Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
L) L,!)
ñ
-../-
r f
r {fun¡ \ \,'
^ û ï6ç/=\Èic OiCqÊ.,{fiec : €,Sctf\lLQ
Éd"hac.-, r{b. tLvrrru¿*.¡tdr"'e- 6-'*f,
I
'l
.1 ,"",
((¿LL{"iì ¿{i üg "
Gênero híbrido, a biografia se situa em tensão const¿ì.nte entre a vontade <1e repro-
duzir unr vivido reai passado, segundo as regras da ntitnesis, e o polo ima_einativo clo
biógrafo, que deve refazer um universo perciido segundo sua intuicão e talento criaclor.
Essa tensão não é, decerto, exclusiva da biografia, pois a encontrarnos no historiaclor
empenhado em fazer história, mas é guindada ao paroxismo no
-9ênero biogrírfìco. qr,re
depende ao mesmo tempo da dimensão histórica e da dimensão fìccional.
Retomando e discutindo a noção de "unidacle narrativ¿r cle um¿r vid¿f '. cJe qr-re ftrla
Maclntyrer, Paul Ricæur lembra que é preciso ver nessa noção "um ¡listo instlivel cle
fabulação e experiência viva"2. O recurso à ficção no trabalho biogrírfico é. com elèito.
inevitárvel na med:da em que não se pocle restituir a riqueza e a conrplexidade da vicia
real. Não apenas o biógrafo cleve apelar para a irnaginação em face do carírter lacunar cle
seus documentos e dos lapsos temporais que procura preencher conlo a própria vicJa é unl
entretecido constante de memória e olvido. Procurar trazer tudo à luz é, pois, ¿ìo lnesmo
tempo a ambição que orienta o biógrafo e uma aporia que o conclena ao fracasso.
l. Alasdair Macintyre, After Virtue, ct Sttttlv in MorctL Tlrcr¡rt,, Notre I)anle (lncl.), Llnivcr.sitv of'Notrc
Dame Press, 198 l .
2. Paul Ricceur, Soi-núne conmc un oulrc, o¡t. r'ir., p. l9l.
-t.i
O DE,SAFIO BIOGRAI:ICO, ESCII,E\/IiR UIvTA VIDA
3. AnclLé Maulois, Ariel ou lct yie de SIrcllc¡,, Glasset, 1923; La yie de Disraell, Grasset, 1L)?1; René ctu
La via tle Clruleaubrianrl, Grasset, 1938; Don Juatt ou Ia vie de Byron, Hachette, 1952; Lëlict ou la vie
,l954;
tle George,Sr¿n¿1, Hachette, 1952; Olvnpio ou lct yia tle Victor Hugo,Hachette, Pronrcrlzée ou la
vie cle Bttlzctc, Hachette, 1965; La yie tle Sir Alestutder Fleming, Hachette, l9-59.
4. André Maulois, Aspects de Ia biograpl¿¿¿, Grasset, 1932, p.70.
5. 1r1crn, p. 81.
6. lclent, p. 82.
7. ldcttr, 1't. 86.
8. ltlertt, p.89.
9. Itlertr. ¡t. 98.
56
t\ lllO()R¡\ttlA, GENI:RO IMpLIR0
I
I
l0' Paul Murray Kendall, Tlrc Art o.f Biography, Lonclon, Gcor'-qeAllen
ancl U¡rvin LTD. 196-5. p. XIl.
I I'
Marcel Schwob, Vie 's intaginctircs, Petite Bibliothèquc'ornbres. 1993. p. I I (ecl.
original: lg9(r, Bi-
I bliothèqLre Charpentier, G. Charpentier. et E. F-asquelle).
t 12. Jolrn Arrbrey. citado por Marcel Schrvob. o¡t. cir.. p. 13.
:
I
i
13. klem, p. 14.
i 14. IcLent. p. 16.
l
l.
15. Iden, p. 18.
I
i
l6 Marcel Schwob' Vie'r imaginrùrcs, op. r,'it.;Michel Schneider, Morts intgittrti¡2,ç. Grasset.2003.
II 17. Michel Schneider, Morrs intaginaire,s. o¡t. t.it.
1tp. 212_213.
t 18. Ten¡o sugericlo por- -lean-pierre Golclenstein.
I
57
I
I
I
I
O DIiSAt"lO ßlO(;R/\t;lCO. ESCRIJVER IIMA \/lDt\
-58
A I}10(ìI?,¡\I;II\, G[,NIiR() IM PURO
24. Atldré Maurois. Asper:t.s tle la biogra¡.thia. o¡t. r.it., 1t. I12.
25. Ident. p. I 19.
26. ldent, p. l31.
27. Philippe Lejeune. Le pac:ra otÍoltiogrct¡tltique_Le Scuil. 197-5
28. André Maurois, Aspacts de Lu biogrct.phie. o¡t. cit..1t. t70.
59
O DESAFIO BIOGRÁ\,'ICO, ESCREVER UMA VIDA
A defìnição exclui as obras situadas nos dois extrernos do espectlo biográfìco: a biografìa "roman-
ce¿rda" simltl¿r ¿r vida, uras não respeitä o r¡aterial de que ela dispõe, enquanto a biografìa recheada de
l'atos. s¿rícla da escola tagarela da eludição-cornpilaçiro, adora o rnaterial, mas não simul¿r com ele uma
vida. Entr-e anrbas se cstende o artesanato impossível cla biografìa verdadeira3..
Dessa tensão resulta uma ambivalência clo gênero biográfico que permite ao
el'r-rdito verificar a autenticidade deste ou daquele fato particular e, ao mesmo tempo,
extr¿ìir do âmontoado biográfico elementos para informar eficazmente, com docu-
mentos de primeila mão. Esse gênero, por outro lado, é bem ao gosto de um público
popular que nele encontra ulna oportunidade para sonhar e não tem a mínima in-
tenção de sobrecarregar-se de ref'erências pesadas. A partir dessa dualidade, Daniel
M¿rdelénat distingue o que qualifica como gênero "hiperbiográfico" ou psicológico,
centrado exclusivamente na personalidade, da biografia "histórica, científica, artística,
literária, onde o interesse se desloca para as relações entre um ator, um criador e uma
civiliz.ação ou cultura"3r. Semelhante distinção traduz bem, é claro, a existência de
clois polos opostos e, nesse caso, tem sua pertinência heurística; mas, na realidade,
o essencial reside entre os dois extremos em múltiplas configurações híbridas. Entre
rttintesis e vidas imaginárias, o caráter próprio da biografia consiste em depender
de ul.n¿r indistinção epistemológica. O gênero biográfico é uma mescla de erudição,
criatividade literária e intuição psicológica. Implica um mínimo de empatia, mesmo
que essa transposição afetiva se torne fonte de cegueira e rompantes hagiográficos:
"Chocar os rnateriais devolve-lhes o calor da vida, transforma-os de objeto em sujei-
to de estr,rdo, cotlpanheiro vivo ao qual o biógrafo se liga, de um modo ou de outro,
profundzr e visceralmente"32. O envolvirnento do biógrafo com seu sujeito de estudo
chega um ponto tal que não pode se efetivar sem ir transformando o biógrafo ao
zr
ritmo de sua composição biográfica. Ao ûresmo tempo, essa alteração deve perma-
necer sob controle para servir à compreensão daquele que continua sendo estranho
e cuja misterios¿t singularidade deve ser captada sem que se caia nas armadilhas da
60
A BIOGRAFIA, GÊNËRO IMPIJRO
Não conheço métod<l biográlìco rnais perlreito que aquele que não
aperas associa. seg'nclcl a orcìc¡r
de produção' os acontecirnentos mais intportantes da existôncia
cle urn homenr, r.ì.Ìas entrcnrci¿r-os c.r, o
que esse homem haja dito, pensado e escrito. Tal niétodo permite
ao leitor vô-lo viver, e conr
:1
,:
Ì:
ll 6t
l
I
t..
':
:
O Dl'.SAFI0 ßIOGR/\l;1C0. lìSCIIEVIìll ulrli\ \tlDt\
qlle não enseja distanciamento crítico algum, mas instala o leitor numa
Lult¿ì escrit¿t
reläção cle reverêncier cluase religiosa.
A obra inteira de Vir-einia Woolf se opõe a esse modo de escrita biográfica.
Ela percebe, collt particular intensidade. o car¿iter ambìvalente e contraditório do
gênero - uut rorrìance "verdadeiro". Esse caráter impuro seduz Virginia Woolf, que
cscreve, eläirrrlpria, três biografras Orlando (1928), f;Iush (1933), qr-re têrn tnuito do
gênero romauesco, e Roger p¡v, Que enfatiza a ciimensão proprianrente biográfica cia
vicla ¿itestacla (1940). Bio-erafìa é ¿rrte'Ì. pergunta-se Virginia Woolf36. Ela considera
a biogr:rfia.uraneira de Richard Holmes, conìo um gênero tr¿rnsversal, nascido do
¿ì
carreira dos dois escritc.¡res é. ao rresrno tempo, paralela e divergente. Virginia Woolf
vai cl¿r biografia liccion¿il às biografias mais f'actuais, enquanto Lytton Strachey segue
o caminho inverso. A prirnerrä obra de Strachey, Entinent Vicfr¡rian.sa0, ainda est/t
bern pr'óxirna da recupererção de fitos, embora já ignore radicalmente certos postu-
lados da époczr vitorian¿r. Ern prinreiro lugar, logo no prefácio, Strachey denunci¿t
coulo larsa a icleia de urna história-ciêncìa exata e reivindic¿r, coulo biógrafo, r-rrna
m¿rior liberdade de escolha, assumincio postur¿ìs tendencios¿rs e arbitlárias. As per-
sorl¿Ìgens que escolhe para sujeitos de suas biografias - o cardeal Mannin-u, Florence
Nightingale, o dr. Arnold e o gener¿ìl Gordon - são todas liguras públicas de unra
3ó. Virginia Woolf-, "L'alt clc la biogra¡rhie", ct¡ l-ltc Dettth t¿l'tlte Motlt, 1939: r'cpulllicaclo e¡n Es.çni.r,
Scghcrs.1976.
37. Richar cl llolrncs, "Biography: Iuvcnting the Tluth", cnr John Batchelor (olg.), Zrc Art o.l'Litcrary
lliogruplt¡. OxfÌr'cl, Clalcndon. 1995. ¡t. 67.
38. Vilginia Wooll-, "Lalt dc Ia lriclgrapliie", op. r:i1., p. 198.
39. Floliane Reviron. "Orluntlo dc Virginia Woclll'(1928): une róponse ìt Et¡tinent Vic:toriuns'!". eni Fr'é-
cìéric Regard (dir.), La Ltiograpltie Iittérairc ert Artg,leterre (XVIf -XX" .siècla), Presses cle Univelsité
clc Saint-Étiennc. 1999, pp. 117-140.
40. Lytton Strachey, Entinent Vir:tr¡rian,s ( l9l8). London. PengLrin Books. 198Ó.
ó2
/\ llt0(;RAItt/r, GENI:RO IMPUITO
época vitoriana que ele detesta. Rompe assim coln o costume, por parte clo Lricigra-
fo, de só escrever sobre as pessoas que ama, eriginclo-lhes ul'ì'ì túrnulo próprio para
a veneração: "Foi graças a Strachey que as relações enfte biogt"aphar e biogr7¡thee
puderam ser vistas a uma nova iuz. não já como ponto pacífico, mas como questão
problemática"ar. Strachey afirma, pois, em altas vozes. o direito que tem o bió-crafo
de exprimir seu ponto de vista e pôr ern cen¿ì sua subjetividacle. Nessa prinreira 6bra
biográfìca, a contribuição do autor não se situa na esfera clos clocumentos. n1¿ìs em
seu ataque satírico a urn regime e aos valores de uma época.
Virginia Woolf tem, tanto quanto Strachey, a preocupação cle.jLrntar a criativicia-
de, a implicação subjetiva e a ruptura corÌl o código moralizante da épçca vitoriana ¿ì
ânsia de comunicar umâ certa forma de verdade factual. Recorrenclo aos traballros clo
amigo para reforçar suas próprias posições sobre a bio-qrafia. ela corrrperra as cluas otrr¿is
de Lytton Strachey: a biografia da rainh¿r Vitóriaa2. que consicler¿ì Lrma obra-prinr.r notir-
vel, e a da rainha Isabela3, que a seu ver é um tremendo fìasco. Esse contraste se cleve
ao fato de que Lytton Strachey, disponclo de boa document¿rção sobre ¿r r¿rinha Vitória.
pôde combinar com slìcesso as dimensões ficcional e factual, ao p¿rsso que a opaciciacle
das informações sobre Isabel obrigor-r-o ¿ì col-ìtentar-se corll o regìstro cla fìcção.
Cabe ao biógrafo compor nos dois planos e, se "a ver:dade cla lìcção e ¿i ver.cl¿rcle
dos fatos são incompatíveis [...1", eie "deve mais que ululc¿ì terìtar comLriná-las'*rr. O
biógrafo tem, portallto. de manter-se no justo meio-termo. evitando unl olr olrtro esco-
lho que levariam longe demais quer o uso cla ima-einação. quer o cuiclaclo cla eruclição
factual. Ceder a quaiquer desses dois elementos mutu¿ì.mente exclucientes só lÌiria conr
que o biógrafo se perclesse nos dois planos. Descle que côrrscio cla necessiclacle de fa-
zer urì bom trabalho de etrtesão, o biógrafo pode se tornar artista, Virginia Woolf é
f'ascinada por esse gênero que harmoniza os contr/rrios e toma por alvo o perecível:
"Che-9alnos, pois, à conclLlsão de que ele
[o biógrafol é um artesão e nño rint zrrtisti.r;
e de que seu trabalho não é uma obra de arte, nras algo internrediírrio"f5. Se pertence
a um gênero perecível e inferior, a biogralìa pode, não obstante ser fonte cle preciosas
luzes criativas: "Dizendo-nos a verdade [...ì, o biógrafo faz mais para estinrular a ini¿r-
ginação que qr-ralquer poeta ou romancista, postos de parte os maiores'a6.
4l' Floriane Reviron, "Orlando cle Virginia Wooll'(1928): unc róponsc ìt Et¡tincnt \/it:toriruts' ". o¡t. r;it.
p. 127.
42. Lytton Strachey, Qucen victorir¡, cÌratto, lgzÌ', La reinc victorirt pBp. payot. 1993.
43. Lytton Strachey, Elizaberh antl Esscx - A Tra,gir: Hi,çlon,, 192g.
44. Virginia Wooll', "La nouvelle biogra¡rhie", crn "Cranite ancl Iìainbor.v". em N¿,rr. yt¡rk Heralrl '['ribttnc
30 de outLlbro de 1927; repr-rblicado em.E,r.r¿is, o¡t. cit., p.213.
4,5. Virginia Wooll "L' art cle la biographie", op. cit., p. ?04.
46. Idem. p.205.
63
,:
t:
t.
O DI'SAFIO ßIOGRAI:rcO. LSCIIEVEIì. I.]MA VIDI\
Virginia Woolf prova que nãto despreza de maneira alguma o gênero inscreven-
do nele uma parte de sua obra de escritora. A relação de amor e fascínio que mantém
conl ¿ì esposa de Harold Nicolson, a poetisa e romancista Vita Sackville-West, des-
perta en1 sua allna o desejo de evocar, ao mesmo tempo, o real e o irlaginário, a que
deu os traços da personagem andrógina de Orlando. Essa escolha é fonte de júrbilo,
titnltlém escatpatória aos riscos da loucur¿r. Virginia Woolf percebe-a com Ltna
lll¿ts
intensidade toda especial, qual se fora uma ordem:
Ontelrr de tuauhã eu estava desespcrada. Não podia arrancar-nle urìla única palavra. Pol fim, lner-qLl-
lhci a pcna rro tir'ìteiro e escrcvi quase maquinalnlentc st¡bre urna lblha em br'¿utco: Orlan.dr¡, una Ilictgra.fiu.
Mitl acabara cle faz-ô-lo e toclcl o meL¡ corpo se inr-rndou de alegria e nreu cér'eblo folmigoLr de icleiasai.
47. Vir-qinia Wooll'. citacla pol Diane de Margelic, ern Vir-qinia W<lolf, Orlatdo, Stock, 2001, p. 1 L
48. Floriane Rcviron. "Orluntlo dc Virginia Woolf (1928): une réponse à Etninenî Vic:toriuts?", o¡t. t'it..
p. I3,3.
64
A BIOGRAI'IA, GÊNER.O IMPIJRO
que obceca o "alquimista", Virginia Woolf elabora-¿r a partir de uma verclade sensi-
velmente diversa da proposta pelo saber positivo. Pertence antes ao registro cle uma
:
verdade psicológica que cleve ser restaurada em toclas as suas tensões, ambivalências
e princípios múltiplos. Trata-se, pois, de um amálgama de síntese que o biógralb. z\
.:
maneira do alquimista, procura obter por meio cle uma verdadeira "translrutaÇão"'-r.
i.
t,
r 49. Virginia Woolf, Flu.sh: A Biogra¡th1t (1933), penguin Books, Lonclon, 1977.
-50. Chr-istine Reynier. "F1us/r (1933) et Roger Frr, (1940): la biographie woolfìennc ou le clésìr.cle 'still Iìfe"'.
I ern Frédér'ic Regald (clir:.), La biogra¡thie litréraire en Attglelerre (XWl-XX siècle), op. c:it., p. 143.
li.
r,
5l. IcLent, p. 146.
I 52. Ident, p. I -5 I .
a:
53. Floriane Revirou, "La biographie woolfienne: vers Luìe alchinrie dLr pur et cle I'irnpur.". er¡ Cathcrinc
Bernard e christine Régnier (dirJ,virginia woolf. Le ¡tur et !'impur. puR.2002, p.224.
54. Irlent, p. 225.
65
O DESAþIO ßIOGIIAFICO. DSCR¿VEII UI"IA VIDA
-55. Clrristinc Duhon. (Jnc année anlol(rausc tlc Virginia Woolf,Olrivtcr Orban, 1990.
-56. Osca¡ Wildc. "Thc Decay of'Living", et¡ I)e Pro.liutdi.s ancl Orlte r lUritings (1889), Harmondswolth,
Penguin CIassics, 198ó, p. 74.
57. Robert l)ion. "U¡r¿ atmáe amoureuse de Virgirtitt Wc¡r¡lf, ou la 1ìction biographique niultiplióe", em
Littéruture, "Bioglaphiques", Lärousse, n. I28, dez. 2002, p. 35.
ó6
A BIOGRAFIA, (;ENERO Ii\IPI]RO
58' René cle Chateaubri ttt'td, CErn'res cctmplèrcs.Garnier, t. IX (19-5g). Étttclc.s Hi.çrr¡nr¡rrc.r..,prélÌrccs
-59. Drniel Madelénat. La biogra¡tltie. o¡t. cit..
¡:p. l-5 I_1.52.
60. André Maurois. Aspcct,s de Ia biogrctpltia. op. crl.. p. .5 l.
ó7
O DESAFIO BIOGRÁFICO. ESCREVER I]MA VIDA
61. Ver Philippe Lejeune, Le pacre autobiogra¡tlzique (1975), Le Seuil, col. "Points", 1996, pp. 49-163
62. Philippe Lejeune, Je est un aLttre, Le Seuil, I980, p. 239.
63. François Mauriac, "Cinqualìte ans", NR.F, out. 1939, p.549.
64. Daniel Madelénat, La biographie, o¡t. cit., p. 170.
6B
A BIOGRAFIA, GENERO IMP{JRO
parece racional, mas nem por isso está menos sujeito a controles e possibilida<ies cle
falsificação"6s. Essa desestabilização de certezas e fronteiras disciplinares pode atri-
buir ao gênero biográfico um lugar privilegiado, que retomaria a quesrão do sujeito
do saber na esfera do conhecimento. Semelhante desconstrução vem em apoio das
observações de Bernard Pudal, que considera a biografia um elemento central na de-
finição "de uma epistemologia diferente"66. Tanto no domínio literário quanto no da
biografia histórica, os trabalhos mais inovadores questionam a sapiência onipresente
do biógrafo, que já não é postulada. Ao contrário, o autor fornece hipóteses, coûìen-
tários rigorosamente situados, acompanhando o leitor numa mesma senda cle inves-
tigação sem jamais desvendar seu enigma. A imaginação é explicitamente requerida
para compensar as insuficiências documentais e o resgate impossível do passado. Do-
minique Viart assume essa busca nova e intensa da singularidade das vidas e aventa
a hipótese de uma correlação entre a "era do testemunho", como a chama Annette
Wieviorka6T, e o gosto atual pelo biográfico. Para além da natureza do discurso, é o
comportamento humano que se interroga, provocando o discurso e a encenação: "Unr
efeito pendular, característico de nossa época, recupera no âmbito do pcîtltcts utna
relação com o outro que, nã.o faz muito, constituía o apanágio do /ogr.rs,,('8.
O desejo de definir com a máxima clareza os contornos do inclivíduo fez a glória
de uma escrita do minúsculo, do ínfimo, do aparentemente insignificante. Isso acon-
tece na mesma medida a historiadores e romancistas. Assim, Arlette Farge perglrnta
o que significa a pulseira de pergaminho encontrada nos arquivos judiciários, esse
pequenino farrapo de papel atado ao punho por uma flta vermelha que constitui. só
por si, o testemunho mais íntimo de uma vida: "O bilhete era o reconhecimento de
suas existências, o desejo de não caírem no anonimato, a vontade de comentarem
ou, antes, de serem comentados"6e. Encontramos a mesma busca em outros histo-
riadores como Alain CorbinT0 ou sociólogos como Pierre SansotTr, atento à plebe, e
Jean-François Laéi2, mas também em romancistas como Georges Perec (com seu in-
teresse pelo "infraordinário") e Pierre Michon73, quando explora em Vie.s ntiluscsle.s
65. Michel de Certeau, "L'histoire, une passion nouvelle", Le Magazine Littóraire, n. 123, abr. 1977, pp.
19-20.
66. Bernard Pudal, "Du biographique entre science et fìcti'on", ern "La biographie. Usages scientifìc1ues et
sociaux", Politix,27, 1994, p. 24.
67. Annette wieviorka, L'ère du téntoin, Hachette Littératures, col. ,,pluriel', ,2002.
68. Dominique Viart, "Dis-moi qui tehanre. paradoxes du biographique", art. cit.. p. 13.
69. Arlette Farge, Le bracelet cle ¡tarchemin, Bayard, 2003, p. ll.
70. Alain corbin, Le ntonde retrour¿ cle Louis-François pinago¡, Flammarion, 199g.
71. Pierre Sansot, Gens de peu, PUF, 1998.
72. Jean-François Laé e Numa Murard, Les récits d.u ntal.heur, Descartes & cie, 1995.
73. Pierre Michon, Vies ntinu.scu!.cs, op. cit.
69
O DIiS,\l:10 ßl0GRi\l:lCO. /tSCllf V'1i11 Ulvlt\ \/1DÅ
os οìntasrnas estropiaclos d¿rs pessoas comuns que apenas sonharant su¿ì existência e
estão semllre defasadas corll relação a si mesm¿ls. Onde vidas de lleróis e santos eram
"perf'eitas" no ajuste do desejo e sr"ta realizaç7ào, encontl¿lmo-nos. com Michon, na
esf'era do abandono das exigências existenciais frente a fracassos repetidos. Contudo,
as palavras devolveni a graça a destinos singuiares, seja o desse André Dufourne¿ru,
ór1'ão da assistência pública (clo qual "zr vocação sempre t'oi a África. E, ouso crê-lo
por urìt lror-nenlo, sabendo que fracassaria, que o qLre para 1á o chamava er¿ì menos o
magneto gl'osseiro dat riqueza a conquistzrr que urna rendição incondicional nas lnhos
da Fortt-tn¿r intransitiva"T4), oLr o cle Antoine Peluchet, "fill-ro perpétuo e perpetlt¿ìmente
inacabado clue lauçou bem longe seu nonle e ali o perdeu [...] Antoine sumiu, virou
sonho"75. Portanto, essa busca clo ínfimo se nutre ao mesmo tempo de lìcção e cle
fra-gtnentos tangíveis. Cri¿i um senso de verdade a partir do imaginár'io do autor.
Daí o paradoxo: "Se a verdade do biógrafo estíi no testemunho, ele nada teste-
nrlinha a nito ser a verdade de querl escreve. não de quem é objerc da escrit¿r"76. Esses
biogralèmas. no sentido de Roland BarthesiT, reconstruídos pelo autor, historiador ou
t'ontancist¿t, deixam o leitor indeciso e incerto. Falant-nos, antes, da carência e de "sua
verdacle inacessíve|:7rì. Q biográfico, tal qual definìdo por Dominique Viart, seria
acluiio qLre enl qr-ralquel texto tàz ¿ìs vezes de "biogralla", dá a iiusão cle biografìa,
"elèito do vivìdo" da mesma nl¿rneira que Rolzrnd Barthes citava o "efeito do real"
r-rni
a propósito do romance flaubertiano:
Daí o 1't¡to tle essa anrbigLridadc clu "bìoglafì1" designar ao llresuro ternpo ulìl conteúclo e urna lbrma,
tttTtt\ ntttl<iriu cllt"tnciada c unlu lrr¿¿¿¿,¿¡'a r¡uc cnuncia. O senticlcl últinlo da palavlir l'eside, senr dúvicla, no
crlrzaì-ncrlto clessas cluas accpções. u I)outo dc o "biogr'hfico" clesignar nlenos L¡m "gênero Ìireríu'io", de resto
clis¡talnlndo c cor.uplexo, clue a aliruça paradoxal de urn refel'ente particular (factual, ¡ressoal e suscetível cle
70
1\ BIOGRAII]A, GtiNERO IMPIJII,O
7l
O DESAFIO BIOGII,IíF'ICO. ESCREVER I]MA VIDA
de estar compondo seu derradeiro escrito, eIe faz o inventário das vaidades huma-
nas. Só ¿r obra parece capaz de pairar sobre essa paisagem de ruínas, túmulos, flores
murch¿rs e desgastes múltiplos do teinpo. Como notou Roland Barthes em seu prefá-
cio à Vie de Rancé, de 1965, "o tema eviclente é a velhice"s8. Assistimos a uma inge-
rência de Chateaubriand na vida de Rancé que não é mera projeção romântica, mas
superposição, resistência constante por meio de citações frequentes de suas próprias
obras em outros tantos fragmentos, cortes destinados a interromper o continuum de
uma vida que suscita nele a rejeição por razões de princípio. Longe de se deixar le-
var por seu herói, Chateaubriand permanece atento às quebras de tempo, às ruptu-
râs itÌstauradoras que são exaltadas colno busca de possibilidades novas: "Podemos
dar-lhe um modelo retórico, o anacoluto, que é tanto fratura de construção como
procura de sentido novo"8e. Essa biografìa anuncia, então, um segundo nascimento
de Rancé, aquele que o conduziu defìnitivamente da alacridade do mundo à quietude
do cl¿tustro: 'Aqr.ri começa a vida nova de Rancé: penetramos na região do silêncio
profundo"e0. Esse instrumento retórico evita a fìxidez semântica e obriga a perpetuar
a questão do sentido que passa, que gira enquanto mantém a distância da interroga-
ção sempre em suspenso. Serve também, como salienta Roland Barthes, para opor o
antes ao depois, para estabelecer urna antítese sistemática entre o universo mundano
e o universo solitário da vida monástica. Partindo do paradoxo assinalado por Bar-
thes eutre a renúncia à escrita, consequente à opção de Rancé pelo silôncio, e o fato
de the ser atribuída uma existência literária por intermédio de uma biografìa, che-
gamos à terceira leitura que verr se acrescentar ao bìnômio Rancé/Chateaubriand e
que evoca o desejo, o sonho de Balthes de uma escrita branca, de um grau zero da
escrita: "Pomo-nos então a sonhar com um escritor puro, que não escreve nunca"el.
Daí resulta uma implicação, uma superposição das subjetividades do biografado Ran-
cé, do biógrafo Chateaubriand e do crítico Roland Barthes.
O silêncio assustador a que se devotolr Rancé permanece, no fundo, um enig-
rna aos olhos de seu biógrafo: "Rancé não dirá uma palavra, consagrará toda a sua
vida ¿ro sepulcro"e2. Ao contrário, Chateaubriand não cessará de dizer e deixará para
a posteridade as Mentrjrias de Alént-ttîntulo. No relato dessa vida, o biógrafo se en-
volveu a ponto de parecer um¿ì personagem familiar ao universo do herói, ligado aos
lugares e momentos vividos por ele: "Rancé vai deixar Chambord, cumpre então que
88. Roland Barthes, ¡rlefíicio a Chateaubriand,Vie de Ranc:é, UGE, 10/18, 1965; republicado em Le degrë
i.ero de l'écriturc seguido de Nouveau.r essais critit¡u¿s, Points-Seril, 1972, p. 108.
89. Ident,p. l12. (AnacolLrto: falt¿r de sequência: ruptura ou descontinuidade na estrutura cìe uma fiase.)
90. Chateaubriand, Vi¿ de Rcut<:é, t.tp- t:it., p. 149.
91. Rolarrd Balthes, prefíicio a Chateaubriand,Vie ¿le Ranré, op. cit., p. I18.
92. Cìhateaubriand, Vi¿ cle Rancé, op. cir., p. 92.
72
A ßIOGRAFIA, (;ENERO IMPURO
eu também deixe este asilo onde temo ter permanecido por tempo demasi¿rclo"e3.
As
regras de vida estabelecidas por Rancé são particularmente rigorosas na abaclia da
Trapa transformada em reino de expiações. Ali tocios se levantarn às cju¿rs horas cla
manhã, um monge não entra nllnca na cela cle outro: ¿ìs enxerg¿ìs pr-rlulam cle biclios;
no refeitório, é preciso baixar os olhos e permanecer em silênciol não se pode fìcar só
no escuro. O tempo deve ser dedicado exclusiv¿rmente ¿ì prece e ao trabalho: "Rancé
morou trinta e quatro anos no deserto, não fbi nada, não quis ser nada, jamais hesi-
tou ante o castigo que se infligia"')a.
O fim do relato biográfico traz os úrltimos monlentos de Rancé. uma morte cllrs-
sica para um abade do Grande Século, morte prograrnacla, nragistralmente orquestr¿cl:r
numa encenacão segundo todas as regras. Rancé se mostr¿r aí de uma sereniclade que
tanto mais cresce quanto mais se aproxima a hora derradeira. Consola os religiosos c1¡e
vênr deplorar seu estado: "Não vos abandono, apenas vos precedo"e-5. Recebe a bô¡ção
do bispo e faz uma confìssão geral: "Estava preparaclo o leito de cinzas; Rancé exami-
nou-o tranquilo, quase com atnor"e6. Em seguida, urn últirno cliírlogo corn o bispo cie
Séez encerra-se com estas palavras: "Deus meu, l1ão vos clemoreis, vinde clepressa!"e7.
E Chateaubriand, seu biógrafo, comenta corno que conquistaclo por acllìele a quem de
início considerava monstruoso a ponto de dever ser banido cla espécie humana: "Con-
sumou-se assim o sacrifício. O arrependimento vos isola da sociedade e ninguérn lhe clá
o
justo preço. Todavia, o homem que se arrepende é irrenso"es. A morte clo
outro - calma.
serena, aceita - é também uma maneira, para o biógrafo Chateaubrianci, cle enlrentar
obliquamente a sua própria, pois a morte, na época romântica, vinha sob l'orma bern
mais assustadora. Ela assume os traços de uma companheira que ele jamais abanclo-
nou, tendo mesmo lhe consagrado toda a sua energia, e a quem afìrma várias vezes
querer juntar-se: "É tempo cle deixar o mundo que me deixa"; "Prefìro falar de clentro
do meu caixão"ee. Todavia, essa morte se apresenta no século XIX sob a máscara clo
espanto; a escrita de Mentória.s do Alént-túnulo é então uma f'orma de atravess¿rr o rio
para, na hora azada, encontrar-se já na outra margem.
O romancista de origem austríaca Stefan Zweig foi fbrteniente marcado pelo
advento da psicanáiise, cr-rjo modo de questionar aparece em toda a sr,ra obra bio-
gráfìca. Ele sai à cata de enigmas que tiveram por nome Fouché, Maria Antonieta.
73
O Dfì,St\FI0 Ill0GR¡\l:1C0. ESCIIEVER UM^ VIDA
Mari¿r Stuart, Magaìhães, Erasmo, Balzac... abalando com talento ets imagens con-
vencionais dessas grandes ftgr.rras. Isso se dá notadamente com um¿ì. personagem que
atravessou a Revolução, o Império e a Restauração em grande estilo e sem muitos
percalços: Joseph Fouché (17-59-1820). O que a história guardou foi, sobretudo, seu
oportllrìismo, se não seu cinismo. Teria sido um homem capaz de qualquer infâlnia
para saciat' sua sede de poder.,Stefan Zweig, porém, quer fazer justiça a esse indi-
víduo "uotáve.l", equivocadamente apresentado como um traidor de nascença e um
intligante ab.ieto: "N¿ttureza de víbora, trânsfuga profissional, alma vil de esbirro,
nroraiist¿r lamentável, nenhuma injúria lhe foi poupada"r00. Stefan Zweig impõe-se
cotro ob.ietivo resgatar a grandeza da personagem, seguindo a apreciação já lison-
.jeira de Balzac sobre esse "gênio singular". As mr"rdanças bruscas de curso em sua
carreira são vist¿ts por Zweig como outros tantos indícios de interesse renovado, de
curiosidade sempre alerta: "Foi assim que, de maneira absolutamente imprevista e
só por satisfação psicológica, vi-me a escrever a história de Joseph Fouché"r0r. Ao
mesmo tempo que essa travessi¿r psicológica, Zweig visa a uma melhor inteligibili-
clade do poder e seu exercício efètivo graças a uma personagem das sombras e dos
bastidores, clue nraneja os cordéis e controla os heróis do proscênio. Eis o argumento
central que eÌe invoc¿r para justificar a composição da biografia de Fouché: "Gosta-
rí¿rmos cle examìn¿rr, para nos defender, os homens que mandam e, assim, o temível
segredo de seu poder. Apresento, pois, a história de Joseph Fouché como uma con-
tribuição útil e bast¿rnte atual à psicologia do político"ro2.
O retrato que Zweig traçar de Fouché é animado inteiramente pela ânsia de
compreender. Ele enfatiza certo núrmero de traços e gestos da personagem que va-
mos reencontrando ao longo de sua calreira e atenuam a suspeita de puro cinismo.
Assin-r, zwetg põe en-r evidência a decisão, desde cedo tomada por Fouché, de pre-
serv¿ìr sLra liberdade, sua singularidade, "sua repugnância em ligar-se inteira e irre-
vo-gavelmente a alguém ou alguma coisa"r03. É esse talento para presel'var-se, para
distanciar-se dos compromissos que lhe dará a plasticidade com a qual conseguirá
atravessar, incólume, a tormenta revolucionária. Sem dúvida, o virtuosismo Iiterário
de Zweig coloca-se a serviço da alte do retrato. Mar-rifesta-se, entre outras coisas,
pela evocação física da personagem em linhas bem balzaquianas, supostamente ca-
pazes de desvelar a psicologia de Fouché e até a coerência de sua carreira: "Joseph
Fouché, na época de sua eleição, tem 32 anos. Não é um belo homem, longe clisso.
75
O DESAFIO I}IOC;RÁ¡'-rc). ESCREVER I]MA VIDA
108. /dr:rr. p. 4l .
76
A BIOGRAFIA, GENERO IMPURO
exemplo' Fouquet"rra. Com efeito, esse Fouquet brilhou a tal ponto que o Rei Sol
LLrís
XIV, sentindo-se ofuscado, meteu-o a descrédito e embastilhou-o após a grandiosa festa
promovida em Vaux-1e-Vicomte. Seu esplendor sem paralelo apagou-se numa úinica
noi-
te, a de 17 de agosto de 1661. Fouquet sucumbiu, não em consequência de um
fracasso.
mas, muito ao contrário, por causa de um êxito completo demais, de rimâ harmonia
que não é deste mundo: 'Às seis horas da tarde, Fouquet era rei de França;
às duras
da madrugada, já não era nada. Vaux, ou o sonho de uma noite de verão; Vaux
está
cinco anos na frente de Versalhes. Fouquet não será um Luís XIV prematuro?,,rr.t.
O
retrato se sustém pela escrita metafórica de Morand, para quem Fouquet é um curioso
insaciável, uma libélula fora de época, incapaz de perceber e evitar as ciiaclas qLre lhe
armam Colbert e Luís XIV.
O biógrafo põe em cena o choque de personalidades à maneira cle um diretor cle
teatro que quer impressionar o público. Com base na leitura da correspondência entre
Mazarino e Fouquet, que revela uma alternância de elogios e censuras do prirneircr
ao segundo, ele deduz: "Fouquet, supondo-se insubstituível, tomou a cólera de Ma-
zarino por mostras de humor;rrr(r.5" o biógrafo não pode penetrar na vida interior cie
suas personagens, pode, ainda assim e é o que tenta Paul Morarrcl
- -. explorar selrs
mistérios: "Esse monarca fechado em si mesmo [Luís XIVI nos deix¿r entrever seu
segredo"rrT. O biógrafo imagina e compara, fazendo de Luís uma personagem fàr-rstia-
na que se tornaria apolínea à força. Algumas marcas do comportamento de Luís XIV.
observadas como outros tantos traços recorrentes, podem contribuir para fr-rnclanlentar
hipóteses de ordem psicológica. O caráter irascívei do rei remontaria à inläncia. nras
ele soube refrear seus arroubos a fim de não provocar escândalos na Corte. A rigorosa
compostura em nome da civilidade cederá lugar ao retorno do reprimicio por ocasião
do caso Fouquet. Durante esse episódio dramático, Luís XIV "se mostrará tal qr-ral
é"r18. Esses traços psicológicos é queconstituem o verdadeiro horizonte de pesqLrisa
e escrita do biógrafo, para além dos âcasos da vida.
De seu lado, o escritor André Malraux sempre frequentou os píncaros e ali-
mentou a vida inteira uma legítima reverência por Napoleão. um fundador cle im-
pério a seu ver da mesma estatura de Alexandre, Aníbal e Tamerlão. Antes cle se
tornar um combatente político, primeiro na Espanha, depois nas fiieiras clo gaullis-
mo, Malraux atuou como editor e biógrafo. Entrando em 1929 para a Galliniarcl
como diretor artístico, criou uma nova coleção, "Mémoires Révélateurs". cujo ob-
77
:,,
t.
I
i
i
:
.ietivo era pLlblicar biogreifias de grandes escritores e divulg¿ìr textos pouco conhe-
cidosr'e. Foi nesse quadro que ele prodr-rziu vtna Vie de Napoléon p(rr lu,i-ntêntet2tr.
Ainda que, como assinala Philippe Delpuech, Malraux vá mais tarde falar muiro
poltco clessa obra. notamos que ele continu ará a fazet" referêltcia a Napoleão ao
longo de tocla a su¿t vida. A obl'a o torna partícipe da construção da lenda dourada
napoleônic¿ì, que ele apresenta c,omo um estrategista infatigável e sem par. Gênio
da palavra. clo discurso, Mair¿rux recorreu ao exemplo clas arengas cle Napclleãc.r
ìts tropas antes das batalh¿is decisivas: segundo Philippe Delpuech, encontramos
nos ronlances de Malraux ulna clareza, uma precisão, uma sobriedade fraseológica
bem ¿ì maneira dos colnunic¿tdos de Napoleão. O herói desempenha aqui o papel
de gênio tutelar, protetor daquele que lhe se-qLle os passos até as culminâncias do
sopro épico da história.
O escritor Alain Gert'rer, que apresenta um programa d,e.jctz,t. cliário na Fran-
ce-Mr,rsique, "Le jazz est Ltn lorll¿ìn", publicou em 2003 uma Lriografìa de Chet
Baker depois cle três meses cle programação diária consagrada a esse trumpetistzr/
c¿lrrtor de som e voz dos mais surpreendentes, singul¿rres mesmo, ulAS cle destino
trái-qicor2r. Na capa do livro, Gerber classifica a bio-erafìa de "romance" e reivindi-
c'¿r total liberdade de itnaginação, de invenção de diírlogos e personagens. Ailtda
I 19. Os plirnciros títulos cle stra coleçi'io sho Ur¡¿: rie tla tl.'Artugtt.tn par lui-ntêmc,1929'../t¡untau¡: itttit¡te.s
rle IJtron. ll930 Confcs,tir¡n.y tle.1.-.1. Boucltutzl. 1930.
120. Anclré M¿rlraux. Vic rlc Nu¡toléon pur lui-nôtnc, Gallintarcl, I930.
121. Alain Gelber', Cftr:r, Fayarcl,2003.
122. Chet Birker', C¿r¡r¡¡ne.si j'ut,cti.t tles uiles, l0/18.2001.
7,9
A RIOGRAFIA, GENERO IMPUI].O
A única respost¿l é zr príttica coticìiana, oLr clLr¿Ìse, daquilo que seria, nem
tar.ìto Lrrna ¡iogralìa
"romanceada" (corno por algurn tcnrpo pensei). mas
antes unra Lriogralìa ronì¿ìrìesca. oLr seja. culprrcla
em relaçño às stlas fontes cle ltnta clesenvoltura clue constitui
não apenas sua Iiber.daclc. mas lanlSérr sua
razão de ser - de certa lttaneira, seu icleal. Minha tarefa
mais penosa. a quc lnenos rlre corl'inlra, terír
sido curvar-ure à lei da pregr-riça' cultivar a boa vicla. a incxatidiro,
o abuso cle Iinguagenr. o tr¿ìvestir..ìcn-
to' a sublimação. a mentira. ir transposição onírica clesbragacla. a escolha
da visão contr.a a o6servaçiro
clos fatos e. por fim' a atitude inculta. Municlo dessa presunção,
serr a qual nacla scria possível (c1Lrer.
diz-er, tolerírvel eln sit consciência), tentei descobrir uma
celta vcrdade par.a além clo real. Enr suma.
quis proclanrar o l'also pa|a exprilnir, ap(.sa.r rla tu.dr¡. um verclacleiro
que e scm clúr,icla
l)enrancce,
deve permattecer, inexprimívcl. Infeliznrente não sou poeta,
mas apelei para a poética. ou pel. r'cr.ros
espero ter apelado'2{.
Fìcção, nada mais que ficção. Que contâ o erro cle uma vicla
e a vicla cie rrn erro. O carnirho rrais
cLÌrto entre História e históila é aincla imaginar. Ac¡Lri, o biógrafb
não tem clrrtra escolh¿r exceto sc f,azcr cle
histo|iador c o cronista só dispõe cle urn Lecurso, tornar-se rcrnrancista.
Contuclo. . r.oma'cista sti co'sesnc.
ver claro na matéria descclbrindo-se poeta,r,'.
79
O OTSAI;IO B]OGRÁFICO. ¿SC]ÃIiY¿'R IJIVIA VIDI\
Nunr outro registro, François Bon apresenta sua obra sobre os Rolling Stones
como biografra e. ao rresmo tempo, romance: 'A biografia deve partir sempre da
sombra, atravessar a curta faixa pública e voltar para a sombra, aceitando-se como
romance dessa sombra"l?7. François Bon sabe muito bem que só encontrará a indeter-
nrinação com que se defrontam seus heróis se não ceder à tentação de avaliá-los pela
popr-rlaridade que conquistaram. Nesse encaminhan'ìento às avessas pâra recuperar
a incerteza dos instantes do passado e a pluralidade dos possíveis que exige fingir
i-9norância do futuro. "a biografia é um exercício tão selvagem quanto o romance,
do qual absorve a técnica e a for'ça r¡ítica"r28. Essas condensações novas do tenrpo
pressupõem a atuação do próprio biógrafb, François Bon, que era adolescente durante
o período de fastígio dos Stones, com uns dez anos a menos que eles: "portanto, é o
próprio rotrrance de meu tempo que resolvi escrever"r2e.
A "vidobrut"
no ensino das ciências humanas, e abrem espaço a uma pletora de dados biográficos a
partir de meados do século XIX. Expõe-se a vida do autor ou apresenta-se o homem
e seu c¿iráter, reservando lugar a uffta rubrica que deltne os gênios.
No século XIX, essa concepção domina inconteste, não mais sendo ouvidas as
críticas express¿rs pelo historiador literário Gustave Lanson, que questiona "uma cole-
tânea incoerente de fâtos e fónnulas próprias a aborrecer os espíritos jovens"r30. Ern
80
¡\ t] I 0G Il.A I; t t\, C;EN ER() I 14 p U R0
l3-5 Ver a crítica desse processo n¿r últinra biografìa. em data, cle Jcan-.lacc¡ues R<.¡usseau, Iìaymoncì
Trousson, Rous.seau, Tallanctier. 2003.
136. Sainte-Beuve, Nolrr¿rn u.r Iutttli.ç, 2?.1ul. I g(r2.
8/
O DI.,SAFIO I}IOGRÁFIC0. E,SCII.tì\/I:jR I.]MA V]D,\
ria,; e slra cotresponclência para recorclar lutas. as sirnpatias e alltipatias cle madame
¿rs
137. Sairrte-llcuvc, (Ii¿n,r'¿r,ç It, fìn des portruits Iittéraircs. Pc¡rtraits tle JÞnunes, Pléiade, 1960. p. 1135.
I 38. Saintc-llcut'c. L¿ t:ah i c r t'e rt. n. 961, Gal limar<i, 197 3. p' 246.
l39.lrlent. p. Il3ó.
140. Itlettt. p. I 149.
111 . Irlcnt. p. I 158.
142. SainLc-lleuve. CÌ¡l¡i¿¿r örii¡r, nt¿inuscrito conservado na biblioteca cle Lovenjclul, Chantilty, p' 2-5.
(r1
A BI OG II ¡\I: I ¡\, O ];N t. Ro I iI| P U RO
Ac¿rbo cle rclcr Iltrgo. Vìgny. Larnar-tirrc. Mussert. Gnr¡tier e Sailrlc-lJcrrvc cor-rìo rcl)r.cscntarllcs
cl¿ì
plôiade dc 1830. A gr-rc ¡lorlto esscs tais sc e nganaranll
Quc iclcia lÌLlsa nutrìranr clo honrc.¡u c cla viclal
Cor-no a ccltlcaçixl cientílìca e hìstór'ica moclifìca o ponto clc vistal Matclial c 11'ìorlllnlcntc.
sor-r ¡¡l lit¡¡.r¡ rl¡
cspaço e llo tenlpo inlìnìtos. t¡l'n botão nr¡rll haclb¿i. t¡nr¿r inllorcscôncia nrínillla rrurn
¡roJi¡rcir.o prociigioso.
qLle ocupa a vasticlão clo occanor"r.
Se. pois. Taine visLlaliza o ¿írtomo incliviciual couro parte cle um toclo. c'r n-loclc>
de explicá-lo é partir daquilo que constitui su¿r sin-qularìclade. daqueles sin¿ris uri-
núsculos que vênr ¿r lunre na dissecação. cìaqueles fragnrentos ligaclos uns aos olrtro.s.
Critic¿tndo semilre o Lìso que se faz clas infonnações aneclóticas. Taine "enfatizava ¿r
irnportância conceitual de toclas as ninharias inclivicluais clesclenhaclas por Hege l"r'fs.
Segtlndo Taine. a chave de un-ia obra está er1'l sLì¿ì exterioricl¿rcle no meio. uo nronlelrto,
na raça. Seu determinismo é tal qrie Sainte-Ber-rve se af¿rstarí. um poLlco cle su¿rs teses.
reafirmando o car/rter artístico do gênero e, sobretuclo. Ltma certa liberclacle qLre não
pode se deixar recluzir por determinações restritiv¿rs: "Eul se tratanclo clo honlern. não
convém decerto fazer como fazemos com reìação aos anir¡ais e às plantas. O honrenl
moral é mais conrplexo. possr-ri a chamada I.iberclcttle. ä qual, ent tocias as instâ¡cias.
144. Hippolyte T¿rine, Hi,çtoire da lr.t littércttLtre angluisc.l,lachctte. I g(r3. XI-l Il.
l4-5. l-IippolyteTaine' citaclo porGeorges May. "Sa vie, solr æuvre.. Réf'lcxiuris sur la biographic littcir.lir.cr"
Diogènc. n. 139, .jul.-sct. 1987. p. 3.5.
146. Hippolyte Taine. Page,s choi.sis, victor Giraucl (olg.). I-lacherre. 1909. (r.
¡1.
147. lclcnt, pp.34-35.
148. Sabina Loriga, "La biographie co¡nnle problònrc", er.u Jacqr,res Revel../crr.r- l'écltellc.ç, HaLrtcs Ét¡clc.s
Gallimard. Le ScLril. 1996. p. 225.
O DESA,FIO RIOGRAFICO. ESCREVER UMA \I]DA
149. Saintc-Ilcuve. No¡rr.,e¿¿ux Iu¡ttlis. op. cit., t. III, 1865, pp. l6-17.
150. ClaL¡ctc Abastado, "Poltlait de I'auteur: les biographies d'écrivains dans les lnanuels d'histoire littéraire",
cm"Écritules2-LePor-tratt",CahierscleSénriotitlueTextuelle,l0, 1987,ParisX,7t. 197.
l5l. JacclLIes Demogeot, Hi.stoire de La littéruture.frutçaise, Hachette, 1878, velbete "Larnar-tine".
l-52. Brigitte Diaz, "Vie dcs grands auteurs du prograrnrne",Revtte tles Sciences Hnntaines, art. cit., p.255.
I53. Fcl'tunat Stlowski, Tctbleau de Ia Litt.érature Ji-uttçrti.se d.Lt XIX".rlàcle, Delaplane, 1912, p. 190.
84
A ßtOGR¡\FIA, GËNERO IMpURO
biográfica o dever de bem situar o ambiente social, a atmosfera afetiv¿r que o rocleou
em sua infância. Da maneira preceituacla por Sainte-Beuve, o grnnde homem se re-
conhece na figura dos pais, principalmente da mãe. Assim. a de Lamartine é ,.tímicla
e passional, fazendo reinar na casa uma atmosfera poética e piedoszr"t5a, o que
fàci-
lita a expressão da sensibilidade de um dos mestres do romantismo francês. O autor
é apresentado, nesse romance autêntico de sua vida, como um herói: ele superou
os
obstáculos que poderiam entravar sr-ra inspiração e conseguiu valorizar, otìmizar
as
condições propícias a seu desenvolvimento.
A biografia se apresenta como exposição dos caminhos cla realização. segu¡clo
uma teleologia que faz do escritor um indivíduo dotado, desde o berço, de todas as
qualidades exigidas para se tornar um criador excepcional. A informação bio_sríilìca
se transforma, pois, em lição de moral, em verdadeira mensagem ética nos termos
da ideia de Sainte-Beuve: "O estudo liter¿írrio me conduz rnuito n¿rtur¿ilmente
[....1
ao estudo moral"rss. Além de sua função pedagógica cle ferramenta própria par¿ì a
avaliação dos conhecimentos dos alunos, contribuindo para o exercício de u¡ra gi-
nástica intelectual no uso das interações entre vidas e obras de escritores. a inlbr-
mação biográfica deve também contribuir para ilustrar o gênio nacional em torno
de certo número de figuras. A história literária desempenha, nesse plano, o papel cle
complemento do breviário histórico nacional que é o Lavisse. Os heróis da crierção.
santificados ao lado dos heróis da nação, devem suscitar o desejo de imitar e jclen-
tificar-se, o que contribui para erigir as bases de um consenso repr-rblicano rico em
novas vocações. Por isso Molière é "de raça gaulesa pelo torneio clo espírito e pelcr
tom das facécias [...] Seus ancestrais não foram nem gregos. nem romanos. nem
espanhóis; é um gênio de tradição puramente francesa"rs6. Uma verdadeira trans-
ferência de sacralidade se cristaliza. na sociedade leiga, entre esses novos honrens
'a.
ilustres que fizeram a literatura fr"ancesa com o mesmo talento e senso cle sacrifício
t,
It
claqueles que, no âmbito da história, governaram o país ou sucumbiram em batalhas.
O pretenso Panteão republicano, no sentido em que Marivaux fäla do "museu irr¿ì-
t,
ginário", recupera as grandes figuras do Antigo Regime, notaclamente o famoso trio
,i
it das glórias do teatro que foram Corneille, Racine e Molière. Ao mesrno tempo qLre
esse zelopatriótico a animar a escrita históricar57 tanto quanto a abordage¡i literária,
uma espécie de atenção científica orienta o método escolhido nas duas disciplinas:
!. elas tomam assento na escola das ciências naturais, clas ciências experimentais en1
t.
154. Cha|les Des Granges, Histctire cle la Iitté.ratLLr¿. IJatier, 1914, verbete "Larnartine".
I 155. Sainte-Beuye, Nc¡uveaux Iundis,22 jul. l862.
156. Renó Dounric, Histoire de Ia IittératLtre .fi^ançttisc, Delaplane, 1910, p. 324.
157' Ver Christian Delacroix, François Dosse, Patrick Garcia, Les courant.ç ltistorit¡ues
ctt Fruttt:c XlX"-XX"
,riàc/¿, Annand Colin. 1999.
t.
8-t
'
)..
pleno vi-qor no fìm clo século XIX. Evoluciclnismo sirnilar inspira um Jules Michelet,
setrpre I'ascin¿iclo pelos trabalhos cie Geoffroy Saint-Hilaire, e Lull S¿rinte-Beuve olr
um Taine. que perfìlha a nretitfbra botânic¿t "tal 1ìrvore, tal fruto". A psicologia dos
hurnores pass¿ì a ser f'onte essenci¿rl cias distinções estabelecid¿rs entre tipos de car'á-
ter clilèrentes. c¿ìpazes de desvel¿il'os n-listérios do gênio criadol.
Pclclenos ¿rssinr se-9uir ¿r tra.ietória de Baudelaire nos m¿rnuais escol¿rresr58. No
início clo século XX, B¿ruclelaire ainda cheira muìto ¿r enxoli'e para ser aceito no bre-
viírrio naciou¿rl. seu temperal-ìlento "bilioriervoso" repele, quando uão o condena de
vez ao in1ènio. Só depois cla Segr-rnd¿r Guerra Mr-rndial ele ascende eto patamar clas
glórias clo patrimônio literírrio da nação. O -qrande manual dos anos 1950-1960, o
fanroso Castex e Surer. cìonta a vida de Bar.rdelalre sob o título "Carreira". subdividido
em três mornentos: esse itinerário pretende lornecer as chaves da obra: "Baudelaire
fìli, a vicl¿r inteir¿r, um desgraçado. Sol'ri¿r por caus¿ì de sua solidão moral, por causa
de suas dilìcLrldacles rnateriais, por caus¿r das decepções de sua carreira, por causa de
sLì¿ìs taras físicas. Essas misérias todas explicaln a intensidade de seu spleen"t5e. A
psicologia é o recurso para invcstigar as chaves essenciais que dão entr¿ìda ao mun-
clo de Baudelaire. Todos os manuais cia época apresentam uma estrutura que seglle
a genealogìzr do gêr-rio de Baudelaire, seus estudos, seu dandislro, suas viagens, seu
uso cje drogas, sua doença e su¿ì n'lorte. pondo em funciouamento "o torniquete da
explicação: a obra é fonte da biogralìa. a vida é fbnte da obra"r6('. Como constata
Clar-rde ALrast¿iclo, essas apresentações biográfìczis de Baudelaire em livros escolares
procllr'¿ìl-ì'ì explicar a obla pelo homern, quando na verdade a explicaln por uma "irna-
158. Clar-rclc Abastaclo. "Poltrait clc I'autcur: les biogra¡rhies cl'éclivains dans lcs mauuels d'histoire litté-
ririrL-", cm "llcritures 2 * Lc Poltlatt", Cahicrs tla Sérniotic¡utt Tc.rtt,tel.le, o¡t. c:it., pp. 199-209.
159. Piclrc-Geor-{es Castcx c P. Surcr'. Muttuel de,s étttdcs littéraire,s .fi'uttçaise s. XIX'' siècle,l-lachette,
I 950. p. 262.
160. Cllauclc Abnstaclo, "Poltr¿iit de l'auter,rr': les biographies cl'écrivains d¿urs les nanuels d'histoile lirté-
laìr'c". cr.t.l "licritules 2 - Lc Portrait". Cuhier,ç tle Sániotiqt,ta. |'axtttclle, op. cit., yt. 207.
161. klant, p.208.
l(r2. Juliu IJarnes. La parroqtrt,t da Fluttbcrt (198.t). Stock. 1992.
8ó
A BIOGRAFIA, GËNDRO I¡4PURO
enfim, deixarem paz os escritores e limitar-se ao estuclo cle su¿rs obras sern preocupa-
ção com as pegzidas que a pessoa deixou atrirs de seus livros. Barnes torn¿Ì o c¿rso cle
um escritor, Flaubert, que como nenhum outro t-ez valer ¿r irnportância de su¿r ol'¡.¿r e
a insignificância do homem como personalidade privacla. OLa, cor-ltinuamos a perse-
gui-lo e ¿ì ollsar, como Sartre, construir uma biografia tot¿rl. Jr-rlian Barnes imagina a
história de um desses bió-qrafos de Flaubert que relaciona o papagaio encontraclo n¿r
casa-museu do escritor em Ruão e o fato de esse animal ter est¿rdo sobre su¿r rnes¿r cle
trabalho enquanto ele escrevia IJnt Coraçao Simples, que tem por personagern pr-inci-
pal o papagaio de Félicité. Loulou. O tal papagaio suscita de repente um senti¡ento
de familiaridade: "Nessa ave verde, bastante comun'ì [...] al-so me levav¿r a crcr qlre
eu quase conhecera o escritol'"'ut. O biógrafb se perde então em conjectur¿ìs est¿ìpa-
fúrdias. Félicité seria quase incapaz de falar, a clespeito de Flaubert. e o papagaio
desempenharia o papel de medi¿rdor. Insuflaria então. con'ìo o Espírito Santo. o clonr
das línguas. O papagaio simboiizaria, pois, um corneço - o verbo. ¿r comunicacãç
possível. Ei-lo encarregado cle um dom superior a ponto cle o bió-urafo se perguntar:
"Será o escritor algo tnais que urn papagaio sofisticado'7r:r6-1. { ave ocup¿ì t¿trn¿ullro
espaço que o biógrafo procllra de maneira obsessiva. na obra cle Flar-rbert, clescolrrir o
momento exato em que ele encontrou o animal. Resta saber se o papagaio cntrevistcr
na casa de Flaubert é mesmo "o" papagaio. O biógralb se l¿rnca a uma empresa cle
¿ìutenticação, mas sua rede não lhe pennite apernhar realmente o peixe: 'A recle se
enche e o biógrafo a puxa; separa, rejeita. põe de lado, joga fclra e vencle. Ncltem ciue
ele não apanha nunca o que quer, pois sempre há mais peixes a apanhar"'t". Alénr
dos traços de seus encontros com papagaios. o biógrafo interroga a obra de Flaubert,
examina seu bestiário, a etimologia do nor11e, o significado do terno na Grécia anti-e,a.
Chega a algumas hipóteses, ûras, para cúrmulo da desgraça, vê-se cliante cle uma mul-
tiplicidade de papagaios - o de Félicité. o ernpalhado de Croisset. o clo Hôtel-DieLr.
sem falar dos vivos e allsentes, como o da Et\ucaçcio Sentinlentctl, qr-rando Frédéric
depara com um "poleiro de louro". O biógrafo do relato de Barnes leva dois ¿tnos par¿t
resolvel o enigma do papagaio, o qlle em definitivo llão parece qLtase nacla perto clos
sete consagrados por Sartre zr redigir L'idiot de la.[a.mille - c1r-ranclo poderia nruirct
bem aproveitar esse tempo para "redigir panfletos maoistas"'ó6. Qual é o papa-saio
impostor: o de Croisset ou o do Hôtel-Dieu? Çada um dos guardiões desses clois lLr-
gares reivindica, alto e bom soûr, a autenticidade de seu louro com r¿rzões cle peso. A
87
O DES¡\I:']O ßIOGRÁFIC(). I'SCII,EVER UMA VIDA
vlsita ao secretário da Société des Amis de FlaLrbert, um terl Lucien Andrieu, mergu-
lha o biógralìl nos abistnos cla perplexidacle: explicam-lhe que. quanclo dzr instalação
em i905 do lnusett de Croisset, decidiu-sc recuperar para a instituição o papagaio
pedira emprestado. Ali ele descobre nada rnenos que cinquenta louros.
c¡ue Flar,rbert
Corno saber qual estivera sobre ¿r mesa cio escritor? "Pegaram um exempl ar de (Jnt
Crtrctç:ão Simple.s e releram a descrição de Loulou por Flaubert
[...] Escolheram então
cl papagaio clue tlelhor se enquadrava no retrato"rÓ7. A autellticidade do escolhido
rlão é cle maneira algutna seglìra. pois Flaubert devolveu o papagaio ao museu em
1876 e só trinta anos depois o pavilhão dessas aves foi instalado. Não irnporta qr-ral
dos ¿rnimais é o verdadeiro, caso algum o seja. Essa história bullesca mostra a inuti-
liclade cla pesqr-risa biográfìca de detalhes da vicia, de h,rgares percorridos, de objetos
possuícios clLle em nada esclalecem a obra, apenas ocupam os lazeres cie espíritos
lnaní¿ìccls que "despeldiçam a velhice para fazer arguma coisa"ró8.
Antes da ironia fèrina de Julian Barnes, Marcel Proust jír tomara cla pena para
escrever Cr¡ntre Sainte-Beut,e. Aí, enuncia o que é do domíuio da arte e o que é do
donrínio d¿r crítica. Postula e reivindic¿r em altos braclos ¿r autonornia do narrador e,
portanto, a existência de uma barreira intransponível entre a personalidade psicológica
do escritor e seu universo literário. Para fàzer essa ctistinção absoluta, ele solapa as
bases da "vidob[a". Proust se insurge, pois, contr¿ì o que chama de "färnoso método
de S¿rinte-Beuve"': "Esse métoclo, qne consiste ern não separar o homem da obra
[...1
Esse métoclo ignora o que utna flequentação um pouco profunda de nós mesmos nos
ensina: que o livro é prodr:to de um e¿¿ cliferente daqr.rele que rnanifÞstamos em nossos
hábitos, na sociedade, em nossos vícios"r('e. Sainte-Beuve, aos olhos de proust, não
entendeu nada do que especifìca a atividade literária, a quáìI, na essência, sem voltar
as costas à vida real, utiliza-a e transforrìa-a graças à alqLrimia do estilo. Essa meta-
morfbse collstitui um segredo entre o autor e o na.rrador, devendo permanecer opaca
ao leitol' qr-re não entroll no jogo. Proust opõe o que é da esfera da mundanidade a
uma outì'¿l relação, bem diversa, corrì o mundo descrito na obra literária. Pesquisar
junto a testemunhas ou amigos, explorar a correspondência ou os <iiários íntimos
seria um nrodo de se confundir, porquanto as infolmações coletadas nos falam de
outro ell que não o responsável pela literatura.
Essa radicalização da oposição entre duas identidades lembr¿r, não pr-opria-
lllente um conflito de concepção crítica, mas antes um aspecto biográrfico da vi<ia de
Proust. A hipótese elaborada por Michel Sclineider mostra qlre por trás da polêmica
88
A BIOCRAFIA, GENDRO IMPIJII.O
170. Michel Schneider. Manuut, Gallimard, col. "LUn er I'Aurre", 1999, pp.32-33.
l7l. Marcel Proust, Jean Sanreuil, citado pclr-Michel Schneider. o¡r. cir., p. -5g.
172- Corno me observou Yveline Lévy-Piarroux, podernos notar aqLri urn paracloxo bastante esclarecedor
de Proust, que utiliz-a a primeira pessoa no Ent Bu.çcct do'lentpct Pertlitlo, embora se situe clararnentc
mais longe da realidade estritarnente vivida.
173. Marcel Proust, Le temps retrort'é, citado por Michel Schneider, op. cit.,p.59.
174. Georges May, "Sa vie, son (Euvre. Réflexions sur Ia biographie littéraire". Diogènc. n. 139, jul.-set.
1987. p. 42.
B9
O DDSI\I:IO T]IOARÁ]:ICO. ESCII,I:,VEII, UMA VIDi\
que constitlliu slra própria vida, ou seja, a esclita. E esse afastan-ìento o condena ¿r
90
A BIOGR]\I;!A. GLNI'RO IMPURO
Ilttsctt. é ntanusear dublê do romance, como se Proust houvesse escrito duas vezes
r-rrn
179. Roland Barthers, "Les vies parallòlcs", La Quinzainc Li¡tr;raira,l-5 nlar. 1966; republicaclcl eni (Et.¡,re.s
cotrt¡tlètes. t. II. 1962- I 967 . Le Seuil. 2002. p. 8 I 2.
180. Idcnt. p.8i3.
l8l. Rolarld Barthes, "Longtcrnps.jc ntc sLris cotrché cle bonne hcule". conl'erência no Collège clc lìrance.
l9 de outubro de 1978, putrlicacla na coleção "Les lnódits du Collè-ee cle Flance". 1982: repLrblic-.acla
em (Euyres r.:ontplères, t. V. 1977-1980. Le SeLril. 2002. p. 459.
l8?. Idettt. p. 467.
183. Ident. p.463.
184. Idcnt, p. 463.
9l
O DESAFIO BIOGRAF]CO. ESCREVER UMA VIDA
92
A ßIOGRAIIIA, GENEII,O IMPIJRO
Mal podemos ilnaginar, não hír dúvida, mais frieza e indiferença de uma rnãe por seu lìlho. Apen4s
o dera à luz e, ainda no leito de parturiente, afastou o bebê da casa como se sc tratasse cle um leproso.
O pequenino foi posto sob os cuidados de uina anra, mulher de um policial. c perrnarreceu ccr¡l ela ató a
idade de quatro ânosre1.
9.1
O DI:.SAFIÒ ßIO(|II.ÁI:ICO. ¿SC1ì/'Y1'1I UMI\ VIDA
a vid¿r inteira por credores e rneirinhos. Zweig descreve com vivacidade esse escritor
sempre metido enr enrascadas qr-re trabalh¿r como um galé para honrar suas dívidas:
"Quanto mais ganhzr. mais quer ganhar. Escreve corno um condenado. quase serl fô-
lego, pulmões estollrando, para escapar à prisão detestada da família"re6. A admiração
de Zweig por Balzac não o faz cair na apologia. Mostra-se ffìesmo sevelo sobre ess¿t
prinreira tase no curso da qual Balzac "gerratujou", enquanto estudava, dez mil linhas
clue nada têm de litetatura: "Prostituição, eis o que era - não podemos dar outro nome
a esses rabiscos -, prostituição larnentável"re7. Mais uma vez, vida e obra se cruzam. A
Pele do Onctgro rìarra as desventur¿rs e fracassos sucessivos da juventude de seu herói:
"Eu era vítima de cria-me destinado a grandes coisas, mas
um¿r ambição excessiva,
era colno se estìvesse no nada"res. Balzac f'oi iniciado no amof por uma mulher com a
iclade de sua mãe, nradame de Berny, que o tornará autoconfiante e lhe proporciona-
rír uura paus¿ì para respirar. Foi por causa dela, assegura Zweì-9, qr-re Balzac se tornoLr
Balzac. Mostrou-se para o escritor ulna verdadeira mãe, confidente, amiga, amante - e
isso por quase dez anos. Mais tarcle ele traçará dela, ainda segundo Zweìg. um retlato
eni O Lírio do Vale, sob os traços cle r¡adame de Mortsauf. O biógrafb Zweig insiste.
err relato, nllrl-ì traço de destaque, motor de seu biografado. No caso de Balzac, a
seLr
ibrça cle vontade é que lhe perrnite compreender o alcance desmesurado da tarefa que
se inrpôs, o projeto de pintar o conjunto da Conúdict Humana. Quando começa a es-
crever essa obr¿r rÌlonurnental, desperta a adrliração cle Zweig:
Obsc.rval'[Jalzac enr canlpo, cis serl c]úvicla o cxemplcl nrais grandioso que poder'íar-nos tel cla
continuidrde cle uur ato cliaclol n¿r literirtul'a clos tenrpos nrr>clel'nos. Como urna íu'vore vigorosir, nutricia
clos sucrls eLenlos cla tcrra. ele alteia seu tronco luxuria¡rte, estenderlclo cada vez- nr¿ris alto, para o céu, a
rânlagcrìr espessiì de sua olrrar!").
94
r\ ß 1 0(ì R t\F I t\. (i I:.N E RO I M p Ll Ro
Balzac se Íìove num mLlndo ao mesmo ternpo real e imaginirrio, sem fì-onteir¿ì cert¿ì.
entre ambos; sua vida é uffì roffì¿u-rce e selr romance. um¿r vicla. Urn belo cli¿r. o roul¿ìnce
se transforlla em vicla; e nasce daí. graças eì paixão que ele nutre em sua fzrptasia por
uma princesa de sonho. um rorrance verdadeiramente viviclo. o de seu encoutro cor-ìl
madame Hanska, que tolïara a iniciativa de escrever-lhe sob o pseuclônimg ¿e 'A Es-
trangeira" para confessar a admiração que a obra cle Balzac nela suscit¿rv¿r. Af'ora essc.
impulso passional, ele continua a amargar vicissitudes ein sllas especulações financeiras
e investimentos cada vez mais delirantes, entre o fracasso da construção clos J¿irdies
e o das minas de prata cla Sardenha, errì Nurra. Contuclo, "nacla cia confisão extern¿t
penetra a esfera de fectrnda lucidez em cìue se constrói sua obra"r')r. Balzac cies.rpare-
ce na noite de 17 para 18 de agosto de 1850 e, na celimônia clo enterro. é Vítor Hu_eo
quem lhe presta homenagem.Zweig encerra sua biografia coÌl1 estas paìavras. qlre re-
Iembram ainda a junção inextricável de um percurso de vida com a criação romanesca:
"Palavras assim, nunca Balzac as ouvira enquanto vivo. Do alto do Père-Lachaise ele
irá, como o herói de seu ronìance, conquistar a cidacle"2o:. A vida e o próprio destino
póstumo tiram daí o modelo ficcional de uma circulariclacle que fundamenta o clireito
de pensar em conjunto essas dr,ras dimeusões.
9.5
O DESAFI0 ll|OGII.AFIC). ESCREVER UMA VIDi\
Na biografìä, autor e narrador estão por vezes ligados nunra relação de identitlade. Essa relação
pode fìcal inrplícita ou indeterminada, quando não se explicita, por exelnplo, nunr plefácio (digamos, o do
Irliotu rla Famíliu. clnde o biógrafo Saltre cornunic¿r Ler contas a ajustar corìl seu l¡odelo, Flaubert)ros.
96
A ßl0GRAFlt\, Gf;NERO tÌt4PUR0
Há um caso que exige, como nenhum outro, a explicitação das motivações clcr
"eu" do biógrafo: as biograftas escrit¿is por políticos. Nesse plano. pgclemos falar cle
verdadeiras "afinidades eletivas" entre os políticos e sua circunscrição eleitoral trans-
fbrmada, para a ocasião, em solo de enraizamento. Alai¡r Juppé, clepois cle deixar
Matignon. ìmpôs-se a tarefa de escrever urla biografia cle Montesquieu: "La¡cei-¡le
em rosto esse desafio::20e. g
ex-prinreiro-ministro, prefeito e cleputaclo cle Borcléus.
curva-se sobre sua identiclade regional e, para essa obra. associa o próprio nome ¿ìo
de Montesquieu, glória inconteste da cicl¿rcle que ele administra. Os borcleleses. cìo¡r
efèito, ergllem bem alto o pavilhão qr-re reivindica os três "M": Montiligne, Mclntes-
quieu e Mauriac. Alain .Tuppé se guarda. entretarìto, cle ceder iì tentação clos fìgr-rrões
políticos que. livres de suas altas responsabilidacles. costlìlranl se converter à biogra-
fia histórica. Ele prefel"e valorizar o caráter sempre atual das orientações enunciaclas
pelo autor do Espírito clcts Leis e ver aí um possível recurso ou nreio de travar conr
armas nrais afìadas o comtrate político. Concluinclo sr-ra biografia, Alain JLrppé não
dissimula a adequação que vislumbra entre um lugar, um homem ilr-rstre e o legaclo
histórico que presurne encarn¿ìr: "Se vos falei de Montesqr-rieu foi porque Borciéus. é
cl¿rro^ tem muito que ver coln ele. Afìnal lír estão selr llorre, sua estátua, seLls livros.
seus admiradores e os especialist¿ìs em sua obra, mais nunlerosos que em qualqLrer
outra parte"zr0. Orgulhoso desse enraizarnento reencontrado. o biógraf,o político pocle
então encaixar-se em seu molcle como o inspirador, o grancle homem qLre vai lhe
perrnitir reaparecer em cena. O autor proclama a atualidade t¿ìnto da fìgr,rra conro cl¿r
natureza de sua mensagem - no caso de Montesquieu, a resistência ao absolutisrnc)
e a def'esa das liberdades: "Por 250 anos, suas ideias permaneceram vibrantemente
atuais, pois entre despotisrno e democracìa é que p¿ìssa a linha divisória"r". Surge
então a identificação possível do "eu" do biógrafo com o biografaclo:
Vivi duas ou três décadas cle cnfì'entanrento.icleológico el'ìtrc o c¿ìlllpo clo cles¡rcltisnro, para falar
conro Montescluicr.r. e o caml)o da libcld¿rde - entrc nrinha passagcm pelir lr-r¿r cle Ulnr. em 196:1. ató ac¡Lrclc
dia de Ilovembro cle 1989 enl que cairr o rnuro de Berlini. Tirdo era tão sinrplcs, lra ópoca!r'r.
Mas ele reconhece que chegou o momedto cle contemporizar e que ficou nrais
perigoso assumir riscos.
97
O DESt\l:lO ßlOGRAI|lCO. ESCREVER LllvlA VIDr\
213. I;rançois Bayror,r, Ht'nri IV, lc roi lil re, Flarnnlation. 1994.
214. ltlt'nt. p. 10.
215. ltlctrt. 1t. | |
.
98
A ßI0GRAI:IA, GENI.RO IIVI PIIRO
préstimo os ouropéis da história par¿ì seu conrbate político presente: "O clesafìo c1r_rc
ele enfrentou é da mesma natureza clo nosso: uma mudança cle época... Cinco sécuìos
depois. eis-nos rnergulhados numa crise i-guerl"2r7.
De seu lado. o
-saullista Philippe Séguin tenta fazer
jr-rstiça a LLrís-Napoleão Bo-
nap¿ìrte, que teria pagado beur caro sr-ra fideliclade zìs próplias cc¡nviccões. Dupla¡le¡tLl
venciclo pela inragenr esmagadora cle Napoleão I e pela derrota de Secian. nern por.isso
careceu de méritos. Nessa biografia que lembra um clesafio, o alttor. escolhenclo ul¡¿r
personagem mal-amada, veste a to--g¿ì de zrdvogado para clar largas ¿ì Llul¿r retóric¿t niuitg
especial. a clo litígio. Podemos ler trajetória coïno se ela clisfarçasse a clo pr-óp¡o
ess¿r
Philippe SégLrin. ainda fiel a certos icleais gar:llistas já agora marginalizaclos. Clabc
celebrar a folça e er grancleza, ao preço cla solidão, nessa "r,icla cjue se transfbl.l¡a. eul
destino por obra da vontaderr2rtì. Q biógrafb censura as lì'ases f'erinas cle Vítor. l-Iugo, que
perseguiu Luís-Napoleão "corn r-rm ódio inexorável"2"'. mas l¿rrnenta tambónr a ironia
cieMarx quando afìrma. em O l8 Brumário de I-uí,s Bona¡tarte, qLre r1o caso cle Napo-
leão a história se repete. prinreiro como tragédia, clepois colro farsa. Philippe Séguin
assunie plenamente sua subjetividade. Para ele^ escrever uma biografia é o mesnìo que
conrbater na arena polítìca: "Este livro é. nãcl o nego. urra tentativ¿r cle tomar particlo.
Procura, às claras. dar ¿rs t'azões pelas quais não clevemos pern'iitir qr,re Lr-rís-Napoleãxr
Bonaparte delìnhe num canto escuro e vergonhoso cle nossa menrciri¿r coletiva"I".
E o que acontece quando o bió-qrafb é r,rm político de esquercìa'? Emprega os
rnesnlos meios retóricos e se esforça p¿ì.ra dar à luta política a ntesnta grancleza cle
alma? A mesma projeção pessoal? A .iul-ear pela biograha consagracla ¿r Franciscç I
por Jack Langtt', avaliamos a permanência clo enr nteio às vicissitucles políti-
-qênero
cas com uma únic¿i ressalva: uma atitucle mais ética. qLre consiste c-m reconhecer ¿ìs
próprias dívidas na realização do empreendimento. Assirn é que Jacl< Lang exprinrc
sua gratidãro aos que, documentalistas e historiadores, o a.juclaranl e acompanharzrn1
na redação de sua biografia: Françoise Kermina, Laurent Siguier e o professor cla
lJniversidade de Tours, Gérald Chaix. O preteito cle Blois tarnbén-i encontr¿ì.
-sr¿ìças
ao herói de sua cid¿rde. oc¿tsìão para uma legitimação histórica enraizacla num loc¿rl,
mas é sobretuclo na obra cultt-u'¿tl do rei da Renascença. em seu 1àscínio pelas ¿ìrtes e
a civilização italianas, que o ex-ministro da Cultura insiltua um¿r continuicjacle cntre
o passaclo e slra atuacão pública atual. Ele sr,rperpõe também as duas épocas: ¿i vivida
por Francisco I - o Renascilrento. o Campo de Drap cl'Or, ¿r circum-navegação clo
99
O DESAFIO Bl)GRAlllCO. ESCREVER UMt\ VIDA
222. Ident, p. 9.
?23. ltlent, p. ll
ÇI{-1,t
t00
t r,l q I t "l ü--
*l"* ir ,,\
--t
A BIOGRAIIIA, GENI'RO IMPURO
224. Goethe, Souvenirs de nta t,ie, poésic ct t,érité, Aubjer. lg4l prinreira parte, citado por.lean
, Hytier
idenr, p. 100.
22,5. Pierre Broué, Zrn¡skv, Fayard, 1988. p. 13.
226. Philippe Robrieux, Maurice Thorez. vie secrère et t,ie publitltLe, Fayard. 197-5.
227. Idem, p. l.
228. Idem. p.2.
229. Joachim Fest-. AIbert Speer, perrin, 200 l.
101
O DI:SA]:IO BIO(iIIIiI;](:0. ESC:]IEVEII LIIVIA VIDÅ
Jobst Siecller. Elnbora l'amiliariz¿rdo conl o clossiô Speer, Fest hesitou muito tempo
¿rntes de se entregar ao _qênero biográfico. pois era lbrte "¿t tendência a considerar ¿r
biograta colno um gênero llleltor"l3t)e, não bastasse isso, o caso se presta llral a c¿L-
tegolizações excessivanlerlte sirnples. É com et'eito urn "honterÌl sem qualidtrdes":ìr.
de talentcls rlúrltiplos. c¡ue Fest nos pinta na 1ìgura dessa personagem estranhíssima,
clLìe nunca aderiu ao NSDAP e, toqlavia, cor-ltinuou ligado a Hitier nullla relação de
anlizade jamais desmentid¿i. Esse trato arnigávei começou clesde seu primeiro etl-
colttro, chegando Speer a tornal'-se "objeto de unla afeição de cunho nitidamente
crótico - ele era o 'amor inlèliz' de Hitler, nas palavras de um colaborador próxirno
Hitler, egomaníaco, tudo fèz pzrra seduzir Speer, que nunc¿ì
clc Speer"r'tt. Colrr efeito
perlìlhou verdadeil'alrente a ideologia clo regirne e, no entanto. estava sempre pronto
a segLrir o chefe aoncle quer que ele fosse, sem reservas.
O exercício que consiste ern explicitar os motivos pessoais, a relação subjetiva
com o tema da pescluisa, não é privilégio clos biógraf'os empenhados numa causa po-
1ítica. É de uso corrente entre os historiadores profissionais, ainda que a relação esta-
belecida seja n-rais exterior, n-ìenos passional. Pode ser tambérn o ensejo. para o autot',
de se situar' lÌente ao próprio gênero bio-erálìco, durante muito terìlpo objeto de um
verdacleiro no círculo dos historiadores erurclitos. Quando Pierre Sollin empreen-
t¿rt-ru
As biogralìas sao, hojc, r¡uito cliticadas na implensa. Jír não parcce clue os indivíduos Íàçam histór'ia.
¡rois intelcssant rllcnos que as ulassas. Acortrpirnhal pass(r iì l)rìsso o itincr'írrio de V/aldeck-Rousseat¡ serilt
Ltnla tûrcfiì anltcrônic¿t c. de rcsto, vã: u existência clcl cx-plesiclente do Conselho deixa tão poLlco espaço
ao pitolcsco cluc.jarnais atlaiu urr escritol secluer [...] O ¡:r'esente trabalho não ó, poltanto, lrlr¿t "vida cle
Wa ldcck-RoLrssc¿ru"rri.
Dclis anos nrais tarde, enr i968, Jean-Marie Mayeur exprimirá o rìesmo sentlmen-
to cle estar I'ora de época por ter escrito a biografia do padre Lemire23a: "Ninguém mais
gosta cie biografias. A própria história religiosa, que no entanto sempre teve predileção
por esse gênero, parece tê-lo repudiado [...] O conhecirrento da época é indispensável
230. /1errr. p. I l.
231. Idctn. p. 322.
232. ltlcttr,lt. 15.
23-1. Picne Sorlìn, I4/r¡1¿l¿rt'li-llt¡us.sautt. Anl.rtnd Colin, 1966, p.7.
2i,+. O paclrc Lemire n¿rsceu no Norte cla F'r'ança cni l8-53, dc u¡n¿r l'anríli¿r dc agricr-rltoles. Foi elcito
clcplìtado cm 1893 c reelcito ató su¿r nrortc cni 1928.
102
/\ ßIOGlIAþ'IA, GI'NIiRO IMP{JRO
23-5. Jean-Marie Mayeur, Un prêtre tléntocrate. L'abbó Lemirc 1853-1928. C¿tster¡ran, 1968. p.9.
236. Régine Pernoud e Ma.ie-Véronique clin, Jeunne ri 'Arc. F-ayarcl. 19g6, p. 13.
237. Régine Pemoud. [-untière tht Mr¡t,en zîgc, Grasset, 1946.
238. Ré-s¡ine Pernoud, em Régine Pernoud e Jean Tular<l , Jeannc tl'Arc. Napolóon. I-c paradoxa drr ltiop,-
ruph.e, o¡t. cit:., p. 62.
239. Régine Pernorrd, op. cit., p.63.
t03
O DE,SI\FI() BIOGI],Áf IC(). I:SCII.I'VE\] I.JMi\ VIDA
artigo en7 Le McLgctTjna Li.néruire sobre 'A biografìa, ess¿r Desfàvorecid¿t da Histó-
ri,r"l*0. Evoc¿r clois colóquios clue ac¿rbavam de se realizar, um sobre a Revolução
Russa de 1950, clue não mencionou Nicolau ll, e o outl'o, organizado pela Fundação
Naciorial de Ciência Política, sobre o governo de Vichy, onde não se falou de Pét¿rin.
Perguntanclo-se sobre os motivos cle semelhante tabu n¿r história erudita, ele cita a
radicalização clemocrática, clue combate a evocação dos grandes homens, e a ¿rbor-
dagem historicist¿r. que tende a preservar a separação estanque entre os domínios da
carreira pública e da vicla privacla. Ante o interesse pela vida cotidiana, ele se espan-
ta, porém, rie que isso não benelìcie em nada o gênero biográfico.
Toclavia, alguns iristoriadores renomados corno Marc Ferro atravessam o Rubi-
cão no finr dos anos 1980. Seu caso é dos rnais itlpressionantes porque ele pertence à
diretoria d¿r revista AnnaLes clesde 1969, publicação que sempre considelou o gênero
collto apanírgio de plumitivos. Enr sua biografìa de Pétain (1987), Ferro enuûlera as
prevenções qLle teve de superar. Dedicando a obra à memória de Fernand Braudel,
que acabara de morrer, acrescenta:
Por-algunt tenrpo hesitei eul I'alal do pldeto a Fcniand Blaudel, pois era conlo se jÍr ouvisse de
n¡terrão seus sârcas¡.tos sob¡e minha tencl0ncia invetelad¿r ¡rarla a história tradiciollal [...lAdenrais, scntia
ccrtos escrúpnlos, como cli|etor-adjLrntcl cla rcvista Antales, eni aborclar Llrlì tem¿ì tão distanciirdo dos que
essa cscol¡ da "[istória l]ov¿ì" costutna tratar. Aliíts, acusanl-na de ter t'onlpido conr a biogralìa política.
palricuIarnrentc no âmbito cia histór'ia cotlletlporâuenr'r'.
MeLr p¡opósito não era escrever Lrma bioglafìa dc Éclouarc'l Herriot. Sem dúvicia, a rlart'açño seria
iutcfcssânte. t1ias ntuitos outros tentarant o emplcendinrento e, por curiosir e conlplexa que seja ù pcl'sona-
liclaclc cle IJerriot, sc¡l alcance Itistórico lne l)arece linritado [...lAs páginas qtrc sc segucrl constitr¡enr un]
crrsaio biográlÌco qr,rc tet'ìta cornp[eendcr sobl'e cìucì sistema de valores, sol)re c¡ue concepções e cotì qttais
relel'ências ele molclou o conjunto cle icieiirs políticas que o ot'ientar¿ìl1l ¿to longo da vida2t:.
se justiiìcar junto a seus pares por ter escolhido esse gênero. que não constittli mais
objeto cie depreciação. Ao contrário, tendenr a aLlmentar-lhe o valor. A encomenda
240. Marc Fe¡ro, "La bioglaphie, cette hanclicapóe de I'histoile", Le Mttgttline Littéraire. abr. 1989
2.il . Vlalc Ferr<t, Pétuirt, Iìayar:d, 1987, p. il.
242. Serge Berstei¡i. Etlouard Herrir¡t oLt Iu républiqt(e en persotu¿c, PFNSP, 1985, pp.9-10.
104
A B]O(iRT,FI I\, GËNERO IMPU Iì,0
No mett entender, o gôncro biogrírfìco é o rnais dil'ícil [...] Tonr¿u'urn hor.ne¡r e tent¿rr i¡scr.i-lq
totaltrente etll stra época serír, sc Deus o pelrnitir, ulll exercício ao qual Lenciono rnc entl.egar. O cnrpre-
cucliurento talvez. callre rrelhor à velhice. pois ó necessírrio ter palrrilharlo ¿r sencla cla vicla l)ara scr ¡11ì
bonr biógrafo:ar.
Ele realizou esse projeto alglrns anos mais tarde. assin¿rnclo o Charle.s Quint
corrt unla colaboradora qlre foi sua alunazaa.
O gênero atrai a tal ponto os historiadores qr.re alguns cleciclern tÌlesmo, par¿ì
cultivá-lo, transpor as sacrossantas fronteiras que separanl os qu¿ìtro períoclos con-
vencionais: idade antiga, nredieval, moclern¿ì e contemporânea. Assim fbi que r,rnt
grande especialista em Espanha moderna como Bartolomé Bennassar publicou unra
biografia do general Franco:
Por qLre unr historiad<lr cuja obra tem sido. pela maior p¿rrte, consagracla à iclaclc "rrroclcrnr". cJucr
sc tratc (o nrais das vez.es) cla liistória da Espanha, clo Meclirerrâneo ou da Ar¡érica espanhola. sc poc a
escrever sobre hist<iria corìternporânea'l Reivinclico esse direito 1...1 A época clo hor¡em que aplesento irc¡ui
foì cluase a rniuha: a diferença é só de unra geração, que basta para eslabelecer o necessíuio dist¿ìnciamento
entre o olhar e o objeto, mas n¿-io para diluil a visibilidacle:r.5.
243. Pierre Chaunu. ern Piene Chaunu e François Dossc. L'irr.çtr¿nt éclaté. Et'ttdiens. Aubier'. 1994.p. 192
244. Pierre Chaunn e Michel Escamilla, Charle s Quint, Fayard. 2000.
?45. Bartolomé Bennassar. Franco, Per:r'in. 1995. p. 17.
246. Pierre Milza. Mussoiirri. Fayard. 1999.
24l .PierreMilz-a, L'ltalie.[ascistc devont I'opittiort.fi'artçrti.sa. 1920-]94(). Armancl Colin. 1967.
248. Pieme Milza. Mussolitti, op. crl., p. I.
t05
O DL)S¡\I'IO BIOGRÁTICO. I'SCREVE]?, I.JII4I\ VIDA
as fbrças do grarrde capitalisrno, para tornar inteligível o regime fascista. Se, na dé-
cad¿r de 1980, retorna a análise ¿rmenizando o papel determinante qlre thes atribuíra,
aincla não avalia bem o desernpenho de certo número de atores nraiores, dos quais o
primeiro é Mussolini: "Vale dizer qr,re a personalidade do Duce me parecia dependen-
te cle uma problernátic¿r rrenor e que o nó do problerna se situ¿rva em outra parte"z4e.
Em seguicla a crise dos modelos determinist¿ìs e o desafio representado pela visão do
lènômeno segunclo o biógrafb italianó de Mr¡ssolini, De Felice, convenceram Pierre
Milza a lançar-se a um empreendirnento de ordem biográfìca. De fato, não é possível
entender o "mussolinislno" pela nrera evocação do substrato que lhe deu a possibi-
liclade de existir; cumpre t¿rmbém "aquilatar o peso que possam ter tido as 'coisas
da vid¿t' na conciuta de um indivídr-ro nada invulnerável aos acasos da existência co-
rrrLur-ì"250. Ess¿r valori'zttçã,o da contingência e dos fätores singulares não implica, po-
rétt-t, lt ação cle unt deternrinisn-lo que, ao contrário do precedente, só levaria em conta
fatores psicológicos. Ao termo de sua tarefa, o biógrafo indaga se é preciso imputar a
ìnteligibilidade do f'enômeno unicamente aos traços específìcos de urn Mussolini cuja
violência, autoritarismo e arnbição programaram o ditador que veio a ser. Pierre Milza
constata que vários biógrafbs de Mussolini caíram nessa armadilha, em finr de contas
Llma cert¿ì f-orma de ilusão. De seu lado, ele prefère valorizar os fenômenos de ordem
Qerzrcional, pois "Mussolini partilhava [essas pulsões autoritárias] corn bom número
de representautes de sua geração coul os quais se envolverá em 1914"25r.
No mesmo ano, 1999, o grande especialista em história britânica contemporânea
François Bédarida pr-rblicou urna biograha cle Churchill2s2. Como Pierre Milza, ele ins-
creve seu projeto no quadro de um movimento histoliográfico geral que retoma a inda-
gação do lugar clo ¿rutor na narcha da história. A empresa biográfica é aí apresentada,
tambétn. como pr-riante e âo rnesmo tempo sutil, o que f'az dela um desafio muito longe
de "Lur exercício fãci1"253. Obrä que, p¿ìra os especialistas, coroa uma vida inteira de
pesquisits, a biografia de Churchill procura evitar o escolho da teleologia e colocar, com
justeza. o problerna do lugar dos indivídllos no processo histórico como um todo.
Entre os Íopoi clássicos encontrados nas intenções expressas pelos autores de
biograliars históricas figura a vontade de resgatar a grandeza histórica, trazê-la a lume
evoc¿rndo sua encarnação singular. Quando o especialista em história dos Estados Uni-
dos. Anclré Kaspi, publicou urna biografìa do presidente Franklin Delano Roosevelt,
insistiLr rlo fato cle que, segundo as pesquisas de opinião "tão ao gosto dos america-
106
A BtO G I?. t\ I" I A. G LN ER0 I 14 P IJ Il.0
nos, ele é ainda hoje incluído no número clos 'grândes' e quase sempre entrc os 'rnuito
grzìndes"'r5a, logo depois cie Washington e Lincoln, mas antes de Wilson. Qr.ranclo Jean-
Pierre Rioux decidiu recuperal'a fìgura do general De G¿iulle, interrogor-r-se soLrre o que
fez su¿r grundeza na memtlria coletiva dos franceses2s5. Foi também àr
-grandeza. nras
desta vez à do homem da sombra e não nrais ao valor totêmico fr-rlgurante clo general.
que se consagrolt Éric Roussel com sr-ra biogralìa c1e Jean Monnetr5('. Dauclo-o coll'ìo
o pai da Europa moderna, seu biógrafo lembra clue ele conta também ent selÌ ativo ter
participado do esfbrço de guerra franco-britânico durante a Primeira Guerr¿i Mundial.
larnçado a ideia de um¿r Sociedade clas Nações, contribuído para restaur¿ìr as lìnanças
pírblicas da Polônia e da Romênia. e colaborado corn o progr¿lma de reconstnrção da
Europa sr-rgerido por Roosevelt, além cle iniciar o primeiro Plano na França. É a
-grande-
za subterrânea de nossa modernidade fundadora que Ronssel traz ¿\ luz: "Sel-n diploma,
quase sempre sem cargo ofìcìal, ïaz jta rnais de meio sécuio que Jezrn Monnet persegue
o mestrro projeto utópico. tresloucado, m¿rravilhoso: unir os homens e criar entre eles
laços cacla vez m¿ris sólidos, consa-grados por instituições"2s7.
No entanto. o mais das vezes, essa suposta glandeza nãro é rigorosiimente ¿ìv¿ì-
liada numa época esquecida dos méritos passados. e o biógrafo legitìma selr en'ìpreen-
dimento cuidando de fazer justiça ao bi<lgrafardo, vítim¿r cla in_qraticlão. Eis. sem clúvi-
da, unr dos topoi prefericlos pelos biógrztfbs que posarn de aclvogados de seu própricr
projeto e da curiosidade de seus leitores. Qr"ranclo Christian Baechler pr"rbücou. em
2003, uma biografia de Guilherme II, o último inrperaclor alemão, quis fazer justiça
a uma vítima do clesmoronamento da Alemanha ern 1918. A partir de 1919. os bió-
grafos o apresentaram como um alrtocrata sedento de sangr.re que conduziu seu país
à ruína num ato de cegueira à altura de sua natureza de "psicopata". Essa demoniza-
ção qr.rase unânime, de poucas exceções como a curta biografìa pr-rblicada em l919
por Walther Rathenau, segue o ponto cle vista dos testemunhos contemporâneos. que
atribuem a Guilherme a vocação par¿ì o pocler pessoal. O biógralo de hoje deve, pois.
revisitar essa lenda negra para confrontír-la com o que poclemos estabelecel da rela-
ção do imperador com seu círculo, inserindo todos os elementos tarìgíveis no qu¿ì-
dro do sistema político germânico. Ora, esse estudo biogrirfico, segr-rndo Christian
Baechler, "busca matizar os julgarnentos prolèridos contra o homem, sua ¿rtuacão e
suas responsabilidades na catlrstrofe de 1914;1918. Sob o inclivídr-ro superfìcial. vai-
doso, zrrrog¿rnte e egocêntriccl se esconde ulra pelsonaliclacle nr¿iis complexa. cheia
t07
O DI.SAI;IO ßIOGR}íIìICO, ESC]I.I'VER UMA \/1DA
108
A I]]OGRAFIA, GENERO IMPUIIO
é que "um tecido de velhacarias miúrdas, sem constânci¿ì e sem objetivo certo". O
romantismo, de Walter Scott e depois de Vítor Hugo. encontra nele a próprìa inragem
da repulsa mais radical. Já Lavisse repisou o aspecto físico clesse rei pgnco anrável.
de fìgura "desgraciosa e frárgil", de rosto "afe¿rdo pol' urn narigão clesmesurad¿rmente
comprido" e de "gestos embaraçados", mas trabalhador rnetó<lico que prefèria a paz
à guerra.Ainda em 1968, Peter Lewis clenunciava seu "amor patológico aos animais"
e seu "imenso talento para suscitar ódios".
Será, pois, preciso esperar Paul Murray Kendall p¿ìra termos um ponto cle vist¿r
mais matizado, que rompe coln a lenda negra e reconhece nesse rei uirn prccursor clir
modernidade política. Jean Favier, clesprezando a lenda, traça o retrato "de unr est¿i-
dista" que evoca um devorador, não de criancinhas, mas dos livros cle história achados
em abundância em sua biblioteca. É o retrato de um homem pragmático, ávido por-ti-
rar lições de sua experiência pessoal e dotado "de uma enorme capacidacle para ouyir.
analisar a situação e reagir"2('3. Homem todo ouvidos, acha-se no centro de inúrmeras
redes que sempre consulta antes de entrar em ação. E taVez a prr-rclência o que mais
catacteriza essa pessoa inventiva, que desconfia dos próprios irnpulsos. Se lhe censu-
raram o ônus excessivo das despesas militares e diplornáticas, o bió-srafb retruca invo-
cando de preferência seu realismo a propósito cla política fiscal. Guerre¿rr é negocierr:
"Falta de escrúpulos, duplicidade, contemporização, eis o arsenal político cle que se
serve LuísXI, sabendo embora qr.re não detém o monopólio desses recursos"?('*. Certo.
acabou preso à teia que ele próprio tecera, principalrnente no começo. mas aprendeu
com isso a não confiar em ninguém e, sem dúrvida, nãro se desmereceu colrìo "ofìci¿rl
da Coroa", papel que tomou em tudo corro crivo de seus atos e.ir,rlgame¡tos.
Um pouco mais tarde Francisco I não chegou a ser tão demonizaclo, mas a pos-
teridade nem por isso o poupou, de sorte que seu biógrafo, Robert J. Knecht, sugere
uma outra imagem de seu reinado265 - desde Henrique IV, "esse Valois se tornou ob-
jeto de uma longa e sutil campanha de difamaçiott266. Transformar¿ì.m-no em seclutor
incapaz de resistir às mulheres e aos desafìos guerreiros, em monarca poLrco zeloso
dos interesses da nação, que subordin¿iva às su¿rs paixões pessoais. Ora, Francisco I f'oi.
em vida, considerado um grande rei tanto na Françtr como no estrangeiro. ¿r ponto
de ficar conhecido como "le grand roy Françoys". Duplarrìente clistanciaclo d¿is teste-
munhas da época e da lenda negativa, o biógraf'o procura avaliar o impacto. a longo
pÍazo, de seu reinado: "Sob esse aspecto, o governo de Francisco I é cle irlportância
t09
0 DI:St\l:10 ßl0OllAFICO. fS'C/lrV[/l LINIA VID¡\
t t0
A BIOGRAl:IA, GENI'RO IIúTURO
a escrever [...] Por que o fìm de sua glória? Por que os óclios atuais?"??]. Há. sern
dúvida. o repúdio dos republicanos progressistas, que veem nele o destruidor cl¿i Co-
muna: e há também a fronda dos bonapartistas. para quenl ele sempre resistiu ¿\ ideia
da restauração irnperial, e a dos monarquistas de tendências confusas, que nãro lhe
perdoam ter contribuído para fundar ar Repúrblica. Todas essas famílias políticas irão
desenhar-lhe um retrato responsável por legados puramente negertivos, embora "d¿r
Restauração [....1 a 1871 [...] ele haja sido representante de todos"rT:r.
Podemos mesilìo remontar ao primeiro capetíngio, com seLr biógrafb Yves Sas-
sier, para avaliar a que ponto o traço deixado à posteridade sofreu com os perczrlços
ulteriores a um reinado2Tt. Efetivamente, o homem que subiu em 987 ¿ìo trono cla Fran-
ça, membro da que será a última dinastia francesa, teria adc¡uirido a má repr-rtação cie
seu século, desse Ano Mil por muito tempo considerado um período particularmente
sombrio na história da cristandade ocidental. Alérn disso. tarclou muito p¿ì.ra qlre solr-
béssemos alguma coisa sobre esse rei cle eras obscuras. pois a única lante^ Richer de
SainçRérni, desapareceu logo depois da morte do monarca e s<'l reaparecelr llo sécul<>
XIX. Um segundo motivo contribui, no século XII, para expelir Hugo cla historiogrzrfìa
graças ao tema do retorno clo reino de França ¿ìs nrãos dos herdeiros de Carlos Ma_{no:
"Hugo Capeto deixou então. ûìesmo pelo lado negativo, de peltencer ¿ì hist(rria"r75.
O Talleyrancl de Emmanuel de Waresqr-riel também encontra sua fonte no clesejo
de fazer justiça a um homem que sempre foi clifamado. vilipenclìado, desprezador?6.
Sua biografia procura combater a lenda romântica. Para essa lenda. a persona-qem qlre
sobreviveu a todos os regimes era Llfir bispo corrr-rpto, ulr cliplornata seur visão e um
ministro sem escrúpulos: "Os r:omânticos, dominando seu século. janais lhe perdoa-
ram ter cortejado a democracia com meias de seda e peruca empoada, orgulhoso de
sua estirpe [...] Quiseramfazer dele. parzr a posteridade. um cadáver putrefato"]7?. A
essa visão severa dos pósteros, o biógraf'o opõe o fato de Talleyrand ter siclo um ho-
mem do século XVIII. Nasciclo en 1754. já tenr 3-5 anos em 1789. não poclendo por
isso ser julgado segundo os critérios de uma geração ulterior, que não fbi a sua e não
cultivava seus valores. Essa persorlagern enigrlática.jár inspirou mais de uma centena
de bio-erafias. Waresquiel de modo algum tem a intençãro de elalrorar Llma lencla dou-
rada em oposição à lenda negra: procura apenas entendel até oncie o imobilisrno de
Talleyrand foi para ele uma arnradura contra os peri-eos da época. Daí ressalt¿ì Lrma
ltl
O DIiSAFIO lJIOGRÁI.ICO. t'SCREVER LIMA VIDA
278. ldern. p. 21 .
t12
A RIOGII.AtIIA. GI'NERO IA4PUIì0
a in'ìageln de unr imperador grotesco. incapaz cle compreencler os desafìos cle seu
século, cheio de veleidades, submisso às piores inflr-rências e senl vontacle próprier.
sr'ra biografia nos apresent¿ì o último dos Romanov cou'ìo aquele que tentoll concluzir
a Rússia ¿ì niodernidade, respeitando embora as traclições do país. Seu fracasso se
deve. pois, à tensão levada conscienterÌ-ìente ao extremo. a ponto cle ser vivenciada
como um "verdadeilo drama íntimo"2Sa. O projeto biográfico cle Carrère cl'E¡c¿russe
se alicerça na ideia de fazet-v¿rler a perspectiv¿ì I'ristórica ante as inragens clue zrté
então haviam pr:evalecido. Os bolchevistas, principalmente, pintaram cle Nicolau II
o retrato de um sanguinário, imagem que se irnpôs até 1989: "T¿inta malevolêllci¿r
exige uma reavaliação mais equilibrada do tsar e daquilo que ele tentou f1zcr."rs5.
Sem, contudo. procurar desmentir essa imagem pejorativa e sair-se conl a apologia
de uma hagiografia, a autora vê no in-iperador um anti-Peciro. o Grande e unr anti-
Lênin por slla ânsia de combinar modernidade europei¿ì com sucesso pela via das
reform¿rs. Mas os obstáculos a superar e a eclosão da guerra liqr-riclarão urri pro.jeto
que, entretanto, estava animado por uñìa vontade de ferro.
Entre os outros topoi tnats utilizados peios biógrafos a fìln cie jr,rstifìcar seLt e¡1-
prendimento, ellcontramos coll-ì igual freqr.rência o zrrgumento arquivístico, segunclo o
qual a descoberta de documentos até então inacessíveis permite fazer uma nova leitu-
ra ou corrigir as antigas. O bióglafo se empenha. pois. em reabrir o clossiê para neìe
incluil as informacões novas das quais se acha asora cle posse. Quanclo Pierre Milza
escreveu a biografia de Mussolini publicada em l999, evocoLl sua consulta cle centen¿rs
de fìchas dos arquivos "secretos" do Duce. que vasculhou de altcl ¿r baixo. De ser-r lado.
Bartolorné Bennassar lamenta que se tenha demol'aclo tanto a conhecer bem o gover-
no do Caudilho, fato devido à difìculdacle de obter, até a morte de Franco em 1975.
uma docunrentação suficiente. A partir dessa data tudo mucl¿r: as línguas se soitzrm, os
testemunhos se multiplicarn sob diversas formas e sllr-qem relatos cle vicla, nlemórias,
crônicas, diários cuja soma oferece ao historiador un'ìa seara única. Soa então a hora clo
historiador, ainda que su¿ì colheita permanec¿ì incompleta. pois os arcluivos pessoais cle
Franco são propriedade mantida intransigentemente ao abrigo cle olhares incliscretos por
uma fundação privada. A biografia clo padre Lemire por Jean-Marie Mayeur encontr¿t
também suzts condições de possibilidade na "descoberta cle um ¿ìcervo inrportante cle
arquivos pessoais fquel convidava ao empreenclilnerlto"2s(,.
Autor de uma biografia de Poincaré. o historiador François Roth luta contra o
empobrecimento d¿r nremória que dilui os traços marc¿ìntes cla persona_qem: e. se ele
ll.l
O DI;SA1;IO B]OGII,AFICO. ESCII,EVEI], UMA \/IDI\
pode colabor¿ìr para restituir as linhas gerais clessa figura política, é sobretudo "graças
à ¿rbertura dos arquivos franceses e estrangeiros"2sT. Há algo aí qr,re escapou aos con-
temporânecls. m¿rs também aos primeiros biógralos. Doravante, o bióglafo pode dispor
das anotações diárias de Raymond Poincaré, que esclatecem o leitor sobre seus senti-
nlentos, hesitações e clecisões. É. pois, ern busca clo "verdacleiro Raymond Poincaré"
que o biógrafo palte, ignorando a lerlda negra do "Poincaré-ou seja-a-guerra" e a lenda
dour¿icia do "s¿ilvador do franco". Quanto a Pierre Broué, classifica o momento em que
escreveu a biografìa de Tr-otski con.ìo propício a urn melhor acesso aos arquivos, pois
¿rssirn lhe foi possível ïazer a pesquisa sob boas condições: "Pude consultar os dossiês
dos etlquivos de secretari¿rs do Interior - na França e no México -, vários arquivos
partìclrlares e solrretudo os papéis do próprio Trotski"28s.
Zeloso de preservar o outro cia fìnitude da existência, de arrancá-lo à extinção
e ¿ro olvido, o biógraf'o estabelece uur vínculo privilegiado com a morte que pode ir
a extremos. conlo é o caso de Michelet: ele concebeu a França como uma pessoa à
quai consagrou toda a sua vida na tent¿ìtiva de recuperar-lhe os traços, consumindo-se
nesse contato nunl transporte rornântico totalmente absorvente. A relação biográfìca
conserva sempre certa ambivalência e o biógrafo surge ao mesmo tempo como em-
balsam¿rdor potencial e coveiro. Apanlrados entre o risco da dissolução do biógrafo
em cont¿ìto com o biografado e a defesa de sua irredutibilidade, muitos procuram
ameniz¿rr essa relação recorrenclo ao "ele"; o biógraf'o, porém, "deve arrostar o 'tu,
ti' conflituoso e se decidir pelo 'eu, mim"'2Se. Aqui, o biógrafo se aproxima de um
dos expedientes essenciais que funclaram o gênero histórico, desse histor tido por
Hel'ódoto como instrumento destinado a retardar, na escLita, o desaparecimento dos
tlaços, da atividade dos homens. A pesquisa do Pai da História sobre as guerras per-
s¿rs vis¿t a evit¿rr a morte socializando-a. A bioglafìa, corlo relato de vida, conserva
essa relação privilegiada com a morte, e ainda com maior intensidade. Pierre Chaunu
enfatiza bem essa relação num diálogo que tivemos:
O crnpreendirrento [lriogr'áfìco] talvez convenha rnelhor'¿ì velhice, pois é necessár'io ter ¡rercorrido o
carllittho da vida para scr unl born trióglalb. E, isso sc¡¡ onritir o quc nos ¡rarece bastante oportullo quando
tcrllorì sctcnta ¿lnos: a maior paltc dos biografados .iri nrolreu. Eles podent, de algr-rnr modo, nos ensinal ri
passar clesla pala nrell-ror' [...]21"'.
1t4
A BIOGRAFI¡\, Gi;NIIRO IMPTJRO
Gênero impuro. a biografìa pode tambérn se situar no ponto cle interseccão entre
o ofício do jornalist¿ì e o clo historiaclor. Há uffì c¿rso fanroso por ess¿ì clupla icienti-
dacle. o de Jean l-acouture. Podemos seguir com interesse seu percurso.
as grancles
mutações de su¿r vivência profìssional e as tensões próprias ao caráter híbriclo
cle um¿r
escrita biográfìca encravad¿r entrejornalisnto e história. Jornalista no conleçìo.
Jean
Lacouture foi, depois, agaloado como historiaclor por seus pares e ho¡e se afìrnra
co¡1o
um profissional da biogralia2er. Apresentando-se conlo tal, encarna a reclenção
do gê-
nero. Lacouture atingiu, nesse domínio. a excelência. Afora as quralidades pessonis.
a capacidade de empatia, o estilo propício ¿ì evocaçhc'r de pers<lnergens e nnra curio-
sid¿rcle que o torna capaz de acompanhar os biografzrdos nos nlínimos
cietalhes. sua
dLrpla adesão zìs regras específìcas do mundo jornalístico e às exigências <le
respeit<r
à verdade do mundo historiográfico faz da obra de Jean Lacolìture um exenrplo cla
riqueza potencial do gênero biogreifìco, que ele. sem dúvicla, elevolr ¿ìs culminânci¿rs.
Tem em seu ativo nada menos que qr,rinze bìografias, todais de alto nível e ¿rlgumas
de peso. cor1lo a trilogia consagrzrda ao general De GaLrile.
Lacouture sente verdacleiro fascínio pelos homens c1e zrção a quem errprest¿r
sua pena para fazê-ios reviver: "Donre colìr sells heróis, perm¿ì.nece a seu laclo. se-
,qLle-os, casa-se conl eles":nt. Essa capaciclacle, levacla acl paroxisrno. lanca suas raízes
sem clúvida alguma na culpa qlre o rói desde a Segr-rncla Guerr¿i MLrnclial. Nasciclo en-l
1921 em Bordéus, Jean Lacouture tenr seus vinte auos uo coûìeco clo conflito e seus
pais sejuntaram imediatamente ao generarl De GaLrlle. No n'ionrento enl que a situa-
ção se agrava, em 1942, a mãe esper¿ì enr segredo qr-re ele entre para a Resistôncial
lllas o filho a desaponta e prel'ere pôr-se a salvo no c¿ì.lnpo. Só mais tarcle (i944) se
torna urn rtmquis. Jamais se perdclará essa hesit¿tção e a decepçero que causolr ài ¡rãe:
"Escrevi-lhe (à rninha mãe) uma longa carta após a gLlerra, un-ia vercl¿rdeira conlìs-
são. Ao contar-vos isso, cubro-lne de urna espécie de suor cle vergonha. um protesto
íntimo contra ¿ì personagem que fni":er. Lacouture soutre transformar a culpa el¡ c¿r-
pacidade de engrandecer os ¿rtos de seus heróis. Acluilo c¡ue ele não pôcle ser^ r,iveu
por procuração, tornando-se o araì"ìto da glória alheia.
No final da guerra, Lacouture, após participar cla Iibertação cle algumas cicla-
cles do Sudoeste com a 2" DB, deseia persever¿ìr num engajamento ciue lhe ó ai¡da
291 . .lean Lacouture , Pro.fe.ssion biographe . Cr¡tn,er.sa.tiott.s ut,ec Clotttle Kie.jrnan.l-lachcttc. 2003.
292- Pierre Nora. citaclo por Sylvie Crossrnan, ./can Lar:outttrc. [,rt ltiogrct¡tltir: rltt bio,qraphe. Ballancl
t993. p.273.
293. Jean Lacoutule, ProfÞ.s,tiott biographe. o¡t. cit.. p. 33.
It5
O DESAI:]O BIOGI].ÁFICO. ESCREVER LIMA VIDA
mais por ter sido tardio. Decide seguir os passos do general Leclerc, nomeado
c¿ì.ro
comandante supremo na Indochirìa: "O que, sobretudo, motivou minha decisão foi o
fäscínio que exercia em mim o general Leclerc. O sabor do 'herói""eo. Essa tendência
¿r fìcal sob o domínio de figuras heróicas foi reativada pela passividade em tempo de
guerr¿ì que ele nunca se perdoou. Lacouture exprime coll lucidez e franqueza esse
deslocamento de subjetividade do biógrafo, que a seu ver implica o ato biográfico:
Talvez- minhas biogralìas sejam apenas autobiografias de substituição. unr .iogo de papéis camuflados
[...] Bom corrbatente da Resistência, eu decerto não teria jamais pensado enl escrever uma vida do general De
Caulle [...] Alintcntar, na carência, o desejo de um eu maior. Descrever, honrar os melhores, os m¿ris eminentes
1...1 nós ¿ìu1¿lulos os her(tis":es.
ltó
A BIOGRAFIA, GtìNERO IMPI]RO
il7
o DltsAF10 ßt0GItÁFIC:O. tisC/ì¿'y¿-/t r.Jivti\ \trDA
ção de um texto sobre "L histoire imnédiate" no volume que editou sobre a Nouvelle
Histoire:ìOe. Ess¿r consagração é t¿tuto mais espetacularr quanto, em l978, como vimos,
a biografìa uão estava em odor de santidade junto aos historiadores universitários e
rnuitcr menos na escol¿r dos Annale,s. De resto, os vínculos entre jomalismo e história
eram vistos com indisfarçírvel suspeita. Lacouture tinha, pois, seus motivos para per-
111¿ìllecerà tnärgetn das orientações historiogr'áfìcas, mas ainda assim se impôs pelo
taìento pessclal; e sLl¿ts pub[caçoes se tornafAm um ponto incontornável, que os his-
toliadores cla vida contetnporâne¿r não podem mais ignorar. Ness¿r dem¿rnda em tàvor
d¿r história irnedi¿ita, L¿rcouture reivindica a posteridade de um dos pais da história,
invocando Tr-rcídides corno precursor corn sua Guerra do PeLo¡tor?¿Jo, que se inscreve
num "moclelo de irnediaticidade hìstóric¿r"irt'. Alénr disso, é a crônica das guerras que
cotlstitlri, segundo Lacouture, o modelo de uma história in-rediata expelida do discurso
histórico em norìe do plimado da longa duração. Uma outra particularidade do his-
toriaclor clo imediato é ignoral a conciusão dos acontecimentos que relatzr. Ora, como
<lbserv¿i Lacouture, essa ornissão pode se transforrnar erì vantagem porque a opacidzide
clo 1'l-tturo permite ronlper com ulï¿r certa fornta de teleologia e causalismo às avessas
I t8
A BIOGRAÍ II\, GÊNERO IMPTJRO
il9
O DESAI:IO BIOGII,/iFICO. ESCIIEVIìR IJMI\ \IIDA
colr ele est¿ul1os sempre no sir-ìuoso, porqlre nenhuma de suas escolhas é óbvia"3rs. O
enrpenho tresloncaclo clo biógrafb enl resgatar o tormento do biografado não deve ter
sic¡l ul-l-l¿t ¿ìventura senr riscos. Deve ter siclo perigosa e sobretudo, cottlcl ele próprio
cont'essa, "o livro rnais passional c¡-re jár escrevi"'ìrÓ'
A outra biografia cle adesão e empenho sem reservas é a de Pierre Mendès Fran-
cer'7: "Se eu tivesse de escrever apenas duas biogralìas na vida. seriam as de Mauriac
e Menclès"3't. Ante tamanha adnriração pelo hornerrl e sua política, Lacouture nega,
o acus¿ìr1l de não tel sitlo suficierìtenente crítico, ter feito uma hagio-
pel.¿ìnte os que
gralia. Reconhece, entret¿ìnto, a eviclência cle uma Lriografìa muito subjetiva, cqo parti
pris é explicitamente ¿rssumido. Enc<lntra em Mendès ¿ì n'ìeslrì¿ì ambivalência humana,
clesta f'eit¿i no plano político. Menclès é um desarvorado radical entre os socialistas
oLì u¡t socialist¿t entre os l'adicais? É o representante da nova cultura especializada a
serviço clos interesses republicanos ou o contestador de 68 da reunião de Charléty'l
Homent clo pocler, só o exerceu por sete meses. Pelo restante da carreira, perlnanecerát
o político clos paradoxos.
A essas biografias clo clesejojuntam-se as que Lacouture qualifica de biografias
de encomend¿r. Esse terceiro tipo de escrita fàz surgir o monulnento que é a biografia
do general De Gar-rlle, uma trilogia de 2400 páginas publicada entre 1983 e 19863re.
L¿rcouture escrevera jái urn curto ensaio biográfico sobre De Gaulle ern 1965, que lhe
valer¿r un-izr tr'liacla do general: "Receìo", disse ele a Mauriac, "que o teu M. Lacouture
não haja captado ¿r verciadeir-a dirnensão da personagem"i2O. Seu editor, Paul Flamand,
voltgu a pressionar Lacouture dez anos após a morte de De Gaulle, em 1980, ponde-
ranclo-Ìhe que ele não podia clar-se o luxo de fugir a essa tarefa. Tocou-lhe no ponto
fraco: nosso biógraf'o nacional lançou-se de corpo e alln¿r à aventura. Mas o esf'orço
exigido 1bi tal que Lacouture mergulhou numa depressão profunda. Subiu alto demais
e percleu o fôlego. Confìdenciou a uma amiga: "De Gaulle me gerou!" E uma de suas
sobrinli¿rs. psicóioga e sutil analista, Annie-Marie Duchesne, saiu-se com esta frase his-
tóric¿i: "De Ga¡lle é a nrãe dele, senr dúvida nenhuma! Foi ela quem, por primeiro, com
um or:gulho e um ímpeto exemplares, revelou-se etn 1940. no lnomento da charnada do
l8 cie junho, Lul¿t militante gaüllista inquebrantável"3rr. Com essa biografia, Lacouture
r20
A BIOGRAFIA, GI'NERO IMPIJRO
Confesso hurnildemente que, depois de abordír-lo corr certo rneclo e perseguiclo com a consciência
lnuito níticla de minha incapacidade clc esclarecer bom uúrnero de f'¿rtos clesconl-reciclos, cle sepirrar.ac¡r-ri c
ali o verdadeiro do falso, clc ct'guer a vista tão alto quanto a personage¡r exigia oLr uìesmo cìc expr:r.con.r
cqtliclade um ou olrtro detrate do qual nrinha próprìa carreira rne f'ez partìcipar. não
¡rucle ver-lhc <¡ fìrn
sern alguma tristez-a,
122