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PRIMEIRA CARTA . Senhor* Nao posso mais conter a veeméncia do sentimento que me assoberba. Uma voz funesta, que abala até as entranhas; voz prenhe de calamidades, percorre neste momento, nao ja a cidade, mas o Império. E fostes vés, senhor, que a langastes como um and- tema ao pais? Em principio, era um sussurro apenas que se esguei- rava na sombra. Agora, jé a opiniao articulou distin- tamente esse verbo de revolugao; 0 eco repercutiu no senado brasileiro. Rompeu-se o véu. Contudo, vacilo. Apesar da incompreensivel coagdo em que desgragadamente vos colocastes, no se concebe este estranho desfalecimento da majestade. 4A série do imperador: novas cartas politicas de Erasmo (Rio de Janeiro: Typ. de Pinheiro e Cia.) consiste em sete missivas dirigidas a D. Pedro 11 entre junho de 1867 e margo de 1868. A segunda, a terceira e a quarta tratam efetivamente da escravidao, assunto central da obra, enquanto a primeira, a quinta e a sexta, mais curtas, analisam as atitudes do Imperador a luz da Guerra do Paraguai. A presente edigio recoloca & disposig&io do leitor todas as pecas, excegio da sétima (denominada “Ultima carta”), um longo discurso moral sobre a politica do Império, Dessa carta, publicada aps um grande intervalo de seis meses, foi selecionado apenas o epflogo, que anuncia o fim da campanha epistolar de Erasmo. 40 | PRIMEIRA CARTA Sera real que vossos labios, selados sempre pela re- serva e prudéncia, se abriram para soltar a palavra fatal? E possivel que subita alucinag3o desvaire a tal ponto um espirito sélido e reto?? Nao creio, ndo posso, nao devo crer. Recebendo a nova incrivel, a populagao ficou aténita. Voz nenhuma elevou-se até 0 trono para exprimir-lhe 0 justo e profundo ressentimento do povo brasileiro: 0 espanto lhe embargara a fala. Porém, que magnitude de eloqiiéncia nessa privagao da palavra! Quanta magna est inania verba,’ exclamou Cicero, observando o tumul- tuoso estupor do povo romano. Escutai, senhor, o intenso respiro da nagio: escutai-o antes que venha o estertor. Rara vez, e sé em circunstancias muito especiais, pode a abdicagao tornar-se um ato de civismo admiravel. *Referéncia A ameaga de abdicagio de D. Pedro 11, em fins de 1866. Depois da pior derrota dos exércitos aliados (Brasil, Argentina e Uruguai) na Guerra do Paraguai, em setembro daquele ano, poli- ticos argentinos e brasileiros aventaram selar a paz com a reptiblica vizinha. Na ocasido, o Imperador insinuou que preferia renunciar 0 trono a suspender a guerra, pois se tratava de “uma paz que nossa honra nao permite”. Confira Francisco Doratioto. Maldita Guerra nova historia da guerra do Paraguai. Si Paulo: Cia. das Letras, 2002, pp. 248-252. As Novas cartas politicas censuram D. Pedro 11 por confundir sua honra pessoal com a honra nacional, que nao seria maculada por um armisticio. SSentenga provavelmente extraida de Cours de littérature fran- gaise, do critico e escritor Abel-Frangois Villemain, que atribuiu ao orador romano a expresso Quam magna et inania verborum (“tao grande e vazia de palavras”), Assim teria Cicero definido Roma no inicio dos tempos, grande nos feitos, vazia na arte oratéria. Cf. Vil- lemain, Cours de littérature francaise — tableau de la littérature au xvitt® siecle, Paris: Didier Libraire-Editeur, 1851, v.1V, p. 37. ALENCAR D. Pedro 1, vosso augusto pai, logrou um lance destes, que o consagrou her@i da paz e da liberdade.* Sua missao estava concluida, havia fundado a monar- quia brasileira e criado um povo. A Providéncia, que o suscitara para a realizagao desse grande acontecimento, nao permitiu que pusesse o remate a sua obra, educando a nagao, filha sua. Era estrangeiro. Esta nacionalidade ardente e im- petuosa que exuberava do nascente império o rechagou a ele, seu fundador, e mais vigorosamente que a ne- nhum outro. Dura lei, mas natural; gérmen que rompe a semente; efeito que elimina a causa. Quando o citune de origem atingiu a sua maior in- tensidade, D. Pedro 1, portugués de nascimento, deixou de ser um monarca, para tornar-se um obstaculo, uma anomalia. A mais veemente das paixées populares, o patriotismo, sublevou-se contra o principio estrangeiro encarnado na sua pessoa. Reconhecer a fatalidade da revolugao, render justiga aos sentimentos naturais, embora exagerados, de um povo e submeter-se singela e nobremente, sem pesar como sem ostentagao, aos designios da Providéncia: sao atos de heroismo e dignidade que a posteridade aplaude. Esta situagao nao é a do Sr. D. Pedro u, felizmente para o Brasil. Americano, como seu povo, com ele nas- cido neste solo abengoado, cresceram ambos ao influxo das mesmas crengas e das mesmas idéias. Nao existe, pois, neste reinado o gérmen das invenciveis repulsdes que operam em divércio entre o monarca e a nagao. Em tais condigées, longe de ser um ato meritério e uma sublime virtude, a abdicagdo transforma-se em crime de lesa-nagio. E um grande perjtrio pelo qual “Alusdo a abdicagio de D. Pedro 1, em 07 de abril de 1831. At AQ PRIMEIRA CARTA respondem os reis ante Deus no tribunal augusto da posteridade. Esta linguagem sera nimiamente’ severa, e talvez impropria de um sidito que se dirige ao soberano. Mas, senhor, quando o monarca chega a falir daquela ma- jestade inviolavel de que o revestiu a vontade nacional, 0 cidadao, agravado no seu direito, oprimido em suas crengas, é um remorso vivo, que se ergue perante a régia consciéncia. IL Penetremos, senhor, nos seios de vossa alma; nao hé nela, estou certo, coisa que se tema de afrontar a publicidade. Meditemos ambos com serenidade as idéias que porventura levaram vosso espirito reto a este desvio incompreensivel. E acaso a guerra, e seu desfecho incerto, o motivo da vossa deploravel intengao? Figuro uma conjectura. O pensamento inicial da politica externa que nos arremessou de chofre 4 campanha de Montevidéu e logo apés, fatalmente, a luta porfiada contra o Paraguai; o gérmen desta vasta complicagiio que envolve o pais foi por vés langado na marcha do governo. Nao basta. Depois de encetadas as operagées mi- litares, quando a guerra se patenteou as vistas menos entendidas em toda a enormidade do sacrificio; a vos unicamente se deve a temeridade com que nos precipita- mos, sem refletir, em uma situagao irremissivel; dilema cruel entre a ruina e a vergonha. *Nimio: excessivo. | ALENCAR Em uma palavra, fostes o principio e sois a alma da guerra. Vosso pensamento a inspirou; vossa convicgao a alimenta; as forgas vivas de vossa personalidade, to- das est&o concentradas nessa aspiragdo grande, imensa, unica, da vitéria: e a vitéria significa Humaita® arrasado, Lopes’ deposto, franca a navegagao ribeirinha. Admito todas estas suposigdes, que vos apresentam como inteiramente identificado com a guerra. Que ra- z40 maior resulta, porém, desse concurso de circunstan- cias, para converter o diadema estrelado de que a nagio brasileira cingiu vossa fronte em coroa de espinhos? Julgo compreendé-la. As reservas da paz e também os recursos ordinarios estao ha muito esgotados pelas despesas exorbitantes. A populagio, nao afeita as lides guerreiras, se esquivara porventura de fornecer novos e maiores subsidios de sangue; especialmente para uma luta avara das glérias e nobres entusiasmos, que somente compensam estes sacrificios cruentos. E possivel, portanto, que em um momento de can- sago e prostragao, o império exausto, nao da seiva, que ¢ opulenta, mas das forgas, que se relaxam; é possivel que deseje pér um termo a luta e assim o ordene. Semelhante possibilidade nao ha brasileiro que a no repila com veeméncia, quando entra no seu coragdo e tempera-se ao calor de um santo patriotismo. Mas *Principal fortaleza do Paraguai, cuja destruigio a Triplice Alianga (Brasil, Argentina e Uruguai) acertara em protocolo de 1865, 7Francisco Solano Lopes, presidente da Reptblica do Paraguai (1862-1870). Nos termos do tratado da Triplice Alianga, de 1° de maio de 1865, sua deposigo era requisito prévio para a paz entre os beligerantes. | 43 PRIMEIRA CARTA também raro cidadao cordato alonga os olhos pelos fos- cos horizontes desta guerra desastrosa que nao sinta escurecer-lhe a vista e vacilar o espirito. Entao, esmorecido por esta vertigem, 0 mais herdico e brioso sente o horror do vacuo. Nada espera, nada pode. Sua razao, perturbada pela imensidade da crise, se recusa ao trabalho da meditagao. Ele sente, enfim, que nenhum homem tem o direito de arrastar sua mae patria 4 ruina, para va satisfagdo de seus brios revoltados. Vozes jA se ouviram neste sentido. Sao o balbuciar da opiniao, infantil ainda, para exprimir a vontade naci- onal. Olhos de longo alcance se dilataram pelo futuro e volveram espavoridos de sua medonha vacuidade. Dai as manifestagées timidas pela paz, insinuadas a espagos no espirito publico. Assegura-se que esta perspectiva de um desfecho 4 luta, antes de realizados vossos nobres designios, vos sobressalta. Vedes nessa paz nfo consagrada pela vit6- ria espléndida uma faléncia da honra nacional, pagina maculada para a historia brasileira. Repelis, portanto, a solidariedade deste ato; nao quereis rubricar com 0 vosso nome 0 que julgais seria 0 triste documento de nossa vergonha. Il Estes sentimentos, cuja exaltagao nao discuto agora, sao proprios de um carter nobre e generoso. Mas, se- nhor, esquecestes uma coisa que deve sempre estar pre- sente e viva na consciéncia dos reis.® *Os préximos paragrafos desenvolvem algumas tépicas dos tra- tados preseritivos specula principis, com énfase na sujeigao da von- tade pessoal do monarca aos designios impessoais do Estado. Vide Introdugao, 7 ALENCAR Vés, monarca, cingido pelo esplendor da majestade, vés, 0 primeiro no estado, nao tendes 0 direito que reside no infimo dos cidadaos, no misero proletario, como no vagabundo coberto de andrajos. Nao sois uma pessoa; nao tendes uma individualidade; nao ha sob o manto imperial que vos cobre o eu livre e independente. A nagao que vos fez inviolavel e sagrado vos privou da personalidade. O coragao é para os reis um deus-lar, que preside a vida doméstica e ilumina as doces alegrias de familia. Desde que 0 monarca sai deste santuério, anula-se o homem nele, e fica somente o representante da soberania nacional. Vossa honra é a da nagao como ela a sentir; vossa dig- nidade a do império brasileiro. Quando 0 povo entenda que chegou o momento de acabar a guerra e exprima seu voto pelos meios constitucionais, haveis de pensar do mesmo modo, senao como homem, infalivelmente como soberano. Em vés esta encarnado e vivo 0 grande eu nacional. Imagem da soberania brasileira, todos os sentimentos da nagao devem necessariamente refletir-se ai. Nao ha nas questdes externas do pais duas honras a vingar, a honra do império e a honra do imperador. O que pleiteamos nos campos do Paraguai nao é a vossa gloria nem o nome vosso; mas sim 0 nome e a gloria do Brasil. A ele, pois, a ele somente e a ninguém mais compete resolver em ultima instancia esta questao da propria dignidade. Este que vos fala, obscuro cidadao, pudera, caso o povo brasileiro aceitasse a paz indecorosa, repelir a cum- plicidade do ato, exprobrar a patria semelhante fraqueza e até mesmo deserdar-se dela, se para tanto nao lhe fa- lecesse o animo. Mas eu, senhor, na esfera de minha humildade, sou rei de mim mesmo; e o monarca, no 46 PRIMEIRA CARTA fastigio do poder, é 0 sidito de grandes deveres: por isso mesmo que é 0 depositario de altas prerrogativas. O pacto fundamental, jurado entre um povo e uma dinastia, vinculo consagrado pela religiao e pela honra, niio se rompe assim bruscamente e a capricho de uma vontade. Nascem deste ato solene direitos e obrigagdes muituas para a nagao e 0 soberano. O trono nao é so- mente um bergo feliz, é um tumulo também. Se, por qualquer divergéncia na politica, 0 soberano tivesse o direito de resignar a coroa, também a nagdo que elegeu a sua dinastia pudera ao menor desgosto cassar a delegago da soberania ao seu perpétuo representante. ‘Tornar-se-ia, portanto, o pacto fundamental, a carta da qual deriva o império da lei, 0 mais arbitrario e caprichoso dos atos humanos. Debalde o revestiram de tantas solenidades e 0 con- sagraram pelo sufragio nacional, se bastasse o capricho de uma vontade para o aniquilar. Pois 0 direito que no tem o menor empregado de abandonar 0 respectivo cargo sem receber sua escusa, havia de ser tolerado no magistrado supremo da nagio, naquele que faltaria nao sé a todos os ramos da administragao, mas a todos os poderes e a todos os direitos? Senhor, sois o primeiro cidadao brasileiro; o primeiro nao tanto pela supremacia, como pela grandeza do sa- crificio, A melhor definigao desse titulo, que herdastes, de imperador, vosso augusto pai a escreveu logo apés na constituigéo. Jurastes ser o defensor perpétuo do Brasil, nfo somente nos tempos felizes, na mongio das glorias e prosperidades, mas sobretudo no dia da desgraga. O maior e mais onerado dos servidores do estado, para vos nao ha prazo, nem repouso. Qualquer que seja o desfecho da guerra, nao tendes 0 direito de separar vossa dignidade da causa nacional. Um rei que por sua desgraga praticasse ato semelhante faria a sua patria a maior afronta, jogando-lhe com a eoroa as faces. E haverd algum tao isento de pecha, a ponto de supor-se maculado pelo fato de continuar no ~ trono do pais que desistisse de uma guerra desastrada? Se existira este monarca sempre solicito pela honra nacional, sempre suscetivel pela dignidade do nome bra- sileiro, esse mesmo nao teria em caso algum o direito de abandonar na humilhagio a patria decaida, que sua grande alma bastara para reabilitar. Seria falta de gene- rosidade, embora justificada pelo rigor de uma conscién- cia austera. Iv A honra das nagées, como a honra dos individuos, no estA sujeita aos acidentes da ordem fisica. Estes po- dem influir no resultado de uma empresa, na realizagao de uma idéia; mas nao modificam a intengao. A honra é um sentimento, um principio; e nfo, como pensam muitos, um sucesso ou mera casualidade. Desdoura-se a nag&o que sofre impassivel as afrontas asua dignidade, mas nao aquela que se levanta, como 0 homem de bem, para repelir o insulto e defender seus brios. Nao importa para a consciéncia a vitoria; ainda sucumbindo, um povo que o amor nacional inflama é ‘uma coisa respeitavel e santa. Quando a nagiio ofendida tem grande superioridade de recursos em relagio ao outro beligerante, deve por certo mortifica-la em extremo a dificuldade da vitéria. Mas, se ela empregou os maiores esforgos em sobrepujar a resisténcia; se deu provas de abnegagiio e heroismo na reparagao de sua honra ofendida; nao fica desonrada curvando-se ante a impossibilidade. 47 48 | PRIMEIRA CARTA Neste caso estaria o Brasil. O que um povo generoso, possuido de nobre estimulo e cheio de valor pode fazer, © nosso o tem feito, senhor; e nao obstante os agravos re- cebidos de seu governo. O sentimento da nacionalidade brasileira manifestou-se com arrojos de indignagao e he- roismo, que admiraram as nages de Europa e América. © Brasil se improvisou guerreiro em poucos meses. Orude operario com uma constancia surpreendente- mente se fazia soldado no dia do juramento e veterano no primeiro combate. O governo chegou a assustar-se dessa afluéncia de bravos que, ao reclamo de honra, corriam pressurosos a vingar a patria; e estagnou-lhe o curso, embora depois se arrependesse. Nao ser, pois, um acontecimento qualquer, por mais cruel ao nosso orgulho nacional, que h4 de macular © nome deste povo tao suscetivel no ponto de honra, to impetuoso nos seus brios. Se a Deus aprouvesse experimentar-nos com uma terrivel provanga, deveria- mos resignar-nos, pois seriamos vencidos por sua mao inexoravel, em castigo de nossos erros. Mas a honra ficaria intacta. Longe, pois, de uma persisténcia obstinada e intole- rante para atingir o resultado que desejais, a prudéncia aconselha outro procedimento. Convém declarar de uma vez ao pais toda a extensio do sacrificio que a guerra exige, e ele, que é 0 nico soberano e o tinico arbitro da propria dignidade, decidira conforme a sua consciéncia de povo nobre e honrado. Nao receio que ele se degrade. Se deixar-se abater um momento pelo terrivel concurso de calamidades, que filhos imprudentes concitaram; tenho fé robusta na reagao préxima. O Brasil sabe perdoar as ingratidées, porém nao esquece as afrontas. Neste ponto, confio mais ALENCAR em nossa patria do que vés, senhor, que vos lembrastes de a desamparar ao menor desanimo. Este meio de ir aos poucos arrastando 0 pais além de sua vontade, de acenar-lhe agora com um vislumbre de vitbria para lhe pedir mais levas e, logo apés, figurar proximo o desfecho, que sempre se remove para mais longe, essa falacia me parece, além de pouco decente para o governo, excessivamente perigosa. Um dia, pode o pais iludido aterrar-se ante a me- donha perspectiva do futuro e exigir contas severas da- queles que o levaram de olhos vendados através dos precipicios. E nao ha nada medonho e funesto como seja a irritagao dos cegos; dos homens como dos povos cegos. O desespero que gera a impossibilidade de ver a causa de seu mal os impele a desfechar golpes tremendos. Almas ds quais estado cerrados os horizontes se esforgam por atingir com a firia o que nao podem atingir com a vista; e é tudo 0 que os cerca. Vv Na maior expansao do amor que vos consagro, senhor, ego a vossa meditagao neste assunto capital. A frente de nossas forgas'estao os mais experimen- tados e os mais ilustres dos nossos cabos de terra e mar; a situagao estratégica nao é recente, mas bem antiga, para achar-se convenientemente estudada. Digam, pois, aqueles generais ao governo, e este comunique ao pais a verdade inteira das previsées relativas 4 conclusao ou prolongamento da guerra. Se é imposstvel a vitéria, 0 que eu recuso acreditar; acabe-se uma luta va de gloria e sé repleta de misérias e dores. Quanto mais depressa repararmos as perdas 49 50 PRIMEIRA CARTA sofridas, mais prontamente arrebataremos o triunfo que, porventura, nos escape da primeira vez. Devemos vencer, porém, como tudo o augura, e fal- tam apenas os meios precisos? Abra-se entao 0 governo francamente com o pais; mas com o pais real, aquele cuja seiva alimenta o tesouro e 0 exército; ndo com esse pais simulado, do qual sio representantes os maiores e acérrimos inimigos do Brasil. Esses nada recusam, porque nada lhes custa. Demi- tiram a patria, desde que a transformaram em feira do estrangeiro. E gente que nao duvida vender aos almu- des? o sangue e o suor do povo por alguns cévados'? de galdo. Nunca o verso do poeta francés teve mais perfei- tos originais: Pour l’amour du galon prets a toute livrée. (Laprade).*# E a combater essa corrup¢ao espantosa que deveis aplicar toda vossa atividade e dirigir as forgas da nago. Nao se ilustra pela vitéria, nem pelas conquistas indus- triais, um povo que a desmoralizagao contaminou, A lepra do vicio produz no corpo social tilceras hedion- das, que nao escondem algumas folhas de louro e uns remendos de purpura. Regenerai a alma da nagio; confortai-a na virtude vacilante. Este sim é trabalho digno da insisténcia do soberano; designio no qual a inflexibilidade sera, em vez °Almude: antiga medida de liquidos, *°Cévado: medida de cumprimento. ‘"Variante com lapso tipografico do verso “Par amour du ga- lon préts a toute livrée” (por amor ao galao, prontos para qualquer servigo), do poema “Pro aris et focis”, escrito pelo poeta e politico Victor de Laprade (18121885). Trata-se de uma obra satirica, que censura a decadéncia dos valores morais na sociedade contempo- rénea francesa, assim como as Novas cartas politicas reprovam a corrupgao politica e moral no Segundo Reinado. erro, dever. Recordai, senhor, o que vos disse outrora Nestas palavras ja esquecidas: “Quando a nagao nao ouga a paternal admoestagiio e se apro- - funde no vicio, deturpando a virtude, elevando ao redor do ‘trono maus caracteres e almas prostituidas, entio... seria a cireunstancia nica em que wm rei teria o direito de abdicar sem fraqueza, abandonando A justiga de Deus 0 povo que delingiiiu (Cartas ao Imperador ~ 7°). : Nada, infelizmente, nada fizestes ainda para arran- car 0 pais ao contagio funesto da sérdida cobiga e feia imoralidade. Ao contrario, vossa indiferenga a respeito de tudo quanto nao concerne a guerra e vossa obstina- giio a respeito dela toleram coisas incriveis para quem estima vosso carater. ‘Tudo barateais, tudo concedeis; 0 bom conceito de Yosso nome, o pundonor da patria, a inviolabilidade da constituig&o, os principios vitais da sociedade; tudo, con- tanto que venham em troca munigées e soldados para fazer a guerra. Queira Deus que estas levas guerreiras arrancadas do solo brasileiro por tal meio nao reprodu- zam 0 exemplo das hostes que o rei Cadmus"? tirou da terra com os dentes e a torpe sanie"? de um dragio. Cadmus é 0 fundador mitico de Tebas. Apés matar um dragio consagrado a Ares, filho de Zeus, plantou o dente da fera em um solo de onde colheu guerreiros poderosos. Os deuses do Olimpo nao lhe perdoaram a falta contra Ares, provocando sua expulsio de Tebas. Depois, transformaram-no em serpente. A adverténcia sugere que 0 procedimento insélito de expandir o efetivo militar acarretara ao Brasil 0 mesmo que a morte do dragio sagrado a Cadmus, independentemente da qualidade dos soldados. "8Sénie: liquido purulento. PRIMEIRA CARTA VI Senhor, afogam-me o coragao as efusdes do muito que tenho a dizer-vos. Nao posso de uma vez arrojar essas abundancias da alma, acanhada para seu grande patriotismo, fraca para sua dor ante os males da atuali- dade. Voltarei a vossa presenga. Compelem-me nao s6 0s grandes interesses do pais e do trono, como a valentia dos meus sentimentos. Para mim, senhor, representais uma fé. i luz que talvez bruxuleia, mas nao se apaga. Velo nesta crenga augusta, como no fogo vestal'* de minha religiao politica. No instante em que se ele extinguir, creio que ficaré na cinza dessa combustao o meu ultimo entusiasmo. E talvez nao haja seiva para reanima-lo jamais! Nao se nutre esta f6 na dedicagao a vossa pessoa: 0 que a fortalece é o zelo pelo grande principio represen- tado no Sr. D. Pedro 1; o amor a dinastia, gémea da patria, pois nasceram juntas; e, acima de tudo, 0 receio de que decepgdes amargas e sucessivas derramem no pais 0 tédio pelas melhores instituigées. Sou monarquista, senhor, como sou cristiio, com fer- vor e entusiasmo, do mais profundo de minha alma. O tipo do homem livre, do cidadao independente, nao € 0 republicano, que se apavora com a idéia de uma delegagio permanente da soberania. Visiondrio poli- tico, sonhando um nivelamento repugnante a natureza tanto moral como fisica, ele julga-se humilhado em sua dignidade, pelo fato de reconhecer um monarca; e no duvida fazer-se humilde vassalo da plebe. Entretanto “Fogo ofertado A deusa romana Vesta e perpetuamente velado por uma virgem consagrada a divindade. envergonha-se de respeitar a soberania nacional em individuo, a acata na multidao, s6 porque é multidao. Dignidade de algarismo que nao compreende o ho- “mem de convicgdes. O monarca vive pela forca moral; ‘no povo, reside a forca fisica. Qualquer destas forgas é suscetivel de degenerar; em ambas, ha o gérmen per- nicioso da tirania, com a diferenga, porém, do alcance. Um rei pode ir até a ferocidade do tigre, nao passa além; mas a multidao é uma voragem, um abismo, um hiato imenso e pavoroso da atrocidade humana. Equivale 0 republicano ao ateu em politica. Nega oente superior com receio de amesquinhar-se em face dele. O verdadeiro cidadao, como eu 0 compreendo, 0 ho- mem livre por exceléncia, ¢ aquele que se nao assombra com 0 aspecto da majestade, Ao contrario, regozija-se vendo uma cabega no grande corpo social; tronco dego- lado se no a tivesse; arlequim, se a tivera postiga. A existéncia de um poder supremo e permanente que porventura abuse da forga e atente contra seus direitos nfo perturba a serenidade daquela alma livre; é como 0 varfio justo, que venera a onipoténcia do Criador, mas nao trepida nunca! O mais belo exemplo de liberdade na histéria dos povos é o do cidadao que acha na rigidez da consciéncia a forga de arrostar com a majestade e falar ao soberano a linguagem da razio. Possa minha palavra, ungida pela veneragdo que vos consagro, calar em vosso espirito e sufocar ai as injustas prevengies que levanta uma desconfianga reciproca en- tre a nagio ea coroa. O momento da maior angiistia para a patria nfo era a ocasiao propria para o soberano fazer garbo de sua abnegagio pelas grandezas; mas sim para | 63 54 PRIMEIRA CARTA que patenteasse ainda uma vez a abnegagio sublime de sua propria pessoa. Vossos labios cometeram, pronunciando a palavra, wm lapso que a mente calma de certo ja corrigiu. Dis- seram abdicagéo, quando a senha do dia para todos os brasileiros, e para vds primeiro que todos, é dedicagao. 24 de junho Erasmo

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