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CULTURA DE ELITE, CULTURA POPULAR, CULTURA DE MASSAS: INTERFERENCIAS REFERENTES NO NORDESTE Roberto Benjamin & Professor-adjunto da Universidade Federal Rural de Pernambuco. As interferéncias da cultura de elite, cultura popular e cultura de massas nos parecem eminentemente dindmicas no contexto cultural do Nordeste do Brasil, fazendo com que os seus tragos caracter/sticos especificos sejam intercambiados e passem de uma para outra, po- dendo inclusive ocorrer a sua posterior recuperagdo. Em diferentes momentos, fatos culturais terdo sido gerados pela cultura de elite e a seguir folclorizados, para depois ser apropriados pela cultura de massas. Ou gerado na cultura de elite, veiculado pela cultura de massas e apro- priado pela cultura popular, e assim por diante. A continuada expanso dos meios de comunicag&o de massa, © crescimento do turismo sob o incentivo do Estado, além da urbani- zagdo desordenada tém sido propicios ao fortalecimento e difusdo da cultura de massas. Por outro lado, 0 impacto da comunicacdo de massas tem impressionado de tal forma os analistas da cultura que, assumindo posigdes definidas por Umberto Ecco como apocalipticas, se tém omitido no estudo das interferéncias entre cultura de massas, cultura de elite e culturas populares para denunciar de modo simplista o que consideram a hegemonia da primeira, em nosso tempo. Nao 6 de hoje porém que se sabe que o impacto dos mass media de tendéncia uniformizadora produz efeitos diferenciados e que dife- rentes segmentos da sociedade fazem leituras diferentes da mensagem uniforme, segundo as suas circunstancias de recepedo e, especialmente, segundo os seus padres culturais. CADERNOS CERU (28 SERIE) NO 1 — 1985 100 Trazemos a discusséo ocorréncias recentes da interferéncia miultipla entre as mencionadas culturas, onde se evidencia a \Ami- ca do fendmeno, todas relativas a0 espago geogréfico do nordeste brasileiro. Cambinda de Ribeira : © popular apropriado, o tradicional ameagado Ribeirao, municipio da zona da mata sul de Pernambuco, que se tornou conhecido na comunidade cient/fica através de estudos sobre a condigao de vida dos trabalhadores volantes da cana-de-agticar e niveis de subnutrigéo, realiza um dos carnavais mais animados do interior do estado. Os festejos carnavalescos sdo iniciados na semana que ante- cede ao sdbado gordo e na quinta-feira desfila o cortejo da Cambinda de Ribeirao. A Cambinda de Ribeiro mantém-se fiel 4 estruturagdo dos grupos carnavalescos conhecidos sob esta denominacao: dois cordées de baianas, integrados em sua maioria por rapazes travestidos e umas poucas mogas' e mestre (tirador de loas), rei, rainha, porta-estandarte, damas da boneca que conduzem duas bonecas de pano, além da peque- na orquestra. Embora nao haja informagdes seguras sobre a sua origem, elementos da sua estrutura, além da denominagdo, so indicios de uma origem comum com as outras cambindas? e os maracatus de Pernambuco, procedentes das antigas festas de reis negros realizadas em honra de Nossa Senhora do Rosario. Ora, & sabido que as festas de reis negros foram institu(das dentro das caracteristicas dos processos catequéticos da hierarquia da Igreja Catdlica, no periodo colonial e sancionadas, ao menos em Pernambuco, pelo poder politico e policial. Foram, assim, ndo apenas geradas no seio da cultura de elite, mas funcionaram como instrumentos de dominagao. A meméria do grupo é que este era constituido por negros integrantes dos segmentos mais baixos da sociedade local, trabalhado- res rurais, operdrios da fabrica, feirantes etc. Hoje, os antigos integrantes que ainda tém condicao fisica de participar da brincadeira constituem uma minoria. A maioria dos 1. No passado 0 grupo foi exclusivamente masculine, contando na rainha a anica presenga feminina. . 2. No estado de Pernambuco hd ainda as Cambindas de Triunfo, Pesqueira e Sao Bento, &, na Paraiba, h4 em Taperod e Lucena, afora grupos com a mesma denominacao e estrutura diferenciada. 101 participantes do folguedo sao jovens de segmentos intermedidrios e superiores da sociedade local, rapazes de ‘‘familias brancas” que se tis- nam de negro e se vestem de baiana para sair na cambinda. O dirigente do grupo é um jovem executivo de uma indtstria local, de porte médio, integrante de clubes de servicos. Segundo os dirigentes do grupo, os rapazes de “boas familias” da cidade foram ingressando na cambinda, por falta de outra alternativa carnavalesca no local, que hé vinte anos tinha o seu niticleo urbano muito pequeno, “onde todos se conheciam” e a distancia social e as diferencas culturais dos variados segmentos da sociedade nfo eram acentuados. Na sucessao da dire¢éo do grupo, a presenca dos novos inte- grantes pesou. Foram escolhidas pessoas de categoria social mais alta, portadores de n{veis mais altos de escolaridade e exerc{cio de lideranca em outros setores da vida social. Tal ascengdo fechou a possibilidade da renovago dos quadros pelo ingresso de pessoas procedentes das categorias sociais mais baixas, especialmente do segmento constitufdo pelos trabalhadores volantes. Estava consumada a apropriacdo do popu- lar pelos segmentos superiores. Mas, a dindmica continua. Em um primeiro tempo, os novos integrantes tentaram manter viva a tradigdo da cambinda em todos os seus aspectos. Por isso, a participagao era restrita aos homens, que se travestiam em baianas®, respeitando a tradicéo popular de impedir a participagaio feminina nestes tipos de folguedo. Era portanto uma conduta decorrente de norma costumeira e 0 travesti nem tinha uma conotagao de deboche da situago feminina, nem de homossexualismo. Em anos recentes, noivas e esposas dos rapazes se integraram aos cor- dGes das cambindas, usando a mesma fantasia. Através da comunicagao de massa, os integrantes da Cambinda de Ribeiréo tomaram conhecimento dos outros tipos de travestis ocorrentes no carnaval dos grandes centros. A migragao para o Recife e 0 seu refluxo permitiram o contato de alguns rapazes com os grupos de travestis carnavalescos que debocham da condi¢ao feminina e séo tomados como “modernos” em relacao a tradig¢éo de Ribeirao. Estes grupos que recebem grande divulgaco através dos meios de comunica go de massa vém, ano a ano, aumentando o nimero de seus integrantes e se multiplicando, no Recife e Olinda. upos de folguedos no Nordeste havia a proibi¢&o da participagio feminina, ‘nas outras cambindas, maracatus rurais e cavalos-marinhos. Em Outros grupos da denomina¢do cambinda, os homens travest ram conhecidos como cambindas nso como baiat 102 Hoje, a Cambinda de Ribeirao vive um momento critico, face ao confronto entre os integrantes em faixa etdria mais elevada e filia- ¢&o mais antiga e os mais jovens. Enquanto os integrantes da primeira geragdo de cambindas “brancos” desejam preservar a tradigao, mesmo sob o risco de congelar o folguedo e transformé-lo em para-folclérico, ‘0s jovens, mais integrados a cultura de massas, querem uma reinterpre- tagao dos papéis de travesti no grupo, a fim de adequé-lo aos “padrdes modernos”. As cantorias no rédio As cantorias de viola, referidas as vezes como desafios e repen- tes, constituem expressSo caracter(stica da cultura popular do sertéo do Nordeste. E talvez a expresséio dessa cultura mais apreciada pelas classes dominantes. Desde os primeiros registros sobre cantorias que sao mencionadas as suas realizagdes em espagos diversos, ora nos meios populares ora em residéncias dos grandes senhores, chefes politicos. Ha registros de diversas apresentacdes nos paldcios de governo dos esta- dos nordestinos. Com a instalagao de emissoras de rédio em cidades do interior nordestino, os cantadores conseguiram realizar a-suas cantorias nos estidios e auditérios, com a sua emissdo através das ondas em AM. Hoje, s80 numerosos os programas de cantoria, com elevados (ndices de audiéncia. Um levantamento realizado na Paraiba, por um aluno de p6s-graduagaio, com vistas a apresentar umm trabalho de conclusao de disciplina*, revelou que ha diferentes tipos de relagSes de trabalho entre cantadores/emissoras ‘e categorias diferentes de cantadores esta- belecidas nestas relagdes. Verificou, também, que o uso do raédio n&o afastou os cantadores das cantorias ao vivo — elas no apenas continuam a se realizar, mas séo cada vez mais numerosas, naquele estado. O rddio tem portanto servido para a divulgagdo de uma manifes- taco da cultura popular e da sua valorizagio. Todavia é preciso verifi- car © efeito da transmisséo radiofénica sobre o contetido e a forma de desenvolvimento das cantorias, considerando que poetas mais antigos apontam “descaracterizagées” da tradigdo apés 0 uso do canal massivo. 4, Luis Custédio da Silva, aluno da érea de Comunisagio Rural do Mestrado em Adm, Rural, UFRPE, 103 Do erudito ao popular, através da televisio A telenovela “Coracéo Alado”, de autoria de Janete Clair, levada ao ar pela TV-Globo, teve por trama inicial a problematica de um artes3o popular que, explorado por um intermedidrio inescrupulo- so, se revolta e migra para Oo grande centro a fim de ali produzir a sua arte e comercializé-la diretamente. A estéria foi situada em Tracunhaem (PE); 0 artesanato era a cerdmica figurativa popular, 0 artesdo, Juca Pitanga (nome fict{cio), foi interpretado por Tarcisio Meira; a peca escolhida era uma escultura de artista erudito, do sul do Pafs, que foi mostrada em todos os ca- pitulos. No levantamento procedido por uma aluna da pés-graduacao®, verificou-se que a maioria dos artesdos de Tracunhaem procurou acom- panhar a novela (algumas cenas haviam sido locadas ali) e, apesar das erfticas ao desenvolvimento narrativo, consideram que foi uma exce- lente divulgag&o da localidade e que serviu para aumentar o fluxo turfstico e as encomendas dos intermedidérios que comerciam 0 produto no mercado do Recife e sul do Pais. Até af, a televiséo passaria como a ‘‘fada boa”, portadora de beneficios 4 comunidade, apesar das manipulagdes. A estéria terminou no final feliz desejado pelos telespectadores, mas os seus efeitos, tém uma Histéria Social cujo final foge 4 mani- pulagdes da TV. Os turistas telemotivados determinaram uma demanda da escultura de Juca Pitanga/Tarcfsio Meira. A cidade de Tracunhaem foi entdéo infestada com a peste Juca Pitanga. os artesdos menos co- nhecidos reduziram a sua produgdo de santos, em beneficio da produ gao de centenas e centenas de “jucas pitangas’”’ (o personagem passou a identificar 0 produto), em tamanhos e pregos variados (entre cin quenta e cinco mil cruzeiros). Cessada a tramsissao da telenovela, néo cessou nem a demanda, nem a producao. Temos entao: a) a intengao manifesta pela emissora, de divulgar a arte popular, através da comunicago de massa, inclusive contextualizando os problemas do arteséo; 5. “Uma novela de televisio interfere na expressdo artistica de alguns artessos da cidade de Tracunhaem”. Carla Bezerra Santiago, trabalho de conclusdo da disciplina Comunicagio Rural, Mestrado de Administracdo Rural, drea de Comunicaggo Rural, Univ. Federal Rural de Pernambuco, Recife, 19 semestre, 1982. 104 b) c) d) e) f) 9) a substituicdo do objeto popular, por um produto erudito, identifi cado como popular, na narrativa, embora atribu/do ao seu verdade ro autor, nos créditos, em todos os capitulos. A acao reflete tanto uma pretensdo estética da emissora, como um possivel merchandising da arte erudita. a manipulacéo da problematizagao, para atender aos interesses da emissora e nao da comunidade focalizada, com indices de audién- cia, merchandising, censura etc,, direcionando a trama narrativa; a percepcao como “popular” e “de Tracunhaem” do objeto erudito exibido; ou a aceitacdo da sua reprodugao popular, pela impossibili- dade econdmica de acesso ao erudito; a disponibilidade do artesSo, pressionado por suas condigSes sécio econémicas, para reprimir a sua criatividade e atender uma e de- manda real do produto erudito, massificado pela TV. a impossibilidade de predizer-se a duragéo da produgao/demanda, no futuro, com tendéncias a diminuir ao longo do tempo e voltar accrescer, no caso da novela ser reprisada; a possibilidade da diversificagéo das pecas, pelo distanciamento do motivo, a ponto de tornar-se uma nova tendéncia da arte popular local, fazendo esquecer a sua matriz erudita. 105

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