação é aqui considerada como fonte
de expressão essencialmente binária, na qual “Voz do mundo”
e “Voz de si mesmo” se completam. Ela também é vista como
uma arte coletiva, na qual o uso da máscara tem importância.

Palavras-Chave: Improvisação – Exercícios de


máscara – Charles Dullin

Résumé

Cet écrit a pour but d´exposer et d´analyser certains eléments d´une mé-
thode d´improvisation em vue de la formation de l´acteur. Ces éléments
présentent au lecteur dês exercices pratiques et permettent de réfléchir
sur certains problèmes concernant le jeu de l´acteur. Il est mis l´accent ici
sur le besoin de “sentir” avant que de chercher à exprimer, “regarder”
et “voir” avant de décrire, “écouter” et “entendre” avant de répondre à
l´interlocuteur. L´improvisation est ici considérée comme étant une source
d´expression essentiellement binaire, où “Voix Du monde” et “Voix de
soi-même” ne font qu´un. Elle y est vue aussi comme étant un art collectif,
où le port du masque trouve sa place.

Mots Cléts: Improvisation – exercices du masque – Charles Dullin

1 Oringalmente publicado in DULLIN, Charles. Souvenirs et notes de travail d´un acteur [Lembranças e Notas de
Trabalho de um Ator]. Paris: Odette Lieutier, 1946, p. 109-131. — Tradução de José Ronaldo FALEIRO, professor
do Programa de Pòs-Graduação em Teatro da UDESC.
2 Charles DULLIN (1885-1949): ator, encenador e teórico francês. Considera o teatro como uma força de regeneração
social e cultural. Trabalhou na companhia de André Antoine, no Teatro Odeon (1906); ingressou no Teatro das Artes
em 1910, onde cria o papel de Smerdiakov (Os Irmãos Karamazovi) em 1911. Participou da fundação do Teatro do
Vieux-Colombier (1913) e atuou sob a direção de Jacques Copeau até 1919. Abriu seu próprio teatro-escola, L´Atelier,
em 1921. Fez parte do Cartel (1927), juntamente com Jouvet, Baty e Pitoëff. Em 1940, deixou L´Atelier e assumiu a
direção do Teatro da Cidade (ex-Sarah Bernhardt), onde criou As Moscas, de J.-P. Sartre. – Pregou um teatro que não
fosse imitação da vida, mas sua transposição. – Por sua escola e por seus espetáculos, Dullin influenciou atores como
Jean-Louis Barrault, Antonin Artaud, André Barsacq, Roger Blin, Jean Marais, Jean Vilar.

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gora, meu caro, vou lhe ofere- pis vermelho no texto, a vontade evidente Você pensa em dar a uma amiga o per- escolhi, como exemplo, um tema que agru-
cer não um método pedagógico, de pôr tudo o que ele sabe da personagem fume que você está respirando, etc... pa certo número deles. Eu o decomponho
habilmente estabelecido, mas os em cada réplica. Ele nem sequer pensa na A «Voz do Mundo» vai fazer com que na ordem do trabalho a executar:
elementos de um método, que situação dramática ou cômica em que se surja na pessoa a voz que vem do interior
poderão abrir para você hori- encontra, mas, se viu a peça representada, do indivíduo e que chamaremos «Voz de si 1º Dois namorados chegam à cena. Ca-
zontes novos e inesperados. Esse método, faz esforço para imitar o ator cujo físico lhe mesmo», e desse encontro nascerá «a expres- minham ternamente enlaçados; res-
que pratico há vinte anos com os meus alu- disseram que ele tinha. são». piram confiança, alegria interior sem
mistura; tudo é belo em torno deles.
nos, deu resultados; muitos jovens atores Alguns exercícios muito simples de Vemos imediatamente que a improvi-
Vêm sentar-se a um banco encostado
que você admira foram formados, em par- «improvisação» vão abrir os olhos do aluno sação é binária em sua essência, e, conse-
numa grande parede nua.
te, por ele; muitas vezes foi feito um uso para uma das leis fundamentais de nossa qüentemente, na sua aplicação prática, por
abusivo dele, desviado inconsideradamen- arte, cujo desconhecimento está na base de causa dessa dupla corrente que vem do in- 2º Atrás desse muro imaginário exis-
te da sua finalidade verdadeira, que é es- todos aqueles desajeitamentos; sentir antes terior do indivíduo (voz de si mesmo) e da te o pátio de uma prisão. Conduzidos
sencialmente escolar. de procurar expressar, «olhar» e «ver» antes que vem do exterior do mundo e das coisas por um guarda, prisioneiros vêm ca-
Sirva-se dele com inteligência, não só de descrever o que se viu, «escutar» e «ou- (voz do mundo), a qual, encontrando a con- minhar em círculo. (Silhuetas dos pri-
como um exercício prático para lhe dar vir» antes de responder a um interlocutor. tracorrente interior e individual, o estimu- sioneiros, do guarda, atmosfera.)
desenvoltura, «pertinência», naturalidade, Esses exercícios serão baseados nas la e o fecunda, e até o cristaliza. Chega um
mas como um meio de introspecção e uma sensações que percebemos auxiliados pe- momento em que ocorre a síntese e é então 3º Os namorados percebem o lugar
em que se encontram.
fonte de meditações sobre os problemas los cinco sentidos. Aqui estão alguns deles que se pode passar à aplicação prática da-
que surgirão mais tarde a cada passo dian- como exemplo: quela operação que, é bom lembrar, é feita 4º A ronda continua.
te de você. em dois tempos: Expressar.
Quando se fala em «Improvisação», Olhe uma paisagem... A improvisação é, portanto, uma ação 5º O homem sobe no banco para olhar
imediatamente se pensa na Commedia Siga o vôo de um pássaro no espaço. que se realiza em dois tempos: primeiro tem- por cima da parede.
dell´Arte. Ora, o que entendo por «Improvi- Deitado na relva, observe um inseto... po, conceber até à possibilidade extrema, Impressão penosa que se comunica à
sação» não é a renovação com uma forma depois, segundo tempo: expressar com tan- moça, sem que ela ouse olhar.
Escute sinos, ao longe.
moderna dessa arte desaparecida, mas um ta força quanto se pode; e tal ação é em si
Escute o passo de alguém que se apro- 6º A ronda continua, sinistra.
método vivo para ensinar a teoria e a prá- xima de você. mesma de essência binária, visto que exige:
tica do «Jogo Dramático» e favorecer o de-
7º Essa indigência humana aproxima
senvolvimento da personalidade de cada Escute uma conversa cujas palavras — Busca de si mesmo.
por um instante os namorados, um
aluno. chegam indistintamente até você. — Confrontação desse «si mesmo»
pouco mais ainda, mas joga sobre a
O ensino corrente do teatro é em grande com o mundo exterior.
alegria deles um véu de tristeza. Tudo
parte baseado no mimetismo; o aluno imita o Sinta um perfume agradável. se torna feio à sua volta; eles se afas-
professor, os mais velhos, e é assim que ele Respire o ar fresco da manhã. Quais são os elementos do «Si mesmo» tam silenciosos.
soçobra no artifício e no convencional. Sinta um cheiro desagradável. sobre os quais vamos insistir, corrigindo
o trabalho do aluno? Primeiro, tudo o que 8º A ronda continua... Um dos prisio-
Experimente o calor da água com a mão. constitui a sua «personalidade», os seus dons neiros cai, extenuado. Os outros pa-
«A Improvisação» obriga o aluno
Toque um pano rugoso. particulares, a sua sensualidade artística, a ram. Olhares hostis para o guarda.
a descobrir os seus próprios meios
Toque um tecido sedoso, muito suave.
de expressão. sua sensibilidade.
Saboreie um fruto que você colhe de Fim.
uma árvore. No início, tudo isso muitas vezes está
Mediante alguns exemplos, vou tentar Deguste vinhos de diferentes colheitas. mascarado pela timidez, pelo pudor, pela
Esse exercício de conjunto permitirá
mostrar as vantagens desse método, que Beba uma bebida amarga. contração; é preciso pacientemente deixar
que se abram os olhos do aluno para uma
deveria ser considerado um complemento o aluno com confiança e ao mesmo tempo
multidão de problemas: a descontração mus-
indispensável aos estudos comuns. Essa lição infantil baseada na visão, na exigir dele uma sinceridade total...
cular, a caminhada, a atitude, o ritmo, o olhar,
Quando um aluno faz um teste, fora audição, no olfato, no tato, no paladar tem por Quanto aos elementos que vêm de fora,
que, após ter escrutado o mundo exterior,
das qualidades que retêm a nossa aten- objetivo obrigar o aluno a tomar contato com com os quais essa personalidade deve se
se volta para o mundo interior e lhe traz
ção, que notamos, em geral? Uma voz mal o mundo exterior, que chamaremos, para a encontrar, serão eles as sensações, as impres-
seu alimento: o drama.
colocada; uma dicção insegura; desajeita- clareza do que virá adiante, «Voz do Mundo». sões físicas, estéticas, geográficas, morais, etc.,
Mas cada uma dessas partes deverá ser
mento no andar, nas atitudes, nos gestos; Mas eis que essa paisagem que você etc. — e, por fim, de natureza totalmente
objeto de um trabalho prático, tão regular,
precipitação na fala e uma falta de ritmo; a olha evoca uma lembrança da infância e o diferente, as emoções.
tão preciso quanto os exercícios de ginás-
entonação aprendida como um papagaio, mergulha numa melancolia passageira. Levando em conta os limites deste es-
tica ou de dança clássica. Acabo de aludir
com apoio em certas palavras, que ele até Os sinos que você ouve lembram o do- tudo, é impossível para mim enumerar to-
à caminhada, à atitude, ao ritmo e à des-
se deu o trabalho de sublinhar com um lá- bre triste dos funerais de um ser querido. dos os exercícios preparatórios. Portanto,

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contração. Todo e qualquer ator que tenha maldita contração, a ponto de serem muitas uma cena de comédia, se apoia num traba- Procure exemplos na própria natureza:
experiência conhece a importância desses vezes acusados de frieza. O uso da meia- lho de memória; não tira quase nada de si
elementos da nossa técnica. máscara nos exercícios muitas vezes dá um mesmo... Na improvisação, ao contrário, o
«Um caniço balançado pelo vento»;
Talvez você pense que é uma idéia es- resultado apreciável. A timidez é, então, tempo e a medida lhe são dados pelo seu
tranha ensinar um aluno a olhar, a ver um parcialmente vencida: o aluno acredita es- próprio mecanismo, que ele põe em mo-
Na vida quotidiana:
objeto, a prestar ouvidos ao que os outros tar protegido; ele «ousa». Escolhidos tanto vimento; não pode escapar à lei do ritmo;
dizem ou aos ruídos do exterior, a tocar um quanto possível fora da realidade quotidia- bem melhor: depois de ter sentido a sua «Você espera alguém lendo... De
objeto para sentir a sua matéria ou a sua- na, exercícios contribuirão para o «liberar». importância, chegará rápido a explorá-la; já vez em quando olha para a porta...
vidade ou a rugosidade que possui, a re- Dou um exemplo disso. Nós o chama- não conseguirá tolerar o vazio dentro dele, Depois de um tempo... batem...
conhecer um cheiro, a sentir o gosto... Será remos de «descoberta do mundo»: ou a inércia dos seus membros; já não fará Você se precipita para abrir...»
que ele não faz isso todos os dias da sua esta pergunta absurda que vem aos lábios
vida, da manhã à noite, e será que não o «Faça um esforço para esquecer o de tantos atores, assim que não têm nada Esse exercício o levará a chamar a aten-
fará daqui a pouco tão facilmente, na cena mais possível do seu corpo e do para dizer: «Mas... estou bloqueado, que ção do aluno para a «Noção de tempo»...
de um teatro? Não... Esses atos quotidianos seu peso. devo fazer?» Ele sente que a pessoa fica que, evidentemente, está intimamente liga-
são inclusive aqueles que ele vai pôr o maior bloqueada quando se põe fora do jogo não da à noção de ritmo. A medida do tempo está
tempo para realizar corretamente. Quantos Estendido no chão, com o rosto coberto vivendo a sua personagem, nos silêncios e subordinada ao interesse e à intensidade dramá-
atores sabem «escutar»? E isso é pelo menos por uma meia-máscara, relaxe, procurando no diálogo. Compreende que o ritmo vivi- tica... Ela é difícil de adquirir no teatro pelo
tão importante quanto saber falar. O mes- o aniquilamento total. fica a própria imobilidade, porque coman- fato de não ser a mesma da vida:
mo ocorre quanto a «ver», quanto a «tocar» Um vento leve roça o seu rosto, cor- da as nossas pulsações, e se manifesta tanto Escreva uma carta de ruptura... Como
um objeto. Quanto à caminhada, pode-se re sobre o seu corpo; você abre os olhos e numa crispação dos dedos da mão quanto você o faria na vida;
afirmar que nem um só principiante sabe «descobre» o mundo: o céu, a terra, a ve- no salto do dançarino; de agora em diante Escreva a mesma carta durante uma
caminhar em cena. Convém fazer com que getação; sentirá a necessidade do ritmo na palavra pequena improvisação num tempo possí-
executem exercícios do tipo dos seguintes: Conforme o seu temperamento, sentirá como no gesto. vel no teatro...
uma sensação de plenitude, de alegria ou Para favorecer o desenvolvimento do A tendência do ator é, em geral, encur-
Caminhar na rua passeando... de força, ou até de terror. Você se levantará sentido do ritmo, a maioria dos exercícios tar, passar rapidamente de uma idéia a ou-
Ir rapidamente de um ponto a outro... ainda pesadamente, com as pernas presas que se inventam são utilizáveis, consideran- tra; por estar em cena, esquece os valores
Caminhar dentro do quarto... no chão; no céu nuvens passam; vem a von- do-os por esse ângulo particular; no entan- reais.
Caminhar na neve... tade de as alcançar ou o medo do mistério; to, é bom variar-lhes a natureza para habi- Para lhe lembrar tais valores, é preciso
Caminhar na areia de uma praia, Você vê uma fonte, aproxima-se dela, a tuar o aluno a pôr ritmo em tudo o que faz... insistir em exercícios simples...
etc., etc. água lhe devolve a sua imagem; você quer Você caminha com um sentimento de
pegar a imagem, a água lhe foge por entre alegria interior profunda... «Debruçado sobre um poço, dei-
A vantagem da Improvisação reside os dedos... xe cair uma pedra. Calcule instin-
em que, seguindo um método gradativo, Você pára; se levanta...Torna a cami-
nhar. (As mudanças de atitude não devem per- tivamente o tempo da queda...»
podem-se desvendar os defeitos de um
aluno e tentar corrigi-los imediatamente, O sol se mostra e o ofusca... turbar o ritmo.)
Você caminha dominado por um senti- Quando o aluno tiver captado bem essa
inventando o exercício que lhe convém. De noção de tempo vinculada intimamente à
modo geral, o inimigo nº 1 é a «contração»: mento de tristeza... Pare... Sente-se... Cami-
O sangue que circula em suas veias, a nhe de novo... de ritmo, e que na maior parte dos casos a
ela equivale a uma espécie de semiparalisia. vida que sente dentro de si o levam a rea- comanda, aproveite esse mesmo exercício
No ator de ofício, a contração vem, no mais Aí, é a «Voz de si mesmo» que coman-
ções físicas violentas; você se desprende da da o ritmo e o preserva de uma agitação para chamar a sua atenção para a plástica.
das vezes, da preocupação que ele tem com terra e improvisa uma dança...» Aí , a «improvisação» é de longe o me-
o «público»... Que será que o público vai gratuita... Você encontrará no andar dos
São tantas as dificuldades desse exercí- animais exemplos excelentes: lhor treinamento para adquirir uma plásti-
pensar dele? Ao se absorver no jogo é que cio que a sua realização é raramente satis- ca de natureza teatral.
conseguirá se descontrair... Quer dizer: ao Movimento contínuo do felino... (Rit-
fatória, mas o esforço que exige do aluno mo em todo o corpo.) O aluno que executou o exercício da
opor ao fator de perturbação trazido pela desperta nele reflexos que o farão progre- descoberta do mundo recorreu imediata-
«Voz do Mundo» a «Voz de si mesmo». O gato que espreita um rato... e... pula
dir rapidamente. sobre ele... (Não deixar o aluno imitar o gato, mente a atitudes convencionais ou, se tiver
Eu já disse que era esse o próprio princípio Ao mesmo tempo em que leva à des- um pouco de talento para a dança, ter-se-á
da improvisação... Mas a contração nem sem- mas estimulá-lo a traduzir as imagens por uma
contração, um exercício desse tipo vai mos- plástica humana.) inspirado mais ou menos numa técnica de
pre é ditada pela vaidade: ela pode ser dita- trar ao aluno a importância do Ritmo e da dançarino; ora, a plástica que convém ao
da por um pudor muito apreciável, muito Plástica. teatro não é a que convém para a dança,
sincero; os verdadeiros «apaixonados» são Quanto ao curso de dicção, o aluno assim como a ciência do cantor não o é para
aqueles que no início sofrem mais com essa declama uma cena de tragédia ou recita a do ator.

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Se o circo e o music-hall herdaram a tra- Passe depois para uma fonte de ins- dicção mecânica: deve servir para prepará-lo, direta. Vamos momentaneamente, e sem
dição dos bufões e dos improvisadores da pirações quase inesgotável: as silhuetas de para flexibilizá-lo — é um meio, não um fim. atacar essa personalidade profunda, pe-
Commedia dell´Arte (o cantor cômico atribui animais. Há pouco chamei a atenção para o in- dir ao ator para fazer tabula rasa de todas
importância tão grande às suas atitudes Um dia, alguém perguntava ao arle- teresse em usar a meia-máscara nos exercí- as pequenas comiserações que ele possuía
quanto à sua voz), com demasiada fre- quim Thomazi em que escola ele havia cios plásticos. Dei razões práticas para isso: em relação a si mesmo, dos seus tiques,
qüência o ator de teatro é amorfo; o desejo aprendido a utilizar o corpo com tanta das suas manias, inclusive das suas ama-
de aparecer em cena tal qual é na vida faz graça, e ele respondeu: «Olhando os gatos 1º Proteger o aluno da timidez, favorecer bilidades. Trata-se de uma espécie de «des-
com que não ouse se comportar em cena de pequenos brincarem»... a sua descontração; pojamento» que o preparará para uma arte
2º Incitá-lo a utilizar todo o corpo para ex-
modo diferente que na vida privada. Essa Para esses exercícios, cubramos a par- pressar. mais objetiva e de maior envergadura.
plástica de teatro vai da atitude nobre da te superior do rosto com uma meia-más-
tragédia à caricatura grotesca. cara, para deixar todo o valor expressivo A seguir, trataremos, com a improvisa-
A improvisação vai-lhe revelar primei- para a silhueta.
Exercícios de máscaras:
ção, do estudo da máscara de teatro. Nem
ro a sua utilidade e lhe impor o seu uso. Ela Já a utilizamos para o ritmo do cami- o trabalho nem os objetivos para serem al-
o obrigará a primeiramente compor toda nhar dos felinos... cançados são, aqui, os mesmos. Escolha uma máscara, dê essa máscara
silhueta por dentro (voz de si mesmo), en- Entreguemo-nos, agora, a improvisa- Uma máscara tem uma vida própria, a um aluno, para que a estude fora da aula.
quanto a arte da dança conduz o gesto pela ções a partir do «cisne», do vôo da andori- que, aliás, nem sempre é a que o escultor Peça que procure primeiro o caminhar que
simples beleza do gesto. Entretanto, a neces- nha, da águia que paira, do pato, do peru. quis dar a ela. Muitas vezes há algo que es- lhe convém, a posição da cabeça, e, quan-
sidade de estilizar gestos quotidianos ou de O sucesso da apresentação de As Aves capa ao criador. Pegue uma máscara bem do estiver pronto, mande-o executar os
expressar um sentimento por uma atitude e, mais tarde, de Plutus, no Atelier [Ateliê] feita: estude essa máscara em todos os as- primeiros exercícios, chamando a atenção
fará com que busque expressões corporais foi em grande parte baseado nesse trei- pectos, viva com ela; faça dela uma com- para a importância dos músculos da barriga.
próprias à arte do ator, que não serão redun- namento específico, que permitiu que eu panheira, seja seu confidente. Nada me De fato: se você observar estampas de
dantes em relação à palavra, e ao mesmo desse ao coro de Aristófanes todo o seu parece mais irritante do que ver um aluno atores japoneses, perceberá que quase todas
tempo realçarão as suas composições. valor poético. pular em cima de uma máscara e usá-la as atitudes são comandadas pelos músculos
Para desembaraçar o aluno nessa pes- Para fecundar a imaginação dos alu- como um vendedor de artigos de moda o da barriga, e muitas vezes, ao fazer com que
quisa, dê a ele exercícios muito simples, nos, faça com que leiam entre dois exer- faria com uma máscara de carnaval. Tem- alunos trabalhassem, eu não podia me impe-
mas que vão apelar para a sua imaginação: cícios poemas ou fábulas de La Fontaine. se a impressão de um sacrilégio. Porque a dir de lembrar os conselhos daquele ator que
Encene uma fábula de La Fontaine... Nun- máscara tem um caráter sagrado. Requer fazia o papel principal nos melodramas, o
Uma rua às 5 horas da manhã... ca tolere a imitação pueril. A fim de fazer um público de iniciados. Na maior parte qual me repetia fastidiosamente: «Enquanto
com que seja bem compreendido o víncu- do tempo, a multidão só verá nela um tema você não souber se apoiar nos músculos da barriga,
Cada aluno deve inventar uma silhue- lo entre a plástica e o sentimento dramáti- de zombaria. Muitas vezes foi feito um uso lhe faltará autoridade». Aquele ator certamen-
ta de personagens que são encontráveis nas co, proponha um exercício do tipo deste: inconsiderado de experiências de escola. te ignorava tudo sobre o teatro do Extremo
ruas de Paris por volta dessa hora, «aque- Mas não se buscou mais longe. Quis-se vol- Oriente, mas o seu ofício de «incendiário dos
les que se dirigem para o trabalho...» «No verão, na neve. Uma coruja se apro- tar atrás, ressuscitar formas desaparecidas. palcos»2A havia feito com que reencontrasse
xima de uma casa, atraída pela luz. A luz
Erro. O uso da máscara no teatro moderno uma velha lei, que vem, sem dúvida, das eras
«Aqueles que estão saindo do trabalho...» a ofusca. Ela se apaga. A coruja fica sozi-
nha. Vai morrer. Morre». não precisa ser descoberto, mas precisa ser mais recuadas do teatro.
«Folgazões, mendigos, etc...»
criado inteiramente. Ele condiciona uma
Insistir, passando pela influência da Atingimos aqui a arte da pantomima. dramaturgia que ainda não encontrou o
Tema de improvisação com máscara:
atmosfera (contribuição exterior, Voz do Devemos, no entanto, permanecer no plano seu poeta. Nem o diálogo, nem o tom, nem
Mundo): teatral, a fim de não nos perdermos mistu- o ritmo da nossa tragédia convêm a tentati-
A mesma rua ao meio-dia, num dia de rando os gêneros. A pantomima tem leis pró- vas desse gênero. «Você é obrigado a atravessar uma tor-
verão muito quente... prias, regras próprias. Deve expressar tudo Na «improvisação», o objetivo que va- rente de montanha. Você luta contra a cor-
Às seis horas da tarde, no fim da jor- pelo gesto. Pode, deve até, como a dança, se mos perseguir é mais de ordem psicológica rente. Você supervalorizou as próprias for-
nada... compor de fora. Ela é o drama inteiro. No tea- do que prática. ças: a corrente o está arrastando. Você luta
tro, a plástica está a serviço do drama interior; sua O uso da «máscara» acarreta uma des- desesperadamente, perde pé. Você se afoga».
qualidade, sua raridade dependem dessa nu- personalização forçada do ator. Encontro à margem do meu livro de
Dê elementos de silhueta: ança judiciosamente observada. Para obter Até hoje, todos os nossos estudos, con- bordo da escola: este exercício foi executa-
tal resultado, repito, o aluno deve ater-se pa- trariamente a isso, procuraram exaltar a do pela primeira vez por Antonin Artaud e
«Tensão do surdo» que procura ouvir. ralelamente a um treinamento corporal: dan- personalidade do ator; tais estudos vive- por Marguerite Jamois. Nessa mesma aula,
«Modo de olhar de um míope... » ça clássica, sapateado, esgrima, pantomima pura. ram com as suas próprias sensações, foram
«A caminhada de um vaidoso...» Esse treinamento deve ser o equivalente da buscar a sua sensibilidade na forma mais 2 A «Brûleur de planches»: aquele que atua com um arrebatamento
«De um manequim de casa de alta costura.» comunicativo. ― Nota do Tradutor.

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Marguerite Jamois fazia uma improvisa- nalidade própria e finalmente acostumou cimento nos vagidos e numa semiconsci- não se abarrota com tradições: irá cada vez
ção plástica inspirada por «La Violette» [A essa personalidade e a levou ao encontro ência, uma adolescência impetuosa, irre- mais rumo a uma arte coletiva. É a sua força.
Violeta]. Ele foi retomado alguns anos mais do «Drama» (contendo este em si tudo o sistível em seus ímpetos, uma maturidade Não faz isso para ser «moderno»: faz isso
tarde por Jean-Louis Barrault. que as propostas de exercício abrangiam, a consciente da força e da sabedoria adquiri- porque é moderno. No Cinema, o autor ou
No trabalho da máscara, o aluno-ou- saber: o mundo e os seus elementos, e a sua da, e depois a velhice... A velhice do Velho os autores do filme têm o seu lugar, o ator
vinte deve poder tirar por si indicações pre- substância dramática). Nesse momento, Saltimbanco descrito por Baudelaire: «em o dele; o operador e os seus auxiliares, ma-
ciosas do que vê: os graus de inclinação da ele poderá abordar com uma compreensão cuja tenda já não se entra». quinistas, eletricistas, o decorador — todos
máscara, a direção do olhar, a importância mais aguçada, com uma lucidez de artista, Bufões, farsantes, atores nômades, os artesãos trabalham sob a direção de um
do primeiro plano que de repente o mínimo o estudo dos grandes dramas shakespea- herdeiros dos mimos antigos e das Atela- «mestre de obras», o encenador, que tam-
gesto pode adquirir. Ele captará facilmente o rianos, do teatro grego, do teatro espanhol nas se reúnem: formam uma coletividade bém está submetido a uma disciplina cole-
mecanismo particular para o qual todos os e do nosso patrimônio em toda a sua varie- de atores que vai criar uma forma de arte tiva. Será que por isso a obra é impessoal?
centros de atividade estão deslocados. É raro dade de gêneros. dramática na qual a participação particular Não... Porque apesar de um mercantilismo
que o aluno um pouco prendado não se apai- Se, agora, eu me afastar um pouco do de cada um se fundirá no conjunto. Prove- odioso, apesar de combinações financeiras
xone por esses exercícios. Ele experimenta o ensino prático e se procurar um interesse nientes de diversas províncias, essas perso- sórdidas, o cinema continua a ser, ainda as-
seu caráter sagrado: um pouco de «magia», de ordem geral, direi que esse método de nagens bastante informes inicialmente, que sim, atualmente, uma arte cheia de possibi-
um sentimento de grandeza, a atração do improvisação é o único que pode formar nem sequer falam o mesmo dialeto, se aper- lidades e de futuro.
mistério, o ligam um pouco mais àquela arte atores aptos para uma arte coletiva. feiçoam, se esmeram, se enriquecem; com Eu o situo propositadamente entre a
do ator desonrada com excessiva freqüência Eu já disse tanto que «a Improvisação» roteiros inspirados no teatro escrito, ou no Commedia dell´Arte e o Teatro do Extremo
por miseráveis tarefas de histrião. não queria recomeçar a experiência dos folclore popular, improvisam; num quadro Oriente, pois, em sua velha aristocracia,
Eu disse, acima, que tais exercícios acar- Atores Italianos, que o teatro era uma arte fixo de caracteres bem definidos, dão livre este último também é uma arte coletiva.
retavam uma despersonalização forçada do completa em si, que não se deviam mistu- curso à imaginação, à fantasia. Enquanto Querer impor ao nosso teatro ocidental
ator. Sim, porque desta vez ele vai parcial- rar os gêneros, a tal ponto que agora posso se esqueceram os nomes de quase todos os as regras de um teatro feito por uma longa
mente compor a partir do exterior, como me permitir voltar às próprias fontes que me atores da Comédia escrita, famílias inteiras tradição, que tem uma linguagem simbóli-
o dançarino que trabalha diante de um es- inspiraram no decorrer desses trabalhos e in- de «improvisadores» estão ligadas à histó- ca bem dele, seria um erro grosseiro, mas
pelho grande: os movimentos já não serão fluenciaram indiretamente todas as minhas ria do teatro durante mais de dois séculos; não tirar vantagem dos exemplos admi-
comandados pelas próprias sensações, mas realizações teatrais: a Commedia dell´Arte, os depois do crescimento laborioso dessa arte ráveis de transposição ao mesmo tempo
exigidos pela «máscara», que substitui a teatros do Extremo Oriente e o Cinema. nova, eis a aparição irradiante e quase irre- realista e poético, efeitos que ele extrai da
personalidade dele pela dela. Tenho o prazer de notar que quando al de uma Isabela Andreini, a do Arlequim plástica e do ritmo, seria absurdo.
É a arte de composição por excelência: Riccobini3B, «o reformador», queria expul- Dominique, a do Pantaleão Antonio Ric- Em arte, todo o mundo pega a sua ri-
o ator se tornará forçosamente mais obje- sar da cena os histriões que então a deson- cobini, a do apaixonado Silvio Calderoni queza onde a encontra; é a escolha dos ma-
tivo, mais mestre da sua arte... Os tiques, ravam, se atinha ao próprio princípio da e a de tantos outros; a arte se desenvolve teriais e a utilização que ele consegue fazer
os hábitos, as manias dele, que tinham um Commedia dell´Arte, mas apesar disso reserva- e se decanta; os figurinos se embelezam, a deles que distingue o verdadeiro artista...
encanto na vida corrente, se dissolverão va a escola da improvisação para formar verda- plástica se torna cada vez mais rara. Estão O que nos importa, no momento, é que es-
pouco a pouco e só reaparecerão como ma- deiros atores. vivas as imagens que, na seqüência, ins- sas três formas de arte, de épocas diferen-
teriais de construção e não como constru- É muito provável que Luigi Riccobi- piraram tantos poetas: deambulam pela tes, que já demonstraram o seu valor, são
ções em si. ni tivesse razão quando empreendeu essa Europa toda para levar a todos os países a formas de arte coletiva.
cruzada contra os histriões da Commedia sua mensagem... Depois... a coletividade se Se quiser encontrar a sua força e a sua
* dell´Arte, então em decadência: tratava-se desagrega; o público se cansa; é o declínio, originalidade, o Teatro do futuro não esca-
*** duma arte tão ligada à compleição de cada chega Molière... A comédia escrita triunfa... pará a isso.
Vimos que o ator tomou conhecimento ator que teria de sofrer, mais cedo ou mais O último Arlequim de raça, Carlino, velho, Estamos sempre clamando por um gê-
de si mesmo; da sua personalidade despoja- tarde, a sina de todo corpo vivo: um nas- desencantado, por volta de 1777 representa nio dramático, esperamos a cada tempora-
da e profunda; e até pôde adquirir algumas pobres paradas nos jardins do Trianon, sob da «um Messias».
3 B A edição de 1946 traz a grafia Riccobini, em vez de Riccoboni, a cada vez que
luzes sobre a originalidade das suas apti- o olhar indiferente das cortesãs e dos cria- Temos certeza absoluta de que a forma
o nome é citado. —Trata-se de Luigi Riccoboni (Módena,1676 – Paris, 1753).
dões, sobre a raridade dos seus dons. Ator e escritor italiano da primeira metade do século XVIII. Seu nome artístico dos de cozinha. que nós lhe oferecemos, em 1946, requer
Aprendeu a não se isolar do mundo era Lélio. Figura de ator-intelectual, chefe de companhia do Teatro Italiano O tempo passa; o mesmo milagre de esse gênio? Temos certeza absoluta de que
em Paris. Autor de Dell´arte rappresentativa. Pedagogia e critica
exterior e tangível (embora de convenção) di un comico italiano a Parigi [Da Arte Representativa. Pedagogia e arte coletiva se reproduz no cinema. ele se sente chamado por uma arte que vive
critica de um cômico italiano em Paris], livro publicado em Londres, em 1728;
que é a atmosfera viva de toda e qualquer de Nouveau Théâtre Italien [Novo Teatro Italiano]; de Lettre d´un Será que se pode não ver um parentes- de repetições e, com muita freqüência, soa
arte; a rejeitar tudo o que pode ser imita- comédien français au sujet de l´histoire du Théâtre Italien co íntimo entre a primeira companhia de oco... A perspectiva de não ser compreendi-
[Carta de um ator francês sobre a história do Teatro Italiano]. No início do
tivo puro (e, portanto, inoriginal e velho); século XVIII, L.R. queria reformar o teatro italiano e equipará-lo em qualidade Charlie Chaplin e uma dessas companhias do, de não ver a sua obra representada, pelo
adquiriu as noções que lhe permitirão ir até aos teatros francês, inglês e espanhol. Afastou-se da figura do ator italiano da Comédia Italiana? menos em vida, não estimula o jovem autor
bufão de corte, mas foi obrigado pelo público – habituado com os arlequins – a
o limite extremo da expressão da sua perso- retomar os roteiros antigos. — Nota do Tradutor. Mas sendo uma arte nova, o cinema para procurar obras novas.

178 Charles Dullin Improvisação 179


U rdimento N° 18 | Março de 2012

As disciplinas coletivas impostas pelo


trabalho «de improvisação», ao mesmo
tempo que a cultura individual, são meios
excelentes para preparar o instrumento fa-
vorável à eclosão de um movimento teatral
moderno.
Para uma coletividade ter uma vida
artística, é preciso que cada indivíduo que
a compõe seja bastante educado para pro-
curar a perfeição na parcela de colaboração
que lhe está reservada. Não se trata de pe-
dir ao ator para ser escritor, ao maquinista
para ser encenador, mas ao ator que passe
para o plano vivo o trabalho do escritor,
sem lhe desnaturar o espírito; ao maquinis-
ta, para trazer todos os seus conhecimentos
práticos para a realização do encenador —
tudo isso, ademais, com aquele «algo» que
vai fazer com que a obra teatral que se be-
neficia da contribuição de cada um se torne
a obra de todos...
Na organização social, cuja gestação é
tão longa, tão mortífera, o teatro deve con-
siderar fórmulas novas, se quiser manter o
seu lugar.
Entre as qualidades que a «improvisa-
ção» desenvolve no ator, a integração do
esforço individual num trabalho coletivo é
certamente um dos aspectos mais interes-
santes do problema, que posso apenas aflo-
rar nos limites deste capítulo.]

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180 Charles Dullin

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