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DE CULTURA “ALMANSOR a Eee MINHOTOS E BEIROES, CONSTRUTORES DO PALACIO REAL DAS VENDAS NOVAS POR JORGE FONSECA (*) (*) — Licenciado em Hist6ria. Bibliotecdrio—Arquivista. Eram quatro da tarde do dia 9 de Janeiro de 1729 quando D. Jodo V, com numerosissi- ma comitiva, chegava as Vendas Novas, até af ignorado ugarejo perdido na chamneca, visitava pela primeira vez 0 vasto conjunto de edificios que mandara construir um ano antes. Fizera a travessia do Tejo até Aldeia Galega (actual Montijo) e dai encaminhara- —se para os Pégoes, distante 5 Iéguas, onde ordenara uma imponente construgao para des- canso durante o percurso. Af a paragem fora curta, de trés quartos de hora, por volta da uma, s6 para comer. Depois fora a viagem até ao novo palicio. De acordo com 0 contrato estabelecido em 1727 entre as cortes de Portugal e Espa- nha, que se integrava e reforcava a politica de paz vigente na época entre os dois estados, a princesa D. Maria Barbara, filha de D. Joao V, deveria casar com principe das Astii- tias, Fernando, filho de Filipe V, enquanto a irma deste, D. Maria Vitoria, desposaria 0 herdeiro do trono portugués, o principe do Brasil D. José. Tinha sido combinado que os dois reis se encontrariam na fronteira comum, numa ilha a meio do rio Caia, junto a El- vas, ¢ af, trocariam as respectivas filhas. A deslocaciio de um soberano como D. Jofio V, com 0 fausto que caracterizava todas as suas iniciativas, implicava uma preparacio a altura das circunstancias, nomeadamente para a pernoita da familia real durante os percursos. Tanto mais dando-se o caso de um encontro solene entre os representantes de dois dos mais ricos estados europeus da época. 38 ALMANSOR As Vendas Novas cram um modesto lugar do termo de Montemor-o-Novo surgido no séc. XVI em virtude da situagaio de passagem entre Lisboa e o interior. Ai tinham si- do construidas, naquela época, algumas estalagens para albergar os viajantes, como almo- creves € muitos outros, que do litoral se deslocavam para Montemor-o-Novo, Evora e outras partes do Alentejo ou mesmo para Espanha, ¢ vice-versa, em comércio ou outras actividades. Uma dessas "vendas novas" veio a servir para hospedagem das personagens reais nas suas deslocagées para o Alentejo. Em 1610 foi reconstrufda de acordo com 0 projecto do arquitecto da Coroa Teodésio de Frias, transformando-se numa instalagZo sumptuosa, clogiada na época pelos cronistas. Era a "estalagem del rei", mantida pela Camara e nela se albergou em 1699 a rainha D. Catarina de Braganga, vitiva de Carlos II de Inglaterra. Foi esta construgaio que D. Joao V mandou demolir em 1728 para no seu lugar ser er- guido um edificio de caracteristicas palacianas. Ai deveria pernoitar a familia real ¢ seus acompanhantes, quer na ida para o Caia quer no regresso. O edificio, ainda existente ac- tualmente (transformado em quartel militar desde o séc. XIX) ocupava uma vasta drca dis- tribuindo-se por varios corpos em que se localizavam os aposentos nobres, decorados pe- los principais artistas do reino, cozinhas, ucharia, cocheiras e a capela real. Foi encarregado de superintender nas obras, que se iniciaram em Abril de 1728, 0 co- ronel José da Silva Pais e Vasconcelos. Segundo Fr. José da Natividade (1) ocuparam-se na grande construgao perto de duas mil pessoas, entre artifices de varios oficios, serven- tes ¢ mais de 400 soldados de infantaria ¢ cavalaria. No transporte de pedra, trazida de ués Iéguas de distancia, foram usadas mais de 400 carretas, além de muitas outras para condugo de cal, vigas, tijolo, telha e ferragens, em que se ocupavam para cima de 200 bestas, Dada a urgéncia da conclusdo da obra trabalhava-se dia ¢ noite, tendo-se gasto pa- ra isso mais de dez mil archotes. autor da Historia Panegirica afirma que o trabalho realizado excedeu as espectativas do soberano, que manifestou a sua admiragéo por em escassos nove meses se ter concreti- zado uma obra de tal monta. Apés a visita e dormida no palicio, D. Joao V sai a 10 pa- ra Evora, com passagem por Montemor-o-Novo. No regresso do encontro do Caia, a 10 do més seguinte, novamente ali se alojaria, agora também na companhia da rainha. Estava assim inaugurada a obra que Pinheiro Chagas (2) consideraria "entre as loucas prodigalidades de D. Joao V (...) a mais digna de ser verberada pelo historiador imparcial (..). Dispender a quantia de um milhdo de cruzados num palacio construido com 0 pro- POsito inico de servir de estalagem a comitiva de 1729 € a prova mais evidente dessa vai- dosa magnificéncia, desse fausto estéril, egoista e imitil que caracterizam todas as obras empreendidas por este monarca”. Deixemos a contundéncia do escritor ¢ politico liberal e digamos 0 que nos fez abor- dar este assunto. Pois foi o caso que, procurando entre o numeroso espdlio documental ALMANSOR ——_______ 39 do riquissimo arquivo da Misericérdia de Montemor-o-Novo fontes para estudo de ambi- to mais lato, se nos deparou um pequeno cademo intitulado "Enfermos das obras reaes do Palacio das Vendas Novas", que verificdmos ter sido feito, na época, a partir do livro de entradas de doentes no Hospital de Santo André entre Junho de 1721 ¢ Outubro de 1737, também existente no arquivo (3). Percorrendo 0 referido caderno logo nos pareceu ter o seu estudo interesse para um conhecimento mais preciso da base socio~demografica das grandes construgdes do periodo joanino. Por isso aqui trazemos os dados que dali ex- uaimos. A primeira conclusio a que se pode chegar é de que 0 Hospital Real de Santo André, de Montemor-o-Novo, funcionou como apoio hospitalar aos doentes ¢ sinistrados das obras de construgo do palacio das Vendas Novas ¢ dos trabalhos que na sua 6rbita se rea- lizavam, como em pedreiras ¢ outros. Funcionou como tal desde Abril de 1728, més em que se iniciaram os trabalhos — o primeiro doente entrou a 21 desse més — até ao fim dos mesmos, pois a tiltima entrada € de 7 de Fevereiro de 1729. Teve, assim, em relagdo a Vendas Novas, o mesmo papel que na grande construcdo de Mafra teria o hospital que o rei ai mandou edificar para socorrer os operdrios respectivos. No primeiro caso, dada a menor dimensdo e mais curta duragao dos trabalhos, nao se teria justificado a criagao de uma ou mais enfermeiras no local. Fr. José da Natividade ndo faz qualquer alusio a tal existéncia, Além disso Montemor ficava s6 a 23 quilémetros. A lista de entradas contem 127 individuos, todos do sexo masculino, nos 10 meses que vao de Abril de 1728 a Fevereiro do ano seguinte, assim distribuidos: ‘Anos Meses Numero de entradas 1728 Abril | 5 Maio | 7 Junho | 5 Julho | 33 Agosto 28 Setembro | 20 Outubro | 6 Novembro | 8 Dezembro | 1 1729 Janeiro A Fevereiro 1 40 ALMANSOR Se atendermos a que 11 dos doentes entrados em Maio dizem respeito ao iiltimo dia desse més, podemos afirmar que ha um crescimento regular das entradas até Julho, ponto mais alto, descendo dai em diante. Isto tanto pode significar ter sido 0 verdo de 1728 0 periodo mais intenso das obras, com a utilizagdo de maior niimero de trabalhadores, co- mo 0 de maior incidéncia do cansaco e das doengas nos mesmos devido ao calor. O tempo de permanéncia variou entre 2 ¢ 52 dias, numa média de 15 dias, tendo faleci- do no hospital 6 individuos e 3 partido com carta de guia para o hospital das Caldas da Rainha. Sao referidas profiss6es ou ocupagées apenas em relagao a 35 doentes: Trabalhadores das pedreiras — 17 (um deles "contra—mestre das pedreiras") Pedreiros —2 Serradores — 3 Soldados —13 O numero significativo de operarios das pedreiras foi determinado, sem diivida, pela maior dureza ¢ risco deste trabalho. Também em Mafra grande parte dos sinistrados fo- ram trabalhadores das pedreiras de Pero Pinheiro e Lamciras, 0 que justificou a criagao de enfermeiras préprias junto a elas, segundo relata Fr. Cldudio da Conceigao no "Gabinete Hist6rico"(4). Parece que as pedreiras que forneciam os trabalhos de alvenaria das Vendas Novas se situavam na herdade da Chaminé, freguesia de Safira, a 5 quil6metros do local da obra, lugar desde ent4o chamado "pedreira real"(5). Também como em Mafra foi utilizado aqui o trabalho de militares. Fr. José da Nativi- dade refere-se a 400 infantes ¢ 30 soldados de cavalaria, comandados por um tenente. Dos 13 soldados que deram entrada no hospital, 9 pertenciam ao Regimento de Castelo de Vide, 2 ao Regimento de Peniche, 1 a0 de Moura c outro a uma unidade mal explici- ta, Sao indicados os comandantes das respectivas companhias. * Mas de onde provinha a grande massa dos trabalhadores da obra? Dado o baixo grau de povoamento da regio, not6rio na falta de mao de obra para os grandes trabalhos agrico- las sazonais, como as ceifas, que, nesta época e muito depois, obrigavam A contratago de migrantes nortenhos ¢ beirdes, onde teriam sido recrutados os operdrios que ergueram da planicie a grandiosa construgao? Oregisto das entradas dos doentes indica, entre outros dados, a respectiva naturalidade, dando-nos deste modo aresposta procurada. Embora nem sempreanaturalidade coincidis- se com a posterior residéncia o facto € que era um forte indicador da mesma. Vejamos, entéo, no quadro seguinte, a naturalidade dos individuos entrados no hospi- tal e provenientes das obras do palacio: ALMANSOR Naturalidade —s Numero de individuos 41 ics | Arcebispado de Braga — Amarante, Barcelos, Chaves, Montalegre, Ponte de Lima, Ri- eira de Pena, Vieira do Minho, V* N* de Cerveira, Famalicio — Mongio, Valenga e Viana de Caminha — Vila Verde — Guimaraes — Arcos de Valdevez (Soajo) —Melgago — "Areebispado de Braga” Deusene 58 Bispado do Porto — Baio — Feira e Vila do Conde — "Bispado de Porto” — Bispado de Miranda — Vinhais — "Bispado de Miranda” Bispado de Lamego — Carregal do Sal e Cinfies — Castro d'Aire 1 cada Bispado de Viseu — Canas de Senhorim ¢ Oliveira do Hospital — "Bispado de Viseu" Bispado de Coimbra — Pedrégio Grande — "Bispado de Coimbra’ 1 cada Bispado da Guarda — Castelo Branco, Covilha e Guarda (cidade) 1 cada Bispado de Leiria — Aleobaga, Porto de Més ¢ Leiria 1 cada ALMANSOR Patriarcado de Lisboa — Sesimbra e Setibal 1 cada — "Patriarcado de Lisboa" | 2 | 4 Arcebispado de Evora — Evora (cidade) — Lavre — Montemor-o-Novo (vila) — “Arcebispado de Evora" Hone Bispado de Portalegre — Portalegre 1 1 Bispado de Faro — Portimao e Tavira 1 cada 2 Ithas — Madeira ¢ S. Miguel (Acores) 1 cada 3 Espanha — Galiza 4 — Segévia e outra 1 cada 6 Franga - 2 Mal identificada Sem indicagio TOTAL, ALMANSOR 43 DISTRIBUICAO DA NATURALIDADE NO CONTINENTE a ALMANSOR Pelo quadro se pode concluir que os operdrios entrados no hospital (dos soldados nao h4 mengo de naturalidade) eram naturais de: — Minho (na época englobando, "grosso modo", os bispados de Braga ¢ Porto, me- nos parte de Trs~os-Montes) — 61 individuos (54,95% dos 111 com indicago de natu- ralidade) — Beira (bispados de Lamego, Viseu, Coimbra e Guarda) — 16 (14,41%) — Trés—os-Montes (Miranda ¢ parte de Braga) — (4,50%) — Estremadura (Leiria e Lisboa) — 7 (6,30%) — Alentejo Evora e Portalegre) — 10 (9,00%) — Algarve 2 (1,80%) — Madeira e Acores — 2 (1,80%) — Galiza — 4 (3,60%) — Castela e Franga — 4 (3,60%) Dagui podemos destacar: — 0 grande predominio de minhotos e beirdes (69,36%) — A presenga modestissima de naturais da regido alentejana, nomcadamente da vila ¢ termo de Montemor-o-Novo (3 pessoas — 2,70%) Vamos considerar que os doentes entrados no hospital provenientes da obra das Ven- das Novas constituem uma amostra representativa do total dos que ali trabalharam, 0 que parece legitimo dado que os acidentes ¢ doengas nao escolhiam as vitimas de acordo com a sua proveniéncia geografica, podendo deste modo considerar-se a amostra aleat6ria. Se extrapolarmos os valores relativos 4 composigao dos doentes para a totalidade dos traba- Ihadores podemos afirmar que os construtores do palacio real das Vendas Novas foram es- sencialmente minhotos e beirdes, os "ratinhos" que anualmente, no fim da primavera ¢ no vero, migravam para 0 Alentejo, além de soldados de varias unidades destacadas para 0 efeito. NOTAS BIBLIOGRAFICAS (1) —Fr. José da Natividade, Fasto de Hymeneu ou historia panegyrica dos desposo- rios dos fidelissimos reys de Portugal, nossos senhores, D. Joseph I e D. Maria Anna Vitoria de Borbon. — Lisboa: Na Officina de Manoel Soares, 1752. @) —M. Pinheiro Chagas, Historia de Portugal, v. IX. — Lisboa, s.d. (3) —"Entradas d' Enfermos d' 1 de Junho de 1721 até 25 de Outubro de 1737" — Ar- quivo da Santa Casa da Misericérdia de Montemor-o-Novo. (4) — Fr. Claudio da Conceigao, Gabinete histérico, tomo VIII. — Lisboa: Na im- pressio Régia, 1820. (5) — Artur Aleixo Pais, Vendas Novas: das origens do povoado a sede de concelho, v. 1. — Vendas novas: ed. Noticias de Vendas Novas, 1985.

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