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capitulo 3 O PRINC{PIO DA EPOCA MODERNA Humberto Baquero Moreno* A aclamacao de D. Joao I nas cortes de Coimbra de 1385 em lugar de reduzir a autoridade da coroa, veio pelo contrério aumentar 0 seu pres- tgio. Assim, a interrupgao da continuidade dindstica pela via legitima nao impediu que por falecimento do monarca a coroa fosse transmitida ao filho varao primogénito, ou, na sua falta, ao mais proximo parente por linha co- lateral legitima. Foi alids o que aconteceu por falecimento de D. Joao I, em que a transmissdo do poder se realizou em beneficio de seu cunhado e pri- mo direito, o duque de Viseu D. Manuel, filho do infante D. Fernando e neto do rei D. Duarte. A doutrina tradicional sustentada por diversos juristas estabelecia 0 principio de que o mestre de Avis tinha sido eleito rei de Portugal nas men- cionadas cortes, partindo do principio que ao povo pertencia esse direito de escolha quando 0 trono se encontrasse vago por qualquer motivo de forca maior. Coube pela primeira vez a Alfredo Pimenta, sustentar a teoria que as cortes de Coimbra nao elegeram D. Joao 1, mas antes pelo contrdrio ter- se-iam limitado a confirmar um direito sucessério.' Esta questdo, contudo, nao se apresenta tio liquida. Contrariamen- te a esta posicao temos que 0 auto de aclamagao fala expressamente na ele’ do, tendo os representantes concelhios declarado que 0 trono se encontra- va vago. Por seu turno sabe-se que D. Joao I considerava que nao recebe- Ta a coroa iure successiones, mas fora designado ex-novo. Em conformidade com o pensamento politico medieval a monarquia era uma instituicao de direito divino, embora os teéricos se dividissem quan- to ao modo como 05 reis recebiam o poder. Segundo uns os monarcas ad- quiriam a potestade diretamente de Deus. Outros como Alvaro Pais, no de Planctus Ecclesie opinam a doutrina da mediagao do povo. Ainda existem de- fensores de que o papa transmite o poder temporal aos reis, 0 que se tra- duzia no conceito de supremacia do poder espiritual sobre o temporal.’ ‘A autoridade outorgada aos monarcas assentava em simbolos cuja aplicagao remontava ao estado visigdtico desde 0 governo de Leovigildo. Estas insignias que na sua maioria eram de origem imperial romana haviam adquirido um caréter religioso. Consistiam esses simbolos na coroa, na es- pada, no cetro, no manto de purpura € no trono. A ceriménia de consagra- 45 Humberto Baquero Maren? gao e coroacdo dos rno-leoneses efetuava-se Publicamente em alguma catedral du ‘um bispo quem ungia € co- cava omonarca, embora Afonso .do,a si mesmo, coroan- do de imediato a rainha- a Fo nao tinham caréter obriga- t6rio, tendo sido Joao I ‘castelhano que s€ coroou fom toda a solenidade em1379. partir de entao o monarca passou 9 ser Sclamado ao grito de “Castilla, Caailla por el Rey”. Ao mesmo tempo Te- vantava-se 0 pendao real.* Ef Nao existe qualquer noticia de que NO reino de Aragao 0S reis tives- sem sido ungidos € coroados fanteriormente a0 século XIIL- Foi Pedro 11 quem em Roma no ano de 1304 foi coroado pelo papa Inocéncio Ill. Nes- ga cerimonia o rei aragonés Prestou Ihomenagem ao chefe supremo da igre- futuro os reis de Aragao passas- jae obteve a sua autorizaca0 para que no Sem a ser coroados em Zaragoza. Ticedeu que Pedro III se coroou pelas suas proprias maos stica que passou a ser nessa cidade, iniciando uma pre habitual em todos os reinados.’ ‘Em Portugal nao se praticava @ coroacio, que consistia na uncle pe- Jos prelados, com bengao ritual ¢ entre” solene dos atributos da realeza em ceriménia litdrgica. Tanto quanto 5° sabe, o que nos leva a deixar de lado Sutras hipéteses, a primeira tentativa nO Sentido de introduzir a pratica da coroacao, ficou se devendo ao infante D. Pedro, 0 qual solicitou ao papa 0 Gireito a ungao € colocagao da cored @ favor dos monarcas portugueses. Para esse efeito, o papa Martinho V pela bula Ueutit ad presentiam nostram, concedeu essa graga em 16 de maio de 1428. Contudo a referida merce fhunca chegou a ser utilizada. A prética qué sempre foi utilizada consistia na Aamagio ou proclamacao piblica do Imonarca, que apés a homenagem {que lhe era prestada pelos stiditos assistt tum ato religioso revestido de insignias, Nesse cerimonial o rei jurava bre os Evangelhos respeitar 0 de reitos do povo € os privilégios de que asufruiam os stiditos do reino. Esta atitude implicava da sua parte a aceitagao da lei moral € religiosa € 2 ‘obser vancia dos usos € costumes tradicionais.* Na seqiiéncia do pedido formulado pe irmio, o rei D. Duarte insistiu no propésito. En res Doutor Vasco Fernandes de Lucena ¢ Diogo no Conctlio da Basiléia requeressem 20 papa o privil roaao. As dificuldades surgidas na curia levaram 0 paP* Eugenio IV. Pe bula Sedes Apostélica de 23 de outubro de 1436, a nao concedet 20s re Portugal o diteto a coroacéo em termos semelhantes aos que Se pati ¢ inglesa. Assim, os reis de Portugal nunca foram coroados. - Hee eisai Portugués observava-se apenas 0 Jevantamento- lepreende do rito de elevagao do rei D. Joao TL. Junto da © Jo infante D. Pedro a0 papa, se carregou Os SeUS embaixado” Afonso Mangancha para que Tégio da ungio ¢ 4360 ra a fe real contrat ‘uma cadeira pequena coberta de seda e com es a 10 mesmo tecido, em que estava colocado um miss pert 46 EE ___ eT, ‘© PRINCIPIO DA EPOCA MODERNA. novo rei jurar sobre esse livro, onde apunha as suas maos, o qual proce- dia de imediato ao juramento, prometendo “com a graca de Deos vos re- ger € governar bem € diretamente e vos ministrar inteiramente justiga quanto a humana fraqueza permite, e de vos guardar vossos privilegios, gragas € merges, liberdades e fraquezas que vos forao dadas e outorguadas por ElRej meu senhor € padre cuja alma Deus aja e por outros Reis passa- dos seus predecessores”.* Apés 0 juramento efetuado pelos fidalgos presentes a ceriménia, pertencia ao alferes desfraldar a bandeira e proclamar “real, real, per o mui- to alto € muito poderoso El-Rej Dom Joao, nosso senhor”. Outro dos jura- mentos seria efetuado pelos procuradores de Lisboa em Tepresentacao de todos os outros delegados dos concelhos do reino. Ao retirar-se Para a sua camara o rei vestia um manto € usava um capelo preto de luto, que decor- ridos 6 meses passava a ser substituido por uma “loba frizada”, conforme fi- zera 0 rei D. Duarte depois do falecimento de D. Joao 1.’ Em Portugal os reis usufruiam duma autoridade incontestada que se pautava por uma extrema firmeza. Por mais duma vez o rei D. Pedro | em- prega a expresso, no protocolo de algumas das suas cartas, “de nossa cer- ta ciéncia e poder absoluto”. Seu filho D. Fernando utiliza por vezes, em Suas cartas, a f6rmula “o estado real que temos por Deus nos é dado para Teger os nossos reinos”. A escolha de D. Jodo I pela vontade popular nao obsta a que este monarca de acordo com a tradicao dos seus antecessores, utilize “de nossa prépria autoridade e livre vontade e de nosso poder abso- luto”, expressao que ird ser igualmente utilizada pelos seus sucessores. bas Em conformidade com o seu poder absoluto 0 rei era a representa- ao da lei viva. Uma carta de D. Dinis de 1317 reserva para a coroa 0 exer- cicio das fungGes de “justiga maior”, o que alids vird a ser de novo reafirma- do pelo rei D. Fernando nas cortes de Leiria de 1372. Sabe-se porém que 0 papel do monarca nao se limita de acordo com a doutrina consignada pelo livro das Sete Partidas de Afonso X, o Sabio, que tanta influéncia teve en- tre nés, ao poder judicial. De igual modo lhe pertencia 0 poder executivo, conjuntamente com a chefia do exército e a cunhagem da moeda.'" Sabe-se que pelo menos desde o século XIII ninguém poe em causa a autoridade absoluta do monarca, a qual tinha como modelo remoto 0 di- reito imperial romano. Deste modo nao existia qualquer restrigdo que limi- tasse o poder do rei, 0 qual se exercia através dos mecanismos adequados. Um dos primeiros instrumentos relativos ao desembargo régio ficou-se de- vendo ao rei D. Pedro I e remonta a 1361. No desempenho do seu gover- no, 0 monarca era auxiliado por um concelho consultivo que a partir do sé- culo XIV passou a ter a designacao de concelho de el-rei."" Sao miltiplas as dificuldades que obstam a uma correta articulacio entre 0 Estado e os seus dependentes. Em muitos aspectos 0 cardter abso- 47 eo (© PRINCIPIO DA EPOCA MODERNA roa. Apenas ituigs ay ; a = ae das grandes casas senhoriais no decurso do : : ormam Os grandes exércitos particulares, tiva que nos foi possfvel estabelecer aponta para que : Pedro possuia ao seu servico 1.200 cavaleiros ¢ 2.300 reda pngeeae™ M Ppedes, enquanto a de seu meio-irméo, D. Afonso, dispunha de 1.700 cavaleiros € 2.000 ped Sem contar com a cavalaria, as forcas militares d i eae eee ans Marine da eae a s de que dispunha 0 rico-ho- : ins da Silveira, cifravam-se em 250 escudeitos e 400 bes- teiros e homens que combatiam a pé." a aoe ee © nobre possuia um patriménio fundidrio, sobre 0 al possuia jurisdigéo e cobrava rendas e impostos. Dependiam da sua au- toridade um niimero varidvel de cavaleiros, escudeiros, besteiros e pedes, estando-Ihe subordinados por vinculos pessoais 0s criados, os quais haviam sido educados e Preparados Para o uso das armas nas suas casas. As tenta- tivas para a instituigao de vassalos, que esporadicamente surgem nos pri- mérdios do reinado de D. Joao L, serao energicamente combatidas pela rea- leza que apenas admitia a existéncia de vassalos da coroa. Nao se pode, por- tanto, falar em vassalos de fidalgos, mas apenas do rei.” Em relagéo ao patriménio da nobreza deve-se sublinhar que uma parte pertencia heranga familiar ou a compra, mas a outra pertencia a co- roa que Ihe fizera concessao de juro e herdade, com ressalva da correigao € das algadas, com transmissdo aos seus herdeiros, mas implicando confirma- Gao sempre que se iniciava um novo reinado. Outra parte desses bens per- tencentes & coroa encontrava-se em regime de préstamo, com carater pre- cdrio, embora sua modalidade se tornasse menos freqiiente nos derradeiros séculos medievais. Havia nobres que ndo possuiam quaisquer bens fundié- rios, correspondendo na sua insergao a grupos destituidos dos mais elemen- tares recursos materiais.'* ‘A designagao dos nobres como alcaides dos castelos nao pressupu- nha que os mesmos lhes passassem a pertencer. Como detentores desse be- neficio cumpria-lhes exercer 0 cargo mediante um juramento que consis- tia numa homenagem de obediéncia e de vassalagem ao monarca ou nou- tras circunstdncias ao mestre da ordem militar em que se situassem esses castelos, cuja dependéncia mesmo assim obedecia em wiltima instancia & propria coroa.”” a Rompendo com uma tradico que permitia aos senhores a aplicaao de justica sem qualquer restriZo, 0 rei D. Dinis, através da jé mencionada lei de 1317, fazia doutrina ao determinar que pertencia ao monarca tomar conhecimento e julgar todas as apelagoes que lhe fossem dirigidas. Todos os fidalgos que praticassem obstrucdo a justica régia poderiam ser sancionados com a privagio da jurisdigdo. Paulatinamente a concessdo do direito apenas se aplicava as questoes civeis, reservando & coroa a apreciagao dos casos ae crime e a conseqiiente intervengio com ressalva da correigdo e das algadas Uma estima- do infante D. 49 Sy Humberto Baquero Moreno Alei de 1372 apenas consignava aos nobres 0 acesso & jurisdigéo cj. vel, sendo da competéncia dos juizes da coroa o exame dos processos-crj. me. Em tiltima instancia haveria sempre a possibilidade de recorrerem para a justica do rei na sua qualidade de drgao supremo de jurisdicéo e avalia. do dos pleitos em julgado.” ‘Com a crise de 1383-1385 assiste-se a um avultado niimero de doa. Bes levadas a efeito pelo Mestre de Avis, que a0 confiscar os haveres dos que haviam seguido essencialmente o partido de Castela quis assim recom. pensé-los pela dedicacao a sua causa. A situagdo apenas retomou a sua nor- malidade a partir de 1388, altura em que 0 muimero de doaces se coloca no mesmo nivel dos anos anteriores 4 revolucao.* Naturalmente que ultrapassada a primeira fase revolucionaria do seu governo, em que 0 rei teve de realizar intimeras doacies passou-se segut- damente, a um conjunto de medidas de cunho restritivo que visava em particular reaver © maior ntimero possivel de bens, acautelando-se deste modo os interesses da coroa. Essa medida aparece claramente consignada numa doacdo feita em 15 de maio de 1393 a favor de Diogo Lopes Pache- co. O fundamento dessa doutrina exprime-se no principio de que os bens da coroa sio inaliendveis e que a sua doacao pressupunha determinados condicionalismos no respeitante & sua transmissao.” /Trés normas aparecem consignadas nesta doutrina. A indivisibilidade tendente a evitar a divisao do patriménio adquirido da coroa pelos diversos filhos. A primogenitura em que os bens doados apenas podem ser transmiti- dos ao filho mais velho legitimo ¢ & masculinidade, em que sao exlcuidas as filhas, exceto em caso de mercé especial. Paulo de Meréa diz-nos que 0 prin- cipio de excluséo das mulheres apenas surge consignado numa carta de $ de junho de 1417, mas tal normativa jd se encontra expressa numa carta de 27 de julho de 1398 concedida em beneficio de Diogo Lopes de Sousa.” Numa doacio de 24 de janeiro de 1429 D. Joao I excetua um fidal- go da aplicacao da Lei Mental utilizando as palavras “posto que nos tenhar mos feita € hordenada uma lei em nossa vontade”, medida que apenas YF ria a ser concretizada por seu filho D. Duarte em 30 de junho de 1434. Ao ser promulgada muitos foram os que reagiram quanto a sua aplicabiidage mas depararam com a obstinada resisténcia do Infante D. Pedro que Pt nas abriu mao em 1442 relativamente ao cavaleiro da sua casa Ferna0 Go” mes de Gois. D. Duarte dera alids 0 exemplo ao excetuar, por carta d¢ 10 de setembro de 1434, a sua aplicagao a casa de Braganca.” Com a derrota do infante D. Pedro em Alfarrobeira, D. Afons Saeed abut Srlapnieneat relacdo a esta matéria. Tanto quanto Me Lei Mental. Sucede com D. ', Eee oe seiexeesae ae Suan B venience . Francisco Coutinho, D. Sancho de Norm iq leneses, com o infante D. Fernando, seu irmao, &™ 0 V foi 50 — 1 (© PRINCIPIO DA EPOCA MODERNA neficio de seus filhos D. Duarte e D. Manuel (futuro rei de Portugal) e com Pero de Gois. Abrangidos s3o ainda os cavaleiros fidalgos Joao Ro- drigues de Sousa, Rui de Sousa, Rui Pereira, Jodo Alvares da Cunha, Dio- go Lopes de Azevedo, Diogo Lopes Lobo, Jodo Rodrigues de $4, Leonel de Lima e Diogo de Sampaio. Em relacao aos quadros superiores da nobreza observa-se que os ricos- homens, além da linhagem de que eram detentores, distinguiam-se pelos avul- tados bens que possuiam ¢ pelos importantes cargos que detinham na adminis- traga¢ publica. O monarca podia “fazer” ricos-Fiomens, o que j4 nao acontecia com os infangGes, grau da nobreza inferior ao dos ricos-homens, mas superior no respeitante a linhagem. No decorrer do século XIV o rico-homem j4 nao aparece associado ao exercicio de um cargo piiblico. Se examinarmos a documentagao do século XIV, com destaque para a Pragmatica de 1340 e para as cortes de Santarém de 1331," aparece-nos com profusdo esta categoria social, a qual domina a hierarquia nobilidrquica da €po- ca. Sintomitico, contudo, é que jé na legislago de 1374 desaparece por com- pleto surgindo como correlativo 0 termo de vassalo da coroa, outras vezes de- signado por vassalo maior.” Com efeito, 0 rico-homem transforma-se no século XV num vassalo do rei que recebe da coroa uma “contia”, a qual se encontra registrada no livro das moradias, e fica obrigado a servir 4 coroa mediante um certo numero de lan- cas. Este vassalo podia nao ser fidalgo, alcancando a categoria em recompensa “dos seus servigos ou mesmo por simples compra. Por essa via entravam na no- breza homens possuidores de riqueza que se dedicavam ao comércio € consti- tuiam a burguesia e mesmo, as vezes, simples artifices, 0 que originava 0 pro- testo dos representantes dos concelhos nas cortes, tal como sucedeu com enor- me veeméncia na queixa apresentada ao rei D. Afonso V, nas cortes de Lisboa de 1455. Embora a questo da subversio das categorias sociais se tivesse verifi- cado no reinado de D. Jodo I com a elevagao de simples pedes a cavaleiros, apés a revolucdo de 1383, 0 problema avolumou-se sobretudo a partir de Al- farrobeira, em 1449, facilitado pela permissividade do monarca e pela premen- te hecessidade de alargar os quadros da nobreza que se destinavam as futuras campanhas marroquinas. Dai o clamor popular, ou particularmente das oligar- quando se insurgiam, de acordo com as suas palavras, contra 0 fato de “pouco tempo acca vosa alteza a roguo € requerimento dalgumas pes- soas a vos acceptos’ ter feito “de pequenas contas assy como alfaiates e capa- teiros e barbeiros, lauradores e outras pessoas que eram obrigadas a pagar pe- didos, jugadas, oytauos e per os preuilegios, escusam os dictos emcarregos € aalem de per ello seerem releuados sam taaes pessoas que fazer vergomca aos rnosos uassalos que o sam per linhagem perlomgada, criagom nosa de nosso irmiao e tijos’. De modo a combater este estado de coisas solicitavam ao rei quias urbanas, 51 Humberto Baquero Moreno “que ponha tall hordenamca que taaes pessoas nom filhe por uasalos saluo per linhagem for ou ser filho ou neto de uasallo segumdo jé per ElRey uosso pa. dre ... em seu tempo foy ordenado”.” Por seu turno os infangdes eram possuidores de linhagem, nao ultrapas, sando em meados do século XIV a centena de estirpes, sendo uma nobreza ar. raigada as dreas rurais, onde apesar de ocuparem cargos inferiores aos dos vas. salos e serem proprietérios de latinfiindios de menor amplitude, desfrutavam de grande influéncia local. Muitos deles chegaram a ocupar funges de maior importancia. Problema, contudo, ainda mal esclarecido na nossa historiogratia, consiste em saber se a maior parte destas estirpes se teriam extinguido em mea. dos do século XIV, 0 que em caso conclusivo se deverd atribuir a uma decadén- Gia biol6gica relacionada com fatores endogamicos, resultantes de cruzamentos observados entre elementos pertencentes 4 mesma familia. Desta situacao ve- rificar-se-ia uma diminuicao da natalidade e simultaneamente uma elavada taxa de mortalidade infantil e juvenil, tal como se observa no reino de Castela, Este estado de coisas tanto afetou os infangées, que desaparecem por comple- to dando origem aos cavaleiros-fidalgos, como igualmente aos ricos-homens, 0 que certamente contribuiu para a constituigao de uma nova nobreza.”* ‘A cavalaria como grau da nobreza representava uma categoria transit6- ria. O monarca podia armar cavaleiros, mas nao podia fazer fidalgos. Apenas se atingia a categoria de cavaleiro-fidalgo ao fim de trés geracdes. Muitos dos ca- valeiros que nos aparecem a partir da segunda metade do século XIV eram pro- venientes da cavalaria-vild, conhecidos genericamente pela designacao de her- dadores. Eram possuidores de bens fundidrios nas zonas rurais, nao se conhe- cendo na maioria dos casos como funcionava os mecanismos desta transicao.” Em consonancia com a tradigao 0 cavaleiro era armado nessa categoria pelo monarca, podendo contudo este ato reduzir-se a um simples formulério administrativo. Em conformidade com as leis do reino um cavaleiro era obriga- do a possuir cavalo, perdendo essa condigao no caso de nao ter meios para pro- ceder a reposicao da montada, cabendo-lhe a obrigacao de participar na guet- ra acompanhado por um determinado ntimero de “langas” recrutados nas suas terras e combatendo sobre as suas ordens diretas.”* A legislacao em vigor estatuia “que pera cavalleiros fossem escolheitos ho- més de boa linhagem, que se guardassem de fazer cousa, perque podessem cait em vergonga, € que estes fossem escolheitos de boos lugares” o que significava “gentileza”. Ora “esta gentileza vem em tres maneiras; a hua per linhagem: a S¢ gunda per saber; a terceira per bondade e custumes e manhas, e como quet qué estes, que a ganham per sabedoria, ou bondade, som per direito chamados nobres € gentys, muito mais ho sam aquelles, que ham per linhagem antigamente, ¢ f" zem boa vida, porque lhes vem de longe assy como per heranca...”." Ainda dentro da nobreza cabe mencionar uma categoria de acess a cavalaria constituida pelos escudeiros. Este grupo social a partir do sécul? 52 is 7 SPs nn SLE BREE © PRINCIPIO DA EPOCA MODERNA, XIV acusa uma acentuada tendéncia no sentido da sua prépria cristalizagio. Anteriormente os escudeiros representavam uma categoria transitoria de acesso a cavalaria, mas a partir da crise da segunda metade do século XIV constituem um estamento pertencente a nobreza inferior. Na maioria dos ca- Sos esta vedado a eles 0 acesso ao grau da nobreza fidalga. Os homens que integram esta estrutura situam-se na base da nobreza e a circunstncia de se inserirem nesta categoria nao significa necessariamente que alguma vez as- cendam ao estatuto de fidalguia.” Conforme observa Oliveira Marques, os escudeiros formavam um gru- Po de homens muito numeroso nos inicios do século XV. A ordenacao do exér- cito estabelecida no reinado de D. Jodo I fixava em 2.360 o numero maximo de escudeiros de uma langa, 0 que na pratica deveria corresponder a um quanti- tativo significativamente superior.” Para finalizar esta tentativa de globalizacdo da sociedade portuguesa em “ordens” ou em “categorias sociais”, cumpre fazer uma breve referéncia ao cle- To. Este tal como a nobreza formava uma estrutura privilegiada da sociedade, embora 0 grau de heterogeneidade em relacdo ao seu estatuto econdmico fos se acentuadamente diferenciado. Dum modo genérico o clero dividia-se em duas categorias principais: 0 clero secular e o regular. Encontravam-se ambos subordinados a hierarquia. Enquanto o clero secular era formado por bispos, cénegos, pdrocos, abades e clérigos, o regular também se encontrava subordinado a uma hie- rarquia propria. Mas sobretudo no que toca a privilégios devemos distinguir © alto clero constituido pelos abades, bispos, cénegos € outras categorias afins, os quais eram possuidores de foro privativo, isengao de impostos e de servico militar, embora voluntariamente pudessem participar na guerra, di reito de asilo e outras regalias. Nitidamente inferiores eram as condigdes em que se encontrava o clero rural, 0 qual estava subordinado aos patronos das igrejas possuidores de comendas e a autoridade episcopal, vivendo das ren- das que aqueles Ihes deixavam, pelo que serd de presumir com inimeras dificuldades para sobreviver no dia-a-dia. Tema abrangente pela sua natureza apenas pudemos optar por algumas linhas cujos contornos nos permitem apresentar um esboco sumario das gran- des catergorias da sociedade, a qual a par duma aparente unidade apresentava fraturas e antinomias cujo equilibrio se apresentava instdvel e gerador de assi- metrias. 53 33 ¥S unseen 2-9 MERED-0 9-4 : | 7 1-eHRD°0 > HV sanDaV EOS 295: ayy ay » AD op gt SPoieo many ‘n2Ha 2p PmHTOEY MP Mio TE Oe 33430 2 2 VRE ot TIT 6961 POMS uD CUaDEP 509 EBA ‘SVD ot 95 onqesuoyn 2p 201 estoty 2p oust wr eso ums epee HGR 8 Kos OT 06 sor “apo aonb gy wie sod operignd “gh POD" 'N A) F095 BP RUODEN E=NHIE AHINE sed WML 2901 sory psc tn a oF et sumo eo pose op raed OY OSHA ot) waay 9 9012 ENT] aA NAY ‘oer HRY qua repens cosa 9 I 2D Let rat con aye epMapey op seuy (3 ss 1zd'sz61 “ered Wado 029 -H-V Sar vp sis #7 W 'ONVIAYD owe A #117 Mp oy ad romana sited 8 s9'd rogsry 2050105 ond une re Ar OL omy hg ses op sgieapHO OF \Wersa0n Y2088 va OUP euion oebe oth capitulo 4 OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E ° SEU VELO DE OURO (SECULOS Xv-xvI) Anténio Borges Coelho* NAVEGAGAO, COMERCIO E CONQUISTA No discurso histérico, aquilo que designamos e explicamos como acontecido escapa-se pelas malhas da teia explicativa, esconde-se por trés de cada palavra, a da época, que nao comporta exatamente os significa- dos de hoje, e as de hoje, ainda que com o mesmo som, que somam no- vos contetidos aos contetidos de outrora. Para nos aproximarmos dos ve- thos conceitos temos que iluminar e vencer a resisténcia das palavras, vi- vidas em tempos diferentes, e com palavras antigas e novas lancar de novo a teia que prenda as relagées dos acontecimentos. Em substancia, 0 passado é apreendido com conceitos que hoje re- cuperamos e novamente fabricamos. Estes novos conceitos permitem li- gar logicamente 0 passado ao presente € a sua legitimidade provém da lo- calizagao inevitavel no atual do falante ou escrevente. $6 que este nao pode retirar da mesa de jogo do discurso as cartas legadas pelo passado com as suas figuras e sentido. Vem esta fala a propésito do movimento social, protagonizado pelos europeus, iniciado no século XV pelos portugueses, seguidos pelos outros ibéricos, e voltado para a exploragao dos varios continentes. Este movi- mento tem recebido diferentes designagdes. Assim, enquanto 0 rei D. Ma- nuel de Portugal, como é sabido, se intitulava “rei de Portugal e dos Algar- ves daquém e dalém mar em Africa, senhor da Guiné, da navegacao, co- mércio e conquista de Etiépia, Arabia, Pérsia e India”, os vocdbulos que neste século passaram a designar esse prodigioso movimento coletivo fo- ram descobrimentos, expansao, evangelizacao, império, encontro de civi- lizagGes, dialética do outro e do mesmo, civilizar, esclavagismo, colonialis- mo, construgdo de novas nagées ¢ paises, tempo da descoberta do nu e das * vergonhas, passagem do particular ao universal, que sei eu, ou, tendo em conta o objeto, além-mar, ultramar, nosso mar, colénias ou, colocando- nos no nivel dos impulsos, espfrito de cruzada, fome do ouro e das rique- zas, estratégia planetéria antimuculmana ¢ antiturca, morrer pela f. eS SS ae, mm “Antbnio Borges Coelho A palavra invasdo, usada correntemente a propésito da expansig dos povos asiaticos - invasao dos barbaros, dos érabes, dos mongéis ¢ dos turcos ou ento invasées francesas-, nunca foi usada na primeira expan. sao européia. E se nos séculos XV e sobretudo XVI nao faltaram invasées no sentido de entradas violentas com ocupacao de territrio, na verdade, © estabelecimento dos portugueses no Oriente nao envolveu a ocupacio em massa de territérios e das suas gentes. ‘A lista dos vocdbulos nao esta fechada. E na sua escolha, perfilam- se 0s rostos da diferenca, a espada e o punhal do combate ideol6gico. Por exemplo, os evangelizadores estremecem quando ouvem falar na fome do ouro e das riquezas ou porventura na descoberta do nu e das vergo- nhas. Pelo seu lado, 0 colonizador e o colonizado entreolham-se descon- fiados por trés das palavras. O colonizador nao se revé, em geral, no co- lonialismo e faz orelhas moucas ao esclavagismo € 0 ex-colonizado tem aversao ao termo descobrimentos. Esconjuram-se as contradic6es sociais, mas enaltece-se a dialética do outro ¢ do mesmo. O termo civilizar é um resto a mercé do caixote do lixo da Historia mas que alguns gostariam de ver recuperado. A expresso encontro de culturas, encontro real, permi- te aplacar as consciéncias sensiveis, mas 0 encontro envolveu sempre confronto e também destruicao de culturas. Durante alguns séculos, os territrios extra-europeus dominados pelos portugueses foram designados como Conquistas. Joao de Barros usou freqiientemente a expresso Descobrimentos e Conquistas. 0s titu- los do rei D. Manuel, atrds evocados, indicam a intengao e uma pratica politica, comercial e militar embora a realidade ultrapasse 0 ditado das bandeiras. A intencao aparece de rosto descoberto mas os escreventes jus tificam-na desde logo pela missdo divina de dilatar a fé, mesmo quando ela é recusada de armas na mao. ~ Antes da segunda viagem de Vasco da Gama, houve pareceres de muita dtivida sobre se seria proveitosa uma conquista to remota € de tantos perigos. E aos que aduziam o argumento ideoldgico de propagasao da fé, respondiam os contraventores: como se podia esperar que 05 Pov0s asidticos aceitassem “a nossa doutrina, ainda que catdlica fosse, por Set com mao armada e nao por boca de apéstolos, mas de homens sujeitos mais a seus particulares proveitos que a salvagao daquele povo gentio?” Na expansdo portuguesa houve de tudo um pouco: descobrimen” tos, em absoluto, € ndo apenas para os europeus, de novas terras, NOVOS mares, novas estrelas, como diria Pedro Nunes, e viagens de descobri- mento; evangelizacdo com mao armada e também com martirio € nov métodos lingiifsticos; transfega e troca de riquezas, de idéias, de técnica® de animais e de plantas; guerra e paz armada com violéncia extrema 4¢ todas as partes; fome de honra; coragem para além do que pode a ford 58 a (OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E © SEU VELO DE OURO (SECULOS XV-XV1) humana; altruismo, sacrificio; antropofagia no limite e recusa dela; troca de idéias, de cerim6nias, de vocdbulos; confronto de culturas. Enquanto a Europa mergulhava em intermindveis guerras de poder sob bandeiras religiosas, o que fazia correr entdo os portugueses? A fome do ouro e das riquezas, o cheiro da canela, a fama, 0 medo com as suas correias de obediéncia, a ansia de poder, a f€ em Deus, essencial para es- conjurar os deménios € a morte e para o perdio dos horrorosos pecados, 0 espirito de aventura, o desejo de ir mais além, 0 apelo do desconhecido. Tudo isso e muito mais impulsionou a corrida. Mas se quisermos tomar 0 velo de oiro dos novos argonautas teremos que dourar a talha, adocar 0 agticar, iluminar 0 dorso dos escravos ou a beleza das escravas, espirrar com a pimenta e as especiarias, fazer cintilar as pedras preciosas. As crencas, a coragem e o medo constituiam o ser, a propria armadura dos sujeitos mas evidentemente cercavam e penetravam as coisas, conde- navam e absolviam as agoes. Nao € possivel desatar os nés, todos os fios estao ligados. Mas sem. as estradas que 0 comércio e o dinheiro abriam, sem as descobertas na construcao naval na arte de navegar, sem a riqueza acumulada para pa- gar os navios, as mercadorias, as armas, os mantimentos, 0 soldo, que fa- tia o desejo e a vontade? Fazia-se ao mar mas nao navegava e a fé sosso- brava nas primeiras bracadas. Tomei o ditado: Navegagao, Comércio e Conquista. £ a bandeira ma- nuelina. Houve navegacdo, fantdstica, guiada pelos instrumentos que me- diam 0 Sol e as estrelas. Houve comércio, desigual, com monopdlios e sucu- lentas presas. Houve conquistas, nunca concluidas, de cidades, de territérios. Por que nao escolher o termo Descobrimentos? Para nao tomar a parte pelo todo. E a palavra Expansao? E operacional, um vocabulo con- tinente, vaso, utensflio que pode transportar sem afetar significativamen- te os diferentes contetidos. CARAVELAS E FALCOES A expansao portuguesa dos séculos XV a XVIII, a tal do comércio € das conquistas, com descoberta de caminhos maritimos, desce da terra Para o mar e olha depois do mar para a terra. Um olhar espantado e ino- cente: “nem estimam nenhuma cousa cobrir nem mostrar as vergonhas” tém “nisto tanta inocéncia como tém em mostrar 0 rosto”, escrevia Pero Vaz de Caminha. Um olhar de milhafre: “Senhor, os veludos de Meca e Aguas rosadas dos caixdes, que aqui te trazem, — dizia um magnate de Ben- gala ~ roubam os portugueses pelo mar, tomando os peregrinos que vao Para a santa casa de Meca; € sao ladrdes mui subtis, que entram nas terras 59 Antonio Borges Coelho com mercadorias a vender e comprar, € dédivas de amizades, andam ¢, piando as terras e gentes, e depois com gente armada as vao tomar, ma. tando e queimando, e fazendo tais males que ficam senhores das terras+ A expansao grega teve um suporte maritimo e de algum Modo a romana. Maritima é a expansao dos normandos. Mas na expansio euro, péia, iniciada com os portugueses no século XY, a que abre os mates dg universo, os navios so o veiculo, a casa, a fortaleza, 0 templo, a oficing a tenda ¢ o armazém das mercadorias ¢ da pélvora, 0 tronco dos escra_/ Vos, 0 porta-navios, 0 caixdo. Os portugueses nao se deslocam como horda nem se organizam como legido. No desfraldar das velas, os seus navios lembram aves de ra. pina prestes a cair sobre a presa. Quando os azenegues viram os primei- ros navios portugueses, julgaram, no dizer de Cadamosto, que eram enor- mes pdssaros de asas brancas; outros diziam que eram fantasmas que pela noite navegavam 100 milhas e mais. Os olhos pintados na proa eram ver- dadeiros, viam e guiavam os navios na noite € no dia do Oceano. ‘A expansio portuguesa envolveu milhares de navios de comércio ¢ de guerra. Sairam da Ribeira de Lisboa, da Outra Banda, do Porto, do Algarve, de Cochim, de Goa, de Malaca, do Salvador. A sua constituigao ¢ formas desiguais ficaram assinaladas na galeria dos nomes: barca, bari- nel, batel, bergantim, caravela, caravelao, carraca, catur, esquife, fusta, galé, galeaca, galedo, galeota, junco, nau, patacho, taforeia, urca, 2avra... A caravela, navio de vela latina ¢ pequeno calado, constituiu a embarcacao por exceléncia da exploragao € descoberta do Atlantico. E também 0 navio répido proprio para levar e trazer informagoes. Enquan- to uma nau da carreira da India demorava cerca de 6 meses na viage™ de ida, em 1516 a caravela de Diogo de Unhos gastou menos de 6 meses na ida € no regresso. A caravela serviu também como navio de guerra Comboiava as pesadas naus da {ndia ¢ da América na fase final da vit gem rumo 8 costa portuguesa. Uma caravela da india, na primeira Me tade do século XVI, podia dispor de 21 tripulantes, assim distribuidos gundo a ordem dos vencimentos: 0 capitéo, 0 bombardeiro, 0 mestte ¢ piloto, 0 carpinteiro, o calafate, o esctivao, 0 barbeiro, 0 tanocit0 ¢ dois homens do capitio, os quatro marinheiros € os sete grumete® bombardeiro ultrapassava o vencimento do piloto marcando bem ¢ P pel essencial da artilharia.* ___Anau, navio de carga armado, passou dos 120 tonéis da nau S S briel de Vasco da Gama para 450 e até mil tonéis do final do sécv!0 No seu bojo carregaram 0s portugueses para Ocidente muitas rique?#* India. O valor da carga podia atingir os 3 milhdes de cruzados Ouro: © 4 oe a ced Dy Francisco de Almeida combateu n3 ea sas niquezas colhidas por Al Hand consigo nas aguas de 54m lao por Afonso de Albuquerque na tomada de | 60 (OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SECULOS XV-XVI) © galedo era um vaso de guerra também usado em transporte como 0 galeao grande S. Jodo que naufragou préximo do Cabo da Boa Esperanca. Mais comprido, de menor calado e Portanto mais veloz que a hau, dispunha de um temivel poder de fogo. Por exemplo, o galeao S. Di- nis, de trezentos tonéis, construido na {ndia pelo governador Diogo Lopes Sequeira (1518-1521), comportava 71 pecas de artilharia, a saber 21 ca- melos debaixo da ponte, 12 por banda, 2 por popa, 4 na tolda, 2 sobre o Perpau e 4 na ponte e ainda 9 falgdes e 20 bercos, enquanto em 1525 Co- chim dispunha de 286 pecas de artilharia, Goa de 188, Malaca de 1666.4 A expansao maritima dos portugueses e europeus promoveu em todos os mares combates e ferozes guerras maritimas. Os seus navios le- varam aos pontos mais distantes do globo o espantoso ribombar da arti- Iharia. Esta tomava formas varias, adaptadas aos diferentes fins. Os pe- dreiros langavam balas de pedra para bater obstaculos a curtas distancias; em batalhas navais ou de sitio, os canhées atiravam balas de ferro fundi- do de intenso poder perfurante; € as colubrinas, de tubo comprido, ba- tiam objetivos a maiores distancias. Pecas de arte em bronze, semeadoras da morte, receberam nomes estranhos como se os nomes aumentassem a carga da pélvora e do medo: selvagem, camelo, camelete (pedreiros); Aguia, serpe, espera, meia-espera (canhdes); aspre, sagre, moirana, falcao, falco. nete, esmeril; e bercos ou falcées mais pequenos.* Os NAVEGANTES O grosso da populacao das naus da Carreira da india era constitui- da por mareantes e militares e também por pequenos micleos de merca- dores profissionais ¢ de religiosos. Os militares podiam virar marinheiros € 0s marinheiros soldados bem como os mercadores ¢ 0s clérigos. Nos na- vios de menor tonelagem que cruzavam 0 Atlantico eram poucos os mi- litares, mais os passageiros, Néo faltaram meninos na aprendizagem da vida como Antonio Correia, filho do feitor Aires Correia, assassinado em Calecut. Sao raras as mulheres. Na terceira viagem de Vasco da Gama embarcaram algumas as escondidas. Luis de Camées, numa das suas cartas, convida as mulheres de vida facil a tentarem na fndia a sua sorte. E havia sempre as érfas del- Tei exportadas para os varios pontos do império. Nas viagens de regresso no faltavam as escravas. Senhoras, pou- cas mas algumas. D. Leonor, mulher de Manuel de Sousa Sepilveda, naufraga no Cabo da Boa Esperanga. E quando os negros Ihe tiraram a Toupa por forca, cobriu-se com os longos cabelos € a areia da cova que abriu para enterrar viva a nudez. 61 Antbnio Borges Coelho O capitdo do navio assumia 0 comando supremo da comunidade navegante e do corpo militar. Mas 0 responsdvel pela navegacao era o piloto, assessorado pelo mestre na direcao da equipagem. O piloto era Ado s6 0 responsével maximo pela seguranca do navio, o técnico que media, numa manobra complexa, 0 seu avanco diario, como o investi- gador empirico continuamente registando os acidentes e acontecimen- tos que fugiam a norma. As suas observacées podiam ser discutidas em terra por cientistas como Pedro Nunes. Outras vezes eram os cientistas que se faziam ao mar como José Vizinho, Duarte Pacheco ou o futuro vice-rei D, Joao de Castro. O corpo militar atuava no mar ¢ na terra mas a sua base € retaguar- da estava no mar. As espadas ¢ lancas dos capitaes ¢ escudeiros continua- olpes mas, na milicia maritima e de vam a Tasgar as carnes € a aparar 0s 8 desembarque, incorporavam-se em ritmo crescente Corpos especializados no manuseio das armas de fogo. Os besteiros, numerosos Nos Primeiros anos, sao ultrapassados pelos espingardeiros e o pequeno corpo de bombar- delves, Os ferreiros, os calafates, 0s tanoeiros constitufam tropas auxiliares que a todo o momento podiam integrar a primeira linha de combate. Na armada que em 1525 patrulhou a costa do Malabar teriam en- trado 2.181 homens assim distribufdos: homens do mar 451; homens de armas 1.254; trombetas 18; ferreiros portugueses 30; carpinteiros portu- gueses da Ribeira 23; calafates portugueses 36; tanoeiros 15; espingardei- ros de nimero 204; bombardeiros 150.* Pouco depois, em 1531, na ilha de Bombaim, o governador Nuno da Cunha fez alarde da armada que se dirigia a Bacaim e a Diu, a maior que se juntou na {ndia. Contaram-se 400 velas, entre elas 5 juncos, 8 naus do reino, 14 galedes, 2 galeagas, 12 galés reais, 16 galeotas e mais 228 embarcacoes a vela e remo bergantins, fustas € catures, sem contar as naus, zambucos € cotias de taberneiros da gente da terra. Os comba- tentes somavam mais de 3.560 homens de armas portugueses a que S¢ juntavam 2 mil combatentes malabares € canarins de Goa e 8 mil escra- vos de peleja. Os espingardeiros subiam a mais de 3 mil. Aos combaten- tes juntavam-se os homens do mar, avaliados em mais de 1.450 portu- gueses com pilotos € mestres € 4 mil marinheiros da terra remeiros, fora os mareantes dos juncos que passavam de 800. Somando as mulheres ¢” sadas ¢ solteiras e a gente que ia com suas mercadorias e mantimentos 4 vender passavam de 30 mil almas.” Ao lado dos homens de espada ¢ lana, protegidos por armadura de ma" Ihae aaa as armas transportadas por escravos guerreiros, perfilavam-se 05 eh arspnrng oper pene toaanaenp Te Se eisaiaiasnae 6 a bandos 4 lado, milhares de combatentes mala! lo rei de Portugal. E também os escravos 62 of. 4 q 4 4 W & IEEE 'S 5 (OS ARGONAUTAS FORTUGUESES E 0 SEU VELO DE OURO (SECULOS xv-xv1) Na batalha de Diu, D. Francisco de Almeida esforcou os “valentes TronatOs due ajudam seus senhores pelejando’. E prometeu-Ihes que se morressem no combate seriam pagos a seus donos a 50 cruzados: se fi. cassem vivos € obtivessem nesse ano a alforria, obteriam as liberdades de escudeiros; se ficassem aleijados e nao pudessem servir,seriam Pagos Como os mortos; se ainda pudessem servir, valeriam 20 cruzados para 0s seus donos.* Também na armada, atrds referida, para Bacaim e Diu, 0 governa- dor Nuno da Cunha orden ‘Ou aos capitaes que, quando desembarcassem Fara o combate, quem tivesse escravo homem que o levasse consigo, para desembarcé-lo ¢ ajudé-lo a levar suas armas e seu almoco, ¢ para que, se © ferissem, 0 ajudassem a levé-lo e a curé-lo? A morte era uma visita didria, Manu ao rei que ja Ihe tinham morrido quinze cri Sem home ia a0 enconiro da fortuna e com a salvagio e perdicao das al. mas ¢ em todo 0 lado encontrava a morte: o bispo Pero Sardinha morto ~ € devorado pelos indios junto do rio Cururipe; D. Francisco de Almeida no Cabo da Boa Esperanga; 0 marechal Fernando Coutinho no palacio do Samorim; Jeronimo de Lima na segunda conquista de Goa. Jeronimo morreu esvaido em sangue encostado a um muro da cidade. E incitava o imo Joao de Lima que viera em seu socorro: “Adiante, senhot irmao, nao € tempo de deter que eu em meu lugar fico”. iel de Lima escrevia em 1533 iados de seu pai. Gente com e BASES E FORTALEZAS Os navios dos argonautas portugueses necessitavam de bases, an- ) Seavam por terra. Para tratar das feridas, para satistazer a fome fisica ¢ se. Xual, para renovar os navios e os abastecimentos, para firmar os pés ¢ re. gueses dominaram a sua plataforma maritima. E a primeira iniciativa "> Atlantico em diregdo ao sul surgiu em 1340 com a expedicao Juso-caste- Ihana-italiana as Candrias de que 0 escritor Boccaccio nos deixou um In Pressivo testemunho. Mas 0 arranque da expansao portuguesa ocorre com a cond) ista de Ceuta em 1415. Aparentemente o impulso é ainda 0 da Reconquista ™s* as diferengas esti a vista. A conquista de Ceuta envolve a mobiliasie de uma frota européia e. para ld do exército dos nobres, 0 entusiasm? um exército dos concelhos, em particular do de Lisboa € do Porto 4 par ticipagao, A sua custa, de alguns mercadores italianos ¢ ingleses- 64 SE EEE EEE EEE EEE EEE EEE CeCe C= CeCe aaa See eee eee 05 ARGONAUTAS PORTUGUESES B 0 SEU VELO DE OURO (SECULOS XV-xV1) Depois, a manutencao da Praca ¢ a necessidade de prover a sua de- fesa promoveram desde logo a ctiagao de uma direcao politico-militar ema solo nacional, voltada para o mar e que a todo © momento mobilizava os Tecursos maritimos. Com o passar do tempo, esta direcdo consolida-se como a cabeca organizadora e centralizadora de frutuosas operagées cor- sarias no Estreito de Gibraltar e também da redescoberta das ilhas atlanti- as € do seu povoamento, de novas conquistas em Marrocos e de viagens de corso e descobrimento na costa africana para 14 do Cabo Bojador. Entretanto, ao longo do século XV, foram-se definindo os modelos que a expansao portuguesa iria desenvolver Nos séculos XVI € XVII. O primeiro modelo encontrou na conquista e conservacao de Ceu- ta e das outras pracas Marroquinas as linhas definidora: Parece inserir-se, como dissemos, nos velhos passos da Reconquista: con- Quista de terras, de homens e de riquezas. Mas a novidade €siS fo papel crescente do territério maritimo. O socorro e a Pprotecao das pracas con- quistadas estao no mar. Eo mar € defendido pelas fortalezas. A tentativa de conquista das Canérias e as primeiras viagens de assalto as costas para 14 do Bojador sao ainda operagdes de guerra, de conquista e de saque. O segundo caminho rasga-se com a colonizacao da Madeira e dos Agores. Inicialmente esta colonizacao assentou em terra livre com 0 s6 encargo da dizima a Deus e organizada na pequena exploracao campone- sa ou na média com trabalho assalariado dos braceiros e a introdugao do trabalho escravo. is. A primeira vista O terceiro caminho definiu-se com o estabelecimento da feitoria e castelo de Arguim e da feitoria e castelo de S. Jorge da Mina. Protegidas Por fortalezas, erguidas em ilhas ou cabos facilmente defensaveis por quem dominava o mar, as feitorias assumiam 0 exclusivo do trato. Mais tarde na India este modelo dara lugar a uma rede de alfandegas, protegi- das por cidades ¢ fortalezas, que sangram uma parte significativa do co- mércidmaritimo asidtico. RESERVA DO MUNDO A “DESCOBRIR” Do ponto de vista diplomético e politico, o principal acontecimen- to do século XV, no que se refere a expansdo portuguesa, é 0 estabeleci- mento da primeira reserva do mundo descoberto e por descobrir, reserva afeta em exclusivo aos portugueses pela bula Romanus Pontifex, de 8 de ja~ heiro de 1455, e alargada aos ibéricos pelo Tratado de Tordesilhas de 1494. Na citada bula, o papa Nicolau V fundamenta a atribuicao aos por- tugueses da reserva da navegacao para 14 dos Cabos Nao € Bojador, prote- gendo-a com os raios eclesidsticos, alegando os grandes trabalhos, pre- 65 Anténio Borges Coelho juizos e despesas do Infante D. Henrique ¢ do rei de Portugal, Hay, anos que enviavam navios ligeiros, a que chamam caravelas, gm? 25 tes desses reinos e provincias maritimas a demandar as bandas me gen. nais € 0 polo antartico. Muitos guinéus € outros negros, tomados tos cae alguns também por troca de mercadorias nao-proibidas, foram 2" dos para 0s ditos reinos onde em grande niimero foram convertide catélica. uh] A reserva de navegat, conquistar, comerciar € instituida em regi de monopélio henriquino-régio. Tal exclusivo nao significava que 56, navios do infante ou do rei pudessem navegar € comerciar nessas nary gens. No essencial, o monopélio garantia a cobranga do quinto das mer cadorias pela Ordem de Cristo, de que o infante era 0 governador, ere. servava a navegacdo e 0 comércio para essa drea do globo para aqueles quem, mediante contrapartidas materiais, fosse dada licenca, em primei- ro lugar aos escudeiros e mercadores ligados & casa senhorial henriquina, No final da vida, em 26 de dezembro de 1457, o Infante D. Henri- que retine em Tomar 0 cabido da Ordem de Cristo ¢ faz 0 balan, esci- to na primeira pessoa, dos primérdios da expansao maritima: 0s trabalhos dos homens principalmente devem ser por servigo de Nosso Se- nhor Deus e assim de seu Senhor porque hajam de receber galardéo de gléria (t) em este mundo honra e estado. Quem estabelece o que é servico do Senhor sao os senhores deste mundo t Sdo eles que neste mundo distribuem gloria, honra e estado. E prossegue: E sendo certo como, desde a memsria dos homens, se nao havia alguns noticia na Cristandade dos mares, terras e gentes que eram além do Cabo de Nit contra o meio dia, me fundei de inquirir e saber parte, de muitos anos passdts para cd, do que era desde o dito Cabo Nao em diante, nao sem grandes mets "™ baths e infindas despesas, especialmente dos direitos ¢ rendas cuja governans sim tenho, mandando per os ditos anos muitos navios e caravelas com meus dos e servidores, os quais, por graca de Deus, passando o dito Cabo de Nao Ce ¢ fazendo grandes guerras, alguns recebendo morte e outros postas em grandes rigos, prouve a Nosso Senhor me dar certa informacao e sabedoria daguel En tes desde 0 dito Cabo de Nao até passante toda a terra de Berberia ¢ Nuibio®™” ‘mesmo per terra de Guinea bem trezentas léguas, de onde até agora, ssi" ‘mego por guerra como depois por maneira de trauto de mercadoria ¢ 70" yy vindo & Cristandade mui gram niimero de infiéiscativos, do qual, dando 370. louvores a Nesso Senhor, a mor parte sao tornados a sua santa fé. E estd HM yy relhado para muitos mais virem e serem feitoscristdos, além das mercadori® 66 OS ARGONAUTAS PORTUGUESES E 0 SEU VELO DE OURO (SECULOS XV-XV1) € outras muitas coisas que de ld vém e se cada dia descobrem muito proveitosas a estes reinos € a toda a Cristandade. O Infante D. Henrique vangloria-se de ser o primeiro com infindos trabalhos e despesas a indagar dos mares, terras e gentes que viviam além do Cabo Nao. Mas o seu ponto de referéncia é 0 da Cristandade ociden- tal. A Cristandade nao tinha noticia das novas terras e agora tirava pro- veito das ricas mercadorias. Com morte e perigo dos seus servidores, as caravelas portuguesas, por guerra e depois também por trato de merca- dorias, avancara bem 300 léguas por terras de Guiné, confirmando o avanco dos navios portugueses até a Serra Leoa. O principal rendimento da guerra € do trato provinha dos escravos, equiparados ao ouro e outras mercadorias proveitosas. Os “infiéis” ficavam com os corpos cativos mas os seus donos tratavam-lhes da alma. Os REIS EMPRESARIOS Os 40 anos dos governos dos reis D. Jodo Il e D. Manuel (1481- 1521) cobrem momentos extremamente fecundos na histéria da Huma- nidade. E 0 tempo das grandes viagens e descobertas maritimas: a de Bar- tolomeu Dias que, na tébua das naus, sem combate com os homens mas t4o s6 com os elementos, verificou a ligaco do Atlantico e do Indico; a viagem de Crist6vao Colombo que ligou permanentemente a Europa, 4vida de ouro e prata, a um novo continente, a América; a de Vasco da Gama que duradouramente uniu pelos oceanos e pelas naus da pimenta © Ocidente ao Oriente; a viagem de Pedro Alvares Cabral que ligou Li boa e a Europa ao Atlantico Sul; a viagem de Ferndo de Magalhaes que, pela primeira vez, circunavegou a Terra. As descobertas maritimas, 0 devassar das estradas liquidas dos ma-— res e dos rios tornavam a Terra finita, destapavam-lhe 0 corpo todo, reve- lavam aos europeus novos povos, novos climas, novos cultos, novas téc- nicas, novas plantas, novos animais, novas estrelas e muito ouro, prata, pedras preciosas, pimenta e canela, téxteis, porcelanas da China. Em 1472, os monopélios estabelecidos na costa ocidental africana eram os do resgate do castelo de Arguim, o das pescarias do Cabo Bran- co, 0 da costa africana fronteira a ilha de Santiago, o do resgate do ouro € dos escravos em S. Jorge da Mina e ainda o arrendamento do comércio da malagueta. As Casas que centralizavam esse comércio, a de Arguim e da Mina, inicialmente sediadas em Lagos, sao transferidas por D. Joao II para Lisboa que se torna a dinamizadora principal das navegacées, co- mércio e conquistas. E 0 tempo do primeiro ciclo do ouro e dos escravos, 67 oY Anténio Borges Coelho na expressio do historiador Lticio de Azevedo. A caca ao escravo faré de. saparecer como a populagao das Ihas Candrias. Os choros € gritos dos es. cravos negros e mouros, separados das mulheres e dos filhos no partir dos lotes, eram abafados pela fé que se justificava com a salvagao das almas, ‘Mas com a abertura da Rota do Cabo amplia-se extraordinariamente a transfega de riquezas ¢ mercadorias mediante 0 comércio desigual e a oportunidade das presas. D. Jodo Il fora 0 rei da moeda dos “justos” de ouro, mas D. Manuel ¢ 0 rei da pimenta e dos “portugueses” de ouro enquanto D. Joao ML, no dizer do poeta Luis de Camées, “tudo péde e tudo teve”. Com as navegagées, crescem as receitas do Fstado e as dos particu- \ Iares e desenvolvem-se as forcas produtivas. Os cereais tornam-se um dos maiores negécios do século. E radica-se uma agricultura especializada da vinha, do azeite, voltada para mercados crescentes; surgem outros produ- tos agricolas, alguns deles provenientes das novas exploracdes assentes no trabalho escravo. £ 0 caso do agticar. Intensifica-se 0 movimento pla- __netério das plantas e dos animais. ~ O ouro da costa ocidental africana chega a Lisboa pelas caravelas que ligam esta cidade ao castelo de S. Jorge da Mina. O agticar da Madei- rae de S. Tomé circula nos mercados europeus. Riquezas consideraveis, provenientes, durante a guerra comercial maritima, do assalto a cidades como Quiloa, Mombaga, Goa, Malaca, e a continuidade do comércio da pimenta e das drogas entontecem os dirigentes portugueses. Segundo Jodo de Barros, na Rota do Cabo, os lucros comerciais atingiam cinco, vinte, cingiienta vezes o valor do capital investido. r Uma nau da {ndia custava em 1506 com a carga cerca de 8 contos de réis. Quando chegava ao Malabar, esses 8 contos passavam milagrosamen- \ tea 20. Mas esta mesma nau, quando regressava a Lisboa, tinha a sua car~ | ga avaliada em 100 contos de réis. Em termos nominais, uma nau da india valia mais no regresso que as receitas do Estado no tempo de D. Afonso V. Também a alfandega de Lisboa que, no inicio do século XVI. rendia a volta de 9 contos, nos anos 1680, o seu rendimento subia para 115. A expansdo portuguesa tem fome de cobre, usado na artilharia, nas i moedas € nos sinos das novas e velhas igrejas; de ferro para as ferramen- 4 tas € as armas; de estopa, de breu, de pregadura, de corda. Desenvolvem- ‘ se novas tecnologias ¢ ferramentas especializadas. E se uma retaguarda 4 européia fornece trigo, produtos industriais, capitais, registam-se avan¢os 4 significativos na producdo interna portuguesa, particularmente em set0~ res de Ponta. A industria téxtil desenvolve-se na Beira interior, no Alto Alentejo € na periferia de Lisboa embora fique muito aquém do melhor da industria téxtil européia e asidtica. Mas o principal avanco registta-s€ frm age ae na Producao industrial do biscoito e no fabrico ee - ruia navios e fabricava armas em solo naciona 68 Ee ee (08 ARGONAUTAS PORTUGUESES E © SEU VELO DE OURO (SECULOS xv-xvI) nos principais pontos do globo onde si conseqiiéncias politicas e militares, troduzirem no Japao as espingardas e outras armas de fogo. A multiplicacéo da producio interna numa primeira fase da expan- sao pode sentir-se na leitura dos forais manuelinos, Mas se tivéssemos dtividas sobre o desenvolvimento das forcas produtivas, pelo menos em alguns setores de ponta, bastaria lembrar as formidaveis esquadras, cons- truidas em Portugal, que demandaram os mares depois da abertura da Rota do Cabo. $6 nos primeiros 5 anos decorridos sobre a primeira via- gem de Vasco da Gama, rumaram a Oriente mais de sessenta navios po- derosamente equipados e artilhados. Nos primeiros anos do século XVI, os mar a guerra comercial maritima contra os No terreno, e€ instauraram no fndico uma paz armada, periodicamente Violada. Essa guerra nao desalojou os muculmanos nem tampouco des- tronou os reis orientais, com a excecéo maior do rei de Malaca. Abriu foi © Mar aos seus navios, aos seus negécios e ao seu poder. Que o Estado da {ndia com a sua capital politica e cultural em Goa e a capital da pimenta €m Cochim assentava essencialmente numa rede de alfandegas que se alimentavam do comércio do {ndico e do comércio que demandava o es- treito de Malaca. Ao longo de 20.000 km de costa, de Lisboa ao Extremo Oriente, passando pela América do Sul, estendiam-se as cidades, as feito- tas, as fortalezas. E um Império que nao avanca pela terra adentro, a nao ser na breve tentativa de conquista de Ceilao e na imensa colonizacao do continente brasileiro. Como cabeca deste império maritimo, Lisboa transformava-se numa das grandes metr6poles do planeta, sonora e multicolor, reunindo gentes de todos os continentes ¢ atraindo, pelas excelentes oportunidades de multiplicar a riqueza, alguns dos principais mercadores europeus. 0 seu poder assentava na rede de cidades atlanticas, americanas, africanas € asidticas, a que se ligava pelo longo mar, nas forcas militares maritimas de intervengao, na artilharia € nas naus. Para sustentar todo este esforco militar ao servico da navegacao, da conquista e do comércio, Lisboa mo- bilizava os homens e os produtos do pats interior e integrava no seu mun- do largos milhares de homens de Africa, da América e sobretudo da Asia. Nao faltaram capitais europeus, italianos e alemes como nio falta- Tam capitais portugueses, em boa parte crist4os-novos, e capitais dos mo- tadores de Goa e de Cochim. Também alguns fidalgos investiram. Desde as Primeiras viagens. Afonso de Albuquerque e seu primo Francisco de Albu- querque armaram cada um a sua nau na quinta viagem para a {ndia. Mas 0 rei era o maior empresario, o maior empregador, 0 maior in- Vestidor € 0 distribuidor das riquezas do império. Na Rota do Cabo, € 0 Estado que arrisca e suporta os custos. Se se perdem navios e a carga da € estabelecia. S30 conhecidas as Provocadas pelos portugueses, ao in- Portugueses venceram no mouros, hd séculos instalados 69 Antinio Borges Coelho pimenta, a perda principal é do rei pois 0s mercadores europeus ¢ gueses tém os seus lotes assegurados na Casa da {ndia. se houver pimenta, os precos sobem € com a subida o ganho; se houver mie precos descem mas mantém uma margem de lucro. E é 0 Estado ty % porta 0 gasto com as fortalezas, as guerras, os funcionarios e os so Ce Por outro lado, constitu‘a um fornecedor e um cliente previlegiade mercadores e banqueiros. dos ~ No Brasil, os particulares desempenharam um papel decisio Duarte Coelho investiu em Pernambuco capitais adquiridos na zona de Malaca e nos mares da China. Fernando de Noronha e outros ctstioy. novos multiplicaram 0 seu capital com o comércio em exclusive do pau. brasil e a exportacao em grande escala de escravos negros para a Améri. ca Espanhola e 0 Brasil. Jodo de Barros ¢ 0 tesoureiro-mor Fernio Alva. res de Andrade organizaram, arrastados em boa medida pela febre do ouro americano, a maior esquadra privada alguma ver levantada em Por- __tugal e que sossobrou nas 4guas do Maranhao. Mas 0 Estado portugués, ainda muito preso ao servigo € a bande ras ideoldgicas, nao esta preparado e responde mal as novas tarefas, Ore € mercador mas nao tem as manhas do mercador. Escolhe os altos fun- cionérios da fazenda pela limpeza de sangue, pelas letras candnicas eteo- logicas e nao favorece os mercadores profissionais ligados ao cométcioin ternacional. A Casa da {ndia era uma enorme empresa estatal de impor taco e exportacéo mas, segundo o mercador banqueiro Duarte Gomes Solis, nao tinha sequer um livro de caixa. rei pagava os servigos em salarios mas também com quintaladss a atribuigdo de capitanias e de mercés 4 boca das alfandegas. 0 mime das capitanias era limitado ¢ em 1533, por exemplo, alguns capitées ages decem desdenhosamente ao rei a promessa de ocuparem capitanias St a 10 ow 15 anos. E capities e funcionarios roubavam os povos € 06 roubavam comprando os soldos dos soldados. Ant6nio da Silveita enriquecera na capitania de Ormuz, pedia ao rei mais um ano Po“ Precisava de se desendividar.” A India era uma vinha que se vindimava de 3 em 3 anos: outro correspondente do rei em 1533. Na verdade, 0 capitao de OM 5 por exemplo, recebia de ordenado 600.000 réis anuais. Mas. 2 1 gy anos, se fosse de “si consciéncia’, poderia retirar forros 20.000 24.000.000 de reis, mais de dez vezes 0 respectivo ordenado. Est tir se “alargar a conscéncia’, tinha muitas € grandes ocasides muito maior quanudade de dinheiro."* sas mas? Os homens amavam o dinheiro quase sobre todas 5 a Estado mercador manunha de quarentena os mercadores PIO sae? dianamente ameacados na vida e na fazenda. Por outro lade * ys, esc? 70 OS ARGON: (AUTAS PORTUGUESES E O SEU VELO DE OURO (SECULOS XV-XVI) ras ibéri eae ail vam por uma monarquia universal catlica, con- SR cg ea cE Vr de o tempo do rei P. a a que tiveram todos os reis de Espanha des- pe I em 1560, isa hee Apesar disso, Carlos V quebrou em 1554, Fili- ria de um cerro to rico Alpe pears 0 crédito € nao hd memé- eas forcas da contratagao sobrepunhann-se a0 poder fae ae 2 crédito A MENTE MOVE-SE aes européia repercutiu-se profundamente nas mentali- / jades € na ideologia. Mudavam-se os tempos ¢ as vontades, atropela- vam-se os cédigos da moral, mudavam-se as idéias, mudava-se a pr6- pria mudanga. “ Os livros impressos constituem uma boa amostragem da “propa- ganda’ e do universo mental das elites. No século XVI publicaram-se em Portugal cerca de 1.904 titulos. Os livros de doutrina ¢ relativos 4 organi- zacao da Igreja somavam 651. Juntando-lhes 0s livros de moral os que serviam de material para as aulas, majoritariamente de Direito Canénico, © niimero subia a 1.099. As publicagdes relacionadas com os servigos do Estado e as de doutrina civil rondavam os 278. A literatura somava 139 titulos, as biografias, hagiografias e oracdes fiinebres 98, os livros de filo- Sofia. teologia ficavam pelos 38, os de astronomia, matematica com © Te positério dos tempos 31, 08 relat6rios de viagens 23, 08 livros de questoes médicas 18 € 0s relativos as artes € técnicas 14 .peso da Igreja no mundo do livro & esmagador e contrasta com a escasse7 das obras no terreno cientifico tecnico. Na aridez doutrindria sobressaem na literatura as obras maiores d Camées e Gil Vicente ¢ um tratado cientifico de enorme relevancia teorica, 08 Coldquios dos Simples das Drogas de Garcia da Orta, publicados pela imprensa de Goa. "A febre da riqueza consomia largos estratos da sociedade. Todos os dias arriscavam a vida nao s6 pela sobrevivencia mas pela busca de rique- zas; todos os dias se exercitavam os diferentes modos da arte de furtar. O dinheiro medrava sobre servico, come escrevia ao rei D. Jodo IIL, em 1533, 0 vigario-geral da India: os que ‘andam a ganhar dinheiro tém-no € is pedem as mercés; € os que servem S30 Do Jevam muito boa vida e dep s res e pobres vivem. Tudo se comprava © vendia até os cargos publicos, as viagens, 0s soldos, 05 COrPOS- ; a ortodoxia e com a riqueza € ito preocupada com No seu Tratado ba, por pouco que do Cambio, 0 jesuita ‘A Igreja esta mm seja, a conta 0 poder dos mercadores Portuguese Perrao Rebelo defende que “nada se rece mn

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