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Resenha: A Cidade de Deus, de Santo Agostinho

11/03/2013 POR FELIPE PIMENTA

Santo Agostinho sempre foi considerado um teólogo de inspiração platônica mas, quando lemos sua obra principal,
A Cidade de Deus, e a comparamos com a sobriedade das metafísicas de Plotino, Proclo, Jâmblico e Damáscio, vemos que o
seu platonismo fica já obscurecido pela teologia bíblica. Agostinho dá um tom excessivamente bombástico e emocional ao
seu texto, talvez porque misture a uma tentativa de filosofar teologia e história. Este caráter histórico de seu texto é um dos
grandes pontos fracos do Cristianismo, e mesmo filósofos muçulmanos criticam este aspecto da religião cristã. Quando a
filosofia é diminuída para dar espaço a uma religião que pretende ser histórica, e que vê seus antecessores como meros
pretextos para seu aparecimento, a razão cede lugar para o emocional.
Percebe-se muito bem que Agostinho conhecia Platão apenas por vias indiretas, mais por leituras de Plotino e Porfírio.
O que domina seu texto é a Bíblia e a aplicação de um método histórico. Ele com facilidade zomba de algumas crenças
platônicas como a metempsicose, da preexistência da alma e da existência dos daimons. Neste ponto tenho que criticar a
tradução feita pela editora Vozes que não manteve o significado original em grego. Fica parecendo que os filósofos antigos
defendiam culto aos “demônios” no sentido pervertido pelos cristãos, mas o que eles acreditavam eram em mensageiros
parecidos com os anjos, podendo ser bons ou maus. Como na filosofia platônica e em geral no pensamento grego não havia
espaço para uma noção de criação a partir do nada, mas o mundo era visto como eterno como nossa alma, muito do que
Agostinho tem para oferecer é a novidade, rejeitada pelos neoplatônicos, de um Deus que cria a partir do nada. Mais ainda:
de um Deus que intervém na História. A Cidade de Deus é oposta à Cidade dos Homens. Não que Agostinho pretendesse que
essa cidade celeste fosse fundada na Terra, mas sim que a cidade dos homens vive pela carne ao longo da História, ao mesmo
tempo que a Cidade Celeste é a dos homens que têm noção da sua pequenez, desprezam os bens da Terra e buscam a paz de
Deus. Não deixa de ser uma noção bela, mas buscar ver nos atos da história humana sinais destas cidades é muito enganador.
Boa parte do início do livro é dedicado à história de Roma; nela, Agostinho busca defender os cristãos das acusações
feitas pelos pagãos de que Roma era forte enquanto cultuava os Deuses, e tornou-se fraca e acabou por ser saqueada em 410
por causa do fortalecimento do Cristianismo. Agostinho vai oferecer inúmeros exemplos de uma suposta fraqueza dos Deuses
romanos que teriam sido inúteis em defender sua cidade e seus protegidos. O que pode-se provar com os exemplos históricos
de Agostinho é nada, apenas que ele tinha um bom conhecimento da história do Império. A todo momento ele atribui a
denominação de “demônios” às Divindades romanas, num evidente abuso de linguagem. Os abusos se repetem com seu uso
de apóstrofes repetidas, o que fica parecendo que ele está gritando. Aparentemente para Agostinho, a humanidade que detinha
a luz era somente a dos judeus. Todos os outros povos estavam abandonados à própria sorte, o que dificulta sua doutrina da
Providência. Ao mesmo tempo em que Roma era dominada por demônios, também misteriosamente preparava o caminho
para Cristo e seu Evangelho. Igualmente, os judeus, que detinham o monopólio de Deus até aquele momento, preparavam o
terreno para a Encarnação. O método histórico aparece aqui de maneira óbvia. Todos os que vieram antes de mim foram
somente instrumentos mais ou menos adequados para que eu aparecesse. Séculos depois, o Cristianismo viu-se diante de um
desafio formidável, e no qual todas as suas tentativas de resposta falharam: o nascimento do Islamismo. Se eu sou o auge da
Revelação, como pode alguém vir depois de mim? Todos que estão dominados por este tipo de pensamento são parecidos,
por isso um filósofo como Hegel podia achar que tinha a chave para a explicação de quase tudo.
A filosofia, para Agostinho, como para Tomás de Aquino, é um acessório válido apenas para confirmar a Bíblia. Se a
filosofia vai mais longe do que a Igreja permite, ela será descartada com facilidade. Agostinho também vai utilizando sua
escrita exagerada para descartar a presença dos Deuses antigos pela sua suposta ineficiência histórica. Como o método é
traiçoeiro, nas idades moderna e contemporânea, também o Deus cristão foi considerado descartável, e foi feita uma acusação
clássica contra Ele: onde estava Deus no holocausto judeu, ou nos crimes do comunismo, no genocídio armênio, etc? Religiões
como o Budismo e o Hinduísmo, assim como a filosofia de Platão ou Pitágoras, não seriam abaladas por questionamentos
como esse. Colocando o pensamento na metafísica, onde não há quase espaço para emoções, e vendo as coisas sub specie
aeternitatis, a História em si torna-se de pouco valor. Na Cidade de Deus, tudo parece querer ser explicado desde a Criação
até o Juízo Final. Não existe filosofia aqui, somente teologia. Para um platônico, nem o universo teve início nem terá,
tampouco, fim. A bondade Divina é grande demais para destruir àquilo mesmo que Ela construiu, e o universo está, a todo
momento, sendo energizado pela Divindade para que se renove sempre.
De um ponto de vista metafísico e da eternidade, a História em si só demonstra que o homem é o mesmo em todas as
épocas. Se Deus resolvesse agir mais em determinado momento e não em outros, e mesmo deixasse povos inteiros nas mãos
de Satã, onde estaria Sua Providência? O esquema Bíblico é sem sentido para os Orientais e para os pagãos. Agostinho não
pode conceber uma humanidade que tenha existido antes de Adão nem que o mundo seja mais antigo do que diz o Gênesis.
Os animais têm de servir ao homem e no final haverá um apocalipse devastador. Muitas ideologias modernas tiveram origem
no historicismo cristão. Só que a História precisa sempre decepcionar aos homens e mulheres. Os resultados de uma presença
de um Deus único no mundo, ou de uma luta de classes ou de uma suposta evolução humana, nunca são evidentes por si
mesmos, e o próprio Platão colocaria este tipo de abordagem em um nível baixíssimo. Se o reino da matéria já é instável ao
extremo, tente imaginar o da ação dos homens? Os Constantinos e os Teodósios de Agostinho são tão criminosos quanto
governantes pagãos odiosos. Deus não se revelou mais ou menos nos sábios da Antiguidade do que nos santos do Cristianismo.
Quem poderá colocar limites à linguagem que a Divindade usa? Por causa disso, apesar da tentativa grandiosa de Agostinho,
o Baghavad Gita, as Enéadas de Plotino ou a filosofia de Platão vão sempre falar mais ao íntimo da humanidade do que
sua Cidade de Deus.

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