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CENTRO PEDAGÓGICO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
VITÓRIA
2001
SONIA PINTO DE OLIVEIRA
VITÓRIA
2001
SONIA PINTO DE OLIVEIRA
COMISSÃO EXAMINADORA
___________________________________________________
PROFª. DR.ª MARIA ELIZABETH BARROS DE BARROS
ORIENTADORA
___________________________________________________
PROFª. DR.ª DENISE MEYRELLES DE JESUS
___________________________________________________
PROFª. DR.ª REGINA DUARTE BENEVIDES DE BARROS
___________________________________________________
PROF. DR. NELSON ANTÔNIO ALVES LUCERO
à Escola Pública.
AGRADECIMENTOS
Especialmente:
ao espaço público de educação pela oportunidade que me deu de gerir este
trabalho;
à Maria Elizabeth Barros, amiga muito querida, que, com sua força gigante, sempre
me ensina a apostar nas utopias;
à Lierte Gurtler que, com sua amizade, ajudou a construir literalmente cada
palavra deste trabalho;
aos meus filhos, Pedro, Bruno e Rafael, pelo cotidiano carinho solidário;
ao meu doce e amigo pelotão de fuzilamento que provocou o pontapé inicial: Beth
Aragão, Beth Barros e Ana Lúcia Heckert.
...buscando lançar luz sobre o que deve ser entendido por invenção, retomo a
etimologia da palavra latina invenire, que significa encontrar relíquias ou restos
arqueológicos (Stengers, 1983). Tal etimologia indica o caminho a ser seguido: a
invenção não opera sob o signo da iluminação súbita, da instantaneidade. Esta é
somente sua fenomenologia, a forma como ela se dá à visibilidade. A invenção
implica uma duração, um trabalho com restos, uma preparação que ocorre no
avesso do plano das formas visíveis. Ela é uma prática de tateio, de
experimentação, e é nessa experimentação que se dá o choque, mais ou menos
inesperado, com a matéria (Kastrup, 1997, p. 210-211).
ABSTRACT ..................................................................................................... 10
.
INTRODUÇÃO ................................................................................................. 11
5.2 TIRAR PARTIDO... OUSAR E ABUSAR OU “O QUE É DAR CERTO? É NÃO PARAR
DE CUTUCAR” ........................................................................................
219
6 CONCLUSÃO 238
...............................................................................................
7 246
REFERÊNCIAS .....................................................................................
.......
RESUMO
Fracasso escolar é a denominação que tem sido utilizada para fazer referência
ao “insucesso” escolar do aluno, o que, na maioria das vezes, culmina com
reprovação/evasão escolar. Este trabalho procura trazer o fracasso escolar em uma
dimensão micropolítica de análise. Essa dimensão diz respeito ao plano mesmo da
constituição de sujeitos/objetos – o objeto fracasso escolar, sujeito do fracasso. Fazer uma
análise micropolítica em face ao objetivo proposto é adentrar no campos das práticas que,
como tais, constroem e descontroem sujeitos/objetos; não sendo estes, portanto, por nós
concebidos como naturais, com existência a priori. Por meio da micropolítica,
interrogamos os regimes de verdade constituídos. Apontamos alguns acontecimentos que,
ao emergirem em uma intrincada rede, dão visibilidade e dizibilidade à repetência/evasão
escolar. Ao trazermos o discurso liberal, os arranjos capitalísticos em suas economias, a
estreita relação família nuclear higienizada, infância particularizada e tudo isso em uma
genealogia da escola de massas, dizemos desses acontecimentos na emergência do
fracasso escolar, e da Pedagogia que se coloca em íntima relação com a Psicologia.
Percorremos também algumas paisagens da aprendizagem em suas abordagens e
explicações que têm sido construídas em relação ao fracasso escolar. Nesse cenário,
desenhamos dois rostos do fracasso escolar: um liberal, outro neoliberal. O primeiro
vinculado à sociedade disciplinar, o segundo à sociedade de controle. Todos esses
acontecimentos supõem lutas permanentes que desmancham seus contornos dando
passagem a movimentos de resistência, a singularizações, aos movimentos do desejo
revolucionário sempre político. Contemplando o espaço da diferença pura, engendram
experimentações diversificadas, outras produções de sujeito/objeto não reportadas a
modelos (que por muitas vezes aprisionam a expansão de mundos). A partir dessa
ótica/ética de análise, afirmamos que o fracasso escolar pode estar “cutucando” uma
experimentação para além do fracasso/sucesso e dizemos que esse é um funcionamento
que convida à construção de outras práticas. Ao desestabilizar fôrmas delineadas no viés
da subjetivação/objetivação capitalística, ou seja, ao inquietar uma certa aprendizagem,
um certo aprendiz, a educação escolar, uma inteligência, um professor, uma infância, uma
escola... pode estar sinalizando um devir que pede outros encontros. Se o fracasso escolar
é uma produção inscrita em uma possibilidade de vida, para desmanchá-lo, outra
possibilidade de vida terá que ser inventada. Construir saídas é inventar novas entradas,
novos questionamentos e experiências, o que já nos espreita em sua realidade concreta,
real, mesmo que invisível. Se quisermos outras experiências educativas são outras práticas
que devem ser fabricadas na aliança com esses blocos de invisíveis que pedem passagem,
expressão e forma já que vazam, escapam, fogem às modelizações. É preciso inaugurar
outra ética na construção da vida que como tal é abertura à diferença.
ABSTRACT
Scholar failure is the name that has been used to make reference to the
unsuccessful student, what most of the times ends with disapproval and escape from
school. These work tries to analyze the scholar failure in a micropolitic dimension. This
dimension concerns about the institution of subjects/objects – the scholar failure object,
failure subject. To make a micropolitic analysis facing the described goal is to describe
practices that construct and deconstruct subjects/objects; not conceived here as natural
things, with an existence a priori. Through the micropolitic we question the crystallized
truth rules. We will point out some events that, when emerging in an intricated web, will
give visibility and make us able to talk about disapproval/escape school. When we bring
the liberal speech, the capitalistic arrangements in their economics, the close relationship
nuclear higienizated family, particularizated childhood and all these things in a mass
school genealogy, our goal is to link these events to the emerge of the scholar failure and
the pedagogy that is in a close relation with the psychology. We will run also, some
scenery of the learning in their approaches and explanations that have been constructed
about the scholar failure. In this scene we draw two faces: one liberal, one neo-liberal. The
first, linked to disciplinary society, the second linked to the control society. All these
events suppose permanent fights that break their shapes, what gives passage to resistence
movements, from the singularization to the always politic revolutionary wish. Watching
the environment of pure difference come out many experimentation’s, different types of
subject/object, not linked to models (that many times tie the expansion of worlds). From
these analysis we can say that the scholar failure can be “prodding” an experimentation to
beyond of failure/success and we say that this is a kind of movement that invite to a
construction of different practices. To upset drawn shapes in the capitalistic way of
subjetivation/objetivation to disturb some kind of learning, some kinds of student,
education, and intelligence, a teacher, a childhood, a school ... can be pointing some
movements that asks for other encounters, which concept the failure like a way of
potency, not impotency. If scholar failure is a production linked to a way of life, to erase it,
another way of life should be created. To build “ways out” is to construct new ways, new
questions and experiences, thing that are around us, in a real and concrete existence,
invisible, however. If we want another kind of educational experience, we must shape
these new practices with this invisible elements that ask for passage, expression and form
that already escaped, run from “patterns”. To inaugurated other ethic in the construction of
life is na opening to the difference.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho traz algumas análises do que foi por nós vivido em
diferentes modulações de intensidades durante esse percurso.
Nosso propósito não foi, pela pesquisa, traçar um perfil dessa escola,
particularizando-a; nem tampouco fazer qualquer juízo de valor. Nosso objetivo foi
investigar alguns movimentos que vão construindo o dia-a-dia escolar – seus objetos,
sujeitos, relações, seus funcionamentos.1 Estivemos atenta especialmente ao denominado
fracasso escolar, no que se encontra naturalizado2 e também desmanchado em seus
contornos.
O leitor, com certeza, irá identificar e/ou desconhecer muito do que aqui será
apresentado, porém nosso intuito, se fosse possível orientar a leitura, é perguntar: o que o
1
Deleuze e Guattari não se referem a um funcionalismo apoiado na harmonia das partes que se integram
homogeneamente. A noção diz respeito à ação de uma máquina em seu caráter produtor, diz do próprio
processo de produção.
2
“Referente à natureza; produzido pela natureza, espontâneo; em que não há trabalho do homem; que segue
a ordem regular das coisas” (Bueno, 1981, p. 765).
presente trabalho põe para funcionar? O que produz? Que inquietações dispara? Quais
seus efeitos?
Rompendo com uma tradição filosófica que pensa o sujeito como natureza
humana – uma natureza concebida como real ou que deva ser realizada – e o objeto como
um já-dado a ser descoberto pelo sujeito – que também poderia desvelar a verdade contida
em si, explicitamos que sujeito e objeto são construídos ao mesmo tempo pelo o que é o
fazer em relação a eles: pelas práticas.
3
Expandir mundos significa expandir os limites da vida modelizada.
conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer formas totalmente novas de sujeito e
de sujeitos de conhecimento...”.
Para tal, todos os dias, levávamos caderno e uma caneta para as anotações. Em
um breve espaço de tempo o caderno já provocava...5
“Um dia vou escrever tanto assim e tão rápido como você!”
4
Deleuze e Guattari dizem que a matéria das coisas é constituída de forças; o modo como essas forças fazem
composições, decompõem-se e criam novos arranjos é que os autores denominam “acontecimento”.
5
A frases que se seguem como as que serão trazidas no decorrer do trabalho, entre aspas e em itálico, são
falas dos diferentes integrantes da escola.
Tornamo-nos muito cúmplice6 em torno do desafio que era para eles começar a
escrever e para nós... começar a escrever também.
O caderno circulava pelos interessados em lê-lo; isso ora era engraçado para
muitos, como se fosse descabido, já que ocupavam outro lugar diferente do nosso, ora essa
era uma prova de que não teríamos nada a esconder. Não precisaria haver segredo. Ou era
uma estratégia que utilizávamos para seduzi-los, aplacando as desconfianças, e assim
colaborariam, desnudando sem preconceitos suas histórias? Esfera pública, esfera privada:
outro esboço que aparecia cotidianamente.
“Já pôs aquela frase que eu disse que tinha que diminuir o tempo de aulas?”
“Tão legal falar dessas coisas, pensar nelas, estava enferrujada! Agora
falando, pensando me toco de umas coisas interessantes.”
“O menino é assim, sem limites, porque a família não dá base. Pode ver que
no final da pesquisa vai sair isso aí. Não tem outra!”
“Por que você quer pesquisar sobre fracasso escolar? Já se sabe o que causa
esse problema!”
“Tá certo que todo mundo fala essas coisas, mas eu não acho nada disso,
aliás não acho é nada!”
“Você está vendo muita coisa de mim? Ai, meu Deus! O que você vai dizer da
gente?!”
“Como você vai saber quem disse o quê, se você não anota quem foi?”
A essa questão respondíamos que não nos interessava quem disse, mas o que
está sendo dito e como – ao que a pessoa retrucou: “Que bom! Se eu disser bobagem
ninguém vai saber que fui eu!”
“Eu não entendo disso, não [sobre fracasso escolar], quem sabe te responder
é a supervisora ou a orientadora. Vai lá naquela sala e pergunta pra elas.”
“Nossa! Até me animei. Ser professora ainda é uma coisa muito legal,
insubstituível.”
Não era sem encantamento que discorriam em detalhes sobre seus fazeres,
orgulhosos “apesar das dificuldades” (sic). À medida que falavam, seu trabalho parecia
fazer sentido e eles revigoravam-se.
***
Todos os dias ao chegar à sala de aula, sentava-se na última carteira da fileira
central – tendo o cuidado de distanciá-la uns setenta centímetros a mais da carteira da
frente. Durante um longo e zeloso tempo, arrumava com especial capricho todos os seus
lápis de cor, canetinhas, borrachas, lápis preto, apontador, régua, corretivo e outros
instrumentos de trabalho em seu vistoso porta-lápis azul de três compartimentos verticais.
Fazia isso até que os dispusesse de forma a agradar-lhe completamente. Seus olhos
brilhavam, seu corpo suando expectativa preparava-se para agir – já agia – era pura
intensidade.
E lá íamos nós com o nosso caderno (já não é mais necessário o artifício).
Fracasso escolar é a denominação que tem sido utilizada para fazer referência
ao “insucesso” escolar do aluno. Dificuldades na aprendizagem formal, desinteresse no
processo de escolarização, indisciplina, dificuldade em responder adequadamente às
exigências escolares, baixas notas, conceitos deficientes que culminam muitas vezes com
a reprovação e ou evasão, são características que traduzem o fracasso escolar que têm sido
10
Deleuze e Guattari afirmam que o entre não é algo localizável no espaço, é um movimento transversal que
corta esse espaço de cabo a rabo. Ao estudarmos Rizoma, sua definição aparecerá mais precisa.
mais apontadas pelos profissionais da escola e demais especialistas que trabalham o
assunto – e por que não dizer também por familiares e outros segmentos da comunidade?
O fracasso escolar não foi por nós concebido como um objeto natural com
existência a priori. Não procuramos, por meio da pesquisa, buscar respostas explicativas
que nos trouxessem a verdade nele contida. Ressaltamos também que não visamos a
analisar, pelas interpretações, “os sujeitos” que falavam, nem saber quem falava, tampouco,
como já dissemos, individualizar a escola ou qualquer dos seus segmentos ou integrantes,
responsabilizando-os e ou culpabilizando-os pelo fracasso escolar.
11
Cartografia é a inteligibilidade da paisagem em seus acidentes e mutações. Ela acompanha os movimentos
invisíveis e imprevisíveis que vão transformando a paisagem vigente. Ser cartógrafo significa acompanhar
os meandros de tais processos e valorizar as mutações.
Em relação a essa última indagação, prosseguimos: que outras práticas
ensejamos incrementar que rompam com o estilo de vida intimizado, classificatório,
hierarquizado que concebe e divide a vida num caso de fracasso ou de sucesso, que
fragiliza nossa potência de expansão de mundos, de criação de territórios existenciais, 12 já
que os concebe como naturais, essenciais, definitivos, desejáveis e não como contingentes,
circunstanciais, portanto, provisórios?
12
Territórios existenciais são entendidos como um conjunto de crenças, valores, relações sociais, falas,
comportamentos que Deleuze e Guattari chamam de matérias existenciais. Desterritorialização é o
movimento de desmanchamento de territórios formados; nova territorialização é a produção de outros
territórios e reterritorializações é a sobrecodificação daquele território constituído e abalado pela
desterritorialização.
13
Afeto é utilizado por Deleuze para denominar um estado de corpo em que a potência de agir é favorecida
ou bloqueada, diminuída ou aumentada. “A afecção é um estado do corpo, é a potência que tem um corpo
vivo de se agenciar, se ligar, se compor com algo que vem de fora” (Benevides de Barros, 1994, p. 253).
14
(U)topos: fora de lugar.
1 CONSTRUINDO FERRAMENTAS AO AFIAR O TRABALHO: A DIMENSÃO
MICROPOLÍTICA
15
Roubo: “...roubar é o contrário de plagiar, de copiar, de imitar ou de fazer como” (Deleuze & Parnet,
1977, p. 13), é fazer uma colagem – dadaísta – é produzir um duplo que, segundo Machado (1990, p. 16)
“...significa desembaraçar, desemaranhar os conceitos de seus sistemas de origem para criar um novo
sistema”.
16
Deleuze & Guattari (1977, p. 24), ao se referirem à sua parceria com Guattari disseram: “...nós éramos
senão dois, mas o que contava para nós era menos trabalhar juntos que o fato estranho de trabalhar entre
dois. Deixamos de ser ‘autor’. E este entre-os-dois remetia a outras pessoas diferentes de um lado e do outro.
O deserto crescia mas se populando cada vez mais”.
Sintonizados com a turbulência do tempo em que viviam puderam fazer sérias
críticas aos modos de vida modelizados, dando expressão e forma ao que se anunciava.
Vamos “...ver um pouco para que serve essa análise que, por uma decisão
muito solene, batizei Arqueologia” (Foucault, 1972, p. 167).
17
Aliança no sentido de pacto, o que nos faz roubar em Deleuze & e Guattari (1997 , p. 28): “O feiticeiro
está numa relação de aliança com o demônio como potência do anômalo”. Anômalo como a “ponta da
desterritorialização”.
se, então, pela emergência18 das práticas produzidas em um determinado estado de forças
em luta.
18
Assim destrói toda a idéia de fundamento. A história é vista como uma população de acontecimentos
dispersos, como multiplicidades de práticas e não como sucessão linear ou rompimentos em profundidade.
Escusa as noções de influência, desenvolvimento e evolução histórica.
19
A formação histórica ou estrato histórico ou simplesmente estrato são feitos de coisas e palavras, de ver e
falar, de visível e dizível em um espaço e momento singular.
20
Dispositivo é uma rede que se estabelece entre elementos de um conjunto heterogêneo constituído de discursos,
instituições, leis, regulamentos... “Entre esses elementos, discursivos ou não, há um tipo de jogo, com mudanças
de posição e modificação de funções. Esta rede, que poderíamos chamar rede do poder, deve ser analisada como
algo que circula, que funciona em cadeia. Nunca está localizada aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca
é apropriada como uma riqueza ou um saber. Então, a que atende um dispositivo? A uma função estratégia
(dominante) principalmente a responder a uma urgência” (Lucero & Barros, 2000a, p. 29).
21
Nem todo discurso, ou prática discursiva, configura um saber; só as formações discursivas o fazem.
Discurso não é performance verbal, não é tratado como um conjunto de
signos, de elementos significantes que, como tais, atrelam-se a conteúdos ou a
representações. Discursos não são, então, signos de outra coisa a ser interpretada, na busca
de uma significação original, melhor, oculta. Também não se situam entre, mediando a
realidade e a língua.
22
Exclusão aqui tem um sentido de inclusão no lugar forjado do não verdadeiro.
23
Além desses procedimentos internos ao discurso, Foucault descreve também os procedimentos de controle
externo: o comentário, o autor e as disciplinas. Cada disciplina – Pedagogia, Psicologia, por exemplo –
estabelece-se como unidade. Mesmo que revejam conceitos, métodos... não resvalam em seu foco objetal,
instrumental e técnico. Isso é estar “no verdadeiro”, inscrito em uma teoria. O acaso é aí desinvestido.
separação alude à rejeição; discursos são desconsiderados, não ouvidos como palavras
verdadeiras (discursos da criança, do louco...).
O procedimento ritual
Por exemplo, o objeto educação escolar, não sendo considerado aqui como
possuidor de uma verdade intrínseca, como portador de uma existência a priori, leva-nos a
formular que não podemos reconhecê-lo como uma unidade com identidade atemporal.
Articulam-se sim, em seu nome, discursos que devem se passar por seus.
A análise da função enunciativa não pode ser considerada uma análise das
proposições (lógica), nem das frases (gramática). Duas proposições podem ser
consideradas iguais dentro da lógica mas configurarem enunciados distintos exatamente
pelo caráter singular dos últimos em contraposição à análise geral estrutural que a lógica
persegue.
24
Porrolhos: massa feita de papel higiênico e água.
A relação entre o enunciado e o que é enunciado é de ordem diversa da relação
entre uma proposição e seu referente; o princípio da verificabilidade não se aplica ao
enunciado.
Por meio das frases, do que é falado e escrito, podemos extrair os enunciados
desde que não nos detenhamos em seus elementos constituintes. Na leitura de Deleuze
sobre Foucault, seria necessário rachar as frases, as proposições, as palavras para delas
extrair os enunciados. Estes não se esgotam na língua ou no sentido.
Não há dúvida de que o ato ilocutório enuncia, mas Foucault (1972, p. 105)
adverte que não eqüivale a ele, já que é preciso mais de um enunciado para efetuá-lo
Que tudo seja sempre dito, em cada época, talvez seja esse o maior
princípio histórico de Foucault: atrás da cortina nada há para se ver,
mais seria ainda mais importante, a cada vez, descrever a cortina ou
pedestal, pois nada há atrás ou embaixo (Deleuze, 1988, p. 63).
Acreditamos que podemos, agora, sem maiores problemas, dizer que o objeto
fracasso escolar não preexiste a si mesmo. Ele existe sob condições positivas da função
enunciativa.
Essas demandas, segundo ainda Benevides de Barros (1994, p. 294), não são
“necessidades” que determinam ações; são, antes, produzidas historicamente como
domínios de saber-poder. “Ao se instituírem como necessidades obscurecem pontos de
emergência, criando a idéia de que sempre estiveram lá”.
É no domínio do poder que agora vamos adentrar ainda com Foucault (apud
Deleuze, 1988, p. 89):“...se procuramos determinar um corpus de frases e de textos para
deles extrair enunciados, só podemos fazê-lo designando os focos de poder (e de
resistência) dos quais esses corpus dependem”.
“A pessoa é que tem que querer mudar, está nas mãos do aluno, é uma coisa
individual.”
“Os meninos tem que refletir, falar deles e nós orientamos para eles se auto-
avaliarem.”
“Esses meninos não querem nada, são é muito preguiçosos, não raciocinam
de preguiça.”
“Se tem uma na sala que fica de preguiça, o resto fica também.”
“A aprovação automática não é legal. Como ele vai passar para a 5ª série,
por exemplo, se ele não aprendeu o conteúdo da 4ª?”
“Criança pequena já é burra, se passar de ano sem saber, fica mais burra
ainda.”
“Não é que esse menino tenha problema de inteligência, ele é só mais lento.”
“Essas crianças não têm condição de refletir sobre a realidade; nós que temos
que passar isso para elas.”
“Coordenador é bom porque vigia, separa as brigas pra gente aprender a ser
uma pessoa de verdade.”
“Prova é bom quando a gente acerta tudo; a gente quando erra fica
humilhado.”
“A gente nasce só sem saber, nem burro nem inteligente, na escola é que a
gente vai ficar ou burro ou inteligente.”
“Não adianta dizer que a escola serve pra gente aprender. Eu não quero ir
para a escola, porque eu não sei.”
Assim, a razão se coloca como veículo mediador entre o sujeito e o mundo dos
objetos, ambos considerados com existência a priori privilegiando ainda a ação do
primeiro sobre o segundo. Sujeito egocentrado, auto-referido, a ser auto-refletido, auto-
investigado, auto-investido, auto-regulado. O apelo ao “auto” recheia os espaços escolares.
Sujeito intimizado pela função psicológico-pedagógica.
Por sua vez, o tempo é considerado uma coleção de períodos sucessivos nos
quais se define uma normalidade aquisitiva. Esclarecendo, a norma é um conceito
descritivo apoiado na racionalidade. As reflexões, peça importante no discurso pedagógico
(e não só dele), colocam a tarefa de julgar pela norma. Julgar positivo ou negativamente
em função do critério de normalidade. A consciência reflexiva se efetiva sob princípios de
evolução e totalizações.
O saber vai também sendo engendrado como uma mercadoria que se possui ou
não com efeitos imediatos de produção e fixação no lugar do fracasso ou do sucesso.
Enfim, pretendemos aqui trazer o que significa rachar palavras e frases para
delas extrair os enunciados. Não desejamos situar as formações discursivas em sua
especificidade. Ensejamos apenas traçar um panorama de rede onde seus fios foram sendo
puxados até para evidenciar esse conjunto disperso que caracteriza a própria rede.
O poder, antes de tudo, não é propriedade de quem quer que seja, não é algo
que se possua ou não, mais ou menos, não há um lugar privado, fonte do poder, ele exerce-
se, funciona incitando, suscitando, produzindo.
...com efeito um diagrama de forças apresenta ao lado das (ou antes ‘face
às’) singularidades de poder que correspondem às suas relações.
Singularidades de resistência, os ‘pontos, nós, focos’ que se efetuam por
sua vez sobre os extratos, mas de maneira a tornar possível a mudança.
Essa concepção de poder tem algumas implicações imediatas, por exemplo,
em relação à divisão sociopolítica em duas classes sociais no tocante à detenção do poder.
O autor não nega a existência das classes e de suas lutas, mas as insere em um
panorama microfísico de poder, no qual compartilham uma determinada função
diagramática. Diluem-se, assim, suas rígidas fronteiras em relação aos modos de
existência incitados. A tecnologia do poder passa por todos, através de todos, entre todos.
A Genealogia é
“Escola não é família, nem posto médico, temos que ensinar e é só.”
“Tia, tinha que a diretora proibir as crianças grandes de dar beijo na boca.
Escola é um lugar de respeito.”
“Temos que deixar do lado de fora nossa vida pessoal, quando cruzamos o
portão da escola.”
O que cabe ali dentro? O que não cabe e não poderá caber sob a ameaça de
fragilizar suas fronteiras “embaralhando a cabeça”?
“Os professores tratam a gente como se fosse filhos dele. Que saco!”
“O professor não deve se deter só no conteúdo. A vida que está aqui dentro
está lá fora e é dela que devemos nos ocupar.”
“Às vezes a gente está desacorçoado da vida, e vir prá aqui anima, distrai.”
“Hoje trabalhei demais, tia. Queria chegar em casa e tomar um whisky igual
meu pai toma quando chega do trabalho.”
Isso sem falar que os beijos na boca aconteciam nos lugares mais reservados
(ou não) e apontavam a cumplicidade de todos... uma certa “vista grossa” e um certo
“ouvido de mercador” (como diziam) circulavam.
Não era sem brilho nos olhos que subiam a rampa. O que será? Será hoje?
Ilhas de alegres piqueniques aconteciam na hora do lanche – e fora dele – que era sempre
esperado com indagações. Ali conviviam, misturavam-se, entristeciam, confortavam-se.
Cumplicidades mais ou menos explícitas se faziam em nome da vida. Perguntavam uns
pelos outros, preocupavam-se com o dia, brigavam, davam conselhos, adoeciam,
contagiavam-se. A hora do cafezinho comemoravam os encontros. Nela exibiam suas
ferramentas de trabalho. Cuidava-se. Alguns choravam próximo às férias, outras vezes se
entusiasmavam com os feriados. Hora de descansar. Limpava-se, arrumava-se a escola. Os
casos amorosos brotavam dos cantinhos da escola e os arranjos sempre bastante singulares
dos uniformes – que aí desapareciam – faziam os corpos pavonearem. Muita cor, muitas
imagens não procuravam lugar, antes, faziam composições e se conheciam e se
desconheciam numa luta permanente.
Aqui propomos uma questão: não poderíamos nos perguntar que tipo de poder
– em seus mecanismos e efeitos – está em jogo? Um poder que está em toda parte, que
provém de todos os lugares e que lamina da mesma forma a escola, a família, o trabalho, a
vida pública e a vida privada e que, ao mesmo tempo, faz dessas instituições identidades a
se relacionarem exclusivamente? Não poderíamos também trazer “a público” as
resistências no que anunciam nossa possibilidade de criar modos de vida? Aliarmo-nos a
ela no que encerram de potência?
O portão da escola controlado pelo “vigia” muitas vezes era vivido como um
porto seguro dando a impressão de que, de fato, ali era um lugar fechado, mas, vazado,
“misturava”... e, ainda, os meninos pulavam o portão, chegavam atrasados, saiam antes ou
depois da hora, assim como os demais integrantes da escola (que não pulavam literalmente
o portão).
“Vai um de cada vez ao banheiro, vamos fazer a lista, só pode ir depois que o
outro voltar.”
Quem disse que os lugares das salas eram exatamente fixos? As carteiras e
cadeiras, assim como os alunos, dançavam ao doce sabor dos instantes. Não era também
raro encontrarmos alunos “desalocados”. Havia sempre um que, em determinado dia, ia à
aula da professora do ano passado, isso não para revivê-lo mas para engatar o presente.
A disciplina também procede por localizações funcionais, distribuídas no
espaço de forma a aumentar a docilidade e a utilidade dos corpos. De acordo com sua
função, cada cela ocupará um lugar estratégico.
Mas quem disse que cada um tomava sua função e sua “cela” de uma vez por
todas?
“Fazer fila é bom para não misturar! Se misturar? Pisam no nosso pé! É, mas
na fila também fica tudo junto e pisam no pé... deve ser porque é assim!”
“Tem sala que não tem isso porque são todos burros e bagunceiros.”
“Os meninos ficam perto da janela, as meninas mais pra cá, porque é melhor
assim.”
Foucault (1977a, p. 135) afirma que “...a constituição de quadros foi um dos
grandes problemas da tecnologia científica, política, econômica do século XVIII [...] o
quadro no século XVIII é ao mesmo tempo uma técnica de poder e um processo de saber”.
Corpos suados corriam para lá e para cá. Corriam, não corriam, parecia que
corriam, ao toque insistente das sinetas.
26
SEME – Secretaria Municipal de Educação de Vitória – ES.
Mas não dizemos que isso é “enrolar” por preguiça, descaso ou
descompromisso? O que seria engraçado?
Seria porque vinha de uma criança que, assim, não estaria autorizada a
“cobrar” dos outros? Seria porque também como criança “inocente” não tem papas na
língua e trazia a público algo que todos sabem, todos fazem, mas não devem “confessar”?
“Tem um bichinho cutucando a nossa bunda, por isso a gente não pára quieto
pra estudar.”
27
Analisador: conceito-chave da Análise Institucional. O analisador é um revelador, um catalisador do
sentido. Afirmam que é o analisador que realiza a análise e não os analistas; “as situações falam por si”
analiticamente. São falas, situações, acontecimentos que analisam as produções em jogo.
Os programas aos quais nos referimos aparecem inicialmente nas instituições
religiosas como uma técnica espiritual e pouco a pouco enveredam pela escola cabendo ao
professor a tarefa de conduzir o aluno à perfeição por meio do exercício cada vez mais
exigente de uma vida ascética; vão marcando a aquisição da aprendizagem e o
comportamento exemplar.
“Faz logo de uma vez, senão você vai ter que fazer de novo.”
As penalidades, as punições não são usadas para reprimir o delito, não são
negativas, portanto. Ao produzirem comportamentos, são positivas e úteis. Recompensar
quando não se desvia da regra; punir quando isso acontece.
“Essa coisa de elogiar uns e não outros talvez não seja ideal, mas é o controle
possível de um para muitos. Gritar que se calem, que sentem, que façam silêncio, é muito
agressivo.”
As penalidades se esvaíam....
“Esse negócio de ficar em cima estressa a gente. A vida já é tão difícil. Deixe
quieto!”
Trata-se de
“Tem que tirar esses meninos bagunceiros porque senão prejudica o resto.”
“Esse aí tem que ficar separado senão parece que a confusão pega no resto. É
impressionante, um só provoca uma confusão geral.”
Contágio a ser administrado não só pela separação dos indivíduos, mas pela
inclusão de cada um em um lugar de normalidade ou de anormalidade. No poder
disciplinar todos são incluídos.
“Tia, não é pra tirar todos os bagunceiros não, porque senão vai ficar muito
sem graça! Escreve aí!”
Antes de entender essa frase como um desejo do aluno (no sentido mais usual
do termo), gostaríamos de remetê-la ao diagrama disciplinar. Na imensa e instável
correlação de forças, em sua capacidade de afetarem e serem afetadas, um afeto se esboça,
exige que se retorne e que se lhe desenhe um contorno. Fugidio, resiste ao poder
disciplinar e afirma que a “bagunça tem graça”, “não haveria graça sem ela”.
Ainda que seja de forma exígua, Foucault, Deleuze, Virilio, Hardt, Pélbart,
dentre outros, chamam a atenção para outro tipo de maquinaria de
poder/saber/subjetivação que vem sendo acionado conformando um novo paradigma: o da
sociedade de controle.
“Eu vou ser pego, não importa, o outro vai ser também. Todos vão ser.”
Na contemporaneidade
Esse índice de movimento pode abrir espaço para o tempo enquanto invenção,
ou fragilizar-se atualizando a impotência.
Se o tédio é entendido como apatia, desânimo, em frente às dificuldades, o
que vemos ser gerado é o individualismo, o pessimismo e muitas vezes o conformismo do
“a vida é assim mesmo”. O movimento de produção de estilos de vida mais potentes já nos
espreita a todos em todos os lugares e todo o tempo. Outros regimes de tempo que
delineiam outros modos de subjetivação podem ser uma arma poderosa nos tempos que
correm.
Dando-nos tempo ao tempo, é outra vez a Rocha (1996, p. 60) que recorremos:
30
A Psicologia e a Pedagogia, dentre outras “Ciências”, produzem-se como instrumentos capazes de
investigar, descrever, controlar, capturar a verdade e transformar o “eu”.
31
Disciplinares colocado entre aspas para diferir da disciplina na concepção foucaultiana que utilizamos.
Nesta os dois aspectos anteriores também fazem parte da mecânica disciplinar, assim como esse. Os
integrantes da escola, quando aludem à disciplina, referem-se às explícitas regras de condutas nesse
ambiente.
Esse remédio administrado a todos o e´ em doses maciças a todo e qualquer
“caso”, que, como tal, desvia-se do procedimento adotado, negando-se ao crescimento
interior. A noção de caso nos remete à identidade à qual este passa a ser referenciado
cotidianamente.
É essa inflexão que cria um interior, mas que comporta dentro de si nada mais
nada menos que o fora. Interior e exterior não estão em oposição, não se dão
separadamente de modo que cada um seja fechado sobre si mesmo. Ao dobra-se,
desdobra-se, volta a dobrar-se de diferentes modos. Pontos que estariam próximos na
primeira dobra podem distanciar-se na segunda, tecendo novas configurações de rede,
produzindo estilos de vida diferentes quer em relação, por exemplo, a sistemas
econômicos, políticos, educacionais, sexuais, relacionais, quer em face ao amor, ao
trabalho, à percepção, à memória, à sensibilidade... que constituem a própria rede. Nós
somos a própria rede.
O estilo de vida marcado pelas disciplinas, pelo liberalismo que tem como
premissas fundamentais a garantia da liberdade individual, o respeito ao próximo e
também à propriedade privada, o incentivo à competitividade entre iguais que seria o
motor da ascensão social, constitui-se a partir do que Foucault chamou de “técnicas de si”
ou “artes da existência”. As pessoas, vivendo dentro de uma determinada organização
social, produzem práticas que passam por diferentes ordens – individuais, coletivas,
sexuais, econômicas, jurídicas – e que se apresentam como regras de conduta.
Foucault (1984, p. 48) afirma que o sujeito, sua história e sua constituição
como objeto para si mesmo são inseparáveis das “tecnologias do eu”. Essas são práticas
O poder pastoral, por sua vez, “...não pode ser exercido sem conhecer o que
passa pela cabeça dos indivíduos, sem explorar-lhe a alma, sem forçá-los a revelar seus
segredos mais íntimos; implica um conhecimento da consciência e uma atitude para dirigi-
la” (Foucault, apud Larrosa, 1994, p. 53).
32
CMI: Capitalismo Mundial Integrado. “O capitalismo contemporâneo é mundial e integrado porque
potencialmente colonizou o conjunto do planeta, porque atualmente vive em simbiose com países que
historicamente pareciam ter escapado [...] e porque tende a fazer com que nenhuma atividade humana,
nenhum setor da produção fique fora de seu controle” (Guattari, 1981, p. 211).
A economia subjetiva capitalista forja maneiras de sentir, pensar, amar,
relacionar-se, trabalhar, modeliza ser aluno, professor, a escola, a educação, a infância, o
fracasso e o sucesso, a vida social, portanto.
Qualquer luta contra o capital não deve ser restringida ao plano da economia
política; deve considerar a economia subjetiva. Em As três ecologias, Guattari (1990) trata
de uma ecologia que engloba três registros que são fundamentais e que devem ser
acionados, se quisermos, de fato, uma revolução política, cultural e social. São eles: o
meio ambiente, as relações sociais e a subjetividade humana.
33
Produto feito em série, o que é igual, homogêneo. Aquilo que se reproduz tal qual o modelo.
Todo agenciamento é coletivo, entendendo este não como conjunto, somatório,
coleção dos mesmos elementos, mas como polivocidade, multiplicidade.
Com efeito, o termo coletivo deve ser entendido aqui como que no
sentido de uma multiplicidade que se desenvolve para além do indivíduo
junto ao socius, assim como aquém da pessoa, junto a intensidades pré-
verbais derivando de uma lógica dos afetos mais do que de uma lógica
dos conjuntos bem circunscritos (Guattari, 1992, p. 20).
34
Guattari utiliza o sufixo ístico para designar formações não só capitalistas em seu modo de produção, mas
também outras economias que não se diferenciam, do ponto de vista do modo de produção de subjetividade
das sociedades capitalistas.
Mas, se tomarmos a subjetividade como múltipla, processual, sempre coletiva,
essas fronteiras se desfazem e o que encontramos nos indivíduos, grupos, instituições,
sociedades são fabricações de modos de existência.
Na escola, ser da 4ªB, 6ªD, 2ªA... era vivido como se cada “grupo” tivesse
características que só a cada um deles pertencesse, fazendo, muitas vezes, que alguns
alunos “não se adaptassem à sua turma” e se deslocassem para “melhores” relações com
outro grupo. A experiência de não pertencimento era freqüentemente esboçada, quer com
palavras, quer com atitudes.
Enunciava-se a turma mais forte, porém “levada”, a turma mais tímida, a mais
fraca, a mais contestadora...
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Heterogênese: criação permanente de diferença, não é sinônimo de heterogeneidade que remete à
diferença de identidades.
36
Um artifício que utilizávamos nas vezes em que atravessávamos os interstícios da escola, por exemplo, a
contestação, vetor que, como tal, não pertencia a quaisquer dos grupos mencionados, ou turmas ou pessoas.
A pergunta tinha o propósito de provocar territórios bem delimitados.
Nesse momento falavam de diferentes experimentações de vida, de escola e
afetos sem endereço povoavam as conversas. Irritavam-se com nossa pergunta e
respondiam: “Sei lá, tanto faz”, “Pra que você quer saber isso agora?”, “Como assim?”.
Não se deve tomar a singularização “de uma vez por todas”, pois adviria daí
nova modelização. O que não se deve perder de vista é o processo, seu caráter de produção
circunstancial. Tampouco o movimento seria o de voltar para um processo de subjetivação
anterior à modelização capitalística, pois, da mesma maneira, perderíamos o “mote” da
processualidade em sua potência criadora.
37
O mecanismo (sistema fechado) designa certos procedimento de máquinas técnicas ou uma organização
de um organismo. A máquina (sistema aberto de componentes heterogêneos) só funciona acoplada a outras.
Máquinas sociais, estéticas, teóricas, técnicas funcionam agenciadas entre si produzindo modos de
existência. O maquínico é o processual, portanto, sempre aberto à invenção.
seja, um movimento que afirma outras sensibilidades, outras percepções que escapam da
modelização da subjetividade capitalista. “Sei lá, tanto faz”, “Pra que você quer saber
disso agora?”, “Como assim?”... recheados de indignação.
Quem é você? Você que ousa ter uma opinião, você fala em nome de
quê? O que você vale na escala de valores reconhecidos enquanto tais
na sociedade? A que corresponde sua fala? Que etiqueta poderia
classificar você? (Guattari & Rolnik, 1986, p. 41).
38
Como vimos, a partir da lógica do poder disciplinar, ninguém é efetivamente excluído. Em uma sociedade
normalizada todos (e tudo) são incluídos – um em cada lugar, em cada lugar um. O fracasso escolar (evasão
e repetência) tem sido incluído no lugar da falta, da lacuna, da dificuldade, da impotência, do defeito... A
exclusão dos processos de singularização – que pode estar pedindo expressão, “cutucando” a modelização
fracasso escolar – é aqui entendida como a tentativa de banimento das forças do fora a partir dos
mecanismos que as referem à norma.
de todos aqueles processos de singularização. Os movimentos que se atrevem são
facilmente segregados.
“As crianças não sabem o que querem, vêm a nós pedir limites.”
“Os adolescentes não sabem de limites, não têm essa perspectiva de limites,
do controle dos impulsos, ele é sempre instável.”
“Quem vai orientar as turmas? Se deixar por conta deles, vocês já viram!”
“Mas quem é que diz isso? Talvez não seja necessariamente o professor ou o
mestre explícito exterior, mas sim algo de nós mesmos, em nós mesmos, e que nós
mesmos reproduzimos” (Guattari & Rolnik, 1986, p. 41).
“Eles falam tão bem, sabem do que estão falando. Eu, aí, nem consigo começar
a dizer nada, a cabeça fica confusa, a língua parece presa, as pernas ficam moles.”
“Acontece muito comigo, quando eu sei que não é isso que ele tá falando, mas
não tenho o que dizer, ter tenho, só não consigo. Parece que ele tem algo prontinho pra
me derrubar só na fala. Nem ouve, joga fora o que vou dizer. Acha que não sou capaz. Eu
sou? Aí não consigo e dá dor no estômago e me dá raiva também.”
“Me olha como se nada que eu pudesse dizer ou fazer irá mudar nada.”
Algumas vezes não era o silêncio que se fazia, emergia antes uma atitude de
rechaçar a situação que passava rapidamente a ser considerada agressiva já que permeada
por desobediência (no caso dos alunos) ou de afrontamento (no caso dos profissionais
entre si); o que facilmente servia para culpabilizar, infantilizar e segregar ainda outra vez o
agressor e evidenciar que de fato o agredido tinha razão, tinha a verdade (verdade e razão
consideradas sinonimamente).
“A gente fala com todo carinho, eles parecem que não querem dar ouvidos,
paciência!”
O fracasso escolar tem sido produzido no modo de existência que tem como
mecanismos privilegiados a culpabilização, a segregação e a infantilização, ou seja, é
formalizado na lógica capitalista. Mas se o tomamos como um índice de singularização, o
convite a construção de outras práticas está feito.
Construir sua própria vida, construir algo de vivo, não somente com os
próximos, com as crianças – seja numa escola ou não – com amigos,
com militantes, mas também consigo mesmo, para modificar, por
exemplo, sua própria relação com o corpo, com a percepção das coisas:
isso não seria, como diriam alguns, desviar-se das causas
revolucionárias mais fundamentais e mais urgentes? Toda questão está
em saber de que revolução se trata! Trata-se, sim ou não, de acabar
com todas as relações de alienação – não somente as que pesam sobre
trabalhadores, mas também as que pesam sobre as mulheres, as
crianças, as minorias sexuais, etc., as que pesam sobre sensibilidades
atípicas... (Guattari, 1981, p. 67-68).
Molar e molecular são dois planos (ou segmentos) que atravessam indivíduos,
grupos, instituições, sociedades. Esses conceitos se cruzam com os de micro e
macropolítica. O macropolítico se refere ao plano molar e o micropolítico ao plano
molecular. O molecular como processo pode nascer no macro assim como o molar pode se
39
“Os bons encontros ocorreriam quando um corpo compõe com o nosso e toda sua força ou parte dela vem
aumentar a nossa. Um mais de força não no sentido de um acúmulo de força, mas no sentido de uma maior
intensidade das forças ativas, que venha produzir uma outra qualidade de força, uma potência de agir. Os maus
encontros ocorreriam quando os corpos em suas relações produzem decomposição de forças – forças reativas –
que se expressariam no se contentar ou se acomodar em sofrer os efeitos, em reclamar, em se lamentar, em
acusar. Estas seriam as paixões tristes, a potência do padecer” (Domingues Machado, 1999b, p. 225).
instaurar no micro. Sociedades, instituições, indivíduos... são perpassados por essas duas
espécies de segmentaridade ao mesmo tempo. Segmentaridades que são inseparáveis pois
se enredam e se cruzam, passam uma para a outra, transformam-se, coexistem
estreitamente misturadas; uma pressupõe a outra sempre.
Vejamos:
Quando nos referimos às escolas em geral nos situamos no plano molar. Assim
como: o professor ensina, o aluno aprende, aquele estabelece tarefas para esse que as deve
cumprir com qualidade esperada e no tempo determinado. O primeiro avalia, corrige; o
segundo estuda e executa. O supervisor supervisiona os professores. O coordenador
organiza a disciplina. A diretora provê o que se faz necessário infra-estruturalmente.
Segmentos bem determinados que se casam perfeitamente.
Por fluxo, entende Deleuze, algo de intensivo e mutante, algo entre uma
criação e uma destruição. O fluxo é abstrato mas real, eficaz. Só se
apreende o fluxo através do segmento e este só existe através do fluxo
que o banha. Os fluxos não param de agitar, de remanejar os
segmentos, assim como esses só se prolongam pelos fluxos que
conservam (Lima, 1999, p. 92).
Um fluxo “...implica sempre algo que tende a escapar aos códigos não sendo,
pois, capturado e a evadir-se dos códigos, quando capturados...” (Deleuze & Guattari,
1996, p. 99).
A noção de devir utilizada por Deleuze & Guattari (1997, p. 64) refere-se à
mudança, são orientações, direções que se opõem à adaptação, a modelos. Não se refere ao
passado ou ao futuro, efetivam-se no presente. A idéia de devir está ligada à possibilidade
de produção de singularização.
Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos
que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre
as quais instauramos relações de movimento e de repouso, de
velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de
nos tornamos, e através das quais nos tornamos.
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Seu plano é chamado de Plano de Consistência ou Imanência ou de Composição ou da Natureza. Plano
que trabalha com conjugações de fluxos, velocidade e lentidão entre as partículas. Não é um plano
preexistente, é exatamente construído nos agenciamentos.
das diferenças que iriam se engendrando na dimensão invisível, que estariam aquém e
além do eu” (Rolnik, 1994, p. 46).
Segundo Rolnik, “corpo vibrátil” é aquele que alcança esse invisível, corpo
sensível aos efeitos, às intensidades, às repulsas e atrações, ao encontro dos corpos.
Importante ressaltar que estamos diante de uma empreitada que não necessita de um
especialista para ser levada a cabo (psicólogo, pedagogo...). O corpo vibrátil não é de
propriedade de quem quer que seja, de uma vez por todas e em todos os momentos.
Essa linha molecular mais maleável, não menos inquietante, muito mais
inquietante, não é simplesmente interior ou pessoal: ela também põe
todas as coisas em jogo, mas em uma outra escala e sob outras formas,
com segmentações de outra natureza, rizomáticas ao invés de
arborescentes. Uma micropolítica (Deleuze & Guattari, 1996, p. 72).
41
Multiplicidade: conceito “roubado” de Bergson por Deleuze e Guattari. Para Bergson, no mundo é tudo
multiplicidade. As unidades se formam a partir da “apreensão do espírito”.
Um rizoma está sempre entre [grifo nosso], no meio, tem como tecido as
conjunções e... e... A árvore tem filiações, começa e termina em algum
ponto. O entre não é algo localizável no espaço, é um movimento
transversal, um fluxo incessante, um devir. Como tal, não pode ser
definido a não ser fragmentária e provisoriamente, na relação, podendo
sempre ser outra coisa... (Benevides de Barros, 1994, p. 271).
42
Deleuze e Guattari acrescentam que talvez seja preciso reservar as palavras linha e segmento para a
organização molar e buscar outras palavras que convenham melhor à composição molecular – fluxo, devir.
Nesse plano, mais que linhas moleculares segmentadas, encontramos fluxos moleculares com suas
mutações, suas conexões, suas precipitações... intensidades.
A linha molecular ora pende para o lado molar ora para a linha de fuga, está
presa entre as duas linhas.
A molar endurecida nos faz correr o perigo de não nos modificarmos e nem as
coisas ao nosso redor. Ficamos reverberando ao infinito.
43
Uma linha não é melhor ou pior que a outra, não é o caso de julgar qualquer uma e sim perguntar sobre o
que fazem funcionar.
Micropolítica, rizomática, cartografia são denominações dessa modalidade de
investigação das linhas que compõem o indivíduo, grupos, instituições, sociedades, coisas
– como o fracasso escolar, por exemplo.
***
O passarinho
Também. Mas essas coisas que estou procurando não precisam que a gente
fique andando o tempo todo. Às vezes, se a gente se mexer muito, elas fogem. Estou
procurando linhas de fuga.
O que é isso?
Entendi. Pode deixar que eu vou te ajudar a procurar. Vou falar com meus
colegas desse negócio e eles te ajudam também.
Legal, obrigada, estou precisando de ajuda mesmo. Como é que eu não
pensei nisso antes? Que vocês podiam ajudar! Olha aí, alguma coisa já aconteceu. Eu
não tinha pensado antes e o pensamento aconteceu. De certo porque a gente aqui nesse
banco, nessa conversa gostosa fez que isso acontecesse, até sem planejar. Foi indo... foi
indo... A gente fez uma coisa diferente, sabia?
O quê?
Fico pensando que os adultos muitas vezes acham que as crianças não
podem ajudar, que só eles ‘sabem das coisas’. As crianças, às vezes, também acham isso,
como se tivesse ‘um adulto na criança’.
É isso aí!”
***
O que mais nos encantava era que, num estalar de dedos, cartógrafos brotavam
de todos os lados.
Chego à escola. No pátio havia um grande reboliço. Nunca tinha visto tanta
gente junta – nem na hora obrigatória do Hino Nacional. Um passarinho ficara preso entre
a laje e o suporte de uma de suas luminárias mal fixada. Pé direito alto e quase inacessível.
Quase.
Não se sabia mais quem era quem ou o quê. O tempo assumia sua dimensão
intensiva e um calor nas relações pairava no ar. Uma alegria do esforço (ou será esforço da
alegria?) se fazia sentir nesse espaço que parecia ter crescido em dimensão ao tomar outras
direções.
Minha parceira mais fiel, do outro lado do pátio, corre em minha direção,
olha-me fundo nos olhos e está habitada por velocidades e intensidades que minha
percepção ordinária não registra. Parecia-me que se dava um tempo para respirar um
pouco e que também esperava que as palavras se decidissem por escolherem entre si quais
ocupariam sua fala.
...o desejo produz real, ou a produção desejante não é outra coisa senão
a produção social. Não é possível reservar ao desejo uma forma de
existência particular, uma realidade mental ou psíquica, que se oporia à
realidade material da produção (Deleuze & Guattari, 1976, p. 47-48).
“Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu?...” (Branca de
Neve, s.d., p. 1, 5, 8, 12) frase proferida repetidamente por uma “rainha má e orgulhosa”
(sic) ao seu espelho mágico.
De que repetição estamos falando pelas repetidas vezes em que a rainha faz
essa pergunta?
Quereria, a rainha, na esteira do platonismo, ser mais que uma “boa cópia”
semelhante ao modelo? Almejava ser uma cópia perfeita que chegasse a se confundir com
“a própria essência do belo”? A identidade da rainha era ser tal e qual o original? Original
e cópia, lógica da representação que privilegia a identidade.
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Máscaras são “operadores de intensidade” (Rolnik, 1989, p. 23), possibilitam, assim, mais ou menos
passagem de afetos.
com o mundo (Benevides de Barros, História da Psicologia Escolar,
s.d., p. 13).
Benevides de Barros diz que o simulacro, por sua vez, não está atrelado ao
modelo do mesmo. Ele também retorna, a diferença retorna incessantemente, mas, como
capacidade de diferir. Repetição sim, mas da diferença. Ela insiste. O que revém é o diverso,
o múltiplo, o diferente; não é o mesmo que revém. Ao invés do UM, o múltiplo; ao invés da
identidade, a diferença; ao invés do ser... o devir; ao invés do definitivo... o provisório.
Segundo Nietzsche/Deleuze, o mundo é vir-a-ser, não há mundo do ser.
Seria a rainha platônica? Teria a rainha pavor dos simulacros? Estaria ela
submetida ao modelo do mesmo, à repetição do mesmo? A beleza é bela... “...um dia, a
rainha má e orgulhosa fez a mesma pergunta a seu espelho e ele, desta vez, respondeu:
Agora já não é você a mais bela! A mais bonita do reino agora é Branca de Neve” (Branca
de Neve, s. d., p. 11).
Levar para longe, “o fora para fora”, afastar aquilo que desarranja certezas,
verdades bem estabelecidas e naturalizadas. O que se anuncia? É a diferença que pede
expressão, a tecer outras possibilidades de vida, de sujeitos e objetos provisórios.
Como o chefe da guarda ficou com pena de Branca de Neve, não a matou,
escondeu-a na floresta (ocasião de seu encontro com os Sete Anões) embora a rainha tenha
passado a acreditar que tinha se consumado o extermínio da jovem. O perigo de diferir
estava afastado. Estava? Lembremos: a diferença insiste.
Ainda outra vez, ao perguntar ao espelho tranqüilamente quem era a mulher
mais bonita, este respondeu: “Branca de Neve, é mais bonita” (Branca de Neve, s. d., p. 8).
A rainha então decidiu matar a jovem com as próprias mãos; entretanto a estratégia não foi
eficiente. Sobreviveu Branca de Neve. E ainda tentou uma terceira vez matá-la... outra vez
não foi possível; até o final da estória Branca de Neve permanece viva. E o espelho
continuava incansavelmente a repetir: “Você não é a mais bela” (Branca de Neve, s. d., p.
11, 13). Ao tentar pela segunda, terceira, quarta vez aniquilar a moça, a rainha repetia: “–
Pronto! Agora eu me livrei de ti [grifos nossos] Branca de Neve” Branca de Neve, s.d., p.
8, 12, 14). Foi em vão. Repetição do mesmo e repetição da diferença. Isso faz toda a
diferença.