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MACIEL, Maria Esther.

A memória das coisas – ensaios de literatura, cinema e artes


plásticas. Rio de Janeiro: Lamparina editora, 2004.

Fichamento:

p. 9:
“O tema predominante é o uso criativo dos sistemas de classificação do mundo por parte de
escritores, cineastas e artistas contemporâneos.”

“Questões voltadas para para a intersecção entre literatura e cinema, tradução criativa, mesclagem
de gêneros literários e escrita poética também são abordadas (…)”

p. 13:
(…) Borges atribui ao ato de recordar do personagem uma função taxonômica: a de inventariar
todas as lembranças possíveis (e impossíveis) de todas as coisas vistas, lidas, experimentadas e
imaginadas ao longo de uma vida”.

p. 15:
“Poderíamos arrolar aqui uma longa lista de escritores e artistas contemporâneos de diferentes
contextos culturais que têm se dedicado ao exercício criativo das taxonomia, movidos não tanto
pelo impulso lúdico que tal exercício enseja, mas sobretudo pelo propósito de subverter/criticar a
lógica burocrático que define o uso dos sistemas legitimados de organização do mundo”.

p. 17:
[Bispo do Rosário] Buscava sua matéria-prima no cotidiano mais imediato, nos redutos
marginalizados da pobreza, no agora de sua própria experiência: sapatos, canecas, pentes, garrafas,
latas, ferramentas, talheres, embalagens de produtos descartáveis, papelão (…) enfim, tudo o que a
sociedade desprezou. Compôs, a partir desse entulho, uma espécie de memorial de sua passagem
pelo mundo, uma narrativa ordenada segundo as leis mais rigorosas da taxonomia e, ao mesmo
tempo, atravessada pela espontaneidade de uma imaginação delirante”.

“(…) o mundo não se afigurava de forma naturalizada, mas artificialmente moldado a partir do que
nele foi depositado pela cultura”.

p. 18:
“Isso, certamente, por considerar as coisas – em especial os objetos ou dejetos do cotidiano – como
testemunho mais concreto da existência humana, sua memória mais perene”.

(…) manter viva a memória do mundo. Mas ao contrário do personagem borgeano, não fez seu
inventário um grande e insensato ‘despejadouro de lixos’. Procurou, sim, fazer seus objetos
coexistirem em um todo finito e organizado, a partir de uma lógica desconcertante, na qual os
códigos reconhecidos de classificação são atravessados por uma maneira particular de captar, como
diria Foucault, “por sob as diferenças nomeadas e cotidianamente previstas”, as afinidades
subterrâneas entre as coisas, suas ‘similitudes dispersas’ (Foucault, 1987, p.64). Ou mesmo as
diferenças invisíveis que, sob semelhanças explícitas, se instalam entre os objetos repetidos de uma
série”.
“(…) punctum: o elemento de desvio, a pequena picada que vem fustigar o stadium, ou seja, o
campo meramente cultural da ordem e da própria ideia de coleção (Barthes, 1994, p.45-49). Em
quase todos os trabalhos de Bispo, verificam-se esses pequenos desvios de simetria, sobras e
transbordamentos que evidenciam uma lógica peculiar, que rompe com a obviedade das disposições
pretensamente regulares ou reguladoras, aliando-se a uma espécie de investimento afetivo do artista
no gesto de selecionar e aproximar os objetos anônimos que coleciona”.

p.19:

“Em ensaio sobre o ato de colecionar, Jean Baudrillard diz que todo objeto, ao ser colecionado,
deixa de ser definido pela sua função para entrar na ordem da subjetividade do colecionador
(Baudrillard, 2000, p.94). Abstraído de seu contexto, perde sua presentidade, desloca sua
temporalidade para a espacialidade de um repertório fixo, no qual a história é substituída pela
classificação. Nesse sentido, colecionar se converte em uma forma de enclausurar o objeto, des-
historicizá-lo, de maneira que seu contexto seja abolido em favor da lógica sincrônica da coleção”.

“[os objetos] Eles adquirem uma linguagem, convertem-se em metonímias do contexto de que
foram tirados. As coleções de Bispo arrancam o objeto de sua própria inércia, dão-lhe um nome, um
lugar e uma história. (…) atribuído uma função autobiográfica, memorialista”.

p.20:
“Sabe-se que o ato de rotular e descrever objetos em listas foi uma das primeiras práticas
taxonômica de que se tem notícia nas civilizações alfabetizadas, figurando como procedimento mais
elementar advindo da influência da escrita nas operações cognitivas. Como explica o antropólogo
Jack Goody (2000, p.74-111), a história documentada dos primeiros séculos das culturas escritas
mostra que as listas floresceram exatamente nesse período, não apenas como formas textuais, mas
também como pano ou qualquer outro material sólido, nas quais eram gravadas as palavras em
série, com diferentes propósitos: desde a simples nomeação das coisas até o levantamento de
pessoas, animais, objetos ou eventos. Listas administrativas, funerárias, literárias, religiosas são
encontradas em várias culturas antigas, sendo que algumas delas – como as tábuas sumérias, por
exemplo – já funcionam como uma espécie de protodicionários ou enciclopédias embrionárias.
Algumas cobriam um vasto campo de observações astronômicas, climáticas, medicinais. Outras, de
caráter lúdico ou didático, já consistiam no levantamento de nomes de pessoas ou coisas começados
com uma determinada letra do alfabeto”.

p.21:
“(…) Um gesto que não se define necessariamente pelo objetivo ilusório de completude, mas pela
necessidade crítica de mostrar como os princípios legitimados de organização, sejam alfabéticos,
numéricos, estatísticos, cartográficos, tendem a se tornar fins em si mesmos”.

p.23:
“[Peter Greenaway] Um projeto enciclopédico, sem dúvida, que guarda similitudes com certos
projetos literários de autores contemporâneos que também fizeram de suas obras verdadeiras
enciclopédias ficcionais. Enciclopédia, aqui, entendida não como um conjunto fechado e definitivo,
mas como uma totalidade incompleta, conjectural, multíplice. Como é também a obra de Bispo,
feita de um saber não legitimado socialmente, fora da ordem canônica da cultura erudita e, portanto,
em estado de deslocamento, de novidade e de alteridade radical em relação aos modelos
enciclopédicos conhecidos.
Umberto Eco, ao comparar o dicionário à enciclopédia, chama atenção para o princípio de ‘semiose
ilimitada’ que define o modelo enciclopédico. Segundo ele, a enciclopédia, ao contrário do que
almejaram os filósofos iluministas, não reflete de modo unívoco e racional um universo ordenado,
mas fornece regras, em geral ‘míopes’, para que, ‘segundo algum critério provisório de ordem’, se
busque dar sentido a um mundo desordenado ou cujos critérios de ordem nos escapam. Nesse
sentido, tal modelo destoaria do de dicionário, por excluir definitivamente, segundo Eco, ‘a
possibilidade de hierarquizar de modo único e incontroverso as marcas semânticas, as propriedades,
os semas’ (Eco, 1991, p. 336-337). Em suas palavras:
O conhecimento enciclopédico seria de natureza desordenada, de formato incontrolável, e
praticamente deveria fazer parte do conteúdo enciclopédico de cão tudo o que sabemos e
poderemos saber sobre os cães, até a particularidade por que minha irmã possui uma cadela
chama Best – em suma, uma saber incontrolável até para Funes, o Memorioso (Eco, 1997, p.
192)”.

p.25:
“Todos eles mostram, por caminhos diversos ou inversos, que não obstante o gesto de classificar
seja um dado presente em todos os tempos e lugares, nenhuma classificação que se quer exaustiva –
seja ela regida pelo movimento espontâneo da imaginação ou pelo critérios legitimados pela razão
–, é realmente satisfatória em si mesma. Isso, por saberem, consciente ou inconscientemente, que a
desordem não deixa de habitar qualquer de nossas tentativas de apreensão totalizadora do mudo,
visto que o paradigma da construção e reconstrução dos mundos míticos, místicos, estéticos e até
mesmo científicos, como aponta Félix Guattari, é sempre o da narratividade delirante (Guattari,
1992, p.99)”.

p.28:
“Além disso, [Borges] reinventou a antiga metáfora do mundo como uma enciclopédia, esta agora
concebida, como diria Ítalo Calvino, enquanto uma multiplicidade aberta e conjetural, onde tudo
pode ser continuamente ‘reordenado de todas as maneiras possíveis’ (Calvino, 1990, p.131)”.

“(…) visto que o escritor não almeja necessariamente classificar racionalmente a realidade ou o
universo, mas revelar – através da ficção – o caráter arbitrário de todos os sistemas taxonômicos”.

p.29:
“Greenaway crê, como o escritor argentino, que ‘notoriamente não há classificação do universo que
não seja arbitrária e conjetural’ e, por isso, dedica-se à construção de seus próprios esquemas
taxonômicos, ainda que, como diria o escritor argentino, ‘nos conste que eles são sempre
provisórios’ (Borges, 1970, p.143)”.

“O próprio Greenaway nos oferece uma explicação:


Os sistemas de nomeação e de identificação de cores, escalas, distâncias, tipos, tamanhos
são todos subjetivos. (…) Eu também gosto de criar meus próprios sistemas em forma de
listas – e creio que as categorias da enciclopédia chinesa borgiana são salutares. xMas meu
objetivo principal é usar códigos numéricos, equações e contagens como alternativas para o
modelo narrativo dominante. Faço filmes-catálogos”.

p.35:
“(…) os modelos legitimados de representação e classificação do mundo são tão subjetivos,
arbitrários e conjeturas quanto os que a ficção é capaz de inventar”.

p.50:
“Daí a precariedade do pensamento científico do tempo: se, por um lado, nele já se configurava a
soberana racionalidade na qual o mundo moderno ocidental passou a se reconhecer, por outro, tal
racionalidade triunfante não abdicava do gosto pelo extraordinário e do respeito pelo saber antigo”.

p.61:
“Tradução pra mim é persona. Entrar dentro da pele do fingidor para refingir tudo de novo, dor por
dor, som por som, cor por cor”. Augusto de Campos.

“A tradução como um exercício criativo que guarda afinidades intrínsecas com o fazer poético tem
ocupado, desde os primeiros românticos alemãs, um topos especial na história da poesia ocidental”.

p.71:
“Descontente com a relação mimética que o cinema de seu tempo mantinha com as estórias que o
século XIX fartara-se de contar, Luis Buñuel (…) defendeu a prática de um cinema que se
configurasse como instrumento de poesia (Buñuel, 1991, p.333-337)”.

p.72:
“Outro a conjugar o cinemático ao poético foi Pasolini. Acreditando que “a língua do cinema é
fundamentalmente uma ‘língua da poesia’, associou a linguagem fílmica à linguagem dos sonhos e
marcou a importância do que chamou que ‘lógica pré-gramatical’ (Pasolini, 1995, p.29) das
imagens na criação de uma sintaxe poética no processo de combinação dos planos fílmicos. No
Brasil, o poeta Vinícius de Moraes chegou mesmo a propor um roteiro cinematográfico para o
poema “O martelo”, de Manuel Bandeira, a partir da noção de ritmo (poético e cinemático), que
para ele era o que assegurava o valor lírico da imagem”.

p.73: “Sobretudo se levarmos em conta a multiplicidade de enfoques do que se entende por


“poético”, visto ser uma palavra que se presta a vários matizes. Na maioria das vezes, o ‘poético’
reveste-se de uma aura lírica de ‘revelação’, associando-se ao poder transfigurado do ‘olhar da
câmera’, que através de recursos como a velocidade ou a lentidão, as proximidades íntimas dos
primeiros planos, as variações de luminosidade, etc., busca trazer para a tela aquele ‘algo' que
subjaz à realidade visível das coisas. Nesse caso, o dado mais relevante para a constituição da
imagem fílmica recai exatamente no que Eisenstein – a partir de uma outra perspectiva –
minimizou, em nome do trabalho de montagem: o encontro espacial e temporal entre o olhar da
câmera e o objeto. Como explica Ismail Xavier, a crítica que Eisenstein fazia ao ilusionismo
‘começa com uma advertência de que a imagem cinematográfica não deve ser lida como produto de
um olhar; (Xavier, 1997, p.376), mas um fato de natureza plástica, advindo especialmente do
processo criativo de justaposição/combinação de fragmentos visuais, que, por sua vez, se
aproximaria do ideograma chinês, também incorporado pela escrita japonesa”.

“Sem dúvida, a aproximação que o cineasta russo faz da montagem com a escrita ideogramática
oriental traz à tona um aspecto importante para se pensar outras possibilidades da relação do cinema
com a poesia, esta entendida não em sua dimensão – digamos metafísica –, mas a partir de sua
própria materialidade enquanto linguagem”.
“É interessante lembrar que, ao mesmo tempo em que Eisenstein criava sua teoria à luz da
linguagem poética dos tantas e dos haicais, valendo-se ainda dos requintes experimentais da escrita
joyceana, muitos poeta de vanguarda do início do século incorporavam, em seu trabalho criativo, os
princípios da montagem eisensteiniana, buscando uma sintaxe descontínua e explorando a
fragmentação/justaposição das imagens na página – procedimentos estes já praticados no final do
século XIX por Mallarmé, na criação do ‘espetáculo ideográfico’ de Un coup de dés”.

p.74:
“Para não falar também dos poetas concretos brasileiros que aproveitaram tanto o ‘poder de síntese
imaginativa’ das metáforas materiais da poesia oriental quanto os princípios da montagem
eisensteiniana para criar constelações de ‘palavras visíveis tácteis audíveis’, para usar aqui um verso
de Murilo Mendes”.

p.75:
“[sobre Resnais e O ano passado em Marienbad] Além disso, não há qualquer tentativa de
representação de algo exterior à própria imagem, e sim, de apresentação desta, em toda sua
potencialidade sinestésica. Isso porque o enredo é menos uma história que se conta do que um
conjunto intrincado de imagens, sons, texturas, tempos, espaços, sensações, vozes, olhares,
palavras, movimentos, realidades estranhas extraídas da realidade prosaica, silêncios, desejos,
ambiguidades e paradoxos”.

p.78:
“Na caligrafia asiática, é possível a imagem ser texto e o texto ser imagem ao mesmo tempo. Não
seria esta uma boa forma de considerar a reinvenção do cinema? Acredito que o cinema deve ser
reinventado. No Ocidente, imagem e texto são separados e pode-se imaginar o cinema como um
lugar ideal para se conjugar novamente essas duas noções (Greenaway, 2000, p.178)”.

p.79:
“Assim, ao conjugar em um mesmo espaço dois mil anos de caligrafia oriental com um século de
vocabulário cinematográfico e dez anos de invenção da visualidade computadorizada, Greenaway
mostra que o cinema pode, sem prejuízo de sua própria linguagem, lidar com o texto literário de
outra maneira que não a de simplesmente tomá-lo como um provedor de enredos para ilustração.
Além disso, desafia os imperativos da lógica do mercado (…)”.

p. 82:
“Até que ponto a emergência do poético teria uma função desestabilizadora com relação a esse
contexto, deflagrando também um olhar crítico sobre os lugares-comuns instituídos? Ao se
permitirem o exercício de linguagens híbridas, a conjugação de diferentes contextos culturais e o
uso crítico-criativo das novas tecnologias, estariam eles redimensionando também a própria função
do poético à luz das demandas e inflexões culturais do agora? Qual seria a poesia possível do nosso
tempo?”

p.97:
“(…) viver as coisas – abstratas ou não – e sua presença no mundo é viver o problema dessa
presença ao transformá-la em matéria de poesia, pois eles sabem que a linguagem tem a dupla (e
contraditória) potencialidade de restituir a presença das coisas ao mesmo tempo em que as faz
desaparecer enquanto realidade bruta”.
p.99:
“Nela, o registro poético da exterioridade sensível dá-se, simultaneamente, na sondagem do que
Antonin Artaud chamou de ‘núcleo irrequieto e frágil que as formas não tocam’ (ap. Esteban, 1991,
p.214) mas que nestas subjaz. Como se por vezes o mundo, por não valer o mundo, tenha que ser
deixado aos outros para que o poeta possa criar o seu através das palavras. Porém, como já se disse,
o mundo de Drummond nunca existiu sem o contágio do ‘mundo mudo’ dos objetos, bichos,
plantas, pedras, construções, uma vez que este já está irremediavelmente incorporado em sua
poesia”.

p.102:
“E o que é dar ênfase às coisas que ocupam, anônimas, o espaço de sua funcionalidade ou
inutilidade senão trazê-las para o espaço da subjetividade?
Jean Baudrillard, em sua análise dos objetos de uso diário, chama a atenção para isso, ao dizer que
esses objetos – a despeito do modo como deles nos utilizamos para fins práticos – são passíveis de
um investimento afetivo que os desloca de seu espaço utilitário e os insere no campo da paixão e da
propriedade privada (Baudrillard, 200, p. 93). Isso porque todo objeto tem duas funções: a de ser
utilizado e a de ser possuído, sendo a primeira determinada pelo campo de totalização prática do
mundo pelo indivíduo e a segunda um empreendimento de totalização abstrata realizada
(Baudrillard, 2000, p.94). E é sob esse prisma que, ao serem incorporados pela nossa vida – seja
porque são possuídos, seja porque entram no mundo de nossas referências particulares – eles
ganham um outro estatuto, configurando-se como uma presença que testemunha nossa presença
ativa”.

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