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Colisado de direitos fundamentais: liberdade de expressdo e de comunicagao e direito a honrae a imagem Gilmar Ferreira Mendes, Procurador da Repi- Bioa, ¢ Mestre em Dizeit pela UnB ¢ Dowtor em Direito pela Universidade da Manster Brasilia a, 31 n? 122 mai.jul. 1994 Gruman Ferreira MENDES: Muito se tem discutido entre nés sobre os limites de liberdade de imprensa ¢ da liberda- de artistica em relagdo aos direitos de perso- nalidade, especialmente em relagdo ao direito a intimidade, a vida privada, & honra ¢ a ima- gem. Afirma-se, muitas vezes de forma categ6- rica, que, tendo a Constitui¢ao estatebelecido a proibigdo de censura, no poderia a autor dade publica, no caso, érgao do Poder Judici tio, intervir para evitar a divulgagao de noti as ou obra artistica lesiva aos direitos de per- sonalidade de qualquer cidadao. Sustenta-se que, nesse caso, eventual abuso haveria de re- solver-se em perdas ¢ danos. Significa dizer que. apés a violagdio do di- teito tido pela Constituigdo como invioldvel, poderd o eventual atingido pedir a reparagiio pela lesio sofrida. Diante dos termos perempt6rios em que se encontra formulado o art. 5°, X, da Constitui- do — sao invioléveis 4 intimidade, a vida privada, @ honra e imagem das pessoas (...) —, parece evidente que 0 constituinte nao pre- tendeu assegurar apenas eventual direito de reparagdo a0 eventual atingido. A referéncia que consta da parte final do dispositivo — as- segurado 0 direito a indenizagao pelo dano ‘material ou moral decorrente de sua violagao — somente pode dizer respeito aos casos em. que no foi possivel obstar a divulgagtio ou a publicagdo da matéria lesiva aos direitos da personalidade. Esse entendimento mostra-se tao evidente- mente correto que mais parece a enunciago de um truismo. Ou, como diria o Conselheiro Acacio, aquilo que é inviolavel néo pode ser violado Mais ainda. Sea ConstituigSo assegura no 86 inviolabitidade do direito, mas também a a efetiva protegdo judicidria contra lesto ou ame- aga de lesdo a direito (CF, art. 5°, XXXV), no poderia o Judiciério intervir para obstar a configuragao da ofensa definitiva, que acaba acarretando danos efetivamente irreparaveis? Que significaria a garantia de protegdo judici- aria efetiva contra lesdo ou ameaga de lesfo a dirvito se a intervengo somente pudesse se dar apés a configuragao da lesto? Pouco, certamen- te, muito pouco! Nao é verdade, ademais, que 0 constituinte conceben a liberdade de expresso como direi- to absoluto, insuscetivel de restrigao, seja pelo Judicidrio, seja pelo Legislativo, 1d a formula constante do art. 220 da Constituigdo explici- ta que “a manifestagdo de pensamento, a cria- edo, a expressio ¢ a informagdo, sob qualquer forma, ou veiculo nao sofrerao qual- quer restri¢ao, observado o disposto nesta Constituigao”. E facil de ver, pois, que 0 texto constituci- onal no excluiu a possibilidade de que se in- troduzissem limitagdes a liberdade de expres- so ¢ de comunicacao, estabelecendo, expres~ samente, que o exercicio dessas liberdades ha- veria de se fazer com observancia do disposto na Constituigo. Nao poderia ser outra a ori- entagao do constituinte, pois, do contrario, outros valores, igualmente relevantes, queda- iam esvaziados diante de um direito avassa- lador, absoluto ¢ insuscetivel de restrigao. Mais expressiva, ainda, parece ser, no que tange a liberdade de informagao jornalistica, a cléusula contida no art, 220, § 1.°, segundo a qual “nenhuma lei conterd dispositive que pos- sa constituir embarago 4 plena liberdade de informagio jornalistica em qualquer veiculo de comunicagao social, observado 0 disposto no art, 5.8, IV, V, X, Xille XIV”. ‘Como se vé, a formulagdo aparentemente ‘negativa contém, em verdade, uma autoriza- ¢40 para 0 legislador disciplinar 0 exercicioda liberdade de imprensa, tendo em vista sobre- tudo a proibi¢4o do anonimato, a outorga do direito de resposta ea inviolabilidade da inti- midade da vida privada, da honra ¢ da ima- gem das pessoas. Do contrério, nao haveria ‘azfo para que se mencionassem expressamen- te esses 10s como limites 0 exerci- Goth tberdate de imprensa. a Temse, pois, aqui expressa reserva legal quali) ificada, que autoriza 0 estabelecimento de restrigo A liberdade de imprensa com vistas a reservar outros direitos individuais, nao me- ‘os significativos, como os direitos da perso- nalidade em geral. Essas colocagtes hao de servir. pelo me- ‘nos, para demonstrar que o tema no pode set tratado da maneira simplista ou até mesmo sim- pléria, como vem sendo apresentado até por alguns juristas. ‘Como se vé, ha uma inevitével tensio na relagdo entre a liberdade de expressio ¢ de co- municagdo, de um lado, ¢ os direitos da perso- nalidade constitucionalmente protegidos, de ‘outro, que pode gerar uma situago conflituo- sa, a chamada colisto de direitos fundamen- tais (Grundrechtskolliston). E fecunda a jurisprudéncia da Corte Cons- titucional alemd sobre o assunto, especialmente no que se refere ao conilito entre a liberdade de imprensa ou a liberdade artistica ¢ os direi- tos da personalidade, como o direito a honra ¢ A imagem. Ressalte-se, ainda. que. tal como 0 ordenamento constitucional brasileiro, a Lei Fundamental de Bonn proibe, exp a censura a imprensa (LF, art. 5.°, 1). A propésito da problematica. mencionem- se duas decisdes importantes proferidas pela Corte Constitucional alema. Na decisio de 24 de fevereiro de 1971, re- Iativa & publicagdio do romance Mephisto, de Klaus Mann, reconheceu-se 0 conflito entre 0 direito de liberdade artistica e os direitos de personalidade enquanto derivagdes do princi- io da dignidade humana’. O filho adotivo do lecido ator ¢ diretor de teatro Gustaf Griind- gen postulou perante a justica estadual de Ham- burgo a proibigao da publicagdo do romance Mephisto com 0 argumento de que se cuidava de uma biografia depreciativa e injuriosa da memoria de Grindgen, caricaturado no roman- ce na figura de Hendrik Hofgen. O tribunal estadual de Hamburgo julgou improcedente a agdo. O romance foi publicado em setembro. de 1965 com uma adverténcia aos leitores, as- ‘sinada por Klaus Mana, afirmando que “todas as pessoas deste livro sdo tipos. ndo retratos de personalidade” (Alle Personen dieses Buchs stellen Typen dar, nicht Portrats, K. M.). ‘Com fundamento em uma medida liminar deferida pelo Tribunal Superior de Hamburgo, acrescentou-se & publicagéo uma adverténcia as leitores na qual se enfatizava que. embora cconstassem referéncias a pessoas, as persona- 1. BVerfGE 30. gens haviam sido conformadas, fundamental mente. pela “fantasia poética do autor” (dichte- rische Phantashie des Verfassersy. Posteriormente, concedeu o tribunal o pe- dido de proibigao da publicagao, tanto com fundamento nos direitos subsistentes de per- sonalidade do falecido teatrélogo, quanto em direito auténomo do filho adotive, Como o piblico dificilmente poderia distinguir entre poesia realidade, sendo mesmo levado a iden- tificar na personagem Hofgen a figura de Griindgen, ndo havia como deixar de reconhe- cer 0 conteiido injurioso das afirmagdes conti- das na obra’, O direito de liberdade artistica no teria precedéncia sobre os demais dirci- tos. devendo. por isso, 0 juizo de ponderagao entre a liberdade artistica ¢ os direitos de per- sonalidade ser decidido, na espécie, em favor do autor+ © Supremo Tribunal Federal (Bundesgeri- chishof) rejeitou a revisio interposta sob a ale- gagdo de que o diteito de liberdade artistica encontra limite imanente (imannente Begren- zung) no direito de personalidade assegurado constitucionalmente’. Esses limites so viola- dos sc, a pretexto de descrever a vida ou a con- duta de determinadas pessoas. se atribui a elas prdtica de atos negativos absolutamente estra- hos @ sua biografia, sem que sc possa afir- ‘mar, com seguranga. que se cuida, simplesmen- te, de uma imagem hiperbélica ou satfrica’ A editora recorrente sustentou na Ferfas- sungbeschwerde impetrada que as decisdes dos tribunais violavam os artigos 1, 2. 1, 5, Le Il, 14 (direito de propriedade) ¢ 103, 1, todos da Lei Fundamental, bem como os postulados da proporcionalidade ¢ da seguranca juridica, © Tribunal Constitucional reconheceu que a descrigdo da realidade integra 0 ambito de protecdo do direito de liberdade artistica. isto ¢, a chamada arte engajada nao estaria fora da protecao outorgada pelo art. 5.°, Il. da Lei Fun- damental’. A ementa do acérdao fornece boa sintese dos fundamentos da decisdo: 2. BVerfGE 30, 173 (177). 3, BVerfGE 30, 173 (178), 4. BVerfGE 30, 173 (178). 5. BVerfGE 30. 173 (181). 6. BVerfGE 30. 173 (181). 7, BVerfGE 30, 173 (190-191). 22 mal.jjul. 1994 “NO 16 1. Art, 5. Ill, 1° periodo da Lei Fundamental representa uma norma ba- sica da relagao entre o Estado e o meio artistico. Ele assegura, igualmente, um direito individual 2. A garantia da liberdade artistica abrange ndo s6 a atividade artistica, como a apresentagiio e a divulgagdo das obras de arte 3. 0 diteito de liberdade artistica protege também o editor. 4. A liberdade artistica no se apli- cam nem a restrigdo do ant. 5.°, Il. nem aquela contida no art. 2°, I, .°'periodo. 5. Um contflito entre a liberdade ar- tistica e 0 Ambito do direito de persona- lidade garantido constitucionaimeme deve ser resolvido com fulero na ordem de valores estabelecida pela Lei Funda- mental; nesse sentido, ha de ser consi- derada. particularmente, a garantia da inviolabilidade do principio da dignida- de humana consagrada no art. 1, I” (De- cisto da Corte Constitucional, vol. 30, p. 173), Reconheceu-se, pois, que, embora nde hou- ‘yesse reserva legal expressa, o direito de liber- dade artistica nao fora assegurado de forma ilimitada, A garantia dessa liberdade, como a de outras constitucionalmente asseguradas, ndo poderia desconsiderar a concepgio humana que balizou a Lei Fundamental, isto é. a idéia de homem como personalidade responsivel pelo seu préprio destino. que se desenvolve dentro da comunidade social®. © nao-estabelecimento de expressa reser~ va legal a0 dircito de liberdade artistica signi- fica que eventuais limitagdes deveriam decor- rer, diretamente, do texto constitucional. En- quanto clemento integrante do sistema de va- lores dos direitos individuais. o direito de li- berdade artistica estava subordinado ao prin- cipio da dignidade humana (LF, art. 1.°), que, como principio supremo, estabelece as linhas gerais para os demais direitos individuais’. O modelo de ser humano. pressuposto pelo art. 1°, 1, da Lei Fundamental, conformaria a ga- antia constitucional de liberdade artistica. bem ‘como esta seria influenciada, diretamente. pela 8, BVerfGE 30, 173 (193) 9. BVerfGE 30, 173 (193) concepgao axiolégica contida no art. 1.°, Pe. ‘No caso em aprego, considerou-se que os tribunais ndo procederam a uma aferigdo arbi- traria dos interesses em conflito. mas, a0 re- vés, procuraram avaliar, de forma cuidadosa, ve a possibilidade de determi <0 limitada do romance (publicagdo com es- Clarecimento obrigat6rio)". Contemple-se, por derradeiro. 0 chamado “caso Lebach”, de 5 de junho de 1973, no qual se discutiu problemdtica concernente & liber- dade de imprensa face aos direitos de persona- lidade, Cuidava-se de pedido de medida limi- nar formulade perante tribunais ordindrios por tum dos envolvidos em grave homicidio — co- nhecido 0 “assassinato de soldados de Leba- — Der Soldatenmord von Lebach —con- tra a divulgagao de filme, pelo Segundo Canal de Televisio (Zweites Dewisches Fernsehen — ZDF), sob a alegacdo de que. além de lesar os seus direitos de personalidade, a divulgagdo do filme, no qual era citado nominalmente, difi- cultava a sua ressocializagdo. O Tribunal esta- dual de Mainz e, posteriormente, 0 Tribunal Superior de Koblenz ndo acolheram o pedido de liminar, entendendo, fundamentalmente, que 0 envalvimento no crime fez com que o impetrante se tornasse uma personalidade da historia recente ¢ que o filme fora concebido ‘como um documentario destinado a apresen- tar 0 caso sem qualquer alteragao". Eventual conflito entre a liberdade de im- prensa, estabelecida no art.$.°, I, da Lei Fun- damental, ¢ os direitos de personalidade do impetrante, principalmente 0 direito de resso- Giang, haveria de ser decid em favor da divulgagao da matéria, que correspondia dielto de informagdo sobre tema de inequlve- co interesse piblico”» © recurso constitucional (Iérfassungsbes- chwerde) foi interposto sob alegagdio de ofensa aos artigos 1°, I (inviolabilidade da dignidade humana), e 2.5 1, (...) da Lei Fundamental, A Corte Constitucional apés examinar 0 documentario ¢ assegurar 0 direite de mani- festago do Ministério da Justiga, em nome do Governo Federal, do Segundo Canal de Tele- 10. BVerfGE 30, 173 (195). 11, BVerfGE 30, 173 (199). 12. BVerfGE 35, 202 (207), 13. BVerfGE 35, 202 (207.208). visdo, do Governo do Estado da Renania do Norte-Vestfalia, a propésito do eventual pro- ‘cesso de ressocializagdo do impetrante na sua cidade natal, do Conselho Alemo de Impren- sa, da Assciagto Alem de Editors, e aa especialistas em execugao penal, psicologia social e comunicagao, deferiu a medida Jada, proibindo a divulgagao do filme, até a decisto do processo principal, se dele constas- se referéncia expressa a0 nome do impetran- te Ressaltou 0 Tribunal que, ao contrario da ‘expressiio literal da lei, o direito a imagem no se limitava a propria imagem, mas também as representacées de pessoas com a utilizagao de atores'>, Considerou, inicialmente, o Tribunal que os valores constitucionais cm conflito (liber- dade de comunicagao ¢ 0s direitos da Persona lidade) configuram elementos essenci ordem democratico-liberal (/reiheitlich ‘ie mokratische Ordnung) estabelecida pela Lei Fundamental, de ‘mad que nenhum deles deve ser considerado, em principio, superior ao ou- tro. Na impossibilidade de uma compatibili- zagdo dos interesses conflitantes, tinha-se de contemplar qual haveria de ceder lugar, no caso concreto, para permitir uma adequada solucdo da colisio. Em apertada sintese, concluiu a Corte Constitucional: “Para a atual divulgagao de noticias sobre crimes graves tem 0 interesse de informagdo da opinio publica. em ge- ral, prevedéncia sobre a protecdo da per- sonalidade do agente delituoso. Todavia, além de considerar a intangibilidade da esfera intima, tem-se que evar em con- ta sempre o principio da proporcionali- dade. Por isso, nem sempre se afigura Iegitima a designacdo do autor do crime ‘ov a divulgacio de fotos ou imagens ou ‘outros elementos que permitam a sua identificagdo. A protecao da personalidade nao autoriza que a Televisdo se ocupe, fora do ambito do noticiario sobre a atuali- dade, com a pessoa ¢ a esfera intima do autor de um crime ainda que sob a for- ma de documentario. A divulgagao posterior de noticias 14, BVerfGE 35, 202 (204). 15, BVerfGE 35. sobre 0 fato é, em todo caso, ilegitima, se se mostrar apta a provocar danos gra- ‘ves ou adicionais a0 autor, especialmente se dificyltar a sua reintegragdo na soci- edade. E de se presumir que um progra- ma, que identifica o autor de fato delitu- ‘080 pouco antes da concessao de seu Li- vramento condicional, ou mesmo apés a sua soltura, amcaga seriamente o scu Processo de reintegragao social”'*, No processo de ponderagiio desenvolvido para Solucionar © Conflito de direitos indivi- duais ndo se deve atribuir primazia absoluta a ‘um ou a outro principio ou direito. Ao revés, esforca-se o Tribunal para assegurar a aplica- edo das normas conflitantes, ainda que, 10 caso Concreto, uma delas sofra atenuagdo. E 0 que se verificou na decisdo acima referida, na qual restou integro o direito de noticiar sobre fatos 16. BVertGE 3: criminosos, ainda que submetida a eyentuais estrigdes exigidas pela protecdo do direito de personalidade”. Como demonstrado, a Constituigao brasi- leira, tal como a Constituigdo alema. conferiu significado especial aos direitos da personali- dade, consagrando o principio da dignidade humana como postulado essencial da ordem constitucional, estabclecendo a inviolabilida- de do direito a honra e a privacidade e fixando que a liberdade de expressio ¢ de informagao haveria de observar 0 disposto na Constitui- G0, especiatmente 0 esabelecido no an. 5, Portanto, tal como no direito alemao. afi- gura-se legitima a outorga de tutela judicial contra a violagio dos direitos de personatida- de, especialmente do direito 4 honra e a ima- ‘gem, ameagados pelo exercicio abusivo da li- berdade de expresso e de informagao. 17. CL, 4 propdsito, Rufner, Wolfgang. Grun- drechiskonilikte. in Bundesvergassungsgericht und Grundgesete, v. I. p. 469. Brasilia a. 31 304

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