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construção da identidade
Gabriel Lyra Chaves (UnB)i
1. Complexidade
Caio Vassão (2010) aponta a abstração como um dos principais elementos
que usamos para conhecer. A realidade seria algo potencialmente infinito
em complexidade, com seus elementos sendo compostos por camadas
ascendentes e descendentes de sobre e subsistemas. Um humano pode ser
descrito como um conjunto de subsistemas metabólicos (sistema
respiratório, digestivo, circulatório etc.), e cada um desses pode ser
decomposto em outros subsistemas, estes também compostos de
subsistemas, numa escala consideravelmente vasta de subdivisões. Da
mesma maneira, um humano pode ser pensado enquanto um ser social,
que compartilha da mesma cultura que outros de sua sociedade, estando
integrado a uma sequência crescente de complexidade: família, grupos de
afinidade, classe social, nacionalidade, tronco linguístico etc. Não é
necessário articular cognitivamente toda esta complexidade, tanto na
sequência descendente quanto na ascendente, quando dizemos que uma
pessoa parou para olhar um ipê. Articulamos
uma “ignorância seletiva”, [que] torna possível que se
articulem conceitos, ideias, operações, mecanismos,
invenções de complexidade muito grande. As ciências
operam exatamente por essa seleção do que é necessário, ou
não (...). Quando se tem uma imagem coesa, sintética e
coerente de um determinado objeto de conhecimento, a
ciência abstrai o conteúdo daquele objeto e passa a tratá-lo
como um conjunto fechado, cujos componentes podem ser
ignorados sem que haja perda da compreensão. Isso é
abstrair. (VASSÃO, 2010, p. 31).
Outra grande potencialidade da abstração é que comportamentos
observados num contexto específico podem ser transportados para outro
contexto, permitindo a proposição de soluções propositais para problemas
contextuais.
Para tratar dos fenômenos de complexidade organizada1, Ludwig von
Bertalanffy (2015) analisa sistemas, ou “complexos de elementos em
interação” (BERTALANFFY, 2015, p. 58), enunciando duas características
emergentes num sistema ou complexo: somativas ou constitutivas2.
Somativas são aquelas características que se mantêm idênticas dentro e
fora do complexo. Podem, portanto, ser medidas ou inferidas a partir do
isolamento e da análise dos elementos de um complexo, sem que o
comportamento do sistema seja significativamente afetado pelo processo de
isolamento. Já as características constitutivas dependem das relações
específicas que se desdobram dentro do complexo analisado. Para ter
acesso a estas relações, devemos conhecer não somente os elementos que
constituem o complexo, seguindo procedimentos próximos ao analítico da
ciência clássica, mas também as relações que se estabelecem entre estes
elementos, já que participam ativamente da constituição do sistema.
O significado da expressão um tanto mística “o todo é mais
que a soma das partes” consiste simplesmente em que as
características constitutivas não são explicáveis a partir das
características das partes isoladas. As características do
complexo, portanto, comparadas às dos elementos, parecem
“novas” ou “emergentes”. (BERTALANFFY, 2015, p. 83).
Uma das formas mais eficientes de organizar abstrações é a criação de
diagramas, estruturas simbólicas compostas por entidades conectadas por
relações (VASSÃO, 2010). Diagramas se aproximam de mapas ou
cartografias, mas representam processos, relações, fluxos de ação. Nestas
representações, principalmente quando tratamos de estruturas organizadas
em rede, as entidades representam os nós, enquanto as relações são
chamadas de vetores (CARDOSO, 2013).
2. Narrativas
Se o esforço científico de compreender a realidade, desde o advento do
Iluminismo, está intimamente relacionado à abordagem monotética, outras
abordagens são igualmente eficientes no processo de construção de
sentido. Autores que dialogam com o campo da narratologia, como Jerome
Bruner (1991, 2004) e Sarah Worth (2015), defendem que a abordagem
analítica está relacionada ao pensamento discursivo, enquanto o
pensamento narrativo permite outras formas de construção de sentido,
amplamente utilizadas, mesmo que inconscientemente (LYRA &
GARROSSINI, 2015; 2016). De uso mais flexível, o pensamento narrativo
se articula principalmente em torno da constituição da verossimilhança,
passando ao largo de exigências como verificabilidade e não-contradição,
condicionantes do pensamento discursivo.
As narrativas desempenham um papel fundamental na construção
identitária, tanto nos contextos sociais quanto nos pessoais. Enquanto são
peças fundamentais na constituição das identidades nos estados nacionais
modernos, articulando os mitos de fundação dos diferentes povos e
justificando a existência de fronteiras que contém uma variedade muito
grande de identidades locais (HALL, 2011, BAUMAN, 2012), as narrativas
também fornecem as ferramentas que usamos para atribuir sentido à
sequência de eventos aleatórios de que se encadeiam em nossas vidas. É
ao articular vínculos narrativos e estabelecer relações causais – muitas
vezes ficcionais – entre eventos que nos percebemos enquanto presenças
no mundo (BRUNER, 2004).
Sendo o pensamento narrativo extensivamente usado, a relação entre
narrativas e arte é vasta. Muitas representações pictóricas e escultóricas se
servem de motivos narrativos, sejam eles históricos, mitológicos ou um
misto entre ambos, e outras formas de representação artística, como a
literatura, se servem prioritariamente desta forma de organização.
Originalmente publicado em 1972, Cidades Invisíveis, romance de Italo
Calvino, se baseia numa suposta relação entre Marco Polo e Kublai Khan,
onde o primeiro busca descrever as cidades do império do segundo, que
não pode visitá-las. As descrições são extremamente subjetivas, articulando
simbologias e permitindo várias conexões com o ferramental conceitual do
pensamento sistêmico, das quais selecionamos uma específica. Calvino
conta sobre Eudóxia, uma cidade que estabelece uma relação de
equivalência com uma peça de tapeçaria. Uma das duas copia a forma da
outra, mas não se define se a cidade copia o tapete ou se o tapete copia a
cidade.
À primeira vista, nada é tão pouco parecido com Eudóxia
quanto o desenho do tapete, ordenando em figuras
simétricas que repetem os próprios motivos com linhas retas
e circulares (...). Mas, ao se deter para observá-lo com
atenção, percebe-se que cada ponto do tapete corresponde a
um ponto da cidade e que todas as coisas contidas na cidade
estão compreendidas no desenho, dispostas segundo as suas
verdadeiras relações. (CALVINO, 1990, p. 91.)
Trazendo em si a possibilidade de discussões relacionadas à abstração, à
equivalência entre sistemas distintos e à relação complexa que se esconde
entre camadas aparentemente não relacionadas, Eudóxia e sua tapeçaria
motivaram a criação de uma série de imagens.
3. Código
O universo das imagens técnicas, descrito por Vilém Flusser (1985, 2007), é
marcado pela articulação de textos científicos de diversas origens:
abstrações, de acordo com Vassão (2010). Estes textos são combinados
para gerar imagens que escondem sua dimensão técnica, fenômeno que
disfarça o crescente grau de abstração que se coloca entre as imagens
técnicas e a realidade. Para que esta articulação seja possível, os
programas – conjuntos de regras que estabelecem os limites de operação
tanto do sistema quanto do usuário, condicionando-o – são peças
fundamentais. E o código pode ser descrito como a linguagem técnica que
delimita as possibilidades dos programas.
A arte generativa usa códigos para compor imagens, mas guarda algumas
especificidades.
Arte generativa (generative art) se refere a uma prática
artística onde o artista usa um sistema, como um conjunto
de regras naturais da linguagem, um programa
computacional, uma máquina ou outra invenção
procedimental, que é posta em movimento com algum grau
de autonomia, contribuindo para ou resultando em um
trabalho artístico completo. (GALANTER, 2003, p. 4).
Matt Pearson (2011) complementa a definição, partindo de uma abordagem
inversa: se propõe a definir o que generative art não é. Do extenso
levantamento que faz, destacamos autonomia, que estabelece que o artista
define um conjunto de regras, mas que o sistema não pode estar
completamente sob o controle do artista, e nem o artista totalmente
independente do sistema; e imprevisibilidade, que estabelece que a
autonomia deve garantir que os resultados possuam algum grau de
aleatoriedade.
4. Metodologia
Consideremos que a memória humana, diferentemente da computacional, é
um processo reconstrutivo, uma vez que a experiência – evento do qual
deriva a memória – pode ser cognitivamente invocada, nunca vivenciada
novamente. Neste processo, delimitamos três camadas, conscientes de que
outras organizações são possíveis. A primeira camada é a do fenômeno
vivenciado. A segunda, a da tradução do fenômeno vivenciado para a
estrutura simbólica da linguagem. A terceira, o exercício de reconstrução do
fenômeno vivenciado, acontecendo sempre que a memória é invocada
racionalmente.
Tapecarias de Eudóxia é uma proposta de articulação destas camadas pela
definição de variáveis que as articulem. Partindo de memórias específicas,
relacionadas à primeira visita de seu autor à cidade de Brasília, as três
camadas de memória são ressignificadas e rearticuladas, fomentando a
criação das imagens.
5. Resultados
Como resultado, foram obtidas três imagens, posteriormente convertidas
em trípticos.
Referências
BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria Geral dos Sistemas: fundamentos,
desenvolvimento e aplicações. Rio de Janeiro: Vozes, 2015.
BRUNER, Jerome. Life as narrative. In: Social Research: An International
Quarterly, Vol. 71, Issue 3, p. 691-710, 2004.
BRUNER, Jerome. The narrative construction of reality. In: Critical Inquiry.
Vol. 18, p. 1-21. Chicago: Chicago Jornals, 1991.
CARDOSO, Rafael. Design para um mundo complexo. São Paulo: Cosac
Naify, 2013.
FLUSSER, Vilém. A filosofia da caixa preta. São Paulo: HUCITEC, 1985.
FLUSSER, Vilém. O mundo codificado. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
GALANTER, Phillip. What is Generative Art? Complexity theory as a context
for art theory. 2003. Disponível em:
<http://www.philipgalanter.com/downloads/ga2003_paper.pdf> . Acesso
em: 14 mar. 2017.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro:
DP&A, 2011.
KURZWEIL, Ray. A era das máquinas espirituais. São Paulo: Aleph, 2007.
LYRA, Gabriel; GARROSSINI, Daniela. F. As narrativas na cultura digital:
produção de sentido, educação e transmissão cultural. In: 14º Encontro
Internacional de Arte e Tecnologia: #14.ART : arte e desenvolvimento
humano. Aveiro: UA Editora, 2015. p. 253-255.
LYRA, Gabriel; GARROSSINI, Daniela. F. Fluxos de aprendizagem:
integrando narrativas e estruturas lógicas no campo da aprendizagem
móvel. In: Anais do IV Simpósio Internacional de Inovação em Mídias
Interativas. Goiânia: Media Lab, 2016. p. 283-296.
VASSÃO, Caio Adorno. Metadesign: ferramentas, estratégias e ética para a
complexidade. São Paulo: Blucher, 2010.
WINDELBAND, Wilhelm. A story of philosophy. New York: The MacMillan
Company, 1893.
WORTH, Sarah. Narrative knowledge: knowing through storytelling. 2007.
Disponível em <http://web.mit.edu/comm-forum/mit4/papers/worth.pdf>,
acesso em 09 jan. 2015.
1 No artigo Science and Complexity, publicado pela American Scientist em 1948, Warren
Weaver estabelece uma separação entre três tipos esforço científico, a saber, aqueles que
descrevem ou tratam de (a) situações de simplicidade, (b) complexidade organizada e (c)
complexidade desorganizada. Situa a física clássica no primeiro grupo, as ciências baseadas
em estatística e probabilidade como a Termodinâmica no terceiro, e convoca a comunidade
científica a se debruçar sobre a complexidade organizada, onde trabalhamos com uma
quantidade de variáveis grande, mas não infinita, e onde as formas de interação entre elas
podem não ser simplesmente causais ou lineares. Vários fenômenos biológicos, físico-
químicos e socioculturais podem ser descritos desta forma.
2 Esta separação está diretamente relacionada ao binômio monotético-idiográfico. Wilhelm
Windelband, uma das referências usadas por Bertalanffy, foi um filósofo alemão pós-kantiano
que faz duras críticas à escola positivista do período, e à crença de que o conhecimento
objetivo, pregado pelo empirismo, seja uma forma epistemológica superior às demais.
Windelband define o esforço racionalista como monotético, lembrando que este se limita à
descrição de um campo específico da realidade, sujeito a leis e à repetição das mesmas.
Outro campo da realidade, o idiográfico, é composto de eventos únicos, não sujeitos a leis ou
previsibilidade.