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Esta ohra foi puhlicada uriginalmcl/te cm alemâo com o lítulo

DIE ILLUSION DER GERECHTlGKElTpor Mal1zsche \/erlags


c Unil'ersiliitshuc/J1wndlung. Viena, cm 1985.
Índice
Copyright © Ha/1s Kelscl/ Institure, \/ima.
Covvrighr (ô Mal/~ \!érlag, Wiell, 1985.
Puhlicodo por acordo com Man: Ver/a,!.!, WitIJ.
Copy/"ight © 1995. Lil'l"aria Martins Fonres Editora Ltda.,
Sâu Pall/o, !){Ira a 17J"(,.\'cI/{c edirâo.

1ª edição
agosto de 1995
3ª edição
agosto de 2000

Traduçüo
SfRelO TELLAROLl

Revisão técnica
Sérgio Sé/"ru!o da Cunha Prefácio............................................................................ XIII
Re\'isão gráfic<l
h~/ormaçôespreliminares XIX
Teresa Cl?cília de Ofil'eim Ramos
Lai!oDm'1'a Outras obras de Hans Kelsen sobre afilosofia de Platâo XXIII
Mauríciu Balt!w:al" Leal
Produção gráfica
Geraldo Ah'es
Paginação Introdução: O dualismo platônico . 1
Antoniu Ncutol1 Ah'cs Quintino

Capítulo 1: O dualismo do Bem e do Mal.. .. 1


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Capítulo 2: O dualismo na filosofia grega . 17
(Câmara llrasileira do Livro, SP, Brasil)
Capítulo 3: A absolutização do dualismo . 34
Kclsen. Hans, 1881-1973.
A ilusão da justiça I Hans KeLsen ; lradução Sérgio Tcllarolí ; re- Capítulo 4: A relativização do dualismo .. 40
visão técnica Sérgio Sêrvulo da Cunha. - 3" ed..- São Paulo: Mar-
tim, Fontes, 2000. - (Justiça e direito)

Título original: Dic Illusion der GereehLígkeit. Prilneiro livro: O amor platônico . 63
ISBN R5·336·131l5-9

1. Ciências sociais - filosofia 2. Filo<;ofia antiga J. Ju~tiça 4. Platão


- Crítica e interprctação L Título. 11 Série.
Primeira parte: Eros . 63
CDD-1R4
Índices para catálogo sistemático:
1. filmo fia social: Platão 184
Capítulo 5: O prohlema do Eros na investigação pla-
2. Justiça: FiJosofla platónica IR4 tónica . 63
1. Platão: Filosofiu social 184
Capítulo 6: O Eras homossexual . 66
Todos os direitos para a língua portuguesa rcscrI'ados à
Capítulo 7: A relação de Platão com a família .. 69
Livraria Martins Fontes Editora Lida. Capítulo 8: A posição de Platão com relação ã mulher 72
Rua Conselheiro Ramalho. 3301340 1. Filebo e Timeu . 73
01325·000 São Paulo SP Brasil II. República . 75
Te!. (J J) 239-3677 Fel.' (J I) 3105-6867
e-nlail: il{t'u@mol·tinstonfes.('OIU
III. O mito do Político . 78
hffp:/II1'J.v\.v.nwrti}l.~fontcs.cum
198 A lLUSÀ () DA IUSl1Çil A VERDADE PL4TÔNICA 199

determinam o agir. Contudo, a Clencia voltada para o co- verdade a serviço de qualquer outra coisa que não a pró-
nhecimento não pode ser influenciada por esses fins que pria verdaele já não é realmente verdade alguma. A verdade
determinam o agir, e nem tampouco é lícito apresentar algo socrática é apenas uma verdade pedagógica e, como tal,
como verdade científica simplesmente porque se tem esse não está em oposição absoluta com a mentira. Em suas me-
algo por moralmente bom ou politicamente útil. Isso se mórias de Sócrates, Xenofonte conta de que forma esse exí-
aplica sobretudo à ciência social moderna, uma vez que es- mio pescador ele seres humanos apoderou-se do jovem Eu-
ta, como mero instrumento da moral ou da política, deixa tidemo. Este esquivara-se até então ã influência de Sócrates
de servir ao ideal da verdade objetiva, e torna-se forçosa- e "diligentemente evitara transmitir a impressão de que o
mente uma ideologia do poder. O quanto a filosofia plató- admirava em sua sabedoria".") Isso não dá sossego a Sócra-
nica força nessa segunda direção, mostra-o a concepção tes, até que, após diversas tentativas, consegue enredar o
platónica de verdade - a verdade platónica -, tào extraordi- jovem numa conversa. Após arrancar de Eutidemo a. con-
nariamente característica que se pode colocá-la ao lado do fissão de que anseia pela perfeição - ou sep, pela Justiça -,
amor platónico, como marca distintiva do espírito ele Platão. Sócrates precisa posicionar-se quanto ao que verdadeira-
mente é justo ou injusto. "Coloquemos pois, se te apraz, de
um laelo um J e de outro um I, ele modo a, então, alinhar-
mos sob o J ~ que nos parecer uma manifestação da justiça
e, contrariamente, sob o I, o que entendemos por injusti-
Segunda parte ça""" Na coluna da injustiça pomos agora sobretudo a
A VERDADE "mentira" e o "engodo". Ressalva-se porém, de imediato,
que é justo, na guerra, um comandante enganar o inimigo
ou se apoderar pela astúcia de sua propriedade. E pergunta,
Capítulo 31 em especial: "Quando um comandante, notando que falta
A verdade em Sócrates coragem a seus soldados, engana-os dizendo que tropas de
reserva estão para chegar, infundindo-lhes com essa mentira
Já para Sócrates, conforme ele se apresenta nos diálo- renovaela coragem, de que lado haveremos de colocar esse
gos da juventude de Platão, a verdade nào é um fim em si tipo de engodo?" Em conformidade com o pensamento de
mesmo. Se ele se esforça pelo conhecimento é porque este Sócrates, Xenofonte pae na boca de Eutidemo a resposta:
lhe parece o meio mais apropriado para conquistar e edu- "Penso que na coluna cla justiça". "Ou ainda - prosseguiu
car as almas jovens - que é o que deseja. Seu discípulo, ele Sócrates -, quando uma pessoa, tendo um filho que precisa
o ama em função de si próprio; a verdade, porém, ama-a tomar um medicamento mas se recusa a fazê-lo, engana-o,
em função do discípulo, como disse Landsberg." "Os diálo- elando-lhe o medicamento sob a forma ele comida, dessa
gos náo procuram uma verdade indiscriminada ou de uma forma curando··o, a que lado pertence esse engodar "Creio
importância particularmente imperiosa e objetiva, tampouco que do lado da justiça", respondeu Eutidemo.'" Não pode,
uma novidade para a época, mas uma verebde que, precisa- pois, haver qualquer dúvida ele que a máxima "OS fIOS JUStl-
mente pela singularidade e situaçáo momentânea do inter- ficam os meios" - e, dentre esses meiOS, a mentira - era um
locutor, é especialmente imperiosa para este e, ademais, componente bastante essencial da ética socrática, como,
bastante apropriada para prendê-lo a Sócrates."'" f: a verda- fundamentalmente, sói acontecer com toda ética conse-
de a serviço da educação cios homens, que, por sua vez, es- qüente, que nada mais pode fazer senão situar a justiça aci-
tá visivelmente a serviço do Eros - um Eros sobremaneira ma da verdade. Isso se manifesta com partICular nltlClez na
narcisista. Isso nào se pode ignorar. E isto também nào: a seqüência dessa conversa entre Sócrates e Eutielemo. A se-
200 A ILU5ÀO DA IU517Ç'A A VERDADE PIA n5NICl 201

guir, o filósofo levanta a questão sobre quem age de manei- teiramente conciliáveis uma com a outra, e é precisamente o
ra mais injusta: quem engana intencionalmente seus amigos bom e o sábio que, em especial, possuem a capacitação pa-
ou aquele que, sem pretendê-lo, diz uma inverdade. Chega ra ambas. É, "pois, o bom e sábio geómetra que se encontra
então à conclusão - sem dúvida paradoxal, mas coerente - melhor capacitado para as duas coisas Ca verdade e a menti-
de que age de forma mais injusta quem mente involuntaria- ra)"-'" Enfaticamente, o Sócrates platónico acentua então -
mente. E isso porque não sabe qual é a verdade, tampouco nesse ponto concordando inteiramente com o xenofóntico -
no que se refere à justil;a, sendo, portanto, incapaz de agir que julga Ulisses melhor, porque este, ao contrário de Aqui-
de forma justa Ca não ser por obra do acaso). Assim, age les, não diz inverdades involuntariamente, por parvoíce ou
com justiça quem mente consciente e intencionalmente. incapacidade, mas o faz de forma totalmente consciente -
"Quem, pois, entende melhor do que é justo: quem mente ou seja, visando um determinado fim. "Ulisses, no entanto,
e engana intencionalmente, ou quem o faz involuntariamen- quer seja mentindo ou dizendo a verdade, o faz sempre com
te' É claro que o primeiro."'" Naturalmente, pressupõe-se base em astucioso cálculo", afirma Hipias; Sócrates nào o
aqui que o justo mente ou engana motivado unicamente contradiz, mas, antes, conclui daí que "aqueles que mentem
por um bom propósito, e que verdadeiro é tudo quanto é intencionalmente são melhores do que os que o fazem invo-
justo. Nesse sistema, a verdade indubitavelmente não é o luntariamente"."(' Ulisses é, pois, "capaz" de mentir. E capaz é
valor supremo. "todo aquele que faz o que quer quando quer"."c Por uma
razão qualquer, o sábio pode ter a vontade de mentir, e,
quando isso acontece, ele é indubitavelmente melhor do
Capítulo 32 que o parvo, que diz inverdades sem pretendê-lo - isto é,
Verdade e mentira no Hípias Menor sem com isso perseguir conscientemente um determinado
propósito. Sócrates chama "um sábio" a Hípias, ao fazer-lhe
Isso é o que nos revela um dos diálogos da juventude a pergunta: "Não mentirias com toda a segurança, não dirias
de Piatio, no qual a figura de Sócrates - tal como a via sempre e constantemente inverdades, se tivesses a vontade
Plat,10 - se apresenta com especial vivacidade. Nesse opús- de mentir e de jamais dizer a verdade? Ou será que alguém
culo, que tanta dor de cabeça causou a seus intérpretes - ignorante da aritmética seria capaz de mentir com mais se-
pois aí, tal como em Xenofonte, o Sócrates fanático pela mo- gurança do que tu, se quisesses? Não poderia o acaso fazer
ralidade pa rece assumir um ponto de vista moralmente assaz com que o ignorante, a despeito da vontade de mentir, aca-
problemático -, Platão faz com que seu mestre, contrariando basse às vezes por, involuntariamente, dizer a verdade, pre-
o conhecido sofista Hípias e a opiniJo generalizada, defenda cisamente por não dispor de um saber seguro a seu respeito,
o ponto de vista paradoxal de que o astucioso e mentiroso ao passo que tu, sábio, contanto que movido pela vontade
Ulisses seria superior ao valente Aquiles, amante da verdade. de mentir, mentirias sempre com a mesma segurança?""" A
O que interessa ao Sócrates platónico é a comprovação de mentira que Sócrates defende aqui - e com ele, decerto, o
que a opinião corrente, segundo a qual um homem amante próprio Platão - é a conscientemente empregada para a con-
da verdade seria incapaz de mentir, é equivocada. Pelo con- secução de um determinado fim. Se, para espanto e descon-
trário: um único e mesmo homem pode, ao mesmo tempo, forto dos intérpretes, ele não condena essas mentiras como
ser "mentiroso e verdadeiro" .e., "Nesse terreno, falsidade e absolutamente imorais, assim procede, evidentemente - em-
veracidade sào uma única c mesma coisa, e a veracidade é bora não o afirme de modo explícito -, em função do pro-
em nada melhor do que a falsidade, pois ambas convivem pósito a que servem. A mentira em si não é nem boa nem
na mesma pessoa, não se encontrando em flagrante opo- ruim; de um modo puramente técnico, seu valor ou desvalor
si,,'ào, como pensas."'" Verdade e mentira são, portanto, in- depende do Em para o qual é empregada. É por isso que
202 A VERDADE PLATÓNICA 203

Sócrates cita principalmente exemplos técnicos, comparando questão educacional, para além da verdade pedagógica,
o mentiroso consciente ao bom corredor que, propositada- aponta para uma verdade a serviço do Estado, uma verdade
mente (e não por fraqueza), corre num ritmo mais lento, e política. E, de fato: na medida em que Platão avança para
ao médico que, conscientemente Ce não por incapacidade), além de Sócrates, da paidéia rumo à politéia, faz-se a verda-
causa um mal. Toda a argumentaç<lo desse diálogo seria in- de razão de Estado.
cotbpreensível se não se tomasse como ponto de partida do
sdcrates
I
platónico a idéia de que o valor ou desvalor moral
()a mentira define-se pelo valor ou desvalor do fim para o Capítulo 33
qual ela serve como meio. Somente partindo-se desse princí- A "verdade" da teoria platônica do
pio a mentira consciente de seu fim é melhor do que a in- conhecimento no Mênon e no Fedro
consciente e involuntária. '
Que portanto se há de tomar aqui, como opinião do o que significa "verdade" para Platão há de se eviden-
Sócrates platónico, que a verdade não é uma virtude abso- ciar com a máxima nitidez em sua teoria do conhecimento,
luta, e a mentira não necessariamente algo mau, isso resulta conforme desenvolvida no IvIénon e no Pedro. Dois momen-
especialmente claro quando se crê divisar, na última tese le- tos caracterizam essa teoria do conhecimento: ela é, em sua
vantada por Platão, via Sócrates, a chave para o verdadeiro essência, orientada eticamente, e tem um pronunciado cará-
significado desse diálogo: "Aquele, pois, que comete uma ter metafísico-religioso.
falta e pratica atos feios e injustos propositadamente (...) - É já significativo que, no Mênon, a exposição da teoria
se é que existe tal pessoa -, não será outro que não o platónica do conhecimento tenha como ponto de partida a
Bom"."') Com ra Z<'io , acredita-se estar aí pelo menos sugeri- questão acerca do conceito de virtude. Aquilo para que se
do, ou mesmo visivelmente pressuposto, um dos principais volta o conhecimento, cuja teoria é ali apresentada, é a vir-
fundamentos da ética socrática: () de que a virtude é saber tude, ou seja, não tanto a realidade empírica, mas, antes, o
e, portanto, nada de mau pode ser feito propositadarnente 711 valor moral. Declarando-se Sócrates, mais uma vez, "total-
Sócrates, nesse diálogo, não toma o mentir, em si, como al- mente ignorante" "no que diz respeito à virtude",73 Mênon
go mau, pois absolutamente não discute que alguém, em- pergunta: "De que forma pretendes, pois, meu caro Sócra-
bora sabedor da verdade, possa mentir, nem situa Ulisses tes, proceder à investigação de um objeto que não sabes o
acima de Aquiles porque o primeiro não mente, mas por- que é? Desejas então imaginar uma coisa da qual nada sa-
que mente conscientemente. Se sua defesa de Ulisses se bes, a fim de investigá-la?"" Sócrates interpreta essa pergun-
compatibiliza com o fundamento evidenciado ao final do ta como a tese dos erísticos, segundo a qual "não é possível
diálogo, então não é possível que o Sócrates platónico te- ao homem investigar nem o que sabe nem o que não sabe
nha, como ruim, a mentira consciente de seu propósito. C..), pois não pesquisará o que sabe, uma vez que já o sa-
Exatamente sob esse aspecto parece particularmente signifi- be, tampouco o que não sabe C..), visto que, nesse caso,
cativo que, ao final do diálogo, emerja a questão da justiça. não saberá sequer o que deverá pesquisar". E rejeita decidi-
Como sábio, capaz - capacitado tanto para a verdade quan- damente essa tese, que conduz ao agnosticismo. Ele estaria
to para a mentira -, surge aí o JustO. 7l Não se pode fugir à de posse de outra, melhor; de uma doutrina "verdadeira e
impressão de que o verdadeiro significado desse diálogo - bela", anunciada" por homens e mulheres versados nas coi-
ainda que não se mostre à sua superfície - é o de que tam- sas divinas". E, à pergunta de Mênon - "Quem são esses
bém o Justo, por um propósito justo, minta 72 anunciadores?" -, responde: "São aqueles dentre os sacerdo-
Com essa alusão a uma justiça situada acima da verda- tes e sacerdotisas que valorizam o fato de poderem prestar
de, o Hípias Menor, para além da estreita esfera socrática da contas sobre seu ofício. E, além desses, Píndaro também,
204 A ILUSÃO DA JUSTIÇA A VERDADE PLATÔNICA 205

bem como numerosos outros poetas, todos os que se acham ma - de algo que existe numa esfera transcendente e que
impregnados de deus. O que eles dizem, porém, é o se- ali foi misticamente percebida, foi "vista" pela alma, anterior-
guinte - e presta atenção se parecem dizer-te a verdade: di- mente ã sua encarnação em um novo ser humano. Que o
zem que a alma humana é imortal e que parte periodica- conhecimento é possivel dessa maneira - e somente dessa
mente - o que chamam morrer -, depois retornando ã vida; maneira -, e que o objeto desse conhecimento são as idéias,
perecer, porém, jamais perece. Por isso têm os homens de especialmente a idéia do Bem, é a conclusão fundamental
levar uma vida a mais adorável possível aos olhos de deus". dessa doutrina da Mnemosine exposta no Mênon. Com base
Ao que, então, Sócrates cita os versos de Píndaro: na crença órfica na natureza sobre-humana e divina e na
preexistência da alma, Platão conclui que "a verdade sobre
Pois quem a Pers~/une paga penitência por antigos o Ser das coisas, nós a carregamos todo o tempo em nossa
(pecados, alma"." Essa verdade é, primordialmente, uma verdade mo-
Sua alma, ela lhe del'olve após nove anos, ral. "Assim", diz Sócrates a Mênon, "uma vez que concorda-
Alçando-a à luz do sol. mos ser necessário investigar aquilo que não se sabe, esta-
Lá, dessas almasfazem-se os príncipes soherhos, rias disposto a investigar junto comigo o que seja, verdadei-
(os governantes poderosos e os homens cheios de sahedoria, ramente, a virtude,"7" É o que importa acima de tudo. Para
Louvados para todo o sempre como sagrados heróis'"' conhecer a essência da virtude, isto é, do bem, defenderá
toda teoria racional do conhecimento, a doutrina segundo a
É a doutrina árfica da retribuição no Além - e a da qual o conhecimento é possível porque a alma do homem
transmigração da alma, a serviço desse mesmo princípio da seria capaz de lembrar as idéias que divisou antes de seu
retribuição - que compõe o núcleo da ética platônica. So- nascimento. Platão parece estar consciente do quanto, com
mente em estreita relação com essa filosofia moral embasa- essa teoria, está exigindo de um público não mais comple-
da na mística órfica é que se pode entender a doutrina que, tamente acrítico em questões religiosas. Pois, embora Sócra-
agora, Platão incumbe Sócrates de expor: "Oma veZ que a tes afirme enfaticamente, de início, que é uma "verdadeira"
alma é imortal, tendo renascido diversas vezes e visto tudo doutrina 7 ') o que proclama, após ter exposto tal doutrina
quanto há na terra e no Hades - em suma, todas as coisas -, "verdadeira", declara: "De resto, eu não desejaria avalizar
nada há que lhe seja desconhecido. Por conseguinte, não plenamente o que foi dito".8" O que defende, então, o Só-
admira que seja capaz, também com relação ã virtude e a crates platónico? "Que, na crença na necessidade de investi-
outras coisas mais, de lembrar-se do que soube outrora. Co- gar aquilo que não sabemos, sejamos mais hábeis e viris,
mo a totalidade da natureza tem vínculos íntimos, e dado menos indolentes do que na crença na impossibilidade de
que a alma tudo conheceu, nada impede que, lembrando- encontrar o que não sabemos e na inadmissibilidade de in-
nos de uma coisa - o que chamam aprender -, reencontre- vestigá-lo - eis aí o que defendo com todas as minhas for-
mos também todo o resto, bastando para tanto que não ças, com palavras e ações." Se é verdadeira essa teoria do
percamos a coragem e não nos poupemos do esforço inves- conhecimento, é incerto; certo é apenas que aquele /que a
tigativo. O buscar e o aprender nada mais são, afinal, que a adota torna-se "mais hábil e viril, menos indolente". E deci-
reminiscência"76 O conhecimento para o qual aponta Sócra- sivo não o seu valor em termos de conhecimento, mas seu
tes-Platão não é um conhecimento racional, mas metafísico- valor moral. E, já anteriormente, Sócrates dissera acerca da
religioso. Não é absolutamente conhecimento ativo, isto é, formulação erística de que não se pode investigar o que
conhecimento no verdadeiro sentido da palavra, que desig- não se sabe: "Ela tão-somente nos tornaria indolentes, soan-
na uma função produtiva do espírito; é "recordação" - uma do sem dúvida sedutora para os fracos. A minha, pelo con-
função por assim dizer passiva ou apenas reprodutiva da al- trário, instiga ao trabalho e à investigação. Tomo-a, pois,
206 A IWSÃODA/US71Ç'A A VERDADE PLATÔNICA 207

por verdadeira e, confiando nisso, pretendo investigar conti- para o germe de um homem; quando do seu renascimento,
go o que seja a virtude".'] Ela talvez nJo seja verdadeira no no entanto, será transplantada para o corpo de um animal,
sentido estrito da palavra, mas decerto é no sentido - talvez e jamais poderá novamente adentrar o corpo de um ho-
infundado - de que a crença em sua verdade nos faz virtuo- mem." Tamhém as almas que, em sua preexistência, divisa-
sos, e nos encoraja a investigar a essência da virtude. Essa ram algo do verdadeiro Ser, ao nascer de novo podem
verdade, a verdade platônica, é na realidade uma dupla ver- adentrar o corpo de um animal, e a partir dessa "condiçào
dade - uma verdade teórica e outra prática, ou pragmática. animal" pode aquele que "outrora foi homem alcançar no-
O que importa, porém, é somente esta última. vamente existência humana. Somente a alma que jamais di-
No Fedro, Platào amplia e aprofunda sua teoria elo co- visou a verdade não adentrará a forma humana. Pois o ho-
nhecimento, na medida em que nào se limita a explicar mem precisa compreender o que, de forma conceituaI e ge-
apenas como é possível o conhecimento - através da remi- nérica, é indicado como a condensaçào, numa unidade ra-
niscência -, mas também como é possível que exista em va- cional, das variadas percepções sensíveis individuais. Essa
riados graus. Ele esclarece aÍ"2 que as almas preexistentes compreensào consiste na reminiscência das coisas que nos-
chegam em diferentes medidas à visJo do verdadeiro Ser, sa alma outrora divisou (.. .)".S6 As almas que em sua pre-
que se encontra além da abóbada celeste, em um "lugar aci- existência nada divisaram do verdadeiro Ser sào incapazes,
ma dos céus"." As almas sJo apresentadas como carros ala- após sua encarnaçào em corpos humanos, de qualquer re-
dos, puxados por dois cavalos e conduzidos por um cochei- miniscência; e mesmo as demais, as que viram algo, somen-
ro, que seguindo Zeus e os demais deuses participam de te são capazes de tal reminiscência em graus variados, de
um passeio pela abóbada celeste. "Aquela que melhor se- acordo com a medida segundo a qual, em sua preexistência
gue um deus e a ele se assemelha ergue-se, juntamente no Além, divisaram o verdadeiro Ser. Nesse sentido, Platão
com a cabeça de seu cocheiro, até o espaço além dos céus, distingue nove graus diversos e, por conseguinte, nove ca-
participando do passeio enquanto, perturbada por seus ca- tegorias de homens, segundo'esse grau de capacidade de
valos (um dos quais, o ruim, compele-a para o mundo sen- sua memória. A alma que viu mais coisas tornar-se-á a do
sível), contempla com dificuldade aquilo que é; outra ora se verdadeiro filósofo; a seguinte, a de um bom rei, e assim
ergue, ora haixa novamente e, na medida em que os cava- por diante; no patamar mais haixo está a alma do tirano.
los impôem a sua vontade, divisa algumas coisas, mas n~lo Pelo que foi dito antes, anteriormente, tem-se de supor que
outras. Por certo, as demais almas, todas desejando erguer- essa é uma alma que vem para o Aqui "sem ter participado
se, vào atrás do séquito, mas sua força é insuficiente, de da visão do que é", uma alma que, "demasiado fraca para
modo que, nesse passeio, permanecem sob a superfície, pi- seguir as demais, nada divisou". Mais adiante, porém, e em
sando-se e empurrando-se, cada uma empenhando-se em contradição com o que dissera anteriormente, Platão diz:
passar à frente das demais. Disso resulta, em grande medi- "Por natureza, toda alma humana divisou o que verdadeira-
da, confusào, competiçJo e o suor da luta, de modo que, mente é; do contrário, não teria adentrado a forma humana.
por culpa do cocheiro, muitas parelhas se enfr~lquecem, No entanto, não é igualmente fácil a todas lembrar-se por si
muitas têm suas asas gravemente danificadas. E todas elas sós das coisas lá de cima a partir daquelas daqui embaixo:
retiram-se entào com grande dificuldade, sem ter participa- nem às que outrora as divisaram apenas brevemente, nem
do da visão do que é."'i Quando porém uma alma, "dema- às que se acidentaram por ocasião de sua queda na terra e
siado fraca para seguir as demais, nada divisa e, em decor- que, voltando-se para a injustiça, esqueceram-se do sagrado
rência do infortúnio, repleta do peso do esquecimento e da que outrora contemplaram. Restam assim poucas almas cuja
maldade, esmaga suas asas e cai no chào", essa, "em seu capacidade de recordação é suficientemente forte."" As di-
primeiro nascimento", nào deixará ainda de transplantar-se ferenças graduais na capacidade de rememoração - o que
208 A lLU)'ÃO DA]U57JÇA A VERDADE PLATÔNTCA 209

significa dizer na capacidade de aproximar-se do conheci- mento, e especialmente sobre a relação de um com o outro.
mento do verdadeiro Ser - expressam-se também em que, Sujeito do conhecimento é a alma - é somente por meio
segundo Platão, aqueles cujas almas, em sua preexistência, dela que o homem conhece _,')11 e a alma é um ente divino.
pouco divisaram do Ser verdadeiro, avançam apenas lenta- Já se citou anteriormente aqui a seguinte passagem das Leís:
mente para a lembrança do que viram, enquanto os outros "De tudo aquilo a que chamamos nosso, a alma é, depois
- cuja alma viu muita coisa em sua preexistência - experi- dos deuses, o que há de mais divino".')' Imediatamente após
mentam de imediato, ã percepção pelos sentidos de um be- essa afirmaçào, Platão faz a exigência de que se tribute à al-
lo corpo, a rememoração da idéia do absolutamente Belo ma respeito divino: "Quando, portanto, no tocante ao res-
divisado no Além."N peito, digo que depois dos deuses nossos senhores. e dos
É decisivo, nessa doutrina dos diversos graus da remi- seres a eles vinculados, tem-se de respeitar,'" em segundo
niscência e do indissociável conhecimento, que essa gra- lugar, a alma, esse mandamento justifica-se plenamente". A
da<;ão tem um caráter inteiramente ético. É a "culpa" do co- alma à qual, como a um deus, o homem dedica respeito
cheiro, a "ruindade" da alma que prejudica a visão do ver- não pode ser um ente idêntico à sua personalidade huma-
dadeiro Ser durante sua preexistência, e em conseqüência o na, mas há de ser um ente diferente desta, que é mortal -
conhecimento em sua pós-existência. Os variados graus nos uma espécie de espírito protetor ou demónio que, no ho-
quais o conhecimento é possível no Aqui são graus da mo- mem, desempenha a função do conhecimento.'); De fato, a
ralidade. Note-se, a propósito, que Platão atribui ao sensí- aima tem, provisoriamente, sua sede no homem; contudo,
vel, no Fedro, um papel bastante distinto do que no Fédon. enquanto permanece encerrada no corpo, não é capaz - ou
Aqui, o sensível é empecilho ao conhecimento do Ser ver- não é plenamente - do verdadeiro conhecimento: o huma-
dadeiro. Somente a alma que se liberta da esfera sensível no - o corpo - não a deixa ser. A alma, diz PlatãO no Fé-
do corpo é capaz de tal conhecimento - ou, pelo menos, don, só se apodera da verdade quando "nada de corpóreo a
de aproximar-se deste - ao longo ela vida humana. No Fe- perturba".'" O ato do verdadeiro conhecimento realiza-se
dra, contudo - assim como no Banquete -, o sensível é num espaço transcendente, não no mundo empírico em
condição para o conhecimento. É vendo as coisas perceptí- que vivem os homens. É a alma incorpórea - isto é, a alma
veis pelos sentidos, cópias das idéias, que as almas - ainda antes do nascimento e após a morte do ser humano que
que apenas umas poucas - recordam-se das idéias divisadas apenas temporariamente a abriga - que realiza esse ato do
no Além, e com essa recordação, embora somente "com di- verdadeiro conhecimento. Pois o único objeto real desse
ficuldade", reconhecem aquelas idéias: o Ser e o Bem abso- conhecimento não é a realidade empírica, em constante
lutos. É particularmente a visào da "beleza neste mundo" mutação, mas o Ser transcendente, eternamente imutável -
que desperta a lembrança da "verdadeira beleza", que a al- o val~)r absoluto, a idéia e, acima de tudo, a idéia do Bem.
ma divisou no Além, antes do nascimento do corpo. Essa Esse é precisamente o ponto que Platão sempre acentua en-
lembrança transforma-se em um encantamento, que os ho- faticameIlte. "Tudo quanto é real" - ou seja, o ohjeto do
mens tomam por aquele delírio "em razão elo qual dizemos verdadeiro conhecimento - "não admite a menor mudança":
de alguém que está 'apaixonado' ".B" Justificar moralmente t1ca "sempre Ilum único e mesmo estado, sem jamais admi-
esse estar "apaixonado", o Eros paiderastikos, como um ca- tir qualquer alteração".''' "Nem mesmo a possihilidade do
minho para o conhecimento do absolutamente Bom é a conhecimento pode-se, afinal, admitir c.. .), quando todas as
verdadeira meta do Fedra, como também do Banquete. coisas mudam e nada persiste."'" Qualquer conhecimento
O caráter profundamente irracional dessa teoria do co- racional, ou seja, qualquer conhecimento da realidade em-
nhecimento evidencia-se com particular nitidez naquilo que pírica por intermédio de UIlla razão meramente humana, é,
Platão tem a dizer sobre o sujeito e o objeto do conheci- pois - segundo essa teoria do conhecimento -, absoluta-
210 A ILUSÃO DA]USnçA A VERDADE PLATÓNICA 211

mente impossível. Platão denomina expressamente o co- que a questão de como o conhecimento é possível - de co-
nhecimento da alma, voltado para o Ser transcendente (o mo o sujeito do conhecimento chega a seu objeto e este
"conhecimento racional"), "uma espécie de iniciação sagra- àquele - permanece um mistério. A mística irracional busca
da". E, logo a seguir, lê-se: "Ao que parece, os instituidores solucionar o mistério fazendo com que o sujeito inclua o
das nossas iniciaçôes não eram gente desprezível, e na ver- objeto, ou este aquele - anulando, pois, a oposição entre
dade há tempos nos dão a entender que quem adentra o um e outro. Com isso, porém, o problema nào é resolvido,
Hades inexpiado e sem iniciação é destinado ao lodaçal do é dissolvido. Abandona-se o problema do conhecimento,
inferno, ao passo que o iniciado e expiado lá che';ando enquanto conhecimento humano. Como vimos, porém,
encontra sua morada entre os deuses. Pois <ão muit~s', di~ P!at:w nào vai tão longe. Ou, melhor dizendo: após ter che-
zem-nos os iniciados nos mistérios, 'os portadores de tirso, gado ao ponto de, no Fédan, negar o conhecimento huma-
mas poucos os bacantes'. Em minha opinião, porém, estes no, declarando possível apenas o conhecimento divino (ou
últimos nada mais são do que os verdadeiros filósofos".'" seja, o conhecimento da idéia divina pela alma, a ela apa-
Essa teoria mística do conhecimento é inseparável da reli- rentada e igualmente divina, liberta do corpo após a morte
gião órfica da paga no Além. e evadida para a esfera transcendental, de natureza idêntica
Somente a alma divina é capaz de conhecer o Ser supra- à sua), ele recua, e admite a existência de duas espécies de
terreno, a idéia, uma vez que o conhecimento só é possível conhecimento - o divino e perfeito, e o humano e imperfei-
entre assemelhados. A "iniciação" do conhecimento racional to, esse possível ao homem ainda em vida, em que o "fa-
dá-se unicamente porque a alma, como sujeito do conheci- zer-se semelhante adeus", necessário ao conhecimento,
mento, é idêntica ao objeto desse conhecimento (é "de natu- consiste apenas em "tornar-se justo e pio" 103 A imperfeição
reza idêntica"9H ã deste), assim como o olho somente é capaz do conhecimento humano e racional, porém, justifica sua
de ver o sol porque é, "de todos os órgàos, (...) o que mais empreitada de colocar uma verdade político-pedagógica ao
se assemelha ao so1."9') Chama a atençào que no firmamento lado e acima da verdade racional alcançada através desse
platónico das idéias não haja uma idéia da alma." liI Isso pro- conhecimento, dado que, afinal, a verdade absoluta e divina
vavelmente se explica pelo fato de a própria idéia ser "alma" há de ficar em segredo.
e, precisamente por isso, poder ser conhecida por esta. Nessa Isso é o que Platão acentua enfaticamente em sua Car-
teoria do conhecimento, anula-se a distinçào entre sujeito e ta VII, na qual, acerca do conhecimento do que "verdadei-
objeto, essencial para uma formulação racional do problema: ramente é","" esclarece que "nào se deixa exprimir através
o processo do conhecimento se apresenta como uma equipa- de palavras como outras ciências";"); que "nasce repentina-
ração do sujeito ao objeto lOI Levada às últimas conseqüên- mente do esforço conjunto e constante em torno do proble-
cias, essa teoria há de conduzir a uma identificação do sujei- ma e do convívio na alma, qual uma luz que, acendendo-se
to com o objeto, traduzindo-se o ato do conhecimento numa com a chispa de uma faísca, daí em diante alimenta-se a si
união de ambos. Tem-se aí uma concepçào típica de todo mesma". De tal experiência, porém, só é capaz quem é
misticismo - a unia mystica. 102 Se o único e efetivo sujeito "aparentado" ao Justo e, sobretudo, a todo o Belo; em natu-
do conhecimento verdadeiro é a divindade, então o objeto rezas "estranhas" a esse conhecimento, ele não pode "deitar
desse conhecimento também só pode ser a divindade. Deus raízes". "A partir dessas, ninguém jamais poderá apreender
só conhece a si mesmo; nada mais, exceto a divindade - ou, a verdade sobre Bem e Mal, se é que isso é possível." III',
na linguagem da doutrina das idéias, a idéia do absolutamen- Quem, entretanto, participa da experiência desse conheci-
te Bom -, é digno de tal conhecimento. mento conservá-la-á "oculta em seu íntimo", III' e nada es-
Tem-se de admitir que o problema do conhecimento creverá a respeito, como aliás o próprio Platão nada revelou
não é inteiramente resolúvel a partir de uma teoria racional; em qualquer dos seus escritos.[(IS
212 A ILUSÃO DA JUST7Ç'A A VERDADE PLATÓNICA 213

Segundo essa exposição, que o próprio Platão aí define 1ações como corpos, ou, mais exatamente, como substân-
como um "mito", 100 o conhecimento do Ser verdadeiro é um cias. Na medida em que teme ou busca alcançar certas qua-
ato místico, e inexprimível seu resultado. Na República, po- lidades, forças ou estados, ele toma por contagioso aquilo
rém,]]1) PlaLlo afirma que se pode atingir a verdadeira meta que teme ou deseja - isto é, o Mal ou o Bem; toma-o, pois,
do concebível (isto é, "o Bem, segundo sua própria essên- por uma substância emanante e sobretudo transmissível
cia") "somente através da arte da dialética", o que significa através do contato, da qual, portanto, o homem também
aí análise conceituai racional, ou seja, "por meio da mera pode libertar-se de alguma maneira mecânica. Assim, entre
atividade racional". E nada, nessa passagem, sugere que o os esquimós, quando os pais desejam que seu filho se tome
resultado desse conhecimento seja inexprimível, e deva forte, costura-se uma pedrinha retirada de um velho fogão
constituir um segredo. dentro da touca da criança, "pois o fogo é, de todas as coi-
Ao admitir dois caminhos distintos para o conhecimen- sas conhecidas, a mais forte; a velha pedra do fogão, porém,
to do absolutamente Bom - o caminho racional-dialético da resistiu por várias geraçôes ao fogo e há de ser, portanto,
República e o místico-irracional da Carta Vll - Platão estava ainda mais forte que ele. O homem que carregar consigo es-
operando, também aí, com uma dupla verdade l l l se amuleto terá uma vida longa e ser:l forte em meio à des-
Ji Aristóteles constatou ll2 ter P1at,lo entendido os cem- ventura". IIS É também bastante disseminado entre os povos
ceitos éticos - que Sócrates se esforçara em vão por definir primitivos o costume de curar doenças sugando-as ou por
- como entidades reais existentes numa esfera transcenden- meio de sangria. Não apenas as qualidades e estados do cor-
te, isto é, como substâncias, se não corpóreas, decerto espi- po, mas também qualidades morais - e até mesmo os atas
rituais. A concepção platónica da essência do conhecimento moralmente qualificados, como por exemplo um pecado co-
é de fato incompreensível, quando não se toma em consi- metido -, são concebidos como substâncias ligadas ou ine-
deração o realismo conceitua!,lU decisivo para toda a sua fi- rentes ao corpo do malfeitor.] Nisso assentam-se as cerimô-
1(,

losofia. Esse realismo conceituaI já se encontra na base da nias de purificação tão características da religião primitiva,
identificação parmenídica entre pensar e ser que int1uenciou bem como o costume bastante disseminado de libertar-se de
substancialmente a teoria platônica do conhecimento. Sen- um pecado ou da injustiça que se cometeu através da perda
do esta eticamente orientada, o conhecimento é conheci- de sangue, do cuspir e do escarrar. O mesmo sentido tem
mento do Uem, e conhecer o Bem é ser bom. Tem-se aí a também a admissão dos pecados, a confissão, observada em
tese platônica de que a virtude é saber." 4 O conceito é a muitos povos primitivos: a expuls,lo verbal do que se fez de
função específica do pensar; e, se pensar e ser são idênti- injusto, acompanhado às vezes de um escarrar de fato. Cas-
cos, o conceito há de ser algo real, com ele se alcança o sirer] caracteriza o pensamento mítico, diferenciando-o do
7
1

Bem real. A incapacidade de apreender como talo pura- lógico-causal, porque neste "o caminho" conduz "da 'coisa' à
mente ideal e, por conseguinte, a tendência a firmá-lo como 'condição', da concepção 'substancial' à 'funcional''', ao pas-
real, a imaginá-lo como substância, são elementos típicos so que, no primeiro, "também a concepção do vir-a-ser" per-
do pensamento prímitivo, que é essencialmente um pensa- manece "ligada ã da simples existência da coisa". Em outras
mento mítico. A melhor forma de caracterizar essa peculiari- palavras: enquanto o pensamento racional tende a diluir
dade do pensamento primitivo é como uma tendência ã substância em funçào, o pensamento mítico detém-se no
substancialização. Ela se manifesta no fato de o homem pri- substancial. Fundamentalmente, a personificação das forças
mitivo, contrariamente ao civilizado, não distinguir entre o da natureza e, particularmente, dos valores morais do Bem e
corpo e suas qualidades ou estados - ou seja, as forças que do Mal, tão característica de todos os mitos - sua apresen-
movem os corpos, as relações que guardam entre si -, mas tação como entidades pessoais, humanas e sobre-humanas,
conceber essas mesmas qualidades, estados, forças e re- a concepção de almas, espíritos, demónios e deuses bons e
214 A ILmÀO DA JU'iTIÇ'A A VERDADEPLATÔNICA 215

maus -, é produto dessa tendência à substancialização. Pois objeto e "sombra", Platão está pensando em termos inteira-
"pessoa" é substância: é a substância do Tu vivenciado de mente míticos. Para expressar a noção da "capacidade de
forma imediata e, mais tarde, do Eu. desligar-se e transmitir-se daquilo que é meramente qualida-
É a tendência à substancialização que conduz :1 doutri- de e esta cio" ,122 característica da tendência do pensamento
na das idéias e explica a predileç,10 de Platão por mitos an- mítico à substancialização, Karuz'" sugeriu a palavra "ema-
tigos e, em especial, pelos órficos, que utiliza ao expor o nismo". Segundo a doutrina elas idéias, uma coisa é o que é
que há de mais importante para sua filosofia moral: a imor- graÇ<ls ,1 parusia da idéia dessa coisa na prc)pria coisa isola-
talidade da alma e seu destino no Além. Essencialmente, es- ela. Tal p,lrusia da idéia é a emanação que a substância cem-
sa alma é a substância do Bem no homem; toda a doutrina ceitual irradia para a coisa isolada, conferindo-lhe assim a
platCmica da alma é um Lípico mito, aind:1 que ele próprio sua essência, na mediela em que solta algo ue si e o trans-
não a declare oriunda da religüo órfica. Também a própria mite à coisa. Portanto, é peculiaridade do pensamento míti-
doutrina das idéias é apenas um mito, embora em um nível co-substancializ,ldor que nele a causa é verdadeiramente
mais elevado que o primitivo mito órfico da alma. Assim co- coisa-causante, uma coisa, uma subst:mcia. Por isso, no re-
mo foi isso o que a alma personificou - ou seja, o Bem dOtl,l2' Platão ~ejeita o conceito de causa na ciência natural
substancializado como pessoa no homem deste mundo -, conforme desenvolvido por Anax{lgoras, e declara serem as
assim também a idéia central é a substância do Bem no ou- idéias - essas substâncias conceituais - as verdadeiras cau-
tro mundo, sendo, tanto quanto a alma, apresentada como sas uas coisas; afirma não haver "qualquer outro vir-a-ser de
pessoa. Assim, por exemplo, na já citada passagem da Re- alguma coisa senào pela participaçào na essência particular
pública,"" na qual a idéia do Bem figura como o pai invisí- daquilo a que pertence".'" A idéia do Bem é a coisa-causan-
vel cujo filho é o deus visível, o sol. Onde P!atào fala do te do Ser-bom, o que, para Platão, significa do Ser: das coi-
deus supremo como uma pessoa, é absolutamente impossí- sas que somente "sào" na medida em que participam da
vel distinguir essa pessoa da idéia do Bem. Nào é portanto substância da idéia .126 E, na Repúhlica,l2 c explica que a idéia
por acaso que - como ressalta Cassirer -, justamente no do Bem - isto é, a substância transcendida do Bem - "é a
pensador que retransmitiu para o Renascimento a doutrina causa ele tudo quanto é justo e bom, na medida em que, na
platónica, Giorgios Gemistos Plethon, a exposic;ão da dou- esfera do visível, gera a luz, a fonte e o senhor dessa (o
trina das idéias se misture de tal forma :1 sua própria doutri- sol)". Quando, por fim, pretende ter compreendido as subs-
na mítica dos deuses, "que ambas se fundem num todo in- tâncias conceituais como números e fala de números que
separável"."') Cassirer fala da "incapacidade do pensamento encerram em si misteriosas forç;as, também aí se evidencia o
mítico de apreender o meramente signitlcativo, o puramen- caráter inteiramente mítico do' seu pensamento. "Nessa ele-
te ideal",I2 e aponta como exemplo que, nesse pensamento,
O vação do número a uma existência e força independentes",
a palavra ou o nome nào apenas "designa" algo, mas "é" ou es~reve Cassirer,l2" "a forma básica da 'hipóstase' mítica está
"produz" algo - uma coisa. O que o pensamento mítico to- apenas se expressando num caso particular especialmente
ma por palavra e nome aplica-se aqui igualmente ao con- importante e característico." "Endeusamento e sacralizaçào
ceito. Para o primitivo, o nome de um homem é sua "alma" do número""') sào elementos típicos do pensamento mítico-
seu alter ego; trocar de nome significa para ele trocar de es~ religioso.
sência, pois é trocar de substância. Quem muda seu nome Nào é pois de admirar que alguns dos mitos de povos
assume uma outra personalidade. E, assim como o nome, primitivos sejam surpreendentemente parecidos com a dou-
também a imagem e a sombra de um homem são seu alter trina platónica das idéias. ,.\\) A concepçào religiosa de mun-
ego. 12' Quando apresenta a relação entre idéia e coisa isola- do dos primitivos freqüentemente se caracteriza por um dua-
da como aquela entre "imagem' primordial" e "cópia", entre lismo que - como oposiçào entre uma esfera real e outra
216 A VERDADE PLATÔNICA
217
A ILUSÃO DA JUSTIÇA

ideal - lembra em muitos aspectos a metafísica platónica. essas são para o Marind expressões da alma do arco, quali-
Esse dualismo surge com particular nitidez nos mitos dos dades e funçôes advindas do arco-dema. Estas, por sua na-
Marind-anim (sul da Nova Guiné holandesa), por exemplo. tureza, podem ser reencontradas em todo arco p~roduzido
O mundo das idéias é ali o dos ancestrais míticos, dos a partir do arco original, do arco-dema (. ..)"'\2 "Alem diSSO,
duma, que, embora precedendo temporalmente o mundo todo ohjeto tem não apenas uma designação usual ( .. J,
da realidade, de algum modo segue existindo concomitante- mas, em gec.lI, também um nome verdadeiro e real C,.), o
mente, atrás ou acima dele. Wirtz'OI assim apresenta o mito nome-duma (demaigiz, dema-igiz), visto que este corres-
de duma: "Os antepassados dos Marind, bem como dos de- ponde ao nome do dema (o criador do qual se originou es-
mais homens e de todos os seres vivos, foram, num passa- se objeto), e esse dema existe ainda etetlvamente em algu-
do distante, os dema (. .. )." Estes são também chamados ma parte." Segundo cré Wirtz, "poder-se-ia pois, por um
amai, ou seja, avós, antepassados. "Tudo quanto hoje existe momento, pensar na doutrina platónica das idéias, embora
teve sua origem nos dema. Uma parte deles metamorfoseou- ~l comparaç'ão seja bem longínqua" ,'\< A semelhança, entr~­
se em animais, plantas e outros objetos; outra parte foi cem- tanto, é bem maior do que \X!irtz ousa admitir. As coisas reaIs
cebida e dada ã luz pelo duma, e criada por este de um ou- são cópias mais ou menos déheis de seus derna - sua ori-
tro modo, como hoje não mais ocorre (. .. ) Assim, é com- gem; as qualidades das coisas reais, a conseqüência, de sua
preensível inclusive que tudo possua uma alma, na medida "participação" nos modelos, da presença (napou01a) dos
em que se dotou cada objeto de certas forças anímicas, her- modelos nas coisas. Acertadamente, Lévy-Bruhl fala em
dadas de seu criador. 'Tudo é dema' , costuma dizer o Marind uma "participaticm entre l'objet et le 'dema'" U4 Essa'partici-
quando lhe perguntam acerca da alma." Uma vez que tu- paliem" corresponde inteiramente ã J.lÉt}f,çtç platónica, ã ~ par-
do quanto existe presentemente remonta aos antepassados ticipação na idéia. O mito platónico da alma. te~ notavelS
míticos, aos invisíveis dema, há em todas as coisas algo de paralelos na mitologia primitiva, como na rehgtao dos Ba-
seus criadores. Wirtz expõe esse aspecto do mito de duma tak da Sumatra. Do t07zdi, a alma da vida - a alma morta e
dizendo que não apenas os homens e os animais, mas re;ascida de um antepassado -, afirma-se, segundo nos co-
"também outros objetos, são débeis cópias do duma (cria- munica \X!arneck,us a partir de uma anotação de um nativo:
dor)". E não são somente os ohjetos da natureZa que têm "Todo tondi, antes de sua descida ii terra, reclama e recebe
sua origem nos dema como seus verdadeiros criadores e de Mula dagdi (ou Bataru guru, segundo outros) o destino
modelos, mas também as coisas produzidas pelos próprios do homem que pretende animar. Somente então ele se faz
homens, pois "na hase de todos os objetos está a imagem homem no ventre materno. Sendo ele quem solicita para SI
do duma, a partir da qual, por geração direta ou transfor- próprio um determinado destino, deus não tem culpa se o
mação, eles são produzidos". Esse é o caso do arco, por tondi não escolher o Hem, pois o destino que quer ter ele o
exemplo, que desempenha importante papel na vida dos escolbe a seu bel-prazer. Deus oferece-lhe todas as opçôes".
Marind. O arco concreto, usado pelo Marind, parece-lhe Platãol;{, incumbe Er - o panfílio ressuscitado que viu as al-
uma cópia do arco primordial, do arco-ideal, do arco-dema, mas no Além - de narrar o seguinte: "Um profeta ( .. J as po-
do qual - por transformação - se originou. "Emhora tenha sicionou [as almas] primeiramente uma ao lado da outra, a
sido confeccionado pelas mãos do homem, o Marind sem- uma distância adequada; depois, tomou do colo de Làquesis
pre vé no arco a cópia daquilo que lhe deu origem: o arco- os destinos e modelos de vida, subindo a um palco elevado
dema. Com a imitação do dema, uma substância ou força e falando da seguinte forma: 'Eis o que vos anuncia a filha
anímica passou, de certo modo, do arco-dema original para a da Necessidade, a virgem Láquesis. Almas efémeras! Este é o
arma (. .. ) A elasticidade, a força do arco distendido para ar- começo de uma nova revolução portadora da morte para
remessar a flecha, para matar o inimigo ou o animal - todas vossa' raça mortal. Vossa sorte não será determinada pelo
218 A ILU5ÃO DAjU57JÇ:4 A VERDADE PLA TÓNICA 219

demónio, mas sereis vós a escolher o demónio C..) A culpa conhecimento lógico-racional, visto a partir do qual o mito
cabe àquele que escolhe; deus é inocente.' "137 é uma mera "fábula", mas, ainda assim, uma "verdade" de
um grau inferior. Os intérpretes que afirmam que Platão so-
mente admite como verdade a verdade dialética - tomando
Capítulo 34 ele próprio o mito por mera fábula na qual, por razôes p~lí­
A "verdade" dos mitos platónicos tico-pedagógicas, deseja fazer crer a grande massa dos na~­
filósofos - e.stl0 em f1agrante oposiçào com a apresentaçao
Uma vez que, na exposi(,'ào de sua filosofia - e de do mito no Górgias. Sócrates dirige sua reiterada afirmação
porçc)cs especialmente importantes dela, como ;1 doutrina de que o mito é "verebdeiro". e não mera estóri~l da caro-
da alma -, Platào usa certos mito,; extraídos dos órficos de chinha, a três pessoas que designa "os mais sábios dentre
outras fontes ou, em maior ou lnenor grau, de autoria' do todos os gregos". f: possível que isso seja irónico, mas não
próprio filósofo, não é supérfluo para o conhecimento de se pode negar que os três eram representantes da mais ele-
sua concepção ela essência da verdade averiguar de que vada camada da inteligência. O que dLterenCla a verdade
maneira terú ele próprio entendido os mitos que apresenta. platónica da verdade do pragmatismo é que, contrariamente
No (;(Ílgias, Platão incumbe Sócr:ltes de expor o mito órfico aos pragmúticos, Platão nào toma a vereia de UOlcarnente co-
da paga no Além qLlal uma "f;'ibub", "uma estória muito be- mo sinónimo de utilidade, mas, paralelamente a essa verda-
la, a qual tu (Cálic!es, o racionalista) provavelmente tomarás de, admite também uma outra, cujo critério é outro que nào
por uma lenda, mas que eu tenho por um relato. Vou, pois, o da utilidade - ou seja, opera com uma dupla verdade.' ii
apresentar-te como verdadeiro o que tenciono contar-te".''" No Mênurt, Sócrates expôe o mito da preexistência da
Após ter narrado o mito, Sócrates afirma: "Eis aí, Cálicles, () alma como uma doutrina preconizada por "homens e mu-
que ouvi contar c tomo por absolutamente verdadeiro,""') lheres versados nas coisas divinas (...), sacerdotes e sacer-
Mais adiante, Sócrates mais uma vez assegura: "Pois eu, dotisas que vétlorizam o fato de poderem prestar contas, so-
Cáliclcs, estou convencido da verdade dessa estória (.... )". bre seu ofício" - referindo-se aqUi, evidentemente, aos orfl-
Contudo, sugere nào excluir ele próprio a possibilidade de cos -, e por poetas como Píndaro, "impregnados de deus".
considerar o mito da paga uma mera "f:ibula", ou seja, de Essa pregação, ele a designa expressamente como "verda-
tomá-lo por não verdadeiro. Diz: "Talvez creias ser isso uma deira' segundo me parece, e bela". E nessa doutnna, que
fábula, sabedoria de velhotas, sem qualquer importância pa- contrapõe à concepção de que não se pode investig~r o
ra ti. E, de fato, essa repulsa seria perfeitamente compreen- que não se sabe, Platão explicita: "A minha, pelo contra no,
sível, caso nós, através de dedicada investigaçào, pudésse- incita ao trabalho e à investigação. Tomo-a, P01S, por verda-
mos encontrar algo de melhor e mais verdadeiro que isso. deira (... )"."2 Mais adiante, porém, declara: "De resto, não
Vês, entretanto, que vós três - tu, Polo e Górgias, que sois °
desejaria avalizar plenamente que foi dito. Que, no entan-
hoje os mais sábios dentre todos os gregos - não sois capa- to na crença na necessidade de investigar o que não sabe-
zes de provar que se há de preferir outra vida àquela que m;)s, sejam~)s mais h{lbeis e viris, menos indolentes do que
mostra-se proveitosa também para o Além"."" Porque é na crença na impossibilidade de encontrar o que não sabe-
"melhor", o mito é "mais verdadeiro" do que qualquer outro mos e na inadmissibilidade de investigá-lo - eis aí o que
ensinamento quanto à maneira de viver; e é "verdadeiro" defendo com todas as minhas forças, com palavras e ações".I\.J
porque, por seu intermédio, "pode-se provar" algo "provei- O mito é "verdadeiro" porque a crença em sua verdade nos
toso", e proveitoso para o Além - o que, nesse caso, signifi- faz viris e ativos. De um ponto de vista não-ético, porém,
ca "mora!". Essa "verdade" do mito, porém, não exclui uma pode não ser verdadeiro. Também aqui evidencia-se a du-
outra, uma verdade de um grau mais elevado: a verdade do pla verdade de Platão. Assim, nâo é por acaso que, preClsa-
220 A ILUSÃO DA/USVÇ'A A VERDADE PLATÔNICA 221

mente no Mênon, ele desenvolva a teoria de que, embora o velmente certo quanto isso, que todas essas concepções -
verdadeiro saber - a episteme - e a mera opindo - a dOX{4- a do Belo, a do Bem e todas as demais que acabaste de
sejam distintas, existe uma "opinião correta", a qual, "como mencionar - s;lo dotadas do mais verdadeiro Ser. Essa
guia de toda ação, n~lo conduz ã meta de forma menos comprovaçào me basta". E Símias acrescenta que até mes-
apropriada do que o saber" e, portanto, "em valor, não fica mo Cebes, que estaria "particularmente em dúvida quanto
atrás do saber nem é menos útil para a aç<lo"; I" e de que os às razões apresentadas", teria igualmente "se convencido
estadistas de posse não do verdadeiro saber, mas da opi- suficientemente (... ) da existência de nossa alma antes do
niào correta, "no que concerne à sua rela<;ào com a efetiva nascimento",' '" O mito da preexistência da alma representa,
compreensào, nào sào em nada melhores do que o,s adivi~ pois, "sem sombra de dúvida", um sublime "conhecimen-
nhos e os videntes tomados de fervor divino, Também es- to", uma "prova convincente". E, no tocante à doutrina da
tes, afina!, anunciam coisas verdadeiras, e, alüs, em abun- reminiscência - ligada substancialmente ao mito da preexis-
dância, sem no entanto disporem da efeti va compreensào tência da alma -, Platão assegura pela voz de Símias: "0
do que dizem", II' Temos absoluta consonância com isso discurso acerca da reminiscência repousa sobre um funda-
quando, no Crítias - sobre o relato dos sacerdotes quanto à mento realmente digno de confiança. Pois dissemos que a
partição da terra pelos deuses e <I fantástica lenda da Atlàn- existência de nossa alma antes de sua entrada no corpo
tida -, Platào afirma que ambos conteriam estampados em nos é garantida com toda segurança porque ela está na
si o selo da credibilidade e da verdade, !II, posse da concepçào da entidade a Cjue chamamos 'o que
No Fédon, Sócrates afirma crer na verdade dos sonhos. realmente é'. Como estou convencido, eu aceitei isso ple-
Diz ter composto poemas na prisão porque os sonhos o te- nalnente" ."')
riam exortado à atividade poética, e ele considera va como Tendo Símias admitido estar a preexistência da alma
um pecado a desobediência a essa determinaç~10, Coloca a convincentemente comprovada, Sócrates explica que, se a
poesia e o mito num mesmo nível, dizendo: "Como eu não alma existe antes do nascimento, deve existir também após
era um inventor de mitos, coloquei em versos, depois do a morte: "Se antes, pois, a alma já é, e se, adentrando o cor-
hino a deus, as fábulas de Esopo que tinha ã mào e conhe- po e nascendo, não nasce de outra coisa que não da morte
cia bem".!I" Ao mesmo tempo, porém, afirma que um ver- e do est;rr morto, então tem necessariamente de ser também
dadeiro poeta ''tem de compor coisas inventadas, e mio reais". depois da morte, uma vez que deve renascer. Portanto, co-
Nesse contexto, o mesmo lú de valer para o mito, Assim, mo disse, já se tem aí a plena comprovação"."" Do mito da
também este apresenta somente inven<';cJes, e nada de real. preexistência da alma decorre - através do mito do renasci-
Por que, ent:lo, Sócrates acredita que deve seguir a deter- mento, isso é, do mito órfico da transmigração da alma - a
mina<,;:lo dos sonhos, de compor apenas coisas inventadas( verdade da pós-existência dessa mesma alma, Platão asse-
Porque, ainda que o sonho - do ponto de vista da vida real gura pela voz de Sócrates que o mito órfico da alma .apre-
- não seja uma realidade, contém alguma verdade. E assim senta a "plena comprovação" disso. A seguir, porém, diz
é também com o mito, Com referência ;l doutrina da pree- que, aparentemente, Cebes e Símias desejariam discutir
xistência da alma - que é, em essência, um mito -, Platão mais profundamente a questão da existência da alma após a
faz Símias dizer: "Sem sombra de dúvida, meu caro Sócra- morte, "corno se nutrísseis o medo infantil de que o vento
tes, a necessidade é a mesma em ambos os casos, Em mui- possa, ;1 sua saída do corpo, soprar a alma para longe", o
to boa hora conduziu-nos a nossa investigação ao conheci- que seria um ensinamento bastante disseminado, Lê-se,
mento de que, antes do nascimento, o Ser de nossas almas. entào: "Cebes riu e disse: pois tenta corrigir-nos, Sócrates,
está intimamente unido ao Ser dessa entidade sobre a qual como se tivéssemos medo. Talvez, porém, não se trate sim-
estás falando (a idéia). Pois, para mim, nada é tão indubita- plesmente de termos medo, mas de ainda abrigarmos real-
223
222 A ILUI'ÃO DA}USTIÇ'A A VERDADE PLATÔNICA

na verdade, nossas almas deter-se-ão no Hades". l'J E Cebes


mente, dentro de nós, uma criança que teme isso. Busque-
assegura: "De minha parte, Sócrates, nada teria a dizer em
mos pois levar essa criança a não temer a morte qual um
contrário e estou plenamente convencido de tuas razões".
bicho papão. - Teríeis então, disse Sócrates, de procurar
Como, n'o entanto, Símias ainda não parece estar inteira-
curá-Ia todo dia com fórmulas mágicas, até que a tenhais
mente convencido, Sócrates apresenta o seguinte argumen-
curado de fato. - Mas onde, perguntou Cebes, haveremos
to em favor da veracidade da doutrina da imortalidade: se a
de encontrar um bom exorcista, uma vez que estais prestes
alma não continuasse existindo após a morte e se, portanto,
a nos deixar'l Sócrates: A Grécia é grande, Cebes, e nela há
não houvesse a retribuição no Além, "seria um bem-vindo
muitos homens excelentes, e grande é também o número
presente para os maus, quando morrem, libertar-se não
dos povos hárbaros; tendes de examiná-los todos a fim de
apenas do corpo, mas, juntament~ com este,. da maldade
achar tal exorcista, e não poupai aí dinheiro ou empe-
apegada ã sua 31m3".'" O homem nao tena motivo sufiCiente
nho".I" Seguem-se, então, provas da existência da alma in-
para, ao longo de sua vida, esforçar-se_ por ser bom. O lmto
dividuai após a morte do corpo que provisoriamente a abri-
é verdadeiro porque, se não fosse, nao havena JustIça - o
ga - provas, no entanto, também da verdade de um mito
Mau seria recompensado e nada haveria neste mundo que
que aqui é designado "fórmula mágica" para tranqüilizar a
o inibisse. Portanto, o mito é verdadeiro porque garante a
"crian~'a dentro de nós", para libertar-nos do medo infantil
justiça. Quando, porém, Sócrates põe-se a definir as regiôes
da morte. A verdade desse mito é emhasada em seu efeito
nas~iuais a paga no Além se concretiza, diz que "expor as
curativo. Na seqüência do diálogo, e com referência ã dis-
razões sobre a veracidade desse ponto de vista [acerca des-
cussão da questão sobre se a alma seria harmonia e, portan-
to, se pereceria juntamente com o corpo, Sócrates diz: "Não sas regiões] é tão difícil que me parece exceder até mesl11?
3 arte de Gláucon [uma frase não inteiramente compreensl-
me esforçarei para que meu ponto de vista [o da existência
vel]o Dificilmente eu estaria em condições de fazê-lo, e,
da alma após a morte I pareça verdadeiro aos presentes -
mesmo que dispusesse do necessário saber para tanto, ~í­
para mim, ao menos, isso é inteiramente desimportante -,
mias, creio que não haveria tempo suficiente para essa diS-
mas sim para que pareça absolutamente verdadeiro a mim
cussão". ," Ainda assim, Sócrates começa a descrever essas
mesmo. Isso porque, meu caro amigo, penso da seguinte
regiôes. Ao falar, porém, dos "esplendores" do "mundo su-
maneira - e podes reconhecer aí minha disposição egoísta:
perior", pede permissão para proceder a, uma "descnçao
se o que digo é verdadeiro [ou seja, que a alma continua vi-
lendária": "vale a pena ouvi-la". tõ(, E, apos conclUlr essa
vendo após a mOlte do corpo], então é bom estar convenci-
"descrição lend[nia" com a exposição do julgamento do~
do disso; se, no entanto, o morto nada tem a esperar, enLlo,
mortos, diz: "O que acabei de expor, Simias, certamente ha
pelo menos, não estarei importunando os presentes com la-
de nos estimular a empregar todos os meios para que, em
múrias, nestas derradeiras horas que antecedem a minha
vida, façamos nossas a virtude e a compreensáo racion,al,
morte. Minha ignorância, porém, não durará muito tempo -
pois magnífico é o prêmio, e grande a esperança. Em
pois isso seria ruim -, mas desaparecerá em hreve". ';c Não
se exclui aqui a dúvida sobre a veracidade do mito da imor- questões dessa natureza, decerto náo fi~arJ bem a um ho-
mem que pens3 racionalmente querer afmnar a verdade ab:
talidade. Se, contudo, somente o próprio Sócrates acredita
soluta do que expus. Que isso ou algo semelhante se da
na imortalidade, isso ao menos resulta no benefício de não
com nossas almas e suas moradias - visto que a imortalida-
importunar os presentes com lamúrias. Exprimindo-o de
de da alma está acima de qualquer dúvida -, deveria ser
forma genérica: ainda que não seja objetivamente verdadei-
uma crença legítima, ~I qual vale a pena ousar entregar-se. A
ro que a alma é imortal, a crença subjetiva traz grandes van-
ousadia é bela, e, para sua tranqüilidade, o espírito reclama
tagens. Mais adiante, entretanto, Sócrates diz: "Indubitavel-
tais concepções, que funcionam como féJrmulas mágicas;
mente, portanto, Cebes, a alma é imortal e indestmtível, e,
224
A ILUSÃO [)AIUr:;TIÇ'A
A VERDADE PLA TÔNICA 22')
por isso demoro-me já tão longamente nessa descrição len-
dária". li] Para um homem que pensa racionalmente'::' isto é, empreitada. E a razão disso, meu caro amigo, é que ainda
do ponto de vista do conhecimento lógico-racional ou cien- não sou capaz - seguindo o orJculo délfico - de conhecer
tifico -, o mito da imortalidade da alma nada mais é do que a mim mesmo. E, enquanto permanecer ignorante de mIm
uma "crença" com efeito curativo. Ainda assim, a imortalida- mesmo, parece-me ridículo investigar coisas que n;10 me (h-
de da alma, desprovida de sentido sem a paga no Além zem respeito. Por isso, deixo estar essas estonas, e, acolll-
(pois é sustentada unicamente em função dessa paga no panhando a opinião tradicional a esse respeito, busco: co-
Além), está "acima de qualquer dúvida", ou seja, é uma ver- mo acahei de dizer, não investigar tais coisas. mas slln a
dade; nào a única verdade possivel, mas a verdade do mito mim mesmo (...).""" Abdicando de interpretar racionalmente
situada ao lado (ou mesmo acima) da verdade racional' o mito S(Jcrates admite - CHI, ao menos, nào nega - acreeh-
científica. No Pedro, onde Platão expôe em cores vívidas ~ tar nel~. Porque disse logo de início que, se nele n,10 acre-
com grande força dramática o mito da preexistencia da al- ditasse, interpretá-lo-ia racionalmente, retletindo .bem. As-
ma, fala-se logo de início de um mito da religião estatal tra- sim, deixa estar a estória, o que por certo sigllltrca que a
dicional: a lenda do rapto de Orítia por Bóreas. Perguntado aceita como ela é. Esse episódio, que nada tem a ver com o
se cre que "essa velha estória é verdadeira", em vez de res- verdadeiro conteúdo cio di;:ilogo, talvez não tenha sld(~ po~­
ponder Gltegoricamente, diz Sócrates: "Suponha que, como to inadvertidamente em seu início. O cerne do hedro e, atr-
os sábios, eu nào acredite nela ~ o que decerto nno seria nal, o mito platónico da preexistência da alma. E deste, com
desahonador para minha inteligencia. Diria então, refletindo referência ao "lugar acima dos céus" onde as almas lInort~ls
bem, que um sopro do vento nortc derrubou a donzela das divisam "o que está além do firmamento" - ou seja, o Ser
rochas pr<Jximas (..) e uma vez que, desse modo, ela en- absoluto, que é, ao mesmo tempo, o absolutamente Bom e
controu a mune, foi dito que teria sido arrebatada por Bó- a verdade absoluta -, Plat;lo diz: "No tocanle ao lugar aCIma
reas"."8 Essa é a interpretaçào que "os sábios" J,lo ao mito, dos céus, porém, nenhum poeta o cantou dignamente aquI
ou seja, a interpretação racionalista. Mas Sócrates rejeita de- emhaixo nem jamais o fará. Mas assim é. Tem-se ao menos
Clchdamente essa interpretaçào embora ))nO fosse, como diz de tentar dizer o que é verebdeiro, cspecialmente quando
desahonadora para sua "inteligencia". Obviamente ele nà~ se pretende fa la r da verdadc". "," Quando, logo no início do
preza essa inteligência, cuja função descreve como um me- Fedro Platão enfatiza que nào se deve interpretar raC1onal-
ro "refletir bem". "Sinceramente, Fedro, acho explica(,:àes ment~ os mitos - nem mesmo os da religião estatal tradicio-
desse tIpO verdadeiramente bonitas, mas exigem demasiada nal -, mas aceitá-los como se apresentam, talvez o faça por-
arte (é esfor(,'o, e quem se propôe a dá-las não é propria- que nào deseja ter seu milo da alma interpreta~lo raCional-
mente digno de inveja, pelo menos na medida em que terá mente. Porque, submetido a uma interpreta(,'ao raClo~al,
necessariamente ele explicar tamb{'m em conformidade com pouco restaria dele. Esse mito, assim n?s ~lssegura o, fll,o~?­
a ra:do, além dessa estória, as figuras cios hipocentauros e a fo é "verdadeiro". Mas essa verdade nao e aquela de) razao
da Quimera; e, para além destas, avizinha-se ainda toda "q'ue reflece bem", a qual, desde o início do diálogo, Platão
uma torrente de fenómenos aparentados - Górgonas, Péga- esforça-se por desacreditar. .
sos e outras criaturas maravilhosas e notáveis _, impressio- Na Repúhlica, Platão faz um ataque violento aos mlto~
nantes tanto em quantidade quanto em singularidade. Quem da relio-i;10 estatal tradicional. O que tem a censurar neles e
reage com incredulidade a essas figuras, buscando explicar que sà~ mentirosos. Mas não os define como mentirosos do
cada uma delas segundo as leis da verossimilhança, terá de ponto de vista da investigaçào racional da verda~le - ~)l\ se-
empregar muitas horas livres no exercício de sua sabedoria ja, não porque o que dizem sobre os deuses. nao cOlllcrde
vulgar. Eu, porém, nào disponho de hor;ts livres para tal com a realidade, mas porque relatam cOIsas unorals a seu
respeito. Diz, pois, significativamente: "Ainda que fossem
227
A VERDADE PLA TÔNICA
226 A ILUSÃO DA]USTIÇ'A
és capaz de encontrar uma possibilidade de fazê-lol Gláu-
verdadeiros, .não deveriam ser contados diante de pessoas con: Não, ou, pelo menos, não no que se refere aos CI-
msensatas e Jovens; seria preferível que se silenciasse a seu dadãos de hoje; mas sim, provavelmente, a seus filhos e
respeito (. .. )".11>1 Platão não nega, portanto, a possibilidade descendentes, bem como aos demais homens do futuro. Só-
de que os deuses tenham efetivamente cometido os atas crates: Mas isso já produzirá um bom efeito, no sentido de
imorais relatados nos mitos. Ainda assim, afirma: "Como a cuidarem com maior zelo da cidade e uns dos outros. Sim,
divindade é na realidade, assim tem-se sempre de represen- pois mais ou menos entendo o que queres dizer. E as co~­
tá-Ia". E a divindade é, "na verdade, boa", razão pela qual sas podem, então, tomar o rumo que a crença na nOssa fa-
se~ deveria atribuir-lhe somente o Bem: "para o Mal, ao con-
bula pressupõe". "" Essa fábula precisa, pois, ser contada aos
trano, deve-se procurar outras causas, jamais a divindade". ,("
homens por causa de sua "boa influência".
Tudo isso Platão expõe naquele segmento da República que O segundo mito utilizado por Platão também na Repú-
trata da educação da classe dominante. Somente quando os blica é a estória do panfílio Er, ressuscitado da morte, sobre
mItos apresentam a divindade como boa é que são "verda- a retribuição no Além. "i, Precede esse mito a afirmação de
deiros"; mas essa verdade, a verdade dos mitos. é evidente- Sócrates de que, já nesta vida, justos e injustos serão recom-
mente pensada apenas como verdade político~pedagógica. pensados e punidos pelos deuses. Em seguida, Sócrates diz:
PreClsamente nesse mesmo contexto, Platão desenvolve a "E no entanto, em plenitude e grandeza, tais bens de natu-
doutrina das mentiras genuínas e inadmissíveis e daquelas reza magnífica e duradoura nada significam, se comparados
"curativas", "úteis", "bem-intencionadas", e portanto admis- àqueles que aguarelam justos e injustos após a morte. Tem-
síveis, indicando então os mitos que representam a divinda- se contudo de ter conhecimento também destes, a fim de
de como boa - que acabou de declarar "verdadeiros" - co- que ambos, o justo e o injusto, ouçam o que, por força da
mo mentiras úteis. "E não é assim com as fábulas há pouco argumentação, lhes é devido, como pagamento por sua cul-
mencionadas? Como não conhecemos os fatos desses acon- pa"
.'(,7 Segue-se a narração de Er. Para que os homens sejam
tecimentos do passado remoto, moldamos a mentira de for- incitados a levar uma vida justa é necessário que "ouçam" o
ma a que se pareça o múximo possível com a verdade, as- que os aguarda no Além. Por essa razão, tem-se ele "ter co-
sIm tornando-a úti\."l(,ó O próprio Platão faz uso, na Repúbli- nhecimento" dos acontecimentos no Além. E esse conheCl-
ca, de dois mitos dessa natureza. O mito dos três metais menta provém de uma personalidade misteriosa, cuja nar-
empregados por deus na criação do mundo - que, mais ração, do ponto de vista do conhecimento racional, nào
adiante, será analisado em maior detalhe -, ele o introduz pode reivindicar qualquer credibilidade. Platã?, no entan:?,
com as seguintes palavras: "Sócrates: Que possibilidade ha- relata-a como verdadeira. Terminada a narraçao, ele faz So-
v<:ria ele tornar crível de preferência aos governantes, ou, se crates dizer: "Pai assim, ó Gláucon, que essa história se sal-
nao a estes, ao menos aos demais cidadãos, uma inverdade vou e não pereceu. E poderá salvar-nos também, se lhe der-
daquele ti~o indispensável de que falávamos há pouco, ou mos crédito; felizes atravessaremos, entào, o rio do Letes
sep, uma unica e absolutamente bem-intencionada mentira? sem macular nossa alma. Pelo contrário: se meu conselho
Gláucon: Que espécie de mentira l Sócrates: Não algo que for seguido, convencidos de que a alma é imortal e capaz
nos seja mtelramente desconhecido, mas uma estoriazinha de suportar tudo quanto é ruim e tudo quanto é bom, have-
fenícia, coisa jú acontecida em muitos lugares no passado - remos de percorrer sempre imperturbáveis o caminho para
como dIzem os poetas, obtendo assim crédito para suas pa- o alto e, embasados na correta compreensão, exerceremos a
lavras -, mas que jamais ocorreu em nossa época e dificil- justiça de todas as maneiras, de modo a viver em paz e har-
mente poderá ter ocorrido. Torná-Ia crível exiae b , porém ,
monia conosco e com os deuses, enquanto permanecermos
gran d e capacidade de persuasão".'''' E, após ter contado a
aqui nesta terra; e, depois de termos ganho os prêmios da
estória, Sócrates pergunta: "Tornar-lhes crível essa estória -
229
A VERDADE PLATÓNICA
228 A ILwAo DA IUSTIÇA
zer, a pumçao: ser mau é uma pumçao. Como, porém, os
justiça, como os vencedores dos jogos que andam em volta maus decerto não podem compreendê-lo, Sócrates prosse-
recolhendo as prendas da multidào, tanto aqui como na via- gue: "Se, contudo, dizemos a eles" - e Sócrates enfatizou há
gem de mil anos que descrevemos, haveremos de ser feli-
pouco ser necessário "dizer-lhes a verdade"- "que, se não
zes". ",,' Essa história "salvou-se" e pode "salvar-nos" tam-
renunciarem à sua sabedoria mundana, tampouco os aco-
bém, se acreditarmos em sua verdade; se -- seguindo o con-
lherá após a morte aquele sítio livre de todo o mal, e, ade-
~elho de Sócrates - estivermos "convencidos" de que a alma
mais, que aqui embaixo terào de levar uma vida correspon-
e nnortal e conseguirá atravessar imaculada o rio do Letes, dente ã sua conduta, ou seja, serão, como malteltores, ator-
uma vez que, no Além, ela está sujeita à paga. Sem a paga mentados pelos males, isso lhes soará - a esses patifes
no Além, o mito da permanência da alma após a morte n;10 mundanos _ verdadeiramente como o palavrório de sabe-se
tem sentido. lá que tipo de tolo" .'-' O mal do qual os malfeitores não po-
No Teeteto, Platào nào parece disposto a servir-se da dem escapar só pode ser o que os aguarda apc)s a morte;
verdade mítica, Ele interpreta de uma maneira inteiramente
pois que no Aqui conseguem escapar da paga por seus cn-
racionalista a "fuga" para o Além que, no pedem, significa a mes, isso Sócrates acaba de reconhecer. Nessa passagem
morte, VIsto que somente libertando-se do corpo faz-se a al-
afirma-se, como "verdade", portanto, o mito da paga no
ma tào semelhante ao Bem divino, que é capaz de divisá-lo, Além, embora do ponto de vista da "sabedoria mundana"
"~ fuga, porém, consiste no fazer-se o mais semelhante pos-
SIVel a deus; tornar-se semelhante a ele significa tornar-se ele possa ser visto como tolice. . .
No Político, Platão chama inicialmente o mIto alI ex-
justo e pio com base na correta compreensào", ",') Aqui, dei- posto de "uma espécie de brincadeira", uma "Ie~da" de cujo
xa-se ,de lado o mito do Fédo11. da contemplaçào pela alma, "auxílio" necessita para chegar "ã meta verc\adelra da lOves-
n~) AI~,m, do absolutamente Bom... Logo em seguida, porém, tigação" - a definição da essência dos estadistas - como
le-se: De tato, a grande massa ahrma que devemos nos es- uma história que se deve acompanhar com a mesma
torçar pela virtude e evitar a maldade, e por nenhuma outra atenção com que as crianças ouvem um conto da carochi-
razão senào para que, exteriormente, não pareçamos ruins, nha.;" No centro desse mito está deus, como "timoneiro do
mas bons. Isso porém, na minha opiniào, nada mais é do universo". Tendo concluído a história, diz o estrangeiro:
q:le tagarelice de velhotas, para usar uma expressào conhe- "Que ela encontre, pois, sua aplicação, e nos mostre os
CIda. A verdade, contrariamente a isso, reza o seguinte: grandes erros que cometemos na investigação antenor com
deus jamais e de forma alguma é injusto, mas tão justo nossoS argumentos sobre o rei e o estadista",173 na qual a ar-
quanto possível, e nada há entre nós que mais se assemelhe te do estadista foi apresentada como a de um pastor de ho-
a ele do que aquele que se faz tão justo quanto possível".'7o mens. A seguir, o estrangeiro afirma: "por isso, afinal, rec~r­
A "verdade" de uma afirmaç;10 acerca da essência de deus remos ao mito: quanto ao rebanho, deveria noS mo~trar ~ao
não pode ser definida senão como uma verdade mítica. E apenas que o homem a quem agora procuramos (Isto e, o
prossegue: é preciso "dizer a verdade" ã massa; e essa ver- estadista) terá essa funçào disputada por todos, mas tam-
dade não consiste, "como imaginam, nos castigos corporais bém justamente nos permitir reconhecer com maior nitidez
e na pena de morte, dos quais são por vezes poupados a aquele que - segundo o modelo dos pastores e dos guarda-
despeIto de seus crimes, mas em algo de que é impossível dores de gado - dedica-se à educação dos homens, sendo,
escapar". De que malas malfeitores são incapazes de esca- por isso, o único a ter direito a esse título". 17, Embora sep,
par? De início, Sócrates afirma: "Por isso pagam a pena de ou pareça ser, apenas uma "brincadeira", o que o mIto nos
levar uma vida correspondente ao modelo ao qual se asse- permite reconhecer com maior nitidez é "a figura do pastor
melham (a idéia do Mal, que é aqui aceita paralelamente à divino", a qual "é ainda muito elevada até mesmo para um
do Bem)", O ser mau encerra em si próprio, por assim di-
230 A ILU.SÃO DA]rJI'T7Ç'A A VERDADE PIA 7ÔNICA 231
7
rei" .1 \ Somente ele tem direito ao título de pastor de ho- pode falhar, tanto quanto, tratando-se de palavras, se pode
mens. Que esse pastor divino exista certamente não é cem- falar em irrefutabilidade e imutabilidade. De maneira inver-
cebido como uma brincadeira, pois para permitir que seja sa, a representaçào do que apenas imita o modelo - da me-
reconhecido "com maior nitidez" e evidenciar a diferença ra cópia, portanto - terá o caráter do que é verossimilhante
entre ele e um condutor humano do Estado recorreu-se ao e análogo ã singularidade desse objeto. Assim como o Ser
mito, o qual, mesmo parecendo uma "brincadeira" para o está para o devir, assim também está a verdade para a cren-
conhecimento racional, tem uma aplica<;ão importante, sen- ça (nlO'uç, verossimilhança)".!7(' Em sua tendência a contrapor
do, nesse sentido, verdadeiro. a representação mítica do devir ao conhecimento do Ser ab-
No Timeu, Platão desenvolve uma teoria do mito que soluto, Pbtão vai tão longe a ponto de afirmar, no mesmo
dificilmente se deixa compatibilizar com o emprego que faz Tímeu, que "o procedimento que segue a verossimilhan-
dele em outros diálogos e, de resto, não se revela isenta de <;a", "a observação do devir segundo a mera verossirni-
contradiçôes sequer no que se refere ao próprio 1'inzeu. Ele Ihan(,'a", seria um "gosto" que nos proporcionamos, "a fim
tenta justificar o mito como uma representa(,'ão correspon- de descansarmos da verdadeira labuta mental sobre o que
dente ã natureza de seu objeto. Afirma, aí, que o objeto do eternamente é" - um gosto "que nào se faz acompanhar do
mito é o que está em vias de vir-a-ser, do qual, por sua es- remorso". Contudo, no rol dos objetos que só podem ser
sência, nada se poderia dizer de absolutamente verdadeiro. representados através da verossimilhança, Platão inclui não
Tal verdade somente poderia ser alcançada na represen- apenas "o nascimento do universo", mas também os deuses.
tação do Ser absoluto e transcendente. A representação do "Se nós agora, meu caro Sócrates, ante os numerosos deba-
vir-a-ser - que, como a realidade empírica, é apenas uma tes acerca de deus e do nascimento do universo de que já
cópia do Ser absoluto como modelo primordial - admitiria dispomos, não formos capazes de oferecer uma represen-
somente a verossimilhança. Platão faz Timeu dizer: "Importa taçào inteiramente coerente consigo mesma e de absoluta
assim, a meu ver, primeiramente distinguir as seguintes e<)l1- precisão, não te espantes: será já suficiente se nossa repre-
cepçàes: o que é que sempre é e não admite qualquer de- sentação puder estar à altura das demais em termos de ve-
vir, e o que é que está em permanente devir, jamais partici- rossimilhança. Pois não se há de esquecer que todos nós -
pando do Ser? O primeiro, graças à inteligência, é apreensí- eu, que estou aqui a expor, e vós, os juízes - somos apenas
vel por meio do pensamento racional, pois permanece sem- seres humanos. Quando, pois, ouvimos sobre essas coisas
pre idêntico a si próprio; o segundo somente pela opinião um poema, com pretensão de verossimilhança, podemos
(oscilante), precisamente sob essa forma imperfeita, e gra- nos dar por satisfeitos, sem precisar exigir nada além dis-
ças :) percepção pelos sentidos, sem a participa<;ão da inteli- SO."I"' No Tinwu, fala-se de "deuses" em diversos sentidos.
gência, pois est{l em constante vir-a-ser e perecer, sem ja- Um deJes é o demiurgo, que dá forma ao cosmo a partir do
mais alcançar o Ser (...) este mundo (é) necessariamente caos; deus é, ainda, o próprio cosmo, e deuses são chama-
uma cópia de alguma coisa. Ora, em qualquer dessas dos também tanto a terra quanto os demais corpos celestes.
questôes, é de grande importància dar ao começo um trata- Contudo, também os deuses imortais da religião estatal tra-
mento apropriado. Assim, no tocante ã imagem e seu mo- dicional figuram nesse mito. São eles, é claro, que Timeu
deJo, é preciso estabelecer uma diferença na representaçào tem em mente ao se referir aos "numerosos debates acerca
de ambas, na medida em que esta (a representação) deve de deus e do nascimento do universo de que já dispomos".
ter um íntimo parentesco com aquilo que representa. A re- E Platão só pode ter em vista os deuses da religião popular
presentação para tudo quanto é permanente, fixo e cognos- tradicional ao fazer com que Sócrates exorte Timeu a come-
cível com o auxílio da razào tem. também cia, de possuir o çar sua narrativa pela "obrigatória invocação aos deuses",
caráter do que é permanente e inamovível; nisso ela não fazendo com que esse responda: "Por certo, Sócrates, assim
232 A ILU5'ÃO DA IUSl1Ç'A A VERDADE PLATÓNICA 233

procedem todos os que abrigam em si ao menos uma cen- teriormente lH2 contraposto a própria "crença" (niaTlç) - co-
telha de prudência: ao começar qualquer empreitada, gran- mo verossimilhança - à verdade (aÀ1Í'ÔEw). Mais adiante,
de ou pequena, sempre invocam uma divindade. E assim Timeu afirma também a respeito da alma que dela só se
devemos fazer, nós que estamos em vias de falar sobre o podem afirmar coisas verossímeis. "Esses seriam, pois, os
universo - até que ponto ele se fez ou não se fez -, se não nossos pontos de vista acerca da alma, de suas porçôes
carecemos de todo senso, devemos necessariamente rogar mortal e divina, e da questão sobre até que ponto, ligada a
aos deuses e deusas por seu auxílio, a fim de que nossa ex- quê, e por que razão, cada uma dessas porçôes recebeu
planação esteja, sobretudo, em conformidade com o seu um lugar especial. Somente poderíamos afirmar com segu-
pensar, e também coerente consigo mesma", 17') Acaso per- rança que, assim, chegamos à verdade se deus houvesse
tencem o demiurgo e os deuses da religião popular tradicio- expressado sua concordãncia com o que dissemos. Que,
nal à esfera do devir, do nascer e perecer, que ao menos no entanto, ao menos permanecemos fiéis à verossimilhan-
segundo a concepção original da doutrina das idéias é a da ça, é lícito que, esperançosos, o asseveremos de pronto, e
mera aparência? Dessa mesma esfera do que é apreensível mais ainda a um exame mais detalhado. Tenha-se, pois, a
pela percepçào sensível, afirma-se no próprio Timeu que certeza disso."'K\ Aqui, entretanto, a mera verossimilbança
"encontra-se em constante vir-a-ser e perecer, sem jamais da representaçào não parece decorrer da natureza do obje-
alcançar o Ser"IHII Embora, na passagem acima citada, Timeu to, mas resultar de que deus não permitiu a proclamação
diga acerca dos deuses da religiào popular tradicional que da verdade absoluta acerca da alma. Em todo caso, o que
não se pode falar deles de forma absolutamente verdadeira Platão tem a dizer a respeito da imortalidade da alma nos
mas somente em termos de verossimilhança, mais adiant~ demais diálogos, ele não o expôs, aqui, como simplesmen-
afirma a seu respeito: falar sobre eles "e explicar o seu nas- te verossímil. Também na Carta VII, que, por certo, pode
cimento seria uma empreitada temerária; tem-se, antes, de ser considerada um testemunho altamente pessoal de Pla-
dar crédito àqueles que, no passado, se manifestaram a esse tão, ele enfatiza, no que diz respeito à alma: "tem-se real-
respeito; se, afinal, afirmam descender dos deuses, terão co- mente de dar crédito (nEÍ1'}E<Jl'}m) àqueles velhos e sagrados
n~ecido bem seus antepassados. Como poderíamos negar relatos que nos asseguram sermos possuidores de uma al-
crechto aos descendentes dos deuses? Ainda que suas afir- ma imortal, a qual teria de apresentar-se a um tribunal e
mações não tenham qualquer pretensão de verossimilhança sofrer as mais pesadas puniçôes, uma vez tendo-se separa-
ou a autoridade do que foi verdadeiramente comprovado, do do corpo". lHi
precisamos dar-lhes crédito, conforme o uso, visto se apoia- Se no Timelt, em face da verdade absoluta do produto
rem em seu parentesco com os deuses. Em razão do que do conhecimento voltado para o Ser absoluto e transcen-
afirmaram, podemos pois tomar como válido, sobre o nasci- dente, Platão reduz a verdade do mito à condição de mera
mento dos deuses, o seguinte. Gé (a terra) e Urano tiveram verossimilbança, evidentemente o faz porque busca, de al-
por filhos Oceano e Tétis; estes, por sua vez, Fórquis, Cro- gum modo, manter a oposição entre os dois mundos - o do
nos, Rea e os demais que deles descendem; de Cremos e Ser transcendente e o do vir-a-ser da realidade empírica -,
Réia nasceram Zeus e Hera, bem como todos que são tidos que no próprio Timeu ele relativiza, na medida em que pro-
por irmãos ou descendentes destes". JHl O mito da religião cura compreender este mundo da realidade empírica atra-
popular tradicional é incompatível com o do Timeu. Ainda vés da divindade absolutamente boa, como um mundo tão
assim, Platão não quer rejeitar o primeiro como falso; con- bom quanto possível e, portanto, como algo que, de algum
tenta-se pois em recusar-lhe a verossimilhança que defende modo, é. Se a oposição entre esses mundos é absoluta, se
para o mito de Timeu, mas insiste, "de acordo com o uso", apenas um deles é e é bom, e o outro mera aparência - ou
em dar-lhe "crédito" (np VÓf!CP nl<JTEu'!ÉoV), embora tenha an- seja, não é e é mau -, então nada se pode afirmar a respei-
234 A ILUSÃO DA JUSTIÇA A VERDADE PLATÓNICA 235

to deste último a não ser que não é. Isso com absoluta verda- tanto, Platão está visivelmente empenhado em relativizar a
de, não mera verossimilhança. Mas como Platão, no Timeu, oposição entre os dois mundos, em compreender o mundo
quer apresentar este mundo como formado pela divindade do devir (ou seja, o objeto da verdade mítica) como algo
essencialmente boa e, portanto, como um mundo bom, pre- que é e é bom, porque criado por deus - a despeito de sua
cisa - em contradição com a afirmação de que tal mundo ja- oposiçào ao mundo do Ser -, tem-se de aceitar a assim cha-
mais alcança o Ser - pressupor que esse mesmo mundo é. 'BS mada "verossimilhança" do pensamento mítico voltado para
E, pondo-se a descrever o nascimento desse mundo, precisa esse mundo como uma verdade relativa, comparada à "ver-
reivindicar para suas afirmações algum tipo de verdade. Es- dade" absoluta do conhecimento voltado para o outro mun-
ta, porém, só pode ser uma verdade diferente daquela acer- do. Também no Timeu a verdade platónica mostra sua ca-
ca do outro mundo. Também o mito é "verdadeiro", pois beça de ]ano.
seu objeto - a realidade empírica - é igualmente bom. Mas
a verdade mítica é diferente da verdade sobre o Ser trans-
cendente. I ",' Como Platão define aqui o conhecimento do Capítulo 35
Ser transcendente como "pensamento racional por meio da A dupla verdade na República
inteligência", pode afirmar que comparar o pensamento mí-
tico ãquele primeiro é uma diversão. Esta é uma observação "Quando se julga uma doutrina científica como bela,
inteiramente acertada, do ponto de vista psicológico. É es- verdadeira, vantajosa ao Estado e inteiramente do agrado da
sencial, aí, a ênfase de Platão em que esse gosto "não se faz divindade, não resta outra possibilidade: tem-se impreteri-
acompanhar do remorso"; o remorso haveria de acompa- velmente de expressá-la." Pela voz do ateniense, assim pro-
nhá-lo, caso o mito afirmasse inverdades. Indubitavelmente, clama Plat,10 nas Leis. 'NB Mas e se um conhecimento científi-
porém, não é esse o caso na visão de Platão. Ernst Cassirer co é apenas verdadeiro, mas não belo? E se ele é prejudicial
nota acertadamente que, para Platão, o mito é a única lin- ao Estado e não agrada aos deuses? Que isso é possível,
guagem na qual - segundo a afirmaçào do próprio Platào uma ciência imparcial não pode contestar. No pensamento
no Timeu - o mundo do devir se deixa expressar. E, preci- de Pbtào, ter-se-á novamente de negar a tal conhecimento
samente no Timell, ele quer de alguma maneira ser justo o direito de ser manifestado. Sim, pois se uma doutrina nào
para com esse mundo do devir - cujo Ser, a princípio, ele é verdadeira mas, em compensação, é vantajosa ao Estado e
nega totalmente. "Assim, por mais vigorosamente que se se- do agrado dos deuses então é lícito, é mesmo um dever -
pare a mera 'verossimilhança' (do mito da 'verdade') da ciên- segundo Platão - expô-la e disseminá-la. Pois, sendo assim,
cia rigorosa, ainda assim, e por força dessa separaçào, conti- ela será "verdadeira", ainda que num sentido diferente da-
nua existindo, por outro lado, o elo metodológico mais pró- quele habitual na ciência. É na República que Platão desen-
ximo entre o mundo do mito e o mundo a que costumamos volve essa doutrina tão fundamental para o conjunto de sua
chamar 'realidade' empírica dos fenômenos, a realidade da filosofia - a doutrina da dupla verdade, ou, o que é o mes-
'natureza'. Ele [o mito] é aí pensaclo como uma função defi- mo, da dupla mentira -' e mostra sua aplicação prática.
nida e necess,íria - no lugar que ocupa - da compreensão Após ter lançado a questão: "De que tipo deve ser a
do mundo" .'87 Isso significa, porém, que, assim como ao educação (no Estado idea])?"; após ter estabelecido que
lado do mundo transcendente cio Ser há um mundo empíri- "também aquilo que se comunica por intermédio das pala-
co do devir, há também no Timell, paralelamente à verdade vras" é parte da formação musical, Sócrates diz: "Mas isso
racional - a qual, como verdade absoluta, Platão identifica de dois modos: verdadeiro ou mIo-verdadeiro (...) Ambos
com o absolutamente Bom -, uma verdade intermediária, fazem parte da educação, mas, primeiramente, o não-verda-
designada como verossimilhança. Como no Tilneu, entre- deiro". Ou seja: Platão declara a mentira um instrumento da
236 A ILUSÃO DAJUSllÇ'A A VERDADE PIA TÔNICA 237
educação e remete, ao fazê-lo, às fábulas que se contam às essa mentira "é, no entanto, útil aos homens, como uma es-
crianças. "De um modo geral, elas não são verdadeiras, ain- pécie de remédio, é claro que um remédio dessa natureza
da que haja nelas algo de verdade."I"" Mais adiante, faz uma deve ser colocado nas mãos dos médicos, mas longe do al-
distinção entre a mentira "verdadeira" e a "mentira pelas pa- cance dos leigos". 1')2 E como Platão vê a relação entre edu-
lavras".1911 A mentira "verdadeira" - e Platào sente-se aqui cador e discípulo semelhante :kluela entre o médico e seu
obrigado a, desculpando-se, acrescentar: "se essa expressão paciente, o qual, pela arte médica, deve ter sua saúde resti-
não for um contra-senso" - é a que tem na :dma a sua sede. tuída, proíbe com o máxil1l;) rigor que se minta para o go-
"Enganar-se com a alma a respeito da verdade e persistir no verno, mas reserva a este () direito de empregar a mentira
engano, permanecer ignorante e abrigar e conservar ali a como um indispensável instrumento de governo. No inte-
mentira (..J isso todos repelem com o m:íximo horror." A resse do Estado, o governo está dispensado de sua obri-
mentira moralmente rejeitada é a mentira ignorante de si gação para com a verdade - isto é, da virtude da sincerida-
mesma, não sendo pois uma mentira no verdadeiro sentido de. É lícito que, se assim houver por bem o governo, o po-
da palavra; não é "mentira", mas equívoco - "a ignorância vo seja enganado. "Se a alguém cabe dizer uma inverdade
da alma", "e, mais exatamente, da alma daquele que est{t em benefício da cidade, esse alguém é seu governante."");
equivocado". "A mentira pelas palavras é apenas uma imi- Isso é de certo modo surpreendente, pois no Estado ideal
tação, nascida posteriormente, do que se passa na alma - os governantes sào os "filósofos", e Platão chama filósofos
uma cópia, pois, e não uma inverdade totalmente isenta de aos' "que anseiam por contemplar a verdade", 19' deles afir-
mistura." Essa mentira é a mentira daquele que sabe a ver- mando que "são desprovidos de blsidade e, no que depen-
dade, mas afirma o contrário, a mentira consciente de si da de sua vontade, não se deixam imputar qualquer inver-
mesma que se costuma designar por mentira. E é essa que dade, mas odeiam-na, amando, antes, a verdade" .1'" Como
Platão justifica, como um instrumento permitido da edu- governantes, porém, esses "amantes da verdade"l% podem
cação e, mais tarde, também da política. Sócrates pergunta: mentir, ao passo que justamente aos que não são filósofos -
"Mas a mentira pelas palavras - quando e a quem ela bene- o povo - a mentira é rigorosamente proibida. Pois - assim
ficia tanto, a ponto de simplesmente deixar de ser odiosa?" afirma Platão - somente os governantes podem usar a in-
E, como primeiro exemplo de uma tal mentira moralmente verdade, e, "se um leigo não diz a verdade a tais regentes,
admissível, aponta-nos aquela que é lícito usar com relação declararemos isso uma falta tão grande, ou maior ainda, do
a um inimigo ou mesmo a amigos: "quando estes, movidos que quando um doente não diz a verdade ao médico, ou
pela loucura ou pela insensatez, tentam provocar uma des- um ginasta a seu mestre". E: "Se, portanto, um governante
graça, ela não atua como uma medida preventiva, tal e qual t1agrar mentindo qualquer outra pessoa c...), ele o castigará
um remédio?" Como exemplo, Platão cita os mitos antiqüís- como ao introdutor de um comportamento tão subversivo e
simos, dizendo: "Como não conhecemos os fatos desses ruinoso para o Estado quanto um naufrágio para um na-
acontecimentos do passado remoto, moldamos a mentira de vio".1')7 Das necessárias mentiras estatais Platão nos d{l
forma a que se pareça o máximo possível com a verdade, exemplos bastante significativos. Invocando mais uma vez a
assim tornando-a útil". '9' Platão assume aqui um ponto de arte médica, que cura as doenças com remédios, explica
vista inteiramente pragm:ítico: quando útil, a "mentira pelas que o governo do Estado ideal precisará empregar "varia-
palavras" é unia - relativa - verdade, ou, como a formula, dos logros e engodos" "para o bem dos governados". A ne-
"uma inverdade não totalmente isenta de mistura". Essa cessidade dessa mentira governamental resulta da regula-
mentira, contudo, não se presta a ser empregada por qual- mentação estatal da geração de filhos. Conforme sugere
quer um, e por isso tampouco é permitida a todos. Natural- Platão, "os melhores homens têm, tanto quanto possível, de
mente, mentir para os deuses é completamente inútil. Como viver com as melhores mulheres, e os piores, ao contrário,
238 A ILUSÃO DA IU,TJÇA A VERDADE PL4TÔNICA 23lJ

o mínimo possível com as piores. Os filhos dos primeiros mente, a umca mentira na qual seria necessano fazer crer
devem ser criados, mas não os dos últimos, caso se deva não apenas os súditos, mas também, se possível, o próprio
manter o rebanho em alto nível". Para o governo, os gover- governo'""" Para entender inteiramente o seu significado, ob-
nados não sào mais do que um "rebanho". Por conseguin- serve-se que Platão a apresenta estreitamente ligada ã so-
te, é necessário o engodo em relação aos pares especial- lução do problema resultante da necessidade de uma hie-
mente apropriados para a geração ele filhos, pares escolhi- rarquização não apenas entre a classe superior dos guerrei-
elos pela direção do Estado, que são meros instrumentos ros e a inferior dos trabalhadores, mas também dentro da
nas mãos do governo, "De todas essas ml~didas ninguém própria classe dos guerreiros. Ele introduz esse segmento
deve saber, exceto os próprios governantes"; cumpre que de sua investigaç'ão com a pergunta: "Deles, quem deve
os pares acreditem que a sorte os destinou um ao outro. mandar e quem obedecer?""JI Trata-se aqui, portanto, da úl-
"Tem-se portanto" - diz Platão - "de implantar algum tipo tima e verdadeira oposição - entre governantes e governa-
de sorteio astuciosamente engendrado"; somente assim po- dos em torno da formação do governo -, da qual resulta a
der-se-ia evitar a discórdia. Contudo, o engodo acontece tripartiçio sob cuja ótica costuma-se habitualmente ver o or-
também de modo a que os inferiores, unidos apenas aos ganismo social do Estado platônico. O sentido da pergunta
igualmente inferiores e cujos filhos não são criados, atri- colocada inicialmente é: como se pode fazer compreensível
buam "a culpa ao acaso (... l, jamais aos governantes" .I<)k Se aos homens a necessidade de tal diferenciação entre gover-
o engodo governamental prescrito por Platão é ou não nantes e governados ' "Através de uma estoriazinha fení-
possível - e se é, apenas pressupondo-se um nível intelec- cia",'JI2 crê Platão: "Torná-la crível exige, porém, grande ca-
tual do rebanho extraordinariamente baixo - não é tão dig- pacidade de persuasão". Ele t~lZ Sócrates hesitar na expo-
no de nota quanto que ele exclua de seu Estado ideal a sição da questão. Este considera uma J'audácia" a tentativa
pintura - porque provoca no homem uma ilusão, visa a "de convencer disso os governantes, os guerreiros e, em se-
"fraqueza da natureza humana" e "não dispensa expediente guida, os demais cidadãos".'''' Trata-se da lenda de Cadmo,
algum capaz de produzir a ilusão" -, bem como a poesia que semeava dentes de dragão, dos quais nasciam homens
meramente imitativa,I<)0 e que não exiba o menor escrúpulo armados. Em Platão, no entanto, essa fábula surge reinter-
em, servindo-se de tão monstruoso engodo, intervir na pretada de maneira bastante característica, mostrando clara-
mais íntima esfera humana. Mas nessa esfera enraíza-se um mente em que Platão quer fazer acreditar tanto governados
importante interesse do Estado. E o interesse estatal, que quanto governantes de seu Estado ideal (a fim de que todos
no Estado ideal coincide com a justiça, está acima de tudo, sujeitem-se ao fato de que uns têm de mandar e outros de
inclusive da verdade. obedecer, e de que existe algo como uma separação de
classes e castas), e porque ele entende ser essa empreitada
tão difícil: "'Por certo, vós, cidadãos de nossa cidade, sois
Capítulo 36 todos irmàos' - dir-lhes-emos nós, ao contar-lhes a fábula; o
A mentira necessária corno razão de Estado deus, porém, que vos modelou acrescentou ouro ãqueles
dentre vós com vocação para governar, e por isso eles são
Por isso, segundo Platão, a mentira tem de ser empre- os mais preciosos; aos auxiliares, contudo (os membros da
gada - especialmente para a manutenção da relação de do- classe dos guerreiros que não pertencem diretamente ao
minação, ou seja, para fundamentar e solidificar a crença de governo), adicionou prata, e, aos lavradores e demais traba-
que cabe a uns mandar e a outros obedecer, e de que isso lhadores manuais, ferro e bronze. Como sois todos de uma
é uma necessidade absoluta, ou seja, a vontade de deus. É única estirpe, pode ocorrer - embora, de um modo geral,
aquela mentira "imprescindível" de que já falamos anterior- vossos descendentes devam ser iguais a vós - que do ouro
240 A lJJj5ÀO DA/USnçA A VERDADE PIA TÔN1C4
241

nasça um descendente de prata e da prata, um de ouro, e "mas sim, provavelmente, a seus filhos e descendentes, bem
assim também com todos os demais casos. A divindade, como aos demais homens do futuro". Tacitamente pres-
pois, ordena aos governantes, em primeiro lugar e acima de supõe-se aí, é claro, uma educaçào correspondente. Decer-
tudo, que se revelem mais pe'rspicazes e mais dedicados to, não seria tào difícil fazer a presente classe dommante
guardiôes quanto àquilo que desse material venha a ser adi- acreditar que deus teria adicionado ouro ii sua composiçào,
cionado às almas de seus descendentes; e, se a um de seus e que ela teria, assim, a vocaçào para o governo; mas sIm
de'scendentes for misturado bronze ou ferro, não se lhes que, em seu seio, encontrar-se-iam pessoas apresent~ndo
permite de'monstrar a menor compaixão, mas, ao contrário, uma outra mistura, que havlériam, entào, de ser exclLlldas.
têm de destiná-lo à categoria correspondente à sua nature- Naturalmente, aí também atua o pensamento de que, com a
za, remetendo-o à classe dos trabalhadores manuais ou dos educação usual, os homens atuais seriam demasiado racio-
lavradores; contrariamente, se desses nasce um descendente nalista~ para acreditar nesse mito. Contudo, o mais impor-
apresentando uma mistura de ouro ou prata, distingui-lo-ão tante nele - e tem-se aí a razão pela qual Platão recorre a
os governantes elevando-o, conforme o caso, ií categoria um mito - é que a hierarquiza<;ão, a divisào que representa
dos guardiões ou dos auxiliares, uma vez que, segundo re- a relaç;10 estatal de dominação, corresponde à vontade da
za um oráculo, a cidade perecerá se o ferro ou o bronze as- divindade. Pouco importa se é realmente verdadeiro ou
sumirem a sua defesa".'''' O que importa a Platão, portanto, não que a divindade adicionou ouro à alma de ~ uns e me-
não é absolutamente que os melhores, e só estes, efetiva- tais de valor inferior ã de outros; é útil e necessano acrech-
mente governem, mas também, e acima de tudo, que os go- tar nisso se a ordem aristocrática da sociedade há de ser
vernados acreditem nisso. Afinal, a idéia que' coloca em mantida.' Evidencia-se aqui como uma máxima da teoria
quest;10 toda autoridade é: somos todos iguais; mesmo política de Platão aquilo que já conhecel:1ü~ ~omo compo-
aqueles que desejam dar as ordens são apenas homens co- nente' essencial da ética socrática: o prInCIpiO de que os
mo nós, os que devemos obedecer; no que se haseia, fins justificam os meios; uma máxima que é, afinal, apenas
então, o seu direito à dominaç;lo' O mito platónico destrói conseqüência do primado do querer sobre o conhec~r,. da
a crença na igualdade na medida em que, tão sagaz quanto práxis sobre a teoria, da justiça sobre a verdade; maxlma
contraditoriamente, conserva a noçào da fraternidade de to- que, com inevitável coerência, conduz à doutrina da dupla
dos os cidadàos, mas a atrela a uma diversidade de valor verdade ou da dupla mentira; à verdade e à mentira estatal;
que abrange a todos. Dessa diversidade quanto ao valor de à razão de Estado.
cada um decorre a necessidade de obedecer aos gove'rnan-
tes e que tenha de ser impelido para a classe dos desprovi-
dos ele direitos aquele que nào obedece à classe privilegia- Capítulo 37
da; também a justificativa para a possibilidade inversa: a da O método ideológico de Platão
ascens;Io da classe inferior para a superior. O rebaixamento
punitivo à classe inferior, no entanto, é claramente situado Que a concepçào de que a vontade do Estado é a vo~­
no primeiro plano, pois, à pergunta de Sócrates - "Tornar- tade de deus, e este o verdadeiro governante - V1Sto nao
lhes crível essa estória - és capaz de encontrar uma possibi- caber aos homens reinar sobre seus semelhantes -- seja ape-
lidade de fazê-lo'" -, Gláucon responde: "Não, ou, pelo me- nas uma ideologia da realidade, segundo a qual os mais for-
nos, nào no que se refere aos cidadàos de hoje"."" Isso sig- tes reinam sobre os mais fracos, pode-se depreender sem
nifica que, em razão da possibilidade de um rebaixamento grande esforço de uma passagem muito interessante das
de classe, a presente classe dominante provavelmente nào Leis, na qual esse pensamento é sugerido, embora com mUl-
quererá acreditar no mito. Gláucon, entretanto, prossegue: ta cautela e, antes, indiretamente. Debatendo os velhos qual
504 A iLUSÃO DA]USTiÇI1 A]USTiÇA PLATÔNICA 505

aquele Estado verdadeiro do regente único que governa em coo Assim, no nível mais profundo, a justiça faz-se legalida-
conformidade com a arte política, não podem jamais, uma de; o 8íKCXWV torna-se idêntico ao VÓ/.ll/.lOV. Essa é a doutrina
vez concluído o trabalho da elaboração das leis, agir contra- de Sócrates, e somente nesse ponto Platão permaneceu até
riamente ãs leis escritas e is estabelecidas pelos costumes o fim fiel a seu mestre. Em suas Memorabilia, Xenofonte re-
locais"."'''' lata a respeito de Sócrates: "Em sua vida particular, ele sem-
pre se comportou em conformidade com as leis e de forma
a ser útil aos outros; na vida pública, prestou obediência ãs
autoridades em todos os preceitos legais, e foi, em casa co-
mo na guerra, tão amante da ordem, que nisso se distinguiu
Quinta parte de todos os outros" (,'" Após dar outros exemplos da fideli-
AJUSTIÇA E O DIREITO: A DOUTRINA dade particular de S(JCrates is leis, Xenofonte reproduz um
PLATÓNICA DO DIREITO NATURAL diálogo do filósofo com o sofista Hipias, que tem por único
propósito demonstrar que "justo" significa o mesmo que "le-
gal" ou "em conformidade com o direito" - ou seja, que
Capítulo 73 "justo" e "legal" significam uma única e mesma coisa, defi-
A harmonia entre a justiça e o direito nindo-se o "legal" expressamente como em consonância
positivo na ética de Sócrates com "as leis do Estado"."'" Contrariando Hípias, que questio-
na essa tese apontando para a mutabilidade do direito posi-
Nas Leis, Platão reconhece a obrigatoriedade do direito tivo e para sua mudança constante, Sócrates explica: "Crês,
positivo, embora acredite na existência de uma justiça abso- então, que menosprezando os que obedecem ãs leis, por-
luta e, assim, na vigência de um direito natural. A despeito que podem ser revogadas, estás fazendo algo distinto do que
da vertiginosa altura ,1 qual ele ergue seu ideal do Estado e se censurasses a disciplina na guerra simplesmente porque
do direito - e talvez por isso mesmo -, não chega a haver a paz pode voltar a reinar?""") Sócrates - com quem Platào
um conflito entre esse ideal e a realidade cla ordem estatal e está inteiramente de acordo nesse ponto - fala sério ao afir-
jurídica dada. Se o absolutamente Bom, juntamente com a mar que o direito positivo é a própria justiça. "Não sabes" -
justiça que nele se contém ou que dele flui, permanece um prossegue ele, segundo Xenofonte - "que Licurgo, o lacede-
segredo inexprimível, então o Estado ideal não pode pôr mônio, não teria erguido Esparta acima dos demais Estados,
em perigo a existência do Estado real. E, se o que se pode se mIo lhe tivesse inculcado com especial cuidado a obediên-
dizer sobre a essência da justiça não leva senão ã fórmula cia is leis? Não sabes que, dentre os governantes de um Es-
vazia de conteúdo do "a cada um o seu", pode-se conciliar tado, os melhores são os que sabem ensinar aos cidadãos a
o direito natural com o direito positivo, tendo-se até mesmo obediência ãs leis, e que o Estado onde os cidadàos obede-
de pressupor a vigência deste. Afinal, somente pressupon- cem com alegria is leis é o mais feliz em tempos de paz e
do-se a vigência desse direito positivo, definindo o que ca- invencível na guerra?"71") E Sócrates concluí: "Eu, portanto,
be a cada um - e, portanto, o que é para cada um "o seu" -, Hípias, declaro que o legal e o justo são uma única e mes-
é que adquire sentido uma norma que exige única e exclu- ma coisa"7111 E a díscussão que vem a seguir sobre as "leis
sivamente que a cada um caiba o seu. Para a esfera terres- não escritas" - ai entendídas não como um direito natural
tre. apenas o direito positivo pode ser a concretização de diverso do positívo, mas apenas como certas normas do di-
uma justiça cuja expressão - ainda que insuficiente - é o reito e da moral positiva geradas pelo costume - termina
SUU /li cuique.Mormente no seu significado de retribuição, com Sócrates, que remete essa parte do direito e da moral
pois também a realização desta na terra é o Estado empíri- positiva diretamente aos deuses, declarando: "Até mesmo os
506
A ILUSÃO DA JUS77ÇA A.!USTIÇ'A PLATÔNlCA 507

,
deuses, portanto, têm o justo e o legal por uma única e sofrer a punição legal do que safar-se da pena. Ele intensifi-
mesma co~sa."7111 O que se tem ai é uma legitimaç:l0 do di- ca essa tese até a exigência de que as pessoas sujeitem-se
reIto POSitivO a partir do direito natural; de forma alauma alegremente inclusive aos veredictos contrários ao direito,
uma teoria revolucionária do direito natural, mas uma ;oria mas impostos pelos juízes com competência legal para pro-
altame~t= conservadora, tendo por funç;]o essencial assegu- nunciá-los. Não há dúvida de que, ao falar em "sofrer injus-

I,
rar a vlgenCl:! do direito positivo reconhecendo-o, de algu- tiça" - o que Plat:1o propõe com tanta ênfase que se prefira
m:l maneira, como justo. a "cometer injustiças" -, ele tinha em mente também o caso
de um veredicto injusto: o destino de Sócrates, ao qual o
diálogo alude repetidas vezes. Antecipando o raciocínio de
Capítulo 74 Críton, e ante a observaç:1o de Cálicles de que Sócrates não
Justiça e direito positivo no Górgias parece absolutamente julgar possível que venha alguma vez
a ser acusado injustamente, Plat:1o faz Sócrates declarar ca-
]á:m outro contexto apontou-se o fato de que, quan- tegoricamente que está preparado para isso: "Se eu encon-
do Piatao Cita exemplos concretos de comportamento injus- trasse o meu fim por não possuir uma oratória aduladora,
to, trata-se sempre de viola~'()es da moral tradicional. Pres- tenho certeza de que me verias suportar a morte com sere-
supõe-se então, taAcitamente, que essa moral está de alguma nidade" 711 É principalmente a ampliação exagerada do prin-
I

torma em consonanCla com a justiça absoluta, cuja existên- cípio da legalidade, somente compreensível a partir da
Cla ele sustenta, sem definir-lhe o conteúdo. Assim, a filoso- identificação (com base no direito natural) do direito positi-
tia platônica dos valores absolutos torna-se uma ju~tificativa vo com a justiça, que leva Cálicles à oposiç:1o que conhece-
dos valores bastante relativos de uma dada ordem social. mos. E mesmo diante dessa oposiçào, Platão mantém sua
Esse é o posicionamento de Platão com relação ao direito afirmaçào original - assim como Sócrates o faz, segundo
positivo: fica implícito de antemão que se há de tomá-lo Xenofonte, diante de Hípias. E, também no Górgias, proce-
por obrigatório. Por isso é forçoso que, de algum modo o de-se à idcntificaç:1o expressa do direito positivo com o na-
direito positivo seja reconhecido como justo. No Gór.gtas, tural, com o "justo por natureza". Sócrates diz a Cálicles:
eVld:ncra-se esse ponto de vista: ele fundamenta, aí, a clis- "Portanto, n:1o é apenas de acordo com a lei que cometer
cussao s~)bre a jus,tiça. Somente partindo dessa premissa é uma injustiça é mais feio que sofrê-la, nem é somente se-
que Platao chega a tese de que sofrer uma injustiça é me- gundo a lei que o direito consiste na igualdade, mas assim
lhor c~ue com:tê-la - entendendo-se aí por "injustiça" uma é também de acordo com a natureza. Ao que parece, pois,
vlOlaçao do direito positivo. O usurpador Arquelau é carac- não tens razào em tua afirmação anterior, e acusas-me sem
tenzado C;)J1lO "injusto" - aOlKoç - porque obteve o poder motivo, asseverando que a lei e a natureza estariam em
na Macedonla contranando o direito, ou seja, violando o di- contradição uma com a outra" .7 1l1 É isto que, acima de tudo,
reito P?sitivo. Desejasse agir de forma "justa", estaria servin- importa a Platào: que inexista qualquer oposição entre lei e
do a Alcetes, de quem era escravo. 711; A palavra oÍKalOç é natureza, entre realidade e idéia.
constantemente empregada com o duplo significado de Não pode haver express:1o mais clara do caráter básico
:'just(:'~. e "em consonância com o direito positivo". Essa inteiramente idealizante da filosofia platónica do que o fato
IdentifIcação de "justo" com "justiça" está inteiramente de de, no Górgias, Sócrates comparar a jurisdição pelos tribu-
acordo com o modo como se falava à época. A idéia funda- nais - isto é, a aplicação das leis positivas ao caso concreto -,
mental da tese defendida por Sócrates contra Cálicles é in- e particularmente a imputação da pena, à medicina: assim
dubitavelmen~e a c!e que violar o direito positivo é pior que como os doentes são levados ao médico, os que cometem
suportar tal vlOlaçao, e que, portanto, é melhor para todos injustiças C'wuç aOlKouv"Caç) são conduzidos aos juízes ("CapO:
508 A ilUSÃO DA/USTiÇ'A A/US7JÇA PiATÔNiCA 509
TOUÇ ÕIKcxmúç), a fim de que sejam punidos e, através da pe- Bem e Mal, com a qual já nos deparamos em outro contex-
na, curados, por assim dizer, do mal da injustiça. Também to. Tem-se aí uma dificuldade bastante típica de toda doutri-
aqui é o direito positivo que Platão tem em mente; assim, na elo direito natural: se ela admite a existência de uma jus-
ele faz Sócrates dizer expressamente que os juízes, quando tiça absoluta, tem, então, ou de negar o direito positivo -
punem em consonância com o dire!to (?i opl'Hilç KOÀáÇOVT~Ç) na medida em que mio coincide com o ide;tl daquela justiça
- ou seja, quando julgam cm contortmdade c:)[n o ~hrel~o - ou, se o deseja fazer valer, justificá-lo como ao menos em
positivo -, aplicam uma certa justi~'a (ÕtKcxw<JUVll TIVI Xpw- certa medida equivalente a esse ideal; C0111 isso, porém, tem
l1fVotJ. A palavra "ÕIKCXto<YÚVll" é aí evidentemente emprega- também de introduzir patamares intenneeli:lrios entre o ab-
da no sentido de "justi<.;'a·'. Sócrates, pois, ensina: quem co- solutamente justo e o absolutamente injusto, O direito posi-
meteu alguma viola~'ão do dire'ito ou sofreu-a da parte de al- tivo, na medida em que é justo também e, portanto, direito
gum parente, tem de mesmo de atuar como acusador, e tu- natural, é um elireito natural de segunda ordem - o único
do fazer para conseguir :1 puniç~10 legal. Não poderia "aco- possível entre os homens deficientes da esfera terrena (após
vardar-se, mas teria de, com virilidade, entregar-se de olhos o pecado original, como afirmam os jusnaturalistas cristãos).
fechados, como que a um m<:-dico que o lancetasse e caute- Esse, entretanto, é um pensamento não manifestamente ex-
rizasse, perseguindo o Bem e o Belo sem importar-se com a presso por Platão. Cumpre, contudo, pressupô-lo como ao
dor. Se cometeu uma injusti<,;a que mere(:a castigo corporal, menos tacitamente considerado, se nâo se deseja admitir
teria de castigar-se a si pr()prio; se merece' o grilh:io, teria de uma contradição frontal entre o posicionamento que afirma
fazer-se agrilhoar; se merece uma multa, teria de pag:l-la; se ser a justiça um segredo inexprimível e aquele que, não
merece o banimento, teria de partir para o desterro; se me- obstante, admite a existência na realielade social de algo co-
rece a morte, teria de morrer" .-'''' mo uma orelem justa, tomando aliás o direito natural por es-
sa ordem justa, o VÓfllfloV pelo ÕiKCXtoV; e também entre a
afirmação de que, no Estado ideal, as leis seriam prejudiciais
Capitulo 75 e supért1uas, e o fato de que Platão está visivelmente empe-
Justiça e direito positil'o na República nhado em ter como especialmente honroso, e mesmo como
a mais alta funçào social, o cargo do legislador. Embora a
Desnecessário dizer que uma justificativa tio irrestrita doutrina do direito natural duplo - ou seja, ele um direito
do direito positivo n;10 pode prescindir da admissão de uma natural absoluto e outro relativo - nã.o se apresente em
justi~'a supratcrrena que complementa e aperfeiçoa a tern:- Platão sob esse nome, ela está contieb objetivamente em
na 707 Assim, também sob esse ponto de vista - para o qual sua doutrina do melhor Estado - no qual inexistem leis - e
j{t apontamos anteriormente -, evidenci:l-se quão funda- elo segundo melhor Estado - no qual elas prevalecem. Tra-
mentalmente enlaçadas esUo as teses <:-ticas do C;ôl~t<ias com ta-se tão-somente de mais um caso no qual se aplica a dou-
a ela paga no Além, apresentada no mito final do diálogo. A trina ela dupla verdade.
ligação com esta permite a Platão - mesmo onde seu dua- Assim, no primeiro livro da República, Platão faz com
lismo reveste-se visivdmente das cores do pessl1nlsmo, co- que Sócrates, contrariando Trasímaco, defenda a opinião
mo no Górgias - não só deixar de negar como simplesmen- ele que a justi<.;'a não é apenas melhor, mas também mais
te injusta a realidade do direito - que consiste na vigência e forte do que a injustiça, e não - como crê Trasímaco, ou
aplicação do direito positivo -, mas até mesmo reconhecê- como Sócrates supõe que creia - o contrário: ou seja, que a
la como justa, embora não como perfeitamente Justa. PrecI- injustiça é mais forte e poderosa elo que a justiça 7IJK PreciS:l-
samente em função desse reconhecimento do direito positi- mente essa questão é ele grande importância, pois expr('s,~:1
vo, aliás, Platão' é levado à relativização da oposição entre a convicção de Platão de que a justiça tem necess:1 ri:llll<'lll('
510 A ILUSÃO DA JUSTlÇ'A
A Jmnç'A PLATÓNICA 511

de realizar-se, e de que, portanto, não pode realizar-se somente graças a ela (isto é, a esse mlOlmo de justiça que
senão no direito positivo. Plat,lo comprova sua afirmaç:lo abrigavam em sD, e, apenas parcialmente corrompidos pela
demonstrando a impossibilidade de uma comunidade social injustiça, mergulharam, entàü, na prática de atos injustos,
sem justiça; ela sucumbe ã desagregação, donde se conclui pois os que sào inteiramente ruins e totalmente injustos são
incontestavelmente que, se uma comunidade tem existência também inca pazes de agir" 711 Aqui, como em q ualq uer ou-
duradoura - como a do Estado constituído pela ordem jurí- tra parte, deve-se entender "justo" e "injusto" - OíKCXtoÇ e
chca pOSitIva, precisará ser justa, em certa medida. "Crês aOtKOç ~ por consoante ou contrariamente ao direito, no
entào" - pergunta Sócrates a Trasímaco -, "que um Estadc; sentido do que está em acordo ou em desacordo COnt uma
ou um exército, piraras, ladrôes ou qualquer outro grupo ordem jurídica positiva.
semelhante de pessoas voltadas para a prática da injusti<:;:a,
sena capaz de realizar alguma coisa, se são injustos uns
com os outros? - Claro que nào, respondeu ele. - Mas, se Capítulo 76
~ão sào, então sim? - Com certeza. - Sim, pois a injusti<:;'a A teoria do direito natural na alegoria da ccwerna
tomenta a revolta, o ódio e a luta entre eles, enquanto a
Justiça estllllula a concórdia e a amizade, não é mesmo' _ Se a ordem social que se efetiva é uma ordem jurídica,
Que seja assim, pois não desejo contrariar-te. - E fazes bem sendo, enquanto tal, de algum modo justa, essa justiça só
em nào contrariar-me, meu caro. Mas diga-me: se a injusti- pode ser relativa - isto é, apenas uma sombra da justi<:;'a ab-
ça, onde eXIste, costuma estimular o ódio não fará com soluta, que tem sede no mundo das idéias. Isso é o que, de
que também homens livres e escravos se ~)deiem mutua- fato, se deve concluir da alegoria da caverna, na qual Platào
mente, C:)Ol que se revoltem e sejam incapazes de agir em apresenta sua metafísica do direito. São as "sombras da jus-
conjunto? - Certamente."")') "Não parece ela (a injustiça), tiça" o que vê quem afasta o olhar da idéia para a realidade
pC~IS, ter o poder, em qualquer comunidade na qual se ma- social, e s:10 as "sombras da justiça" aquilo pelo que se luta
nlteste - seja num Estado, numa nação, num exército ou em nos tribunais.'" Apenas sombras, é verdade, mas sombras
qual:luer o:itra parte -, de primeiramente tornar impossível da idéia suprema' O que Platào quer dizer com essas som-
a açao conjunta, em razão da revolta e da discórdia e de- bras nào pode ser senão o direito natural, ao qual se atribui
poi~, .de fazer essa comunidade inimiga de si mesm;l, ;l1ém dignidade e validade precisamente por essa relação com
de 1011l11ga de seus opositores justos' Não é assim? - Com seu modelo primordial, e ao qual, por isso mesmo, se deve
certeza. "7~" E, após ter feito Trasímaco admitir ainda que os obediência absoluta. Na metáfora da "sombra" enfatiza-se
deuses ,~ao Justos e que, portanto, o injusto faz-se inimigo mais o elemento positivo do que o negativo; o que lhe cabe
deles, Socrates chega :1 conclusão de que "os justos pare- expressar é, antes, que ela é um efeito do sol - ou seja, da
cem agIr melhor, com mais sabedoria e capacidade, ao pas- idéia central do Bem - do que o fato de ser distinta da rea-
~o que os :nJustos são incapazes até mesmo de agir em con- lidade que projeta as sombras. Apenas assim se explica a
!unto. De tato, nào se estará falando toda a verdade, se dos definição puramente formal da justiça através do conceito
1l1Justos se disser que alguma vez uniram forças numa em- da ordem, da regra "a cada um o seu". É possível que exis-
pr:itacla c?njun:a. Se, afinal, são real e absolutamente injus- tam ordens jurídicas bastante diversas, assim como é igua 1-
tos" Ulr: nao tera poupado o outro. Se agiram em conjunto, mente possível que sejam ora melhores, ora piores; cada
sera eVIdentemente porque abrigavam já em si algo da justi- uma delas, porém, é "ordem" e, como tal, justa. Também as
ça, a qual fez com que, contrariamente a seu comportamen- sombras das idéias podem ser bastante diversas de selfS
to para com sua vítima, não praticassem injustiças uns con- modelos primordiais, mas nem por isso deixam de ser n')pi:l.s
tra os outros. O que fizeram, conseguiram, pois, fazê-lo tão- das idéias. Justamente porque Platão, em quaisquer CirClfll.S
512 A ILUSÃO DAf{!STlÇA
AJUYTlÇ'A PLA1ÔNIGA 513
tâncias, sempre reconhece a idéia no que é dado, não pare- sal', mas estais convencidos de que apenas a fraqueza e a
ce absolutamente incompatível com sua doutrina das idéias condescendência pma com os poderosos encantos do pra-
a ingênua crença popular de que as leis seriam um presente zer e dos desejos é que os faz sentirem-se ?traídos com a
dos deuses. Porque, quer seja o direito positivo reconheci- totalidade de sua alma para a vida ímpia".''; E deveras signi-
do como efeito das idéias ou dos deuses, nada muda, ce)J1- ficativo que !'laLtO declare essa cOllvicção Ulll equívoco, e
tanto que nos aferremos ,[ suposição de que esses deuses mais significltiva ainda a razão que dá: "uma ignorância
são bons. E é precisamente isso que Platão constantemente bem danosa, que é tida por suprema sabedoria" .'1(, Isso não
enfatiza. poderia, entretanto, ser do conhecimento dos cretenses e la-
cedemf)J1ios, pois entre eles a literatura sofistica nem sequer
é tolerada - o que Piat,to aprova. Do mais genuíno espírito
Capítulo 77 do iluminismo sofístico nascem as obje<;ôes à religi,to que,
A teoria do direito natural nas Leis segundo Platão, são de esperar. "Se eu e tu, a fim de com-
provarmos que os deuses existem, alegamos o que acaba-
É <,specialmente nas Leis que a doutrina jurídica plató- mos de mencionar (isto é, o que Clinias acabara de sugerir
nica apresenta-se, inclusive em sua terminologia, como uma como prova da existência de deus); se apontamos para o
doutrina do direito natural; surge claramente, aí, o antago- sol, a lua, as estrelas e a terra como deuses, declarando-os
nismo de Piat10 com os sofistas. de origem divina -- se o fizermos, portanto, alguém, persua-
No início do livro X, discute-se a importância da reli- dido por aqueles sábios supremos, poderia revidar-nos: to-
gião para a eficácia das leis. Platão parte da hipótese funda- elos eles compôem-se ele terra e pedra e são incapazes de
mental de que "quem, em conformidade com as leis, acredi- se preocupm com os assuntos humanos. E esse alguém po-
ta em deus" ,7 U não infringirá essas leis. Ele supôe ser a U)J1- deria afirmCI-lo com uma beleza oratória que tornaria plausi-
vicçào religiosa, a crença na divindade - que, afinal, é vel sua afirnlac,to."717 Eis aí a desenganadora filosofia natural
quem nos presenteia com as leis -, o motivo decisivo e o elos sofistas, q'ue Platão evidentemente considera a raiz de
único eficaz para um comportamento em consonãncia com todo mal. Não importa aqui a prova que, nessa passagem,
o direito positivo. Isso lhe dá a oportunidade do embate Platão tenta dar da existência de eleus. É significativo, antes,
com aquela a que nega a existência dos deuses, ou, se n,[o que na mais íntima conexão com a questão da existência de
a n<'ga por completo, ao menos rejeita toda e qual(Juer in- eleus ele se ponha a falar da oposição entre natureza e di-
t1uência dos deuses sobre os assuntos humanos. E óbvio reito - ou primeiramente, para ser mais preciso, entr<' natu-
que a t<'oria ateísta que Platão tem em mente é a doutrina reza e arte. Assim ele apresenta essa oposição empregada
dos sofistas, e que ele a comb,lt<' primeiramente, se não ex- pelos sofistas: "O mais grandioso e o mais belo - dizem
clusivamente, por SU,IS conseqüências para o direito positi- eles -, produzem-no, ao que parece, a natureza e o acaso;
vo. Pld tão tem plena consciência de estar lidando com um o mais ínfimo é produto da arte".'" Imediatamente a seguir,
opositor que deve ser levado muito a sério. Ü ateniense diz Platão reproduz da seguinte maneira a doutrina sofística:
ao cretense Clínias: "No tocdnte d esses blasfemos, (. .. ) te- "Os deuses nasceram - afirmam inicialmente esses homens
nho um certo receio - pois deus me proteja de demonstrar- - não por meio da natureza, mas da arte; e alíás, segundo
lhes algum re.\peito - de que eles nos dediquem dpenas certas leis que, em locais diferentes, têm conteúdo diferente
desprezo" (a nós, que afirmamos "que os deuses existem, (,.,), e, mesmo no que toca à moral, existiria uma diferen,,'a
que são bons e que honram a justiça mais do que os ho- entre o que é louvável por natureza e aquilo que o é peLi
mens", como diz Clínias mais adiante 'I '), "pois vós IÜO co- lei.""" Pode-se ouvir ecoar aqui com bastante clareza ~I dou-
nheceis o verdadeiro motivo de seu singular modo de pen- trina de Crítias, Trasímaco e Cálicles. Tanto mais significa ti-
514 A ILUSÃO DA JUS77Ç'A A JUS77Ç'A PLATÔNICA 515

vas afiguram-se, pois, as palavras com que, prosseguindo, "sapiente" e o mais fraco o "ignorante", nada há a objetar
Platão caracteriza a teoria jurídica sofista: "e, no que tange contra o princípio de que o mais forte deve governar e o
ao direito, ele não existe naturalmente; os homens encon- mais fraco ser governado. A quem, no entanto, cabe decidir
trar-se-iam numa disputa eterna a seu respeito, definindo-o quem é o sapiente? Aos deuses. E sob que forma estes
ora de· uma maneira, ora de outra, cada definição sendo anunciam sua decisão? A espantosa resposta de Platão diz:
provisoriamente v:ílida como uma criação da arte e das leis.,
.'
pela sorte. "Como sétima forma de governo (ou melhor: co-
e não por qualquer influência da natureza"."211 Os sofistas mo o sétimo princípio segundo o qual se deve definir o go-
negam um direito natural, pois negam a existência dos deu- verno no Estado), mencionemos agora uma forma que re-
ses. 721 Para Platão, porém, deus e a natureza são aqui uma pousa na graça dos deuses e na sorte, ou seja, aquela cuja
única e mesma coisa. Para ele, inexiste a oposição sofistica decisào deixamos ao sorteio, declarando ser mais justo que
entre natureza e arte, natureza e direito, cpúmç e VÓ/,lOÇ. Se- governe quem for feliz no sorteio, e quem não for se resig-
gundo sua convicção, o direito positivo é justo por nature- ne e se deixe governar." Na Repúhlicá, Platão repudiara co-
za; se é direito natural~ tanto a lei positiva quanto a arte mo altamente insensata a ocupação dos cargos mediante
provêm da natureza. Ele faz Clinias dizer que o legislador sorteio; nas Leis, declara-a justa. Isso porque o direito positi-
tem de "apoiar a lei (. .. ) e :1 arte, quando estas pretendem vo a prescreve, e neste se expressa a vontade dos deuses.
advir da natureza, ou quando, em seu Ser, pretendem não Num contexto posterior, Platão volta a falar do direito do
ter menor existência do que aquela, se amhas são realmente mais forte, do princípio defendido por Píndaro de que "a
produtos da razão"722 Eis o motivo pelo qual Platão se opôe violência maior c...) cabe ao governo". Tampouco aí ele o
aos sofistas: sua convicção de que o ponto de vista destes rejeita expressamente. Mas diz: "Não consideremos verda-
ahala o fundamento de toda obediência ao direito, atentan- deiros esses Estados, nem tomemos por leis em conformida-
do contra a raiz mais profunda da efic:ícia das leis estatais. de com o direito as que não foram feitas para o Estado co-
É esse o efeito da doutrina sofística, contra o qual ele ad- mo um todo e em função do bem comum; denominemos,
verte: "Tudo isso, caros amigos, é o que dizem, aos jovens, ao contrário, um assunto partidário - e nào estatal - uma le-
homens altamente sábios, escritores dotados de maior ou gislaçào que serve apenas aos interesses ele um partido, e
menor habilidade que declaram ser o justo aquilo que é im- neguemos ao assim chamado direito por ela definido qual-
posto pela força".m É a doutrina do direito do mais forte, quer pretensào ao nome de direito". Tem-se aí uma fórmula
que Platão rejeita decididamente na Repúhlica. Nas Leis,'" da qual nào se pode esquivar nem mesmo a mais conserva-
no entanto, o ateniense - o que significa o próprio Platão - dora doutrina do direito natural; previne-se, contudo, sua
declara que no princípio segundo o qual "o mais forte go- periculosidade para o direito positivo na medida em que a
verna e o mais fraco deixa-se governar" expressa-se uma decisão sobre se este serve apenas a interesses partidários
"forma inteiramente inevit{lvel de governo", qual seja "a que ou ao bem comum nào é confiada ao cidadão sujeito à lei,
desfruta maior aceitação entre todos os seres vivos e que es- mas reservada à autoridade legisladora. A fórmula segundo
tá em conformidade com a natureza, como Píndaro já di- a qual somente o direito que serve ao bem comum é direi-
zia". Mas acrescenta que se tem igualmente de reconhecer o to, no verdadeiro sentido da palavra, nào pode, no âmbito
princípio segundo o qual "o ignorante deve obedecer, ao de uma doutrina conservadora do direito natural. causar da-
passo que o perspicaz (o sapiente) deve comandar e gover- no algum ao princípio da legalidade. Isso se evidencia no
nar. E isso (. .. ), a meu juízo, não est:í em contradição com a fato de, imediatamente após fazer a afirmação acima, Plat:lo
natureza; consoante com esta é, antes, o governo da lei, na acrescentar: "Afirmemos, porém, que se há de confiar tam-
medida em que repouse sobre uma obediência voluntária, e bém a quem se mostra o mais obediente às leis existentes, e
não aquele que se assenta na força". Sendo o mais forte o que nisso se mostra vitorioso (ou seja, demonstra ser o
516
A IW5ÀO DA JUSTIÇA A JUSllÇ'A PlATÓNICA 517
'mais forte'), a vigilância sobre tais leis". Também a autori- a essas perguntas e a outras desse gênero, Críton? Afinal,
dade teria de submeter-se à lei, "pois o Estado onde a lei muito se poderia dizer, sobretudo um orador, em favor
não governa, mas depende do poder do governante, desse dessa lei que determina sejam respeitadas as sentenças pro-
eu prevejo o fim; e/aquel<.:, entretanto, onde a lei faz-se se- feridas pelos juízes. Ou ser{L que devemos dizer-lhes: 'o
nhora de seus governantes e a autoridade submete-se às Estado cometeu uma injustiça para conosco e não nos jul-
leis, diviso-lhe o espírito destinado à salvação e a tudo de gou de forma justa?'''?27 Isso significa que as leis, a ordem
bom que os deuses reservam para os Estados".'" jurídica positiva, é o Estado; e a obrigatorieelade dessa or-
dem - isto é, a autoridade do Estado - não pode ser ques-
tionada pela atitude de um indivíduo que, sujeito a ela, po-
Capítulo 78
nha em dúvida a justiça dessa ordem em sua totalidade, ou
A apoteose do direito positivo no Críton que conteste uma norma em particular. Aqui fica claro que
a exigência do direito natural de que o direito positivo seja
No CríteJrl, ao contrário do que rnrece, a questão deci- justo é paralisada por outra exigência, mandando que o sú-
siva n~10 é se as leis existentes servem ao bem comum se dito se submeta ao direito, ainda que o tome por injusto.
são justas, m~IS se o cidadão a elas sujeito tem o direite; de Esse é o método característico de que se vale toda doutrina
decidir sobre essa questão. Que ele não o tem e que, por- conservadora do direito natural para manter o direito posi-
tanto, as leIS do direito positivo podem exigir obediência tivo, a despeito da admiss~l() de um direito natural que não
em quai.:quer circunstâncias, é a idéia central do dülogo, lhe é idêntico. No CrítoJl, porém, Platão vai ainda mais
que se ha de colocar entre as últimas obras de Platão.72(' longe. As leis obrigam Sócrates a reconhecê-Ias como ma-
Na situaç:lo da mais profunda gravidade em que se en- terialmente boas. '''Não fomos nós' - Platão-Sócrates faz di-
contra seu amado mestre - na prisão, após a condenacão à zerem - "que, antes de mais n8da, te trouxemos ao mundo?
morte tida como injusta por ele e por seus amigos -, ~'um­ Não foi por nossa força que teu pai casou-se com tU8 mãe
pre decidir se Platão acredita seriamente na afirmação de e te gerou? Diz, pois: tens algo que não seja bom a censu-
que o direito positivo é relativamente justo e, portanto, po- rar nas leis do casamento?' - Eu nada tenho a censurar,
de exigir obediência em quaisquer circunstlncias. E, de fa- lhes diria então. - 'E quanto às leis sobre a educação e a
to, tudo quanto se pode dizer a favor de um direito positi- instrução das crianças, segundo as quais também tu foste
vo - desconSiderando-se inteiramente seu conteúdo variá- instruído? Ou não será bom o que prescrevem as leis edu-
vel, absoluta e infinitamente var'i{[vel -, Platão disse nesse cacionais, impondo a teu pai que te instrua nos exercícios
diáloge:- Nele encontra-se sobretudo a célebre passagem na do espírito e nas artes cio corpo?' - S;lo excelentes, eu res-
qual Socrates rejeita a sugestão de seu velho amigo Críton ponderia. - 'Pois bem, Agora que já nasceste, foste criado e
para que fuja. "Pondere o assunto da seguinte maneira. Se, instruído, serás capaz de negar que foste rebento nosso e
fugindo nós daqui, ou como se queira chamar a esse ato nosso escravo - tu e teus ancestrais? E, se assim é, crês que
as leis e o governo dessa cidade barrassem-nos o caminhe; tens o mesmo direito que nós, ou que tens o direito de fa-
e nos perguntassem: 'Díze-nos, Sócrates, o que pretendes zer-nos o que nos é lícito fazer-te?","2H Tem-se aí, mais uma
lazer? Não é verdade que, por meio desse ato que estás vez, o argumento segundo o qual um indivíduo n~lo pode
praticando, pretendes provocar a nossa ruína, a ruína das julgar o direito. É interessante observar, então, como o "Es-
leis e, portanto, de todo o Estado? Ou parece-te possível tado" - que, de início, nada mais é do que a personificação
que subsista sem destroçar-se um Estado no qual as sen- da ordem jurídica positiva - transforma-se pouco a pouco
tenças judiciais não têm qualquer força, podendo ser anu- na "pátria", uma autoridade envolta em fulgor divino. S<)
ladas e revogadas por indivíduos?' - O que responderí:.lmos nesse momento é que se completa a metamorfose do di n' i
518 A ILUSÀO DA/US1TÇ'A A/US1TÇ'A PLATÔNICA 519
to positivo em justiça divina. "Ou será que, embora não maneira, pois também nisso é deus quem nos conduz."
tenhas o mesmo direito de teu pai ou de teu senhor, se Com essas palavras termina o diálogo. O Críton é, pois,
algum tivesses - o que te permitiria também fazer-lhe o UlJla apologia do direito positivo e, assim, ao mesmo tem-
que te acontece, contradizendo-o se ele te calunia, gol- po, a mais verdadeira - porque a mais pessoal - apologia
peando-o se te golpeia, e assim por diante -, ser-te-á per- de Sócrates escrita por Platão.
mitido esse direito em relação ao Estado e às leis, de mo-
do que, decidindo nós condenar-te à morte, por julgá-lo
justo, poderás também tu condenar-nos à ruina, :1 nós, a
nossas leis e à nossa pátria, e dizer, então, que agiste de
forma justa - tu, que na verdade te empenhas peja virtu-
de? Ou és tão sábio que não sabes quão ma is valorosa do
que pai, mãe e demais ancestrais é a pátria' Qu;lo venerá-
vel e santa junto aos deuses e a todos os homens que dis-
põem da raz;lo? Não sabes como se tem de venerm uma
pátria irada, ceder a ela e acalmá-la ainda mais do que a
um pai, convencendo-a ou fazendo o que ela ordena, so-
frendo sem opor resistência ao que ela determina que so-
fras, ainda que ela te mande castigar ou acorrentar, ou
ainda que ela te mande para a guerra, onde podes ser fe-
rido e morto, tendo tu de fazer tudo isso e sendo tão-so-
mente isso o que é justo? N;1o sabes, ademais, que não
podes esquivar-te, fugir ou abandonar teu posto, mas tens
de fazer na guerra, diante do tribunal e em toda parte o
que o Estado ordena e a pátria deseja' Que tens de con-
vencê-la do que é verdadeiramente justo, mas que não
podes, sem praticar um crime, usar da violência contra
teu pai, tua mãe, e menos ainda do que contra estes, ce)l1-
tra a pátria","2') A pátria "santa" como a portadora das leis
divinas I E precisamente das leis com base nas quais Só-
crates foi condenado injustamente, mas pela força do di-
reito! E a conclusão do diálogo segue essa mesma linha:
se nos infringes - as leis advertem Sócra tes -, quando
morreres, "tampouco nossas irmãs, as leis do Hades, aco-
lher-te-ão amistosamente". Também as leis divinas vi-
gentes no Além, leis da mais perfeita justiça, são iguais às
terrenas, como um irmão é igual ao outro, porque ambas
são leis, ordens "ac;ima das quais nada há para os ho-
mens",7!] e porque provêm da divindade. E é à divindade
que Sócrates está convencido de obedecer, quando se
submete às leis positivas. "Pois bem, Críton: ajamos dessa

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