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In-Traduções revista do programa de pós-graduação em estudos da tradução da

UFSC (ISSN 2176-7904)

Carlos Rennó – canções e versões: maestria e precisão que saltam aos ouvidos!

Hanna Betina Götz (PGET- UFSC)1


hannagotz@yahoo.com.br

Resumo: Este artigo analisa as traduções para o português das canções Embraceable you e It´s de-lovely, dos
irmãos George e Ira Gerschwin e de Cole Porter, respectivamente, para determinar que soluções e critérios
tradutórios são utilizados pelo compositor e adaptador Carlos Rennó. Verifica-se que suas versões para o
português são norteadas por critérios modernos de tradução como a transliteração e a tradução intersemiótica.

Palavras-chave: tradução, transliteração, música, Carlos Rennó, irmãos Gerschwin, Cole


Porter

Abstract: This article analyses the translations into Portuguese of the songs Embraceable you and It´s de-
lovely, by the Gerschwin brothers George and Ira and by Cole Porter, respectively, in order to determine what
solutions and translation criteria were adopted by the composer and adaptor Carlos Rennó. It is verified that
his versions follow modern translation criteria like transliteration and intersemiotic translation.

Key-words: tradução, transliteração, música, Carlos Rennó, irmãos Gerschwin, Cole


Porter

I Introdução
Na revista Isto é de 26 de agosto de 2009, na sessão Música, encontra-se uma agradável
matéria de interesse dos Estudos da Tradução: o artigo “A onda das Versões”, que discute a
repentina retomada da tradição de adaptar letras de sucessos estrangeiros por parte de

compositores brasileiros. A manchete da matéria de Ivan Claudio afirma que essa retomada é bem-
vinda: “há uma nova e boa safra para se ouvir” (p.106).

Primeiramente, Ivan Claudio lembra o leitor de momentos no passado em que a música


brasileira se beneficiou com mais de 500 canções estrangeiras vertidas para o português, como as

versões feitas pelo compositor Haroldo Barbosa nos anos 40. Menciona também o papel do
movimento da Jovem Guarda e afirma que é por causa dos beatlemaníacos, nos anos 60, que temos
o “Iê, iê, iê” [yeah, yeah, yeah].2 Frisa que até mesmo grandes compositores, de veia poética,
como Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque “não resistiram à tentação” de verter para o

português sucessos musicais do exterior, como a canção No woman don´t cry,de Bob Marley, que
foi vertida para o português por Gilberto Gil como “Não chore mais”.
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Em seguida, Ivan Claudio lista várias versões que foram recentemente apresentadas ao
público brasileiro por compositores e intérpretes tais como Seu Jorge, Rita Lee, Zélia Duncan,

Erasmo Carlos, Marina Lima, Gal Costa, João Bosco e Zé Ramalho, entre outros, e afirma que
Carlos Rennó, compositor e tradutor de longa data, assina boa parte dessas versões.

Ivan Claudio relata ainda o trabalho que os compositores e intérpretes dizem enfrentar
quando adaptam ou vertem músicas do inglês, francês e italiano para o português. Dentre os

aspectos que os adaptadores mencionam estão não só os que José Lambert e Hendrik Van Gorp
(1985) e Guideon Toury (1985) chamam de questões preliminares, entre elas as que têm a ver com

contrato, permissão e royalties das gravadoras e autores, mas também fatores típicos da prática
tradutória em nível de macro e micro-estrutura, que envolvem omissões, adições, aliterações,

modulações, transcriação e transliteração bem como, e principalmente, aspectos pertinentes à


tradução poética o lidar com conceitos como equivalência, precisão, fidelidade, respeito à métrica,
à rima e à sonoridade. Ivan Claudio menciona que, dependendo da tradução, as editoras “fazem
vista grossa” e dão a permissão para seu lançamento no Brasil, mas que, em algumas

circunstâncias, impedem seu lançamento em português porque algumas versões se distanciam


demais da letra no original (p. 107). (grifo adicionado) Ou seja, equivalência, precisão e

fidelidade, são ainda importantes critérios a serem observados por adaptadores e tradutores que
dependem de permissão e royalties para lançar seu trabalho em solo nacional.

Por fim, o autor destaca também as versões feitas por aqueles costumeiramente chamados
de tradutores traidores: “as traições ficam evidentes quando os versionistas „viajam‟ no som das
palavras e se distanciam totalmente do sentido da canção matriz” (p. 107). Sob a ótica dos estudos
da tradução, quando o autor diz que versionistas “viajam”, o autor pode estar se referindo a duas

situações: àquelas em que o tradutor não compreende o sentido de uma palavra ou oração e a
traduz de forma a comprometer as ideias supostamente pretendidas pelo autor – se é que se pode
determinar quais são –, mas pode também estar se referindo a procedimentos de transliteração, em
que o tradutor toma certas liberdades e decisões sobre forma e conteúdo que, às vezes, distanciam
o texto na língua alvo do texto original, a ponto de serem consideradas “traições” pelos leigos. Os
que cometem tais “traições”, ou transliterações tresloucadas, são, segundo o artigo, artistas como
Seu Jorge (que traduz canções de David Bowie) e Rita Lee, cuja versão de “O amor é clichê” não
recebeu permissão para lançamento no Brasil porque se distancia demasiadamente da original I

wanna hold your hand dos Beatles.

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Finalmente o autor destaca o trabalho de Carlos Rennó, que, segundo o autor do artigo,
parece possuir vasta experiência na difícil tarefa de traduzir canções. Rennó “respeita não apenas o
sentido, mas até a métrica e as aliterações do original” (IVAN CLAUDIO, 2009, p. 107). Rennó
não se amedronta; ele gosta da peleja – do desafio – de encontrar a palavra certa e tentar manter o
sabor, o gosto e o sentido do original tanto quanto pode, pois, “se for para fazer letra diferente do
original, chamo um parceiro e faço uma canção” (RENNÓ apud IVAN CLAUDIO, 2009, p. 107).

Dentre os muitos desafios que Rennó se propôs a enfrentar, está o de traduzir canções de Cole
Porter e George e Ira Gershwin.

Assim sendo, a presente análise tem por objetivo contrastar, à luz de abordagens teóricas
atuais de tradução, duas versões de Rennó para o português. A canção dos irmãos Gerschwin

Embranceable you pode ser encontrada no CD Porter e Gershwin: canções e versões, de 2002. A
outra canção, do mesmo CD, é de Cole Porter It´s de-lovely. A opção de analisar algumas versões

de Rennó deve-se ao fato de seu trabalho ser uma


obra musical única, por conter as únicas versões de músicas de George e Ira Gershwin
autorizadas. Há anos os descendentes e representantes da obra dos compositores não têm
permitido que se façam e gravem versões de canções da dupla em outra língua em
nenhuma parte do mundo. A autorização só foi dada no presente caso, quando Rennó pôs
em prática critérios modernos de versão aplicados anteriormente no seu livro “Cole
Porter - Canções, Versões". (Site oficial: www1.uol.com.br/cancoesversoes. Acesso em:
21 set. 2009) (grifo adicionado)

Outra razão é o fato de o CD “Cole Porter, George Gershwin - Canções, Versões ser um
trabalho de tradução também no plano musical. O disco teve por objetivo transpor para uma
linguagem de MPB moderna os elaborados clássicos dos dois gênios da música americana e
mundial do passado” (IDEM). (grifo adicionado).

II Critérios modernos de tradução


A afirmativa de Ivan Claudio sobre o fato de Rennó se destacar na empreitada tradutória de

canções por utilizar critérios modernos de tradução é ampla e bastante vaga. Faz-se necessário
discutir o que são “critérios modernos” e em comparação com que outros critérios os de Rennó se
tornam “modernos”. É também imprescindível analisar critérios de tradução em relação ao gênero
musical e verificar quais destes amplos critérios modernos de tradução são aplicados na versão de

canções.
Como Ivan Claudio destaca, Carlos Rennó fica horas e horas tentando encontrar a palavra
certa para tentar ser o mais fiel possível ao original, caso contrário, chamaria “um parceiro” para

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fazer uma nova canção. Essa afirmativa de Rennó nos faz pensar se realmente é adepto dos novos
e modernos critérios de tradução. Os critérios de equivalência, fidelidade e precisão, aos quais
parece se referir, são bastante antigos, e do ponto de vista dos Estudos da Tradução – disciplina
formal com apenas meio século de vida – cada vez mais questionados e relativizados.3

Uma tradução, desde os tempos imemoriais, era considerada adequada, fiel, precisa e
aceitável quando lograva dizer na língua de chegada “exatamente aquilo” que o autor na língua

fonte desejava exprimir, ou seja, a língua fonte tinha primazia sobre a língua alvo. Esta posição, de
privilegiar a língua fonte em detrimento da língua alvo é um critério que hoje não mais se sustenta

por si só. Hoje em dia estes critérios são utilizados quase sempre entre aspas pela comunidade de
estudiosos, pois estudos longitudinais de tradução, estudos de caso e análises contrastivas de

traduções feitas ao longo de vários séculos demonstram que nem sempre foram observados à risca.
Textos que até então eram considerados traduções fiéis, equivalentes e que não traíam os
“originais”, às vezes, conforme foi observado, eram pseudo-traduções, ou seja, “originais
disfarçados”, ou eram adaptações nas quais o tradutor não se restringia à função de traduzir, mas

assumia um papel de revisor, editor, suprimindo ou reestruturando partes do texto, como se fosse
um co-autor de uma obra e não um tradutor. Este critério, de considerar um tradutor um co-autor,

de fato, já pertence à visão moderna, contemporânea, de tradução. Mas em outras épocas, alguns
supostos “autores”, na verdade, eram tradutores ou plagiadores e vive-versa, e “tradutores” não

passavam de intermediadores, com status tão insignificante, que nem sequer eram mencionados
nas publicações.4

Com estas descobertas, estudiosos da tradução começaram a questionar estes antigos


pressupostos e a própria noção de tradução. Que características um texto tinha que exibir para ser

considerado uma tradução? Como eram determinados e observados os critérios de equivalência,


precisão e fidelidade? Determinava-se a equivalência e fidelidade de uma tradução pela precisão

tradutória na micro-estrutura do texto, examinando-se como cada palavra era escolhida? Ou era em
relação à macro-estrutura, ao sentido geral do texto? Para ser equivalente e fiel a tradução tinha

que ser literal? Pergunta-se hoje se é realmente possível saber se o sentido da palavra traduzida era
de fato o mais próxima à intencionada no original. E como era possível afirmar o que seria a

intenção do autor? Como o tradutor poderia ter a garantia de ter entendido a intenção do autor e ser
fiel a ela?

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Sob o enfoque das novas abordagens tradutórias, o ato da tradução não se reduz à análise
de aspectos lingüísticos, da micro-estrutura frasal, nem tampouco aos critérios de equivalência,

fidelidade e precisão. O contexto sócio-histórico, e neste caso, principalmente o contexto cultural,


musical do pólo de recepção, também devem ser cuidadosamente examinados. Afinal, será a sua

"cantabilidade" que a fará ser bem aceita ou não no pólo de chegada.


Assim, na visão moderna de tradução, versões que fogem bastante do original nestes três

aspectos básicos, ou que preferem privilegiar a forma ao conteúdo e, portanto, (re)criam um texto
sem necessariamente corresponder fielmente ao original, ou ainda as traduções que privilegiam o
contexto e a cultura do pólo de chegada, podem ser consideradas ótimas e bem sucedidas.5 Isto faz
com que o impacto, a forma como um texto é recebido pelos leitores na língua alvo seja mais
importante do que o respeito incondicional ao texto da língua fonte e ao autor e sua “intenção”
original. Conforme Paulo Henrique Britto, não se pode mais afirmar que textos
possuem significados estáveis que correspondam a intenções que seus autores tivessem
em mente ao escrevê-los (se é que os autores têm controle total sobre suas intenções); só
temos acesso a nossas próprias leituras dos textos. Assim, quando dizemos que uma dada
tradução é fiel ao original, estamos dizendo apenas que nossa leitura dessa tradução é fiel
à nossa leitura do original; nada podemos afirmar sobre os textos em si. Entende-se, pois,
que não haja consenso absoluto a respeito dos méritos relativos de duas traduções de um
dado texto; se achamos a tradução de um texto feita por A melhor que a feita por B, isso
ocorre apenas porque nossa leitura do original se assemelha mais à do tradutor A do que a
de B; e nada mais há a se dizer (BRITTO, 2006, p.239).

Como a letra de uma canção vem sempre acompanhada de uma melodia e de um ritmo, não
é possível analisar a versão de uma canção tendo-se em mente o que se espera de uma tradução de

um texto narrativo, como um conto ou um romance, ou o que se espera de um ensaio filosófico, ou


um artigo técnico-científico. A canção é um gênero à parte, que, poder-se-ia dizer, se assemelha,

na forma e nos procedimentos tradutórios, muito mais à poesia do que à prosa; na verdade, muitas
canções são poemas musicados, basta pensarmos nos poemas-canções de Caetano Veloso. Aliás,

no livro Cole Porter, canções e versões, de Carlos Rennó, há um depoimento de Augusto de


Campos que diz que “a paranomásia”, figura central da poética, como quer Jakobson, é o

instrumento básico do curto-circuito operacional, sob a forma de aliterações, rimas, homofonias,


trocadilhos” (1991, p. 31) e diz também que “no presente, Gilberto Gil, Chico Buarque, e

sobretudo Caetano Veloso, assumiriam essa nota de invenção e elaboração formal, que na música
popular americana teve cultores extraordinários como Ira Gerschwin e Cole Porter” (IDEM, p. 31).

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Em termos gerais, as canções, no que dizem respeito à forma, compartilham mais
semelhanças, e portanto mais critérios válidos, com os da tradução poética. Diz-se que um poema

só pode ser completamente apreciado quando lido em voz alta, porque somente então se pode
perceber a conjunção de ritmo, métrica e sonoridade. E é somente quando estes elementos estão

orquestrados de forma harmoniosa que um poema ganha vida e expressão. A canção, da mesma
forma, só ganha vida quando a letra – seja ela poética ou não – for cantada e/ou quando arranjos

para os diversos instrumentos forem criados para acompanhá-la. Poemas e canções ganham vida
quando ganham voz e musicalidade.
Nas canções, diferentemente da poesia, no entanto, há mais um “complicador”. Na
tradução de uma canção, o motivo que leva um músico ou um intérprete a querer que uma canção

seja traduzida, pode ser a música, o arranjo. Ou seja, a tradução de uma canção nem sempre é
motivada pelo prazer de se ter a letra traduzida.6 Muitas vezes um compositor recria

primeiramente o arranjo, a composição musical, por tê-la apreciado muito na canção original
estrangeira. Nestes casos, pode ser que somente muito tempo mais tarde a adaptação musical

ganha uma letra/texto. Porém, no momento em que decide traduzir a letra, o tradutor não pode
ignorar a adaptação que fez da música, pois, só para lembrar, uma canção é sempre composta de
duas vertentes – a textual e a musical –, o que impede o tradutor de recriar uma letra à revelia da
música. Letra e música não são vertentes separadas que podem ser mescladas no final. Ao se
“importar” uma canção e dar-lhe uma versão em outra língua, o tradutor age como um recriador,
que lida com ambos aspectos - a música e a letra -, de forma que esta “caiba” dentro daquela, ou

que aquela se encaixe nesta. Esta forma de adaptação tradutória poética é também chamada de
transliteração, pois estão envolvidos outros elementos que determinarão como a transposição

semântica, lexical, rítmica e sonora poderá ser feita, e quanto terá de ser adaptado. Na tradução
poética a tradução da forma é um critério básico, mais essencial do que a tradução do conteúdo.

Assim sendo, não há como falar em equivalência e fidelidade absoluta entre um gênero na língua
fonte e este mesmo gênero na língua alvo. Quanto mais o autor quiser respeitar, por exemplo,

aspectos musicais, sonoros e rítmicos da canção original, mais difícil será manter a equivalência
textual e semântica. Se optar por se fiel à métrica, para poder manter o mesmo ritmo, mais difíceis

serão as decisões de tradução no nível semântico e lexical. Mais difícil será encontrar uma palavra
que transmita o mesmo sentido em exatamente o mesmo número de sílabas, para não romper com

a tônica da palavra e do verso, sem perder no ritmo e na sonoridade e trair a melodia. Da mesma

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forma, quanto mais o tradutor quiser privilegiar a tradução textual em termos semânticos, maior
será a dificuldade para fazer a letra “caber” dentro da música sem desrespeitar os aspectos

paranomásicos. A adaptação do conteúdo (semântico) e da forma (métrica) causa uma constante


tensão, o que faz com que tradutores, às vezes, levem, como diz Rennó, “a madrugada inteira para
escrever um versinho” que nem sempre equivalerá ao que está no original. Para reiterar esta
concepção de tradução moderna, em que traições são possíveis e até mesmo aceitáveis, eis as
palavras de Jakobson: “a poesia, por definição, é intraduzível. Só é possível a transposição
criativa” (1977, p. 72). Esta transposição criativa a que Jakobson se refere é a transliteração com a

qual Rennó tem de lidar constantemente na tradução de canções.

III..Carlos Rennó e suas estratégias de tradução


Conforme apontado no website do próprio produtor artístico, letrista e tradutor Rennó, no

CD Cole Porter, canções e versões, ele próprio é


autor de todas as versões com exceção de uma, em que faz parceria com Augusto de
Campos. Em duas versões Rennó teve a colaboração do poeta e tradutor Nelson Ascher; e
em uma, de Charles Perrone, professor americano de literatura brasileira da Universidade
da Flórida, tradutor de poesia e estudioso de MPB
(www1.uol.com.br/cancoesversoes. Acesso em: 21 set. 2009).

Apesar de ser oriundo da música e não da tradução, Rennó é um tradutor consciente e


escrupuloso. Em geral, toma para si o desafio de traduzir para o português, mas o fato de pedir
socorro a poetas e literatos dos mais qualificados, tais como os mencionados acima, demonstra que

dialoga com experts das áreas da literatura e da tradução, o que nos leva a concluir que sua visão
tradutória recebe influência dos que conhecem, de fato, critérios modernos de tradução. 7 Mas,
aparentemente, o desafio árduo de trabalhar sozinho lhe causa prazer, pois Rennó afirma que “dá
um trabalho do cão. Às vezes, passo a madrugada inteira para escrever um versinho” (Isto é, 26 de
agosto de 2009, p.107).

A tarefa do tradutor, como sugere Rennó, é lenta e os desafios de encontrar a palavra certa,
a que cabe, a que se encaixa, fazem parte de sua intenção, ou de seu projeto tradutório de

transliterar entre os códigos musical e textual fazendo suas próprias (re)criações. No livro Cole
Porter - Canções, Versões – já mencionado, verifica-se que Rennó recebeu contribuições de

Augusto de Campos, Caetano Veloso, Claudio Leal Ferreira, os quais, possivelmente, tenham
influenciado sua visão do que seja uma tradução. À primeira vista, Rennó, desde que começou a

trabalhar sistematicamente com versões, em 1990, fazia uma triagem do que lhe parecia traduzível.

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Diz: “um grande número delas [canções] me apaixonava. Uma quantidade bem menor era,
segundo meus critérios, traduzível” (RENNÓ, 1991, p. 41) O fato de fazer uma pré-seleção com

base no critério da traduzibilidade, demonstra que Rennó está familiarizado, talvez por influência
dos parceiros acima mencionados, com a teoria e o fazer tradutório. Inclusive diz que “há tempos

eu projetava um trabalho no âmbito da poesia de música popular que respondesse aos estímulos
em mim produzidos pelo impacto da obra de tradução poética realizada por Augusto e Haroldo de
Campos e Décio Pignatari” (IDEM, p. 41). E para render uma homenagem às “ qualidades
excepcionais” de Cole Porter como letrista e mostrar-lhe sua admiração, Rennó afirma: “[...]

vislumbrei de render uma homenagem brasileira ao genial artista norte-americano no centenário de


seu nascimento” (IDEM, p. 41).

Mas vemos que sua homenagem a Cole Porter é conscienciosa e, por saber que um tradutor
está sempre sujeito a críticas, explica que “quanto a possíveis interpretações, minha proposta

envolve uma idéia de tradução também no nível musical: que as melodias possam ser cantadas
sobre bases harmônicas e rítmicas brasileiras” (IDEM, p. 41). Esta revelação é de suma

importância para se poder entender seu projeto de tradução. Ele quer dar às canções um quê de
brasilidade; quer fazer com que as canções não sejam uma mera tradução das letras, mas que,

depois de traduzidas, possam ser cantadas pelos brasileiros. A equivalência que almeja na
tradução, portanto, não é só semântica e não prioriza a canção na língua fonte, mas sim na língua
alvo. Ele quer fazer com que sua versão – tanto letra quanto música – ganhe uma marca de
identificação com a cultura brasileira.

Vale à pena transpor o que afirma a respeito do seu projeto de tradução:


Naturalmente, não foi meu propósito alcançar resultados que se equiparassem àqueles a
que Cole Porter chegou. Antes, entreguei-me ao trabalho como uma maneira de me
aprofundar na sua obra e dela adquirir a compreensão que a atividade criadora, ou
recriadora, propicia. Nessa operação, quis demonstrar minha sinceridade com técnica e
com coração, na expectativa de que, mesmo por breves instantes, os deuses do acaso, me
lançassem alguma luz. Isso seria necessário para que eu talvez viesse a resgatar, nas
transposições, um pouco da originalidade dos originais porterianos” (IDEM, p. 41)

Sem dúvida, pode-se verificar que Rennó está a par dos critérios modernos de tradução.
Nesta passagem fica claro que sabe que quando se traduz um poema, ou uma canção, se está
recriando, e que portanto não se pode ser fiel ao conjunto todo de um texto. Mas mostra que quer

ser fiel, dentro do possível, à originalidade de Porter. Quer conseguir expressar esta originalidade,
essa genialidade, para o português, sabendo que para isso terá de ser igualmente criativo e original

e trair o quanto for preciso, para ser fiel ao seu inspirador e copiar fielmente dele a

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“cantabilidade”, “o tom e o espírito de cada canção”, “orientando-me por parâmetros estéticos que
lev[em] em conta não apenas seus aspectos temáticos e de conteúdo, mas também, e às vezes
principalmente, os procedimentos formais e estilísticos por ele adotados” (IDEM, p.41).

IV Canções e versões
A canção Embraceable You ["Abraçável você"], de GG e IG, foi lançada em 1930 nos

Estados Unidos, e é uma das canções mais populares da dupla. Com versão de Carlos Rennó e
Nelson Ascher – esta primeira canção a ser analisada, é uma balada sentimental de

desenvolvimento e elaboração inconfundivelmente gershwinianos, interpretada por Jane Duboc no


CD “Cole Porter, George Gershwin - Canções, Versões” em 2000. No Brasil saiu sob o selo da

Warner Chappell Music (Brasil).

Embraceable You Abraçável você


1 Embraceable you Abraçável você
2 Embrace me Me abrace,
3 My sweet embraceable you Doce abraçável você.
4 Embrace me Me abrace,
5 You irreplaceable you Incomparável você.
6 Just one look at you Só de vê-la
7 My heart grew tipsy in me O coração degela em mim;
8 You and you alone bring out the gypsy in O cigano só você revela em mim.
9 me Não vejo
10 I love all Senão encanto em você;
11 The many charms about you Desejo
12 Above all Meus braços tanto em você.
13 I want my arms about you Não seja má, menina,
14 Don't be a naughty baby Dê um abraço, dê um abraço, dê!
15 Come to papa - come to papa - do! Doce abraçável você.
16 My sweet embraceable you Me abrace,
17 Embrace me Doce abraçável você.
18 My sweet embraceable you Me abrace,
19 Embrace me Incomparável você.
20 You irreplaceable you Em seus braços tudo é muito ardente, meu bem,
21 In your arms I find love so delectable, dear tão bom mas não muito decente, meu bem.
22 I'm afraid it isn't quite respectable, dear No entanto,
23 But hang it Glorifiquemos o amor.
24 Come on, let's glorify love! Garanto
25 Ding dang it! Levá-la a extremos no amor.
26 You'll shout "Encore!" if I love Não seja má, menina,
27 Don't be a naughty papa Dê um abraço, dê um abraço, dê!

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28 Come to baby - come to baby - do! Doce abraçável você.
My sweet embraceable you.

Já no primeiro verso Rennó e Ascher se deparam com o impasse de traduzir embraceable.


A língua inglesa, do ponto de vista morfológico, parece ser menos rígida que o português na
criação de novas palavras e na criação de derivados. O verbo to embrace pode facilmente ser

transformado em adjetivo com a junção do sufixo -able, criando assim o adjetivo embraceable. No
português, Rennó e Ascher optam por fazer o mesmo, transpondo este adjetivo mesmo que não
seja “aceitável” ou de uso corrente em nosso idioma. 8 A opção arriscada de querer utilizar do
recurso da língua fonte para obter o mesmo efeito na língua alvo é sinal de que Rennó prefere

transliterar a simplesmente encontrar uma palavra correspondente no português. Arriscam-se para


manter o sentido e respeitar a poesia e a sonoridade do verso no original, mesmo sabendo que o
adjetivo “abraçável” não existe. Talvez a partir dessa versão o neologismo “abraçável” caia no
gosto dos ouvintes, se consagre, e se torne mais aceito no português. Mas como os irmãos

Gerschwin usam o sufixo -able ao longo do texto, como no verso 5 irreplaceable, no verso 20
delectable e no 21 respectable, parece mesmo acertada a opção dos tradutores em fazer esta

adaptação e assim conseguir lograr o mesmo efeito ao longo dos outros versos em que o sufixo -
ável ocorre.

No verso 5, Rennó e Ascher encontram a próxima palavra com -able no inglês, mas neste
caso não enfrentam problema e traduzem irreplaceable por “incomparável”, que não seria o

equivalente exato, mas que consegue transmitir a mesma idéia. Ou seja, respeitam a categoria
lexical, mas semanticamente fazem um ajuste, optando por uma palavra um pouco diferente no

sentido. Se no original a idéia expressa é de que a persona lírica é insubstituível, aqui o sentido é
de que não se compara a qualquer outro amor justamente por ser insubstituível, mas insubstituível
soa bem menos agradável e romântico. A solução encontrada, portanto, é feliz – mantém a rima, a
sonoridade, e semanticamente consegue passar o mesmo sentimento. Já nos versos 20 e 21 ele

recorre à modulação, pois apesar de a língua oferecer um correspondente exato para delectable e
respectable, “deleitável”, “delicioso” ou “agradável”, e “respeitável”, respectivamente, preferem

não traduzir literalmente esses dois versos. Se a tradução tivesse sido literal, o verso 21 teria ficado
“em seus braços eu acho o amor tão deleitável, querida”, mas preferiram transpor o verso In your
arms I find love so delectable, dear dessa forma: “Em seus braços tudo é muito ardente, meu

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bem.” Por causa de uma opção, muitas outras palavras tiveram de ser substituídas e o sentido
"transliterado": love é substituído por “tudo”, e dear por “meu bem”. Assim evitou-se o uso de “Eu
acho” – I find, que quebraria a sonoridade e a métrica do verso e que na versão em português
ficaria bem menos suave e deleitável. E no verso 21 - I'm afraid it isn't quite respectable, dear –
usar “receio” para manter a equivalência de I am afraid, ficaria um tanto “arromântico” e a
solução encontrada por Rennó e Ascher, ao modular o verso e traduzi-lo como “tão bom mas não
muito decente, meu bem” faz com que a idéia de ressalva do verso original seja mantida de forma
mais graciosa. Além disso, a utilização de “não muito decente” traduz melhor a idéia de que esse

ato não seria tão aprovado pelos outros. O adjetivo respeitável em português parece ser mais usado
em afirmativas como por exemplo “respeitável público” , “respeitável mestre”, mas uma
construção negativa, como “não muito respeitável”, ficaria um tanto estranha no português, além
de não conotar o que o original parece expressar.

Interessante notar também a escolha do verbo to embrace ao invés de to hug, que é mais
coloquial e comumente usado para referir-se ao ato de abraçar. Porém, como se trata de uma

canção, o uso de to embrace torna a frase mais poético e envolvente do que com to hug. No
português não temos duas opções como no inglês, e a palavra que temos tem exatamente a mesma

raiz latina, ou seja, verificamos aqui uma correspondência mais lexical do que semântica, já que to
embrace é menos comum do que to hug na linguagem coloquial do inglês.

Nos versos 6, 7 e 8 - Just one look at you/ My heart grew tipsy in me/ You and you alone
bring out the gypsy in me – que têm de ser analisados juntos, pois expressam um pensamento,

observa-se que a versão portuguesa perde um pouco a conotação semântica do original: Só de vê-
la/O coração degela em mim/O cigano só você revela em mim. No inglês o coração da persona

fica embriagado, entorpecido, e no português o coração degela, o que sugere que o coração da
persona no verso em português estava congelado, fechado, portanto para o amor. No inglês o

coração estava aberto para o amor e, portanto, ficou entorpecido, embriagado, depois de apenas
um olhar. Mas a adaptação de Rennó e Ascher, que em princípio faz com que o sentido do original

se perca, tem um trunfo. Eles conseguem criar uma nova rima apesar de substituir tipsy por
“degela”, e, desta forma, mantêm a sonoridade e o ritmo do verso: “degela” combina com “revela”
do verso posterior que corresponde bem ao bring out the gypsy – “revela o cigano em mim”.
Rennó e Ascher perdem a rima de tipsy com gypsy, mas criam uma nova e genial aliteração,

também no meio do verso, com as palavras "degela" e "revela".

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Os versos 9 e 10 – I love all/The many charms about you – foram traduzidos como “Não
vejo/ Senão encanto em você”. A ideia de I love all – amo tudo em ti – perde-se, ou melhor,

aparece transliterada e expressa, pelo raciocínio inverso, o mesmo sentimento: se a persona ama
tudo, todos os seus charmes – que seria a transposição literal dos versos, a ideia de que a persona

não vê nada, nenhum defeito, senão encanto, o mesmo sentido é transmitido. E a palavra charms
do original, que se perde na tradução, foi resgatada pela palavra “encanto” – uma vez que as
palavras charm, charming, to charm fazem parte do mesmo campo semântico de “encanto”,
“encantador” e “encantar” no português. E charme, no português não parece criar a mesma
atmosfera de “encantamento” e sedução, pois “charme” já tem outras conotações que aqui
difeririam do original to charm: encantar.
Os versos 11 ao 15 – Above all/ I want my arms about you/ Don't be a naughty baby/ Come
to papa - come to papa - do!/ My sweet embraceable you - que expressam o desejo da pessoa

encantada, seduzida pela mulher são adaptados e perdem um pouco o sentido jocoso da dinâmica
amorosa expressa no original: “Desejo/ Meus braços tanto em você/ Não seja má, menina/ Dê um
abraço, dê um abraço, dê! /Doce abraçável você”. Apesar de expressar o meso sentido às avessas,
o que é bem interessante, até, perde-se a ideia de “homem sedutor” que age como um papa (papa

tem um amplo sentido de homem que é a um tempo sedutor e protetor, como seria um pai). As
palavras papa e baby– pai e filhinha, são típicas do universo discursivo afro-americano, em que a

mulher é um baby, neném e namorada, sedutora e seduzida, ao mesmo tempo, e, sobretudo, frágil
e pequena, e precisa ser abrigada nos braços do seu papa, seu homem-protetor. O sedutor aparece

como figura paterna, sem que se perca, nessa relação paternal e filial, o teor e sabor da sedução e
do erótico. Essa dupla ideia de erotismo e relação paternal-filial não é transposta ao português.
Nos versos 20 a 24 – But hang it/ Come on, let's glorify love!/ Ding dang it! - apesar de a
versão portuguesa não expressar exatamente isso – No entanto/ Glorifiquemos o amor/ Garanto -,

observamos que Rennó e Ascher se esmeram em realmente levar à risca o conceito de fidelidade
rítmica, já que se trata de uma canção. Nas adaptações musicais, em primeiro lugar é preciso

priorizar e respeitar aspectos formais dos versos, como o ritmo e a sonoridade. O conteúdo é
respeitado sempre que possível, mas não em detrimento da forma. E é o que Rennó e Ascher

habilmente fazem: eles não se preocupam em transpor o significado de But hang it e Ding dang it,
mas sim em manter a rima aos escolherem as palavras “no entanto” e “garanto”.

78
Nos últimos versos da canção, George e Ira Gerschwin expressam a ideia de que se a
mulher desejada se render aos encantos desse amor, ela não irá se arrepender, antes o contrário, irá
suplicar por um “bis”. Mas se ela fizer o papel de difícil e se negar a participar de um jogo de
sedução, optando por manter os bons costumes e a decência, ela deixará de experimentar o

encantamento daquele encontro amoroso. Essa ideia, expressa no inglês como You' ll shout/
Encore! if I love/ Don't be a naughty papa/ Come to baby - come to baby - do!/My sweet

embraceable you mostra que agora o papa tornou-se um baby pequeno e fragilizado, suplicante,
manhoso, rendido, e que a mulher, antes o frágil objeto de desejo, tornou-se o sujeito da sedução.
Ela está no comando da situação e dependerá dela – que agora está no papel de papa – decidir se o
jogo amoroso será interrompido ou levado até o final.
A ideia de que a “seduzida” irá shout e encore – irá pedir “bis” - é expressa de outra
maneira: “Garanto/Levá-la a extremos no amor”. Se não houver arrependimento, talvez haja b is. O

que os tradutores não passam para a versão em português é a súbita inversão dos papéis entre
agente sedutor e objeto seduzido, pois já nos versos anteriores priorizaram a rima e a métrica ao

conteúdo, não transpondo o binômio papa-baby, que ressurge nos versos finais.
Mas como afirma Rennó,
a disposição de traduzir formas fez com que eu buscasse sempre soluções para os
elementos básicos constitutivos do estilo[...] os esquemas rítmicos, incluindo os mais
complicados e aqueles em que se inserem rimas internas, acham-se reproduzidos.
Quanto às rimas raras, às paranomásias e aos trocadilhos atuantes inclusive no nível
sígnico, as correlações são estabelecidas não necessariamente nas mesmas passagens de
ocorrência, mas às vezes nas proximidades, ou distribuídas ao longo da letra,
especialmente se se tratar de um caso de letra longa (IBIDEM, p. 42). (grifo nosso)

Mesmo não dando conta de tudo, o que seria uma tarefa impossível, Rennó e Ascher
transpõem com sensibilidade o que “mais precisa[va] ser transposto”. Rennó, portanto, distingue e

divide uma canção em seus elementos constitutivos básicos e a partir daí determina o que crê que
tem de ser feito e o que pode ser deixado para trás caso a tradução se mostre impossível, conforme

veremos na próxima canção: It´s de-lovely.


It´s de-lovely [Que de lindo!], canção de Cole Porter, que estreou no musical Red, Hot and

Blue, em 1936, com a versão em português também feita por Carlos Rennó, saiu no mesmo CD
que a canção Embraceable!, em 2000, pela Warner Chappell Music, com interpretação de Caetano

Veloso.

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It's de-lovely Que de-lindo
1 The night is young, the skies are clear A noite vem, o céu reluz
2 So if you want to go walkin', dear Se um passeio já nos seduz
3 It's delightful, it's delicious, it's de-lovely Que deleite, que delícia, que de-lindo!
4 I understand the reason why Eu sei o que você, meu bem
5 You're sentimental, 'cause so am I Está sentindo, pois eu também
6 It's delightful, it's delicious, it's de-lovely Que deleite, que delícia, que de-lindo!
7 You can tell at a glance É a vida quem quer
8 What a swell night this is for romance E convida a viver um affair
9 You can hear, dear É o bom som
10 Mother Nature murmuring low Da mãe natureza que diz:
11 "Let yourself go" “Seja feliz”
12 So please be sweet, my chickadee Então, amor, me diga, sim
13 And when I kiss ya, just say to me A cada beijo, até o fim:
14 "It's delightful, it's delicious, Que deleite, que delícia,
15 It's delectable, it's delirious, Que delíquio, que delírio,
16 It's dilemma, it's de limit, it's deluxe, Que dilema, que delito, que dilúvio,
17 It's de-lovely Que de-lindo!

Na análise dos procedimentos tradutórios da canção It´s de-lovely [Que de lindo], inciarei
apresentando o que o próprio tradutor Rennó afirma ter feito quando decidiu traduzi-la. Na citação
abaixo ele discorre sobre os passos da trajetória, desde o momento em que analisou a canção,
selecionou o que chama de “elementos constitutivos básicos” da canção original até a tomada de
decisões e a busca de possíveis soluções:

Embora constituída de cinco estrofes além da parte introdutória, usualmente só a primeira


é cantada pelos intérpretes. Esta foi também a posição assumida pela versão. A chave para
o trabalho estava antes de mais nada na obtenção de um termo funcionalmente eficaz para
corresponder a de-lovely. Não foi difícil chegar a “de-lindo”, pois minha intenção era
encontrar um vocábulo iniciado com a letra l que, ligado por hífen a “de”, em função
pseudo-prefixal, formasse uma palavra que, precedida de “que”, viesse em seguida a “que
deleite, que delícia” no verso-recorrente, imitando o jogo aliterante do refrão da letra
original (It´s delightful, it´s delicious, it´s de-lovely) e estabelecendo com este uma relação
de semelhança inclusive no nível fonético. O passo seguinte foi a reconfiguração da
enumeração aliterativa, de grande impacto sonoro, do final da estrofe: uma série de nove
fragmentos frásicos com palavras começadas pelas letras d, e (ou i) e l. Resolvido isso,
enquanto vertia os demais versos, só faltou responder à última sutileza formal da letra: a
rima interna colada da segunda com a terceira sílaba no nono verso, bear dear, que na
tradução acabou transposta com um “bom som” (1991, p. 73)

Explicitadas as principais tomadas de decisão, resta-me comentar a versão para o português


em termos do que Rennó fez nos versos não comentados por ele. No primeiro verso ele encontra
um correspondente bastante convincente para the night is young – que, como em português, dá a

80
ideia de que “a noite é uma criança”, apenas no começo, recém chegando. A segunda parte do
primeiro verso, the skies are clear ele traduz por “o céu reluz” para formar rima com o final do

próximo verso. Onde em inglês há rima entre as palavras clear-dear, em português ele obtém a
rima “reluz-seduz”.
Nos versos 3 e 4 – I understand the reason why/You're sentimental, 'cause so am I –
Rennó constrói uma equivalência em termos de sentido, expressando uma idéia similar com “Eu
sei o que você, meu bem/Está sentindo, pois eu também” que permite formar novo par de rima
entre as palavras “bem-também”. Ou seja, o objetivo não está em conseguir traduzir as mesmas

palavras e de forma a rimarem, mas em expressar a mesma idéia, com vocábulos diferentes,
respeitando a rima e logrando respeitar também o jogo sonoro da canção. Nos versos 6 e 7, o

procedimento é o mesmo. Prefere tomar liberdades no que se refere à tradução do sentido, que não
é literal, para poder fazer a rima de final de verso. Os versos em inglês You can tell at a
glance/What a swell night this is for romance são transpostos como “É a vida quem quer/ E
convida a viver um affair”. Interessante aqui é que utilizou uma palavra em inglês, bem
consagrada no português – affair que equivale a romance, um estrangeirismo presente no
português. E affair o tradutor consegue rimar com “quer”. O que isso quer dizer é que em vez de

traduzir ao português, encontrou uma solução intralingual no idioma de origem funcionando como
uma tradução interlingual. No verso 8 nos deparamos com uma das preocupações preliminares do

tradutor, que era a de encontrar uma solução para a rima colada, comentada por ele mesmo, que
respeita também o sentido, apesar de não dizer a mesma coisa, ou seja, “traindo” o verso original.
Nos versos 9 e 10 – Mother Nature murmuring low/ Let yourself go também consegue criar um
novo par de palavras que rimas, não com o som de low-go, mas dentro do novo sentido do verso,
com a palavra monossilábica “diz” e o sufixo “iz”, nos versos “Da mãe natureza que diz:/´Seja
feliz‟”. Nos versos 11 e 12, que no original funcionam como um pedido, So please be sweet, my

chickadee/ And when I kiss ya, just say to me são transpostos como um imperativo no português:
“Então, amor, me diga, sim/A cada beijo, até o fim:” E nos últimos versos aparecem as palavras
que o eu lírico ou persona da canção quer/exige que a pessoa amada diga: os “nove fragmentos
frásicos com “de”, que, conforme explicou Rennó, foram seu maior desafio na versão para o

português: it's delightful, it's delicious, it's delectable, it's delirious, it's dilemma, it's de-limit, it's
deluxe, it's de-lovely, então, no português, ganharam a seguinte versão: “que deleite, que delícia,
que delíquio, que delírio, que dilema, que delito, que dilúvio, que de-lindo!”.

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O mais delightful desta versão é que Carlos Rennó realmente consegue o que se havia
determinado a fazer: ser fiel não à letra original, mas à originalidade, ao ritmo, à melodia, à
“cantabilidade” da canção, tentando fazer jus ao talento de Cole Porter. E interpretada por Caetano
Veloso, a canção fica de-veras de-linda!

V – Considerações finais:
Infelizmente, a tarefa de analisar e comentar um trabalho de versão de canções estrangeiras
é bastante dificultado quando para isso se tem apenas palavras. Explicar ao leitor os méritos da

tradução de uma canção sem que se possa ligar um cd-player para ouvir a canção e a respectiva
versão, é como querer descrever para um estrangeiro a paisagem da Baía de Guanabara: poderá
parecer-lhe uma “boca banguela”, como diz Caetano Veloso na música “O estrangeiro”, de 1987:

O pintor Paul Gauguin amou a luz na Baía de Guanabara.


O compositor Cole Porter adorou as luzes na noite da Baía de Guanabara.
O antropólogo Claude Levy-Strauss detestou a Baía de Guanabara:
Pareceu-lhe uma boca banguela

Se, porém, a presente análise tiver sobre o leitor o mesmo efeito que o artigo da revista Isto
é teve sobre mim – me fez querer conhecer mais a fundo o trabalho de Carlos Rennó, ou conhecer

seu livro e ouvir o cd, além de querer saber mais sobre as criações dos irmãos Gerschwin e de Cole
Porter – já posso me dar por satisfeita. O leitor que se sentir compelido a conhecer melhor a “Baía
de Guanabara” – as traduções de Carlos Rennó – poderá decidir por conta própria se ela é linda ou
se lhe parece uma boca banguela. Para Paquito, autor da matéria “Carlos Rennó na novela das
oito”, “nas suas versões, existem uma maestria e precisão que saltam aos ouvidos” (2007).
Quanto ao objetivo primeiro deste artigo, não resta dúvida que Ivan Claudio tem razão ao
dizer que Rennó utiliza critérios modernos na tradução de canções estrangeiras para o português.

Versões assim são sempre bem-vindas, pois como dizem os estudiosos da tradução, uma parcela
do desenvolvimento de uma cultura, de uma civilização, é devida ao trabalho visionário dos

tradutores e suas traduções.

Notas

1
Mestranda do programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução sob orientação do Dr. Sergio Romanelli e
bolsista do Programa REUNI. Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina.

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2
Iê, iê, iê é como foi chamado o rock n´roll brasileiro na década de 1960.
3
Roman Jakobson – um dos fundadores do Círculo Linguístico de Moscou e um dos maiores linguistas russos, por
exemplo, no seu artigo "On linguistic aspects of Translation" (1959), chama atenção a fato de que é necessário
distinguir entre os vários tipos de tradução possíveis. Ele diferencia as traduções em três tipos distintos: a) a tradução
intralingual, que representa a tradução realizada dentro de um mesmo sistema linguístico – ou seja, dentro de uma
mesma língua, em que, por exemplo, um texto escrito em estilo culto é parafraseado em estilo mais coloquial ou
regional; b) a tradução interlingual, que representa a transposição de um texto de um sistema linguístico para outro,
ou seja, de uma língua x para uma língua y; e c) a tradução intersemiótica,em que Jakobson demonstra ser uma
espécie de precursor dos estudos semióticos, ao demonstrar que ocorre também a tradução em que um texto é
transposto de um sistema linguístico a outro sistema de signos não verbal. Neste artigo ele também problematiza um
das questões centrais do ato tradutório, nomeadamente a questão da sinonímia e da equivalência, afirmando que
tecnicamente é impossível realizar a total transferência de conteúdo – mensagem – em qualquer um dos três tipos de
tradução. Especialmente em se tratando de tradução poética, afirma ser essa uma empreitada impossível. Ele defendeu,
em outras palavras, o conceito da intraduzibilidade poética pelo fato de que não se pode garantir completa
equivalência na transposição de um sistema de signos para outro. Anton Popovic, tradutor eslovaco e um dos
primeiros a aplicar a semiótica aos estudos da tradução, por sua vez, escreveu a obra Theory of literary translation em
1975 e o Dictionary for the analysis of translations em 1976. Defendeu a ideia de que o termo equivalência não pode
ser entendido como um conceito restrito de sinonímia, mas sim como um conceito que compreende sentidos diversos
conforme a ótica de análise. Conforme relatado por Bassnett-Mcguire (1988), Popovic propõe o desdobramento do
conceito sob quatro eixos distintos: a) equivalência linguística, que implica homogeneidade linguística entre a língua
de partida e a de chegada, como se fosse possível fazer equivaler uma palavra na língua de chegada (LC) para cada
palavra na língua de partida (LP); b) equivalência paradigmática, que diz respeito à possibilidade de fazer equivaler
um item ou categoria gramatical para cada item na LP; c) equivalência estilística, em que deve haver uma
correspondência funcional dos elementos na LP e na LC sem ferir a identidade expressiva/estilística e o
significado/conteúdo do texto original; d) equivalência textual ou sintagmática, que pressupõe a homogeneidade ou
equivalência na estruturação textual no que diz respeito à forma.
4
Vide Theo Hermans, Capítulo 4, Undefining Translation, Translations in systems: descriptive and system-oriented
approaches explained, 1999.
5
Gideon Toury, em especial, entre muitos teóricos a questionar o conceito mesmo de tradução, afirma, em sua obra
Descriptive Translation and Beyond, que a tradução deve ser vista como um produto da cultura alvo pois “in terms of
underlying models, linguistic representtion, or both,. translations always come into being within a certain cultural
environment and are designed to meet certain needs of, and/or occupy cetain „slots‟ in it. Consequently, the translator
may be said to operate first and foremost in the interest of the culture into which they are translating, however they
conceive odd at interest‟‟ (1995, p. 12).
6
Deve-se sempre ter em mente o que leva um músico ou um intérprete a querer fazer a transposição de uma canção
para a língua alvo. Será que foi a música – com seus arranjos e instrumentos, ritmos e sonoridade ou será que foi a
letra que o seduziu? Em geral, percebe-se que as músicas estrangeiras versadas ao português respeitam a vertente
musical em primeiro lugar. Pode haver mudanças na instrumentação, nos arranjos, no ritmo, que pode ser mais
acelerado, mais lento, transmutado de um gênero musical a outro, como quando uma canção que era originalmente um
jazz acaba se tornando uma bossa nova ou quando uma bossa nova ganha um ritmo mais eletro-funk, por exemplo.
Nestes casos, muitas vezes, a letra permanece a mesma e só ocorre uma tradução ou migração de gênero musical. Esse
é o caso de muitas músicas americanas adaptadas ao português por compositores e músicos como Vinícus , Toquinho,
Baden Powell, e tantos outros da Bossa Nova ou da Música Popular Brasileira. Ou quando uma sinfonia é
transformada em rock – a banda Deep Purple serve como ilustração para este caso, e o próprio trabalho de Carlos
Rennó ao traduzir canções de George e Ira Gerschwin. Na maioria dos casos, independentemente de ter sido feita uma
tradução da letra de uma língua para a outra, houve também uma tradução entre gêneros musicais.
7
Augusto de Campos é mestre da transliteração, Charles Perrone, transita entre literatura e música brasileira, e Nelson
Ascher, poeta e tradutor, foi, inclusive pivot de uma polêmica acerca das traduções de poemas de Donne feitas por
Augusto de Campos e Paulo Vizioli.
8
Talvez embraceable também não fosse aceitável em inglês em um primeiro momento, mas foi sendo assimilado com
o tempo e agora é de uso corrente. Como assinalou um colega, no Brasil temos, entre vários exemplos, o do
neologismo "imexível", criado pelo ex-ministro Magri, que já se encontra dicionarizado.

83
Referências bibliográficas

BRITTO, Paulo Henrique. “Fidelidade em tradução poética: o caso Donne”. Terceira Margem, v.
X, p. 239-254, 2006.

CLAUDIO, Ivan. Isto é 2076, 26/08/2009, pp.106-107.

HERMANS, Theo. Translations in systems: descriptive and system-oriented approaches


explained. Manchester: St Jerome, 1999.

JAKOBSON, Roman. “Aspectos Linguísitcos da tradução”. Linguística e Comunicação. 9ª ed.


São Paulo: Cultrix, 1977. Tradução de Izidoro Blikstein e José Paulo Paes.

LAMBERT, José e VAN GORP, Hendrik. On describing translation. In: The Manipulation of
Literature, ed. Theo Hermans. London e Sidney: Croom Helm, 1985, p. 42-53.

PAQUITO. “Rennó na novela das oito” http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,OI2053 030-


EI6621,00-Carlos+Renno+na+novela+das+oito.html (acesso em: 07 nov. 2009).

RENNÓ, Carlos. Site oficial: www1.uol.com.br/cancoesversoes. Acesso em: 21 set. 2009.

_______. Cole Porter: canções, versões. São Paulo: Paulicéia, 1991.

_______. CD Cole Porter, George Gershwin - Canções, Versões. São Paulo: Warner Chappell
Music, 2000.

TOURY, Gideon. Descriptive translation and beyond. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins


Publishing Company, 1995.

84

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