Você está na página 1de 68

Ì\

L) L,!)
ñ
-../-
r f
r {fun¡ \ \,'
^ û ï6ç/=\Èic OiCqÊ.,{fiec : €,Sctf\lLQ
Éd"hac.-, r{b. tLvrrru¿*.¡tdr"'e- 6-'*f,
I

L,t il+ \i i t-q' 54c


{"u .^ ! ¡

'l

.1 ,"",
((¿LL{"iì ¿{i üg "

A BIOGRAFIA, GENTERO IMPURO

Gênero híbrido, a biografia se situa em tensão const¿ì.nte entre a vontade <1e repro-
duzir unr vivido reai passado, segundo as regras da ntitnesis, e o polo ima_einativo clo
biógrafo, que deve refazer um universo perciido segundo sua intuicão e talento criaclor.
Essa tensão não é, decerto, exclusiva da biografia, pois a encontrarnos no historiaclor
empenhado em fazer história, mas é guindada ao paroxismo no
-9ênero biogrírfìco. qr,re
depende ao mesmo tempo da dimensão histórica e da dimensão fìccional.

A biografia é tmt verdadeiro rornance

Retomando e discutindo a noção de "unidacle narrativ¿r cle um¿r vid¿f '. cJe qr-re ftrla
Maclntyrer, Paul Ricæur lembra que é preciso ver nessa noção "um ¡listo instlivel cle
fabulação e experiência viva"2. O recurso à ficção no trabalho biogrírfico é. com elèito.
inevitárvel na med:da em que não se pocle restituir a riqueza e a conrplexidade da vicia
real. Não apenas o biógrafo cleve apelar para a irnaginação em face do carírter lacunar cle
seus documentos e dos lapsos temporais que procura preencher conlo a própria vicJa é unl
entretecido constante de memória e olvido. Procurar trazer tudo à luz é, pois, ¿ìo lnesmo
tempo a ambição que orienta o biógrafo e uma aporia que o conclena ao fracasso.

l. Alasdair Macintyre, After Virtue, ct Sttttlv in MorctL Tlrcr¡rt,, Notre I)anle (lncl.), Llnivcr.sitv of'Notrc
Dame Press, 198 l .
2. Paul Ricceur, Soi-núne conmc un oulrc, o¡t. r'ir., p. l9l.

-t.i
O DE,SAFIO BIOGRAI:ICO, ESCII,E\/IiR UIvTA VIDA

Quanclo de uma conferência pronunciada na Inglaterra ern 1928, o escritor An-


clré Mar-rrois se interrogou sobre o gênero biográfico situando-o a meio caminho entre
o desejo de verdade, que depende de um proceclimento científìco, e sua dimensão
estética, qr-re lhe empresta valor artístico. Ele próprio autor de inúmer¿rs biografias3,
André Mar-rrois iirsere suas re¿rlizações na esfèra da obra de arte: 'A realidade das
persorlagens da biografia não as impede de ser sujeitos de arte"a. O biógrafo é com-
parável ao retratista, que faz sua escolha sem eurpobrecer o que há de essencial para
a tela. Essa prática, segundo Maurois, tern por efèito privilegiar o grande homem, que
concebeu sua vida como uma obra de arte: r"rma relação especular pode se estabele-
cer nrais esporìtaneamente entre o biógrafo e o biografado. A arte biográfìca impõe
Lur certo número de cânones. Em plirneiro lugarr, a biografia deve seguir a orden'l
cronológica, cìue permite conservar a atenção do leitor na expectativa de um futuro
clue desvelzrrá progressivamente o tecido da intriga: "O que dá o caráter romanesco
é justetmente ¿ì expectativa do futuro"s. Sem dúrvida, há algurn artifício no fingir ig-
nol¿ìr o que virá ern seguida, mas, como obsel'va André Maurois, "a palavra arte está
ern ¿Ìrtifício"('. O leitor é então convidado, como no rotrrance clássico, a partilhar os
medos, ¿rs incertezas, os sofiimentos do presente de seu herói.
A segunda regra é nunca descentralizar demais o herói da biografia, uunca
fazê-lo desaparecer no pano de fundo: "Não há obra maior que tentar escrever o que
clramarí¿rmos c¡ vicla e a épocct de um homerr"7. Decerto, o biógrafo fará sua escolha
na massâ de documentos que tem disposição; mas não se abarrotará com o inúrtil.
¿ì

Tanrbém aí deverá, como artista, dar mostras de discernimento e valorizar os fa-


tos signifìc¿ìtivos qr,re às vezes p¿ìrecem elementos marginais: "Os menores detalhes
são, frequentemente, os mais interessantes"8. É mesmo a busca desses detalhes mais
anedótìcos, porém mais reveladores da personalidade do biografado, que constitui o
fascínio e o sentido do gênero biográfìco, dependendo pol'tanto, segundo Maurois, d¿r
arte do romancista: "O biógrafo, como o romancista, deve 'expor' e não 'impor"").
Encontramos mais tarde uma concepção similar no historiador Paul Murray
Kendall, autor do famoso Lottis X1, que em 1965 também comparou a biografia corn

3. AnclLé Maulois, Ariel ou lct yie de SIrcllc¡,, Glasset, 1923; La yie de Disraell, Grasset, 1L)?1; René ctu
La via tle Clruleaubrianrl, Grasset, 1938; Don Juatt ou Ia vie de Byron, Hachette, 1952; Lëlict ou la vie
,l954;
tle George,Sr¿n¿1, Hachette, 1952; Olvnpio ou lct yia tle Victor Hugo,Hachette, Pronrcrlzée ou la
vie cle Bttlzctc, Hachette, 1965; La yie tle Sir Alestutder Fleming, Hachette, l9-59.
4. André Maulois, Aspects de Ia biograpl¿¿¿, Grasset, 1932, p.70.
5. 1r1crn, p. 81.
6. lclent, p. 82.
7. ldcttr, 1't. 86.
8. ltlertt, p.89.
9. Itlertr. ¡t. 98.

56
t\ lllO()R¡\ttlA, GENI:RO IMpLIR0

a obra de arte: "o


biógrafo estíì imerso naquilo que faz e. colìlo o romancist¿ì oll o
pintor, modela seu material para criar efeitorrrr0. I escritor Marcel
Schwclb ilg67-
1905) foi ainda rnais longe em sua apreciação artística clas bio,qrafias.
Opôs. terrro
a termo, ¿L posttlra erudita da ciência históric¿i. que sitr-ror-r clo
laclo cl¿r entinci¿rção cle
generalizações, e a ¿ìrte, que só trata do incìiviclLrai, do particular,
do único. O própr.io
Pltttarco, pai fundador do gênero biográlìco, é cr-rlpado aos olhos
cle Schwo6 cle traçar.
paralelismos "como se dois homens cleviclamente clescritos em
todos os sells cletaÌhes
pudessem se parecer!"rr A arte do biógraf'o é concebicla. por
Schwob, corlro a capaci-
dade de diferençar, indiviclualiza,r até, mesmo personagerls que a
história reLrniu. Ele
deve captal o detalhe ínlìmo, minúsculo que tenta reprocluzir cla
melhor maneira a
singularidade de um corpo, cle umaprerìença. Schwob encontr¿r cl instinto
clo triógra-
f'o em Aubrey, quanclo revela ao leitor que Erasmo "não
,qostava cìe peixes. embor¿r
houvesse nascido numa aldeia de pescadores"r2, que Hobbes "fìcou
bast¿ìnte calvo
na velhice"l3 ott que Descartes "era esperto clemais para se cleixar
estorvar por unla
esposa; ilìas, collìo homem, tinha os desejos e apetites clo homem:
mantinha, pois.
uma bela mulher de boa condição, que amava"ra. Segundo Scliwob.
ao biógr¿fo não
importa muito a verdade: deve, isso sim, criar traços humanos, muito humanos.
Seu
erro é acreditar-se cientista: "Inf'elizmente, os biógrafbs quase serrpre jr-rl_qaranr
se
historiaclores. Com isso, nos privaram cle retratos aclmiráveis"r.5. polìco
se nos clâ então
que a personagem seja grarlde ou pequena, pobre ou rica, intelige¡te
ou r'eclíclcre,
honesta ou criminos¿r - todo indivích,ro só vale por aquilo que o si¡gulariz¿.
Encontramos um epígono contemporâneo de Schwob na pessoa clo ga¡hador
do prêrnio Médicis-Essais 2003, Michel Schneicler. autor de uma obra cujo
títLrlo.f ir
é uma homenagem a Schwobr6: 'As V¡¿.s innginaires'de Marcel Schwob.
pr-rblicaclas
em 1896' são um daqueles livros que levo para toda parte, que acaricio e interpelo
como um pedaço de mim lrìesmo, o fantasma de um membro qlre me halam
arran-
cado' Elas são o espelho translúcido no qual procuro nrinhas sombrias
Mr¡rï.s imttgi-
naires"t]. Michel schneider evoca, em "tanatografias"rB, a morte de escritor-es,
suas
últimas palavras a partir das pistas cle que dispõe, forneciclas pelas testemnnhas
cie

I
I

l0' Paul Murray Kendall, Tlrc Art o.f Biography, Lonclon, Gcor'-qeAllen
ancl U¡rvin LTD. 196-5. p. XIl.
I I'
Marcel Schwob, Vie 's intaginctircs, Petite Bibliothèquc'ornbres. 1993. p. I I (ecl.
original: lg9(r, Bi-
I bliothèqLre Charpentier, G. Charpentier. et E. F-asquelle).
t 12. Jolrn Arrbrey. citado por Marcel Schrvob. o¡t. cir.. p. 13.
:
I
i
13. klem, p. 14.
i 14. IcLent. p. 16.
l
l.
15. Iden, p. 18.
I

i
l6 Marcel Schwob' Vie'r imaginrùrcs, op. r,'it.;Michel Schneider, Morts intgittrti¡2,ç. Grasset.2003.
II 17. Michel Schneider, Morrs intaginaire,s. o¡t. t.it.
1tp. 212_213.
t 18. Ten¡o sugericlo por- -lean-pierre Golclenstein.
I

57
I
I

I
I
O DIiSAt"lO ßlO(;R/\t;lCO. ESCRIJVER IIMA \/lDt\

seLISderradeiros mor-nentos de agonia e por selìs escritos onde expriìrerìl a angústia


frente à vizigem delìnitiva. Assumindo essa perspectiva, a da maneira única pela qual
cada um vive os inst¿rntes finais de urna sorte comum, Michel Schneider trabalha
cor-no biógrafb, pois evoca passo a passo uma verdade da vida individual percebida
atrar,és do prisrna de sua relação com a morte. Nisso def-ende o conceito da biogralìa
collto autêntico roll1¿ììlce: "Toda biografia é unr romance, por isso devoro muitas delas.
Mas só as de escritores. E em algumas, confesso-o, só percebo o enfraquecimento da
linguagenr no instante lìnal"re. Ora, essa leitura de indivíduos-escritores, no qLre tem
de verdade. encontra seu recurso essencial não só na descrição puramente factual do
lncldo colllo clesapareceranl, mas tarnbém na literatura em si: "É preciso, pois, ler os
livros que os escritores escrever-¿u1r - é,Á que estão n¿rrr¿rdas suas mortes. O escritor
é alglréni qlle morre a vid¿r inteira em frases compridas e palavras curtas"2O. Sendo a
escrit¿i, por si mesrl¿ì, o olhar da morte sobre o eu e os outros, o escritor revela em
selr texto não tanto a busca da irnortalidade quanto a imanência da relação com a
morte. É mesmo, segunclo Michel Schneicler, essa relação-limite que cletermina a di-
f'erença entre escritores e escrevinhadores: "Serrì uma relação extrema cotrl o extremo
oncle a vida e as palavras desaparecem, talvez consigantos escrever - mas nem por
isso seremos escritores"2l. Afor¿r as confissões ou projeções que os escritores cos-
tlrmaltr exprimir sobre sua própria rnorte, o biógrafo dispõe do modo como a morte
do outro é relatada. Assim, os famosos Pensamentos de Pascal são lidos colro um
livro acossado peìo medo de morrer. Pascal teria substituído a doença, como pano
de fr,rndo. por essa angústia que nunca o ¿rbandonou, que sempre o perseguiu a todo
rl'ìolìlellto, afetando um corpo impuro e suscitando de cad¿r vez o anseio renovado
por uma alm¿r s¿rnta que aspira a libertar-se da carne. Pascal "morreu porque tinha
Lull corpo; escrevelì para não ter urn"2l. Foi esse medo doentio que lhe inspirou os
Pen,santetúos. vistos coìllo outros tantos "pedaços da pele de Pascal. Fatias oblongas,
lanhos, tiras, tudo são restos"23. E os Pensanlenl.¿;,r' são lnestno, concretantente, esses
lanhos, pois não passam de rascunhos de uma obra inacabada que a irmã de Pascal,
Gilberte, estropiou, retalhando e costurando a seu gosto o manuscrito. No livro, Pas-
cal avisa que ,r¿ morrerá sozinho. Michel Schneider considera essa declaração a mais
signifìcativa do r-nodo conlo Pascal viveu sua própria morte, empregzrndo o impessoal
corrlo negação cla singularidade cie seus P¿i¿.yanlentos, mas conservando sempre um
texto onde afrrma, ao contrário, que jarnzris se mol're só.

19. Ident. pp. I6-l7


20. Itle rtr. p. 17.
?1 . Idenr, p. 28.
?2. ltlcnt, ¡:. 59.
23. ldctrt. 1'... 66.

-58
A I}10(ìI?,¡\I;II\, G[,NIiR() IM PURO

A biografia não depencle apenas da arte: quer-setanrLrérn estribacla no veríclico.


nas fontes escritas, nos testemunhos orais. Preocuplr-se com clizer a vel'clade solrre ¿r
personagem biografada. Nesse sentido o próprio André M¿rurois. que t¿ìnto insistila
na parte artística. evoca a dimensão científica e insta os biógraf'os a "preferir os do-
cumentos originais. as cartâs. os periódicos"24. O biógrafo pocle então tirar o melhor
dessa documentação íntirna, pois se encontr¿ì. o nrais perto possível do aLrtôntico. a
ponto de alimentar às vezes a ilusão de pocler restituir inteiramente uma vicl¿r. À ¡ra-
neira do cientista, o biógrafo tem cle cruzar suas fbntes de inlorrnação. conlì'ontír-las
par¿ì se aproxiniar da verclade. Segr-rndo Maurois, o biógralb clispõe tambélr cla obra
colrlo espelho clo escritor cuja biografì¿r escreve. Sente-se teutaclo a estalrelecer Ltnta
relação especular entre autor e herói e, conl base nesse postlìl¿ìclo. sr-rgerir um retrato
de Stendhal a partir de Fabrício e Julien Sorel ou cle Dickens a partir cle Davicl
Copperfield. Mas André Mar-rrois previne contr¿ì sernelhante tentaciro: "lsso tenr fu-
dos de verdade, mas é muito peri-eoso"25. Nada. pois, se corlìpar¿ì ao método hìstórico
fundamental de comparação e conlìrmação cle f'ontes variacl¿rs. já que o nr¿-Lis clas vezes
o escritor mergulha nLlrna obra in-ra-qinária para escapar ¿ì vicla real. Anclré Maurois
prescreve, portanto, o máximo rigor no manuseio c1a docr-lmentação e ao lllesrno tem-
po ressalta o c¿tráter aporético do desejo de extrair daí a verclade cle uni inclir,íd¡o.
o qLral permanece na esfera do incognoscível. Só o que poclemos é dar relevo. para
além do aspecto flutuante e confuso clos sentimentos olr ações. ¿t "Lrnla uniclacìe c1r:e
lembra um tom musical. Tua vida é escrit¿r em dri ffìenor ou ,rr.¡/ n'ìaior"r('. O Lrió_qralb
deve recuperar esse tollr, siln, nlas a partir de um pacto cle veracidade que retnete ao
contr¿ìto tírcito posto em evidência por Philippe Lejeune a propósito cla antobiogra-
fia2t. O leitor de uma biografìa espera encontrar nela fatos autênticos: "Publicar uma
biografia, anunciá-la como tal e não corrìo rom¿ìnce é prometer fatos veríclicos. pois
o biógrafo deve ao leitor, acima de tudo, ¿r verclade"tt. Ao contr¿lrio. se_eunclo Anclré
Mar,rrois. o bió-erafo se rnanterír à distância cla nioral e dos .juízos prematuros. senão
deixará o mundo estético pelo mundo ético, que não é o seu. Esse ser real. localiza-
do no horizonte da pesquisa, é res-qatado m¿ris completamente pelo bió-erafo ou peli:
romancista? O biógrafb tern uma deficiênci¿r com relação ao ronlancista na nieclicla
em que não pode evocaÍ a vida interior de su¿r personagem. Faltam-lhe as fbntes clue
lhe perrnitiriam penetrá-let, ao passo qlle o rçmancista sempre clá lar-sas ¿ì fìrntasia.
Por sua ambição de fìcar o niais perto possívei cla vida verclacleira. a biografia é um

24. Atldré Maurois. Asper:t.s tle la biogra¡.thia. o¡t. r.it., 1t. I12.
25. Ident. p. I 19.
26. ldent, p. l31.
27. Philippe Lejeune. Le pac:ra otÍoltiogrct¡tltique_Le Scuil. 197-5
28. André Maurois, Aspacts de Lu biogrct.phie. o¡t. cit..1t. t70.

59
O DESAFIO BIOGRÁ\,'ICO, ESCREVER UMA VIDA

gênero difícil: "Exigirnos dela os escrúpulos da ciência e os encantos da arte, a ver-


clacle sensível do rolnance e AS lnentiras eruditas da história"ze.
O gêrlero biogrírfico está, com efèito, condenado a percorrer um mar revolto,
apanhado entre dois escolhos, conforme explica com clareza o biógrafo americano
de Luís XI, Par-ri Mulray Kendall:

A defìnição exclui as obras situadas nos dois extrernos do espectlo biográfìco: a biografìa "roman-
ce¿rda" simltl¿r ¿r vida, uras não respeitä o r¡aterial de que ela dispõe, enquanto a biografìa recheada de
l'atos. s¿rícla da escola tagarela da eludição-cornpilaçiro, adora o rnaterial, mas não simul¿r com ele uma
vida. Entr-e anrbas se cstende o artesanato impossível cla biografìa verdadeira3..

Dessa tensão resulta uma ambivalência clo gênero biográfico que permite ao
el'r-rdito verificar a autenticidade deste ou daquele fato particular e, ao mesmo tempo,
extr¿ìir do âmontoado biográfico elementos para informar eficazmente, com docu-
mentos de primeila mão. Esse gênero, por outro lado, é bem ao gosto de um público
popular que nele encontra ulna oportunidade para sonhar e não tem a mínima in-
tenção de sobrecarregar-se de ref'erências pesadas. A partir dessa dualidade, Daniel
M¿rdelénat distingue o que qualifica como gênero "hiperbiográfico" ou psicológico,
centrado exclusivamente na personalidade, da biografia "histórica, científica, artística,
literária, onde o interesse se desloca para as relações entre um ator, um criador e uma
civiliz.ação ou cultura"3r. Semelhante distinção traduz bem, é claro, a existência de
clois polos opostos e, nesse caso, tem sua pertinência heurística; mas, na realidade,
o essencial reside entre os dois extremos em múltiplas configurações híbridas. Entre
rttintesis e vidas imaginárias, o caráter próprio da biografia consiste em depender
de ul.n¿r indistinção epistemológica. O gênero biográfico é uma mescla de erudição,
criatividade literária e intuição psicológica. Implica um mínimo de empatia, mesmo
que essa transposição afetiva se torne fonte de cegueira e rompantes hagiográficos:
"Chocar os rnateriais devolve-lhes o calor da vida, transforma-os de objeto em sujei-
to de estr,rdo, cotlpanheiro vivo ao qual o biógrafo se liga, de um modo ou de outro,
profundzr e visceralmente"32. O envolvirnento do biógrafo com seu sujeito de estudo
chega um ponto tal que não pode se efetivar sem ir transformando o biógrafo ao
zr

ritmo de sua composição biográfica. Ao ûresmo tempo, essa alteração deve perma-
necer sob controle para servir à compreensão daquele que continua sendo estranho
e cuja misterios¿t singularidade deve ser captada sem que se caia nas armadilhas da

29. Idun, p. 2-59.


30. Paul Murray Kendall, !'he Art oJ'Biogruplty, op. r:it.,1t. 15.
3 l. Daniel Maclelénat. La biograpltie, op. <:it.,
1t. 23.
32. Paul Mrrlray Kendall, Thc Art oJ Biogrctphy, o¡t. cit., p. 148.

60
A BIOGRAFIA, GÊNËRO IMPIJRO

confusão entre o um e o outro. Essa tensão não deixa de


lembrar a Daniel Maclelé-
nat uma proximidade paradoxal entre o gênero biográfico e
o romance moclerno que,
contudo, procuraria romper com esse gênero, mas sempre
o reenco¡tr¿rria "cou,ì seus
jogos sobre pontos de vista e épocas, seus mergulhos
na interioriclade, slr¿t clisposição
convergente de intrigas secundárias"33.
A ambivalência entre história de uma vida atestada por fatos e fìcção pura
chegou a extremos na obra e nos artigos críticos de virginia
Woolf. Na Inglaterra. c)
modelo consagrado repousa em bases bastante factu¿ris. Remonta
ao final clo século
XVIII e abre espaço ao que chamamos de biografia àr moda anglo-saxônica, na
cluzrl
não faltam os mínimos detalhes, como é o caso da vida do
dr. Samuel Johnson es-
crita por James Boswell3a.
Foi nos fundos de uma livraria londrina que o escocês Boswell travolr
conhe-
cimento com o homem de letras, lexicógrafo, poeta e crítico
Samuel Johnson, claí
por diante seu amigo. Durante vinte anos, transcreveu todas
as alterações de hulllor.
pilhérias e opiniões satíricas de Johnson, enfim, todas as atitudes
dess¿r fì-eura ero
mesmo tempo hipocondríaca, melancólica e extremamente
autoritíu.ia. Daí resulta
uma crônica ou "testelrunho" sobre um grande homem qr-re vai
acompanhzrndo ano
após ano, do mais perto possível, a vida da personagerÌ1, resg¿rtando
seus ditos.
ob-
servações e cartas ao longo do tempo, com a firme intenção por
parte do biógrafo cle
mostrar Johnson tal qual foi realmente, em sua verdade, de exibi.lhe
a vida em tocla
a sua autenticidade, anedotas e cletalhes para escrever urna
bio-qrafia viva:

Não conheço métod<l biográlìco rnais perlreito que aquele que não
aperas associa. seg'nclcl a orcìc¡r
de produção' os acontecirnentos mais intportantes da existôncia
cle urn homenr, r.ì.Ìas entrcnrci¿r-os c.r, o
que esse homem haja dito, pensado e escrito. Tal niétodo permite
ao leitor vô-lo viver, e conr
:1

ele, cada um dos acontecimentos mais importantesr5. 'ivcrrciar


t::
i:
ì,:.
l
l.'
i. ogênio do biógrafo que foi Boswell consiste nas reconfigr-rrações
e ¡as clispg-
,,.
';
i): sições múltiplas dos materiais acumulados.
ir
t,

Em meados do século XIX, o modelo de Boswell cecle o p¿ìsso ¿ro domínio


absoluto do que chamamos biografia vitoriana, submetida a fortes
coações morali-
zadoras' Obra de edificação, a biografia dessa época se confunde
com a liagiografìa.
Difunde "vidas" autorizadas, fontes de respeitabilidade expungidas
i:
:if de tuclg qLìanto

possa prejudicar o bom comportamento. Em geral, as obr¿rs
:;,1.: são escritas por pesso¿rs
il próximas dos biografados, que de sua vida só retêm os traços exemplares.
Ìi
Trata-se cle

33. Daniel Madelénar, La biographie, op. cit., p. 65.


.:'

34. James Boswell, vie de satnuer Jr¡hnsr¡, (r.'g3), L'Âge c|Hornrne,


i 2002.
: 35. Idem, p. 15.

,:
Ì:
ll 6t
l

I
t..
':

:
O Dl'.SAFI0 ßIOGR/\l;1C0. lìSCIIEVIìll ulrli\ \tlDt\

qlle não enseja distanciamento crítico algum, mas instala o leitor numa
Lult¿ì escrit¿t
reläção cle reverêncier cluase religiosa.
A obra inteira de Vir-einia Woolf se opõe a esse modo de escrita biográfica.
Ela percebe, collt particular intensidade. o car¿iter ambìvalente e contraditório do
gênero - uut rorrìance "verdadeiro". Esse caráter impuro seduz Virginia Woolf, que
cscreve, eläirrrlpria, três biografras Orlando (1928), f;Iush (1933), qr-re têrn tnuito do
gênero romauesco, e Roger p¡v, Que enfatiza a ciimensão proprianrente biográfica cia
vicla ¿itestacla (1940). Bio-erafìa é ¿rrte'Ì. pergunta-se Virginia Woolf36. Ela considera
a biogr:rfia.uraneira de Richard Holmes, conìo um gênero tr¿rnsversal, nascido do
¿ì

comércio incestuoso da ciência e da ficção: "A biografia é um gênero espúrio, fruto


do casallento desnaturado da fìcção com os fatos. Portanto, Llr-n gênero refr¿rtário,
clue nlio cessa cle questionar"rt. Se al-te, a biografia é uma arte n:ìenor'. minimalist¿t,
tributíu'ia de um exercício cle apresentação de provas: "O rornancista -qoza de liber-
clacle; o Llió-gralb estír lranietaclo"sE. Virginia Woolf s¿rúda o atparecimento cle uma
coricepção rnais solta, tnenos presa n¿ìs malhas da moral vitoriana, que se irnpôs no
iníciil do século XX. El¿r ten'ì por objetivo captar a verdade der personagem rompendo
conl o silêncio pr:dico que até então cercav¿ì a esfera privada. O êxito ol¡ o frac¿rsso
do erlpreendinlento biogríilìco depende então, para Virginia Woolf, da capacidacle
do bróglafo de "dosar" bem a parte ficcional e a parte fàctr"ral.
Ela e seu ärnigo Lytton Strachey p¿ìrtilham o 1àscínio pela arte da biografia e a
vorltiide cle romper corn a herança vitoriana. Conf'orme observa Floriane Reviron3e, zt

carreira dos dois escritc.¡res é. ao rresrno tempo, paralela e divergente. Virginia Woolf
vai cl¿r biografia liccion¿il às biografias mais f'actuais, enquanto Lytton Strachey segue
o caminho inverso. A prirnerrä obra de Strachey, Entinent Vicfr¡rian.sa0, ainda est/t
bern pr'óxirna da recupererção de fitos, embora já ignore radicalmente certos postu-
lados da époczr vitorian¿r. Ern prinreiro lugar, logo no prefácio, Strachey denunci¿t
coulo larsa a icleia de urna história-ciêncìa exata e reivindic¿r, coulo biógrafo, r-rrna
m¿rior liberdade de escolha, assumincio postur¿ìs tendencios¿rs e arbitlárias. As per-
sorl¿Ìgens que escolhe para sujeitos de suas biografias - o cardeal Mannin-u, Florence
Nightingale, o dr. Arnold e o gener¿ìl Gordon - são todas liguras públicas de unra

3ó. Virginia Woolf-, "L'alt clc la biogra¡rhie", ct¡ l-ltc Dettth t¿l'tlte Motlt, 1939: r'cpulllicaclo e¡n Es.çni.r,
Scghcrs.1976.
37. Richar cl llolrncs, "Biography: Iuvcnting the Tluth", cnr John Batchelor (olg.), Zrc Art o.l'Litcrary
lliogruplt¡. OxfÌr'cl, Clalcndon. 1995. ¡t. 67.
38. Vilginia Wooll-, "Lalt dc Ia lriclgrapliie", op. r:i1., p. 198.
39. Floliane Reviron. "Orluntlo dc Virginia Woclll'(1928): une róponse ìt Et¡tinent Vic:toriuns'!". eni Fr'é-
cìéric Regard (dir.), La Ltiograpltie Iittérairc ert Artg,leterre (XVIf -XX" .siècla), Presses cle Univelsité
clc Saint-Étiennc. 1999, pp. 117-140.
40. Lytton Strachey, Entinent Vir:tr¡rian,s ( l9l8). London. PengLrin Books. 198Ó.

ó2
/\ llt0(;RAItt/r, GENI:RO IMPUITO

época vitoriana que ele detesta. Rompe assim coln o costume, por parte clo Lricigra-
fo, de só escrever sobre as pessoas que ama, eriginclo-lhes ul'ì'ì túrnulo próprio para
a veneração: "Foi graças a Strachey que as relações enfte biogt"aphar e biogr7¡thee
puderam ser vistas a uma nova iuz. não já como ponto pacífico, mas como questão
problemática"ar. Strachey afirma, pois, em altas vozes. o direito que tem o bió-crafo
de exprimir seu ponto de vista e pôr ern cen¿ì sua subjetividacle. Nessa prinreira 6bra
biográfìca, a contribuição do autor não se situa na esfera clos clocumentos. n1¿ìs em
seu ataque satírico a urn regime e aos valores de uma época.
Virginia Woolf tem, tanto quanto Strachey, a preocupação cle.jLrntar a criativicia-
de, a implicação subjetiva e a ruptura corÌl o código moralizante da épçca vitoriana ¿ì
ânsia de comunicar umâ certa forma de verdade factual. Recorrenclo aos traballros clo
amigo para reforçar suas próprias posições sobre a bio-qrafia. ela corrrperra as cluas otrr¿is
de Lytton Strachey: a biografia da rainh¿r Vitóriaa2. que consicler¿ì Lrma obra-prinr.r notir-
vel, e a da rainha Isabela3, que a seu ver é um tremendo fìasco. Esse contraste se cleve
ao fato de que Lytton Strachey, disponclo de boa document¿rção sobre ¿r r¿rinha Vitória.
pôde combinar com slìcesso as dimensões ficcional e factual, ao p¿rsso que a opaciciacle
das informações sobre Isabel obrigor-r-o ¿ì col-ìtentar-se corll o regìstro cla fìcção.
Cabe ao biógrafo compor nos dois planos e, se "a ver:dade cla lìcção e ¿i ver.cl¿rcle
dos fatos são incompatíveis [...1", eie "deve mais que ululc¿ì terìtar comLriná-las'*rr. O
biógrafo tem, portallto. de manter-se no justo meio-termo. evitando unl olr olrtro esco-
lho que levariam longe demais quer o uso cla ima-einação. quer o cuiclaclo cla eruclição
factual. Ceder a quaiquer desses dois elementos mutu¿ì.mente exclucientes só lÌiria conr
que o biógrafo se perclesse nos dois planos. Descle que côrrscio cla necessiclacle de fa-
zer urì bom trabalho de etrtesão, o biógrafo pode se tornar artista, Virginia Woolf é
f'ascinada por esse gênero que harmoniza os contr/rrios e toma por alvo o perecível:
"Che-9alnos, pois, à conclLlsão de que ele
[o biógrafol é um artesão e nño rint zrrtisti.r;
e de que seu trabalho não é uma obra de arte, nras algo internrediírrio"f5. Se pertence
a um gênero perecível e inferior, a biogralìa pode, não obstante ser fonte cle preciosas
luzes criativas: "Dizendo-nos a verdade [...ì, o biógrafo faz mais para estinrular a ini¿r-
ginação que qr-ralquer poeta ou romancista, postos de parte os maiores'a6.

4l' Floriane Reviron, "Orlando cle Virginia Wooll'(1928): unc róponsc ìt Et¡tincnt \/it:toriruts' ". o¡t. r;it.
p. 127.
42. Lytton Strachey, Qucen victorir¡, cÌratto, lgzÌ', La reinc victorirt pBp. payot. 1993.
43. Lytton Strachey, Elizaberh antl Esscx - A Tra,gir: Hi,çlon,, 192g.
44. Virginia Wooll', "La nouvelle biogra¡rhie", crn "Cranite ancl Iìainbor.v". em N¿,rr. yt¡rk Heralrl '['ribttnc
30 de outLlbro de 1927; repr-rblicado em.E,r.r¿is, o¡t. cit., p.213.
4,5. Virginia Wooll "L' art cle la biographie", op. cit., p. ?04.
46. Idem. p.205.

63
,:

t:

t.
O DI'SAFIO ßIOGRAI:rcO. LSCIIEVEIì. I.]MA VIDI\

Virginia Woolf prova que nãto despreza de maneira alguma o gênero inscreven-
do nele uma parte de sua obra de escritora. A relação de amor e fascínio que mantém
conl ¿ì esposa de Harold Nicolson, a poetisa e romancista Vita Sackville-West, des-
perta en1 sua allna o desejo de evocar, ao mesmo tempo, o real e o irlaginário, a que
deu os traços da personagem andrógina de Orlando. Essa escolha é fonte de júrbilo,
titnltlém escatpatória aos riscos da loucur¿r. Virginia Woolf percebe-a com Ltna
lll¿ts
intensidade toda especial, qual se fora uma ordem:

Ontelrr de tuauhã eu estava desespcrada. Não podia arrancar-nle urìla única palavra. Pol fim, lner-qLl-
lhci a pcna rro tir'ìteiro e escrcvi quase maquinalnlentc st¡bre urna lblha em br'¿utco: Orlan.dr¡, una Ilictgra.fiu.
Mitl acabara cle faz-ô-lo e toclcl o meL¡ corpo se inr-rndou de alegria e nreu cér'eblo folmigoLr de icleiasai.

De resto, Virginia Woolf realìrma sua intenção de revolucionar o gênero bio-


grálìco por um tratamento conjunto dos fatos e da psicologia interior presumida do
biografacio. A persona-eem de sr-ra primeira biografia, Orlctndo, é um andrógino co-
locado significativ¿rmente sob o signo clas coisas híbridas, revelador da mescla ne-
cessitria de gêneros qlle a escrit¿r bio-qráfica pressupõe. É para a verdacle cla figura
biogralada que se volta a busca de Virginia Woolf - busca que não para no acúmu-
lo de nr¿rteriais factr-rais, na minte,sis plìra e sir-nples. Ao contrál'io, tou'rn a forma de
traçaclo segundo tìrìra perspectiva estétic¿r posta a serviço de uma ética. Frente a ull-t
lierói como Orlando, que atravessa vários séculos e cuja sexualidade muda ao lor-rgo
do calninho, estamos mais na vertente romarìesca que na biográfica, embora Virgi-
nia Woolf pretenda com isso desestabilizar as certezas convencionais do gênero. Ern
verdade o biógrafo, diante de uma personagem tão esquiva, vê romper-se sob seus
pés a roclra sobre ¿r qual se cria firmemente apoiado: "Orlando é, pois, um rnergulho
nos problenras colocados pelo advento da nova biografia e representa, talvez, ulra
clas tentativas mais seclutoras, mais convincentes de resolvê-los'48.
Virginia Woolf passa, contudo, por Lrma evolução entre o projeto de Orl.cmdo
e sua última biografìa, a do crítico de arte Roger Fry, publicada em 1940, fruto de
uma concepção rnais convenciot-lal do gênero. Aliás, foi em 1939 que ela constatou
cl fracasso de Lytton Strachey com sua biografia irnaginária da rainha Isabel. Extraiu
daí lições em seguicia zrplicadas ¿ìo retrato que tr¿rçou de Roger Fry. No entanto, ins-
creveu seu projeto de redação biográfica na mesma perspectiva de paródia e crítica
adot¿ida por Strachey. O crítico cle arte cLrja biografìa ela escreve é um anticonformista
rebel¿rdo contra a fân'rília e pronlotol'de uma estética nada convencional.

47. Vir-qinia Wooll'. citacla pol Diane de Margelic, ern Vir-qinia W<lolf, Orlatdo, Stock, 2001, p. 1 L
48. Floriane Rcviron. "Orluntlo dc Virginia Woolf (1928): une réponse à Etninenî Vic:toriuts?", o¡t. t'it..
p. I3,3.

64
A BIOGRAI'IA, GÊNER.O IMPIJRO

Virginia Woolf adota um registro ainda mais irônico em Flu,s/rae, pr-rblicado


antes de Roger Fry porque o herói da biografia é, o cã.ozinho cle Elizabeth Barrett
Browning, sua amante então relegada a segundo plano: "Essa escolhzr, por seu hu-
tnor, revela a vontade de contrariar a convenção segunclo a qual só se deve escrever
sobre gente famosa"sO. Mas, sob a paródia, vislumbram-se os tr¿ìços de uma mulher
real, Elizabeth Barrett Browning, qlre passou a infância paralisada e encerracla num
quarto escuro, bem à semelhança da clausura coletiva d¿i era vitoriana. Ela, no en-
tânto, escapa ao confinamento pela insubmìssão de sua poesia: 'A obra biográfìca cle
Virginia Woolf propõe, pois, uma visão determinista <Jo eu submetido zìs pressões
ideológicas de uma sociedade patriarcai rígida"'sr. O cãozinho siniboliza a postura
da biógrafa. Ele vê sua dona chorar, escrever, mas não conrpreende o que se passa
diante de seus olhos. E a biógrafa, compreenderá melhor as coisas com sua visão
igualmente tendenciosa'? Em Flu.sh e Rc.¡bert Fry, Virginia Woolf segue o percurso
diacrônico clássico de construção pessoal de uma identidade no tempo ¿rs duas
-
personagens acabam por emancipar-se clo peso que recai sobre seu destino. Em con-
trapartida, como Christine Reynier observa, Virginia Woolf semeia o carninho per-
corrido de anomalias que põern em causa a ilusão de um fluxo contínì.ro e uniforme.
Assim, a data de nascimento de Flush é incerta, e a de sua morte, desconhecida. Os
percursos são crivados de incertezas que permanecem como tais, de elipses: "Lon-9e
de contemplar uma existência em sua totalidade, a biografia ofèrece cortes cle vida
que têm valor paradigmático"s2.
Floriane Reviron analisa esse espaço texiual repleto de tensões en-r Vilginia
Woolf como elemento de uma espécie de alquimia: "Tal coûlo o alquimista, o bió-
grafo manipula matérias vivas, maleáveis e proteiformes, cuja verdadeira composi-
ção permanece um mistério e cujo amálgama pode ser perigoso"53. A pedra fìlosofal
t:

que obceca o "alquimista", Virginia Woolf elabora-¿r a partir de uma verclade sensi-
velmente diversa da proposta pelo saber positivo. Pertence antes ao registro cle uma
:

verdade psicológica que cleve ser restaurada em toclas as suas tensões, ambivalências
e princípios múltiplos. Trata-se, pois, de um amálgama de síntese que o biógralb. z\
.:
maneira do alquimista, procura obter por meio cle uma verdadeira "translrutaÇão"'-r.

i.

t,
r 49. Virginia Woolf, Flu.sh: A Biogra¡th1t (1933), penguin Books, Lonclon, 1977.
-50. Chr-istine Reynier. "F1us/r (1933) et Roger Frr, (1940): la biographie woolfìennc ou le clésìr.cle 'still Iìfe"'.
I ern Frédér'ic Regald (clir:.), La biogra¡thie litréraire en Attglelerre (XWl-XX siècle), op. c:it., p. 143.
li.

r,
5l. IcLent, p. 146.
I 52. Ident, p. I -5 I .
a:

53. Floriane Revirou, "La biographie woolfienne: vers Luìe alchinrie dLr pur et cle I'irnpur.". er¡ Cathcrinc
Bernard e christine Régnier (dirJ,virginia woolf. Le ¡tur et !'impur. puR.2002, p.224.
54. Irlent, p. 225.

65
O DESAþIO ßIOGIIAFICO. DSCR¿VEII UI"IA VIDA

No horizonte dessa mistura de cores, de sua hibridização, o biógrafo espera dar a

público um sublimado capaz de transcender a irnputeza de seus componentes.


Cl'rristine Duhon tentou biografar a biógrafa adotando uma postura similar de
"t'riolìcçãro"55. O projeto se pretende uma rnetabiogralia, tnas sob a forma de rom¿ince.
Eslbrçando-se para testar a pertinência das propostas teóricas de Virginia Woolf, a au-
tola erigir-r como objetivo, no quadlo temporal Iimitado aos anos 1921-1928, evocar
slìas zonas cle sombra. Christine Duhon reflete sobre o próprio mornento da escrita
de Orlantlr¡ e a paixão cle Vilginia Wooif por Vita Sackville-West. Transita entre os
eiementos cla vida e da obra de Virginia Woolf. Daí resulta uma inversão radical que
lembra o raciocínio intuitivo de Oscar Wilde em 1889, quando propalou sua fórnrula
célebre: 'A imita a arte nrais que a arte imita a vida"5('. As zonas de opacidade
vìd¿r
clos sentimentos experimentados por Virginia Woolf são trazidas à luz pela extração
dos elementos informativos da biografra de sua amiga Vita, que encarna a persona-
gern cle Orl.unclo e, portanto, serve de rnatriz para a f'eitura da biografia da própria
Vìrginta Woolf. Essa restituição repousa numa "atitude hernrenêutica bastante de-
lens/rvel, que prescreve uma hornologizr entle duas relações: ¿r do romance de Duhon
colrì seu moclelo e a cio iivro cle Woolf'com Vita"57. Evidentemente, podemos nos
perguntar quzrl parte o leitor deve pôr de lado entre essas analogias - existência real
cte Vita e aquilo que dela diz Virginia Woolf no Orlando -, onde está justamente
o que importa p¿ìra a escritora, a saber, o trabalho da criação literária. Isso, toda-
via, não clesclLralifìca o elnpreendimento de Christine Duhon: o fato de retraçar os
contornos da vida de Virginia Woolf a partir de sua obra oferece um certo distan-
ci¿imento corn relirção aos possíveis deslizes psicologizantes. Com efeito, o biógrafo
não mais se deixa levar pela dedução de uma suposta intencionalidade, mas parte
do "lnundo do texto", d¿r ol¡ra em si como base tangível de uma expressão singular.
O texto se interpõe como mediador naquilo que vai assumir a forma de uma recon-
fìguração biográfica. O relato que daí extrai Christine Duhon é um relato confìável
e verossímil qLrando o confrontan'ìos com aquilo que sabemos já ter sido atestado. A
tensão clialética entre as dirnensões factual e ficcional - que ela consegue manter ao
respeitar a ictentid¿rde de ambos os polos - remete à natureza visceralnrente híbrida
do gênero bìográfìco.
A biografia responde a um certo número de cânones estéticos na medida ern
clue se apresenta como gênero específìco, capaz de satisfazer a determinadas exigên-

-55. Clrristinc Duhon. (Jnc année anlol(rausc tlc Virginia Woolf,Olrivtcr Orban, 1990.
-56. Osca¡ Wildc. "Thc Decay of'Living", et¡ I)e Pro.liutdi.s ancl Orlte r lUritings (1889), Harmondswolth,
Penguin CIassics, 198ó, p. 74.
57. Robert l)ion. "U¡r¿ atmáe amoureuse de Virgirtitt Wc¡r¡lf, ou la 1ìction biographique niultiplióe", em
Littéruture, "Bioglaphiques", Lärousse, n. I28, dez. 2002, p. 35.

ó6
A BIOGRAFIA, (;ENERO Ii\IPI]RO

clas, nos termos do pacto de veraciclacle assinaclo entre


o biógrafb e o leitor. Ess¿r
estética da biografia pressupõe o emprego cle unra variação
cle e¡f'oques. cle n¡ra
escaia de pontos de vista: "Cumpre adicionar ao reiato
a representação c1o objeto.
ou seja. é preciso desenhar e pintar ao mesmo ter'ì.rpo"'ss. O biógrafb
esiá numa rela-
ção de m¿rior ou menor proximiclade conl respeito à personagenr biografacl¿r. entre
¿r
onisciência pouco propícia ao gênero e a extericlriclacle tot¿rì, tambéni
im¡rr-ó¡rria. A
biografia supõe em geral a empatia, port¿ìnto uma transposição
psicológica mais ori
menos regulada e dominada
- mesnlo havendo exceções notórias. cor-ìlo a biogralìa
de Hitler por lan Kershaw. Se.ia corno for, o biógrafo cleve preenc¡er
as lacunas clo-
cunrentais e valer-se da intuicão para 1i-tar tracos clescontínuos.
Tanrtrérl aí turJo se
clesdobra entre dois polos cle atitucles opostas: "Distanci¿urento,
submissão. referô'-
cia' nretamorfoses camaleônic¿rs confornre os docur¡entos r-rtilizados
e as fases c1a
vida relatada, passagem da elegia à ocle. do impressìonismo
ao expressio¡isnrg: or-r
sofìsticação, hiper-reação ao servilisnro funcional",se.
De igual modo' o tratamento da tenrporaliclacle pernrite incontáveis
variaÇões
entre o respeito absolLtto ao quadro cronológico, caracterizado
por urn clesfìlar-coìl-
tínuo do nascinrento à morte cla personagenr biografacla, e as
liberdacles clo autor.
com o uso cio tempo. O ernpenho em dar rlais elìcácia ¿io relato pocle
concluzir a<l
rompimento da ìineal'idade cronológica e à zrdoção clas niúltiplas
vozes ¡¿irratirzas
que participam dos víirios registros cle temporaliclacle.
O mais clas vezes. o biógrafo
procura alternar capítulos de tonalidacle cliacrônica com
capítulcls cle tonaliclade te-
mátic¿t' Resulta daí um relato lnisto que procura reencontrar
cluas coerôncias cle tern-
poralidades diferentes, a da lógica própria ¿ì sucessão
clos eventos e ¿ì que emana cj¿r
unidade cla pessoa resgatacla pelo biógrafo. A narração biogrirfìca
não é. pois. corlo
salienta Madelénat, homo-9ênezi. É, be,'n ao contrário. Lul'ì¿r estrutura
inelutavelmente
compósita, uma convergência cle relatos ciiversos enreclaclos Luls
rlos outros. Nisso.
iembra a escrita da história e do romance.
O biógrafo se vê diante de um sistema clupìamente coercitivo ao qual
não pode
escapar ceclendo à pressão de um ou olìtro lado: "Fazer clo homenl
L'1.ì sistenra cl¿r-
ro e falso clu renunciar por conrpleto a tornlì-lo um sistema e compreeuclê-lo.
eis. acr
qLle parece' o dilema do biógraf'orr(r0. 4 personagern
biografacia se acha. seul o salrer.
sob a luz dos holof'otes. A uniclacle estrutural cie sua vicla enfrenta
a pluraliclacle cle
olhares e apreciações das testemunhas de sua existência e cìo que
sucecleu clepois cìe
sua morte' Entre a unidade biogrírfica e a pluralidacle cle sua
recepcão. o gênero bio-

58' René cle Chateaubri ttt'td, CErn'res cctmplèrcs.Garnier, t. IX (19-5g). Étttclc.s Hi.çrr¡nr¡rrc.r..,prélÌrccs
-59. Drniel Madelénat. La biogra¡tltie. o¡t. cit..
¡:p. l-5 I_1.52.
60. André Maurois. Aspcct,s de Ia biogrctpltia. op. crl.. p. .5 l.

ó7
O DESAFIO BIOGRÁFICO. ESCREVER I]MA VIDA

gráfico evolui em meio ao entrelaçamento da pulverização infinita das facetas, que


nem por isso deve desembocar na desconstrução total do sujeito.
Com mais frequência, porém, a pluralização é confrontada com um documen-
to de características únicas: a autobiografia escrita pelo biografado. Importa então
saber que lugar será conferido a essa escrita do eu, por muito tempo indiferenciada
da escrita do outro - será preciso aguardar o século XVIII para distinguir esses dois
gêneros. com a publicação das Confissões de Jean-Jacques Rousseau, certidão de nasci-
mento da autobiografia6'. A fonte autobiográfica tem, é certo, uma importância ca-
pital porque dá ao biógrafo a ilusão de penetrar no âmago da personagem e chegar
bem perto de sua intencionalidade. Ele obtém assim, circulando entre os diversos
registros, um efeito "estereofônico"62. O uso de "memórias", conf,ssões ou registros
autobiográficos é adotado de formas diversas nas biografias; dá a entender que se
está mais próxirno da restituição autêntica do passado. Acha-se na origem de um
"efeito do real" surpreendente, pois o biógrafo parece afastar-se do confessional. À
diferença do que ocorre no romance, o ernprego de palavras verdadeiras, a descri-
ção de iongos estados de espírito autênticos permitem situar o gênero biográfico na
categoria da escrita histórica. Por outro lado, escrevem-se sempre biografias novas
das mesmas personagens, o que não apenas se deve à descoberta de documentos
inéditos como se explica pelo surgimento de questões novas, de novos paradigmas
interpretativos, e também pela intuição e imaginação do biógrafo - ou seja, por sua
capacìdade inventiva.
"Toda biografia é romanceada e não pode deixar de sê-1o"63: o polo romanesco é
consubstancial ao gênero biográfico, quefraz em si um arnálgama inevitável e impossí-
vel. Ele orienta "uma busca de totalidade que, se alcançada,matarâ a biografia por
ser infiel ao documento"64. O biógrafo é Ìivre para escolher seu estilo e dosar seu
tom entre a escrita romanesca e a escrita histórica. Mas, ainda assim, está sob coação
porque não se pode perrnitir guinadas que o afastariam demais da personagem.
O gênero biográfico ressalta a diferença entre identidade propriamente literária
e identidade científica. Por sua posição intermediária, suscita a mescla e o hibridismo,
ilustrando com tensões vivas a conivência sempre existente entre literatura e ciências
humanas, que Michel de Certeau evidenciou recorrendo a uma fórmula paradoxal:
'A história nã,o é, científica, explicita as
se por esta palavra entendermos o texto que
regras de sua produção. Trata-se de uma mistura de ciência e fantasia, cujo relato

61. Ver Philippe Lejeune, Le pacre autobiogra¡tlzique (1975), Le Seuil, col. "Points", 1996, pp. 49-163
62. Philippe Lejeune, Je est un aLttre, Le Seuil, I980, p. 239.
63. François Mauriac, "Cinqualìte ans", NR.F, out. 1939, p.549.
64. Daniel Madelénat, La biographie, o¡t. cit., p. 170.

6B
A BIOGRAFIA, GENERO IMP{JRO

parece racional, mas nem por isso está menos sujeito a controles e possibilida<ies cle
falsificação"6s. Essa desestabilização de certezas e fronteiras disciplinares pode atri-
buir ao gênero biográfico um lugar privilegiado, que retomaria a quesrão do sujeito
do saber na esfera do conhecimento. Semelhante desconstrução vem em apoio das
observações de Bernard Pudal, que considera a biografia um elemento central na de-
finição "de uma epistemologia diferente"66. Tanto no domínio literário quanto no da
biografia histórica, os trabalhos mais inovadores questionam a sapiência onipresente
do biógrafo, que já não é postulada. Ao contrário, o autor fornece hipóteses, coûìen-
tários rigorosamente situados, acompanhando o leitor numa mesma senda cle inves-
tigação sem jamais desvendar seu enigma. A imaginação é explicitamente requerida
para compensar as insuficiências documentais e o resgate impossível do passado. Do-
minique Viart assume essa busca nova e intensa da singularidade das vidas e aventa
a hipótese de uma correlação entre a "era do testemunho", como a chama Annette
Wieviorka6T, e o gosto atual pelo biográfico. Para além da natureza do discurso, é o
comportamento humano que se interroga, provocando o discurso e a encenação: "Unr
efeito pendular, característico de nossa época, recupera no âmbito do pcîtltcts utna
relação com o outro que, nã.o faz muito, constituía o apanágio do /ogr.rs,,('8.
O desejo de definir com a máxima clareza os contornos do inclivíduo fez a glória
de uma escrita do minúsculo, do ínfimo, do aparentemente insignificante. Isso acon-
tece na mesma medida a historiadores e romancistas. Assim, Arlette Farge perglrnta
o que significa a pulseira de pergaminho encontrada nos arquivos judiciários, esse
pequenino farrapo de papel atado ao punho por uma flta vermelha que constitui. só
por si, o testemunho mais íntimo de uma vida: "O bilhete era o reconhecimento de
suas existências, o desejo de não caírem no anonimato, a vontade de comentarem
ou, antes, de serem comentados"6e. Encontramos a mesma busca em outros histo-
riadores como Alain CorbinT0 ou sociólogos como Pierre SansotTr, atento à plebe, e
Jean-François Laéi2, mas também em romancistas como Georges Perec (com seu in-
teresse pelo "infraordinário") e Pierre Michon73, quando explora em Vie.s ntiluscsle.s

65. Michel de Certeau, "L'histoire, une passion nouvelle", Le Magazine Littóraire, n. 123, abr. 1977, pp.
19-20.
66. Bernard Pudal, "Du biographique entre science et fìcti'on", ern "La biographie. Usages scientifìc1ues et
sociaux", Politix,27, 1994, p. 24.
67. Annette wieviorka, L'ère du téntoin, Hachette Littératures, col. ,,pluriel', ,2002.
68. Dominique Viart, "Dis-moi qui tehanre. paradoxes du biographique", art. cit.. p. 13.
69. Arlette Farge, Le bracelet cle ¡tarchemin, Bayard, 2003, p. ll.
70. Alain corbin, Le ntonde retrour¿ cle Louis-François pinago¡, Flammarion, 199g.
71. Pierre Sansot, Gens de peu, PUF, 1998.
72. Jean-François Laé e Numa Murard, Les récits d.u ntal.heur, Descartes & cie, 1995.
73. Pierre Michon, Vies ntinu.scu!.cs, op. cit.

69
O DIiS,\l:10 ßl0GRi\l:lCO. /tSCllf V'1i11 Ulvlt\ \/1DÅ

os οìntasrnas estropiaclos d¿rs pessoas comuns que apenas sonharant su¿ì existência e
estão semllre defasadas corll relação a si mesm¿ls. Onde vidas de lleróis e santos eram
"perf'eitas" no ajuste do desejo e sr"ta realizaç7ào, encontl¿lmo-nos. com Michon, na
esf'era do abandono das exigências existenciais frente a fracassos repetidos. Contudo,
as palavras devolveni a graça a destinos singuiares, seja o desse André Dufourne¿ru,
ór1'ão da assistência pública (clo qual "zr vocação sempre t'oi a África. E, ouso crê-lo
por urìt lror-nenlo, sabendo que fracassaria, que o qLre para 1á o chamava er¿ì menos o
magneto gl'osseiro dat riqueza a conquistzrr que urna rendição incondicional nas lnhos
da Fortt-tn¿r intransitiva"T4), oLr o cle Antoine Peluchet, "fill-ro perpétuo e perpetlt¿ìmente
inacabado clue lauçou bem longe seu nonle e ali o perdeu [...] Antoine sumiu, virou
sonho"75. Portanto, essa busca clo ínfimo se nutre ao mesmo tempo de lìcção e cle
fra-gtnentos tangíveis. Cri¿i um senso de verdade a partir do imaginár'io do autor.
Daí o paradoxo: "Se a verdade do biógrafo estíi no testemunho, ele nada teste-
nrlinha a nito ser a verdade de querl escreve. não de quem é objerc da escrit¿r"76. Esses
biogralèmas. no sentido de Roland BarthesiT, reconstruídos pelo autor, historiador ou
t'ontancist¿t, deixam o leitor indeciso e incerto. Falant-nos, antes, da carência e de "sua
verdacle inacessíve|:7rì. Q biográfico, tal qual definìdo por Dominique Viart, seria
acluiio qLre enl qr-ralquel texto tàz ¿ìs vezes de "biogralla", dá a iiusão cle biografìa,
"elèito do vivìdo" da mesma nl¿rneira que Rolzrnd Barthes citava o "efeito do real"
r-rni
a propósito do romance flaubertiano:

Daí o 1't¡to tle essa anrbigLridadc clu "bìoglafì1" designar ao llresuro ternpo ulìl conteúclo e urna lbrma,
tttTtt\ ntttl<iriu cllt"tnciada c unlu lrr¿¿¿¿,¿¡'a r¡uc cnuncia. O senticlcl últinlo da palavlir l'eside, senr dúvicla, no
crlrzaì-ncrlto clessas cluas accpções. u I)outo dc o "biogr'hfico" clesignar nlenos L¡m "gênero Ìireríu'io", de resto
clis¡talnlndo c cor.uplexo, clue a aliruça paradoxal de urn refel'ente particular (factual, ¡ressoal e suscetível cle

A firn de beni lessaltar a implicação subjetiva do autor e o liame entre biografìa


e autobiografìa. Dominique Viart retom¿ì uma fórmula próxima da de André Breton
ern NcLrfia'. "Dize-me clllern tu assustas e dir-te-ei quem éc"nO a a substitui por outra,
tnais ¡rróxtma do adírgio segunclo o qual "Dize-me querr /¿ ¿tssusta e dir-te-ei qLtem

11. ldurt. ¡t. Il-


15. Idarn, p.27.
7(1. DonriniqLre Viart. "Dis-¡loi rTui te haure", alt. cit., p. t6.
ll . Yer capítirlo Vll.2, "Les bìo-rraphènres".
7.S. Donrinic¡ue Viart. "Dis-nioi rTrri te hante". art. cìt., ¡t. l(r.
79. ltle nr. p.24.
,!0. A lór'rltLrlr tlc Andr-é Brcton ct'n Nudju ó "Pol c1ue uão saberão todos clue eu 'ocleio"?", André Breton,
Nutl.ja. Cttllim ard. l!)64, ¡1. 9.

70
1\ BIOGRAII]A, GtiNERO IMPIJII,O

és",realizaudo nesse meio-termo "um laboratório privilegiaclo


da fr,rsão
-9enérica,,sr. De
fato, a esclita biográfica leva ao paroxismo os três polos qr-re são
o ¿rutor-. o narraclor
e a personagenl. Hoje já se cornpreende bem que a história é
um f¿rzer leva<Jo a cabcr
pelo próprio historiador e, portanto, até certo ponto depenclente
da lìcção. Diga-se cr
mesmo do biógrafo, o qual ficcionaliza seu objeto e torna-o. por
isso rneslllo. i¡¿rlc¿rn-
çável, apesar do efeito do vivido que com isso obtéms2.
o hibridismo do gênero biográfico alimentou vocações cle bió-qrafo entre os
maiores romancistas e daí resultaram obras de peso. É, incontestavelmente,
o caso cja
Vie de Rcutcé, de Chateaubriands3, obra encomendacla por seu
diretor cle conscrênci¿r.
o padre Séguin. Chateaubriand,.iá no ocaso da vida, seguiu passos os desse reform¿r-
dor caturra, que se tornou abade temiclo e temível cla Trapa. O escritor
pernlarìece
romancista, mas adota também a postur¿ì do historiador. não apenas
se apoiarnclo em
biografias anteriores cle Rancé como recorrenclo a diversas fontes
cle prirneira mão.
explorando correspondências e manuscritos em bibliotecas ou
soÌicitando clocunrentos
inéditos' Chateaubriand se faz erudito para executar a tarefa, mas
não ron-ìpe em ¡acl¿i
com sua ambição literária. Essa Vi¿ cle Rctncé evoca muito bem os
lances da relação
do "eLl" do biógrafo com o outro, o biografädo. Chateaubriancl não
consegue c¿ilar
a antipatia que lhe inspirani a dureza e o ascetismo frio de seu herói: "Impossível
não tremer diante de um homem desses"sa; "Rancé cleveria ser extirpado
cla espécie
humana se não partilhasse e ultrapassasse os rigores que impunha
aos clel.nais',si. O
autor contladiz. a regra da suposta sinipatia clo bió-qrafo pela person¿ìgem
e. mila_9re
corriqueiro no gênero biográfico, a transposição de compreensão qr-re
ele i¡iplica aca-
ba por revela¡ a grandeza de Rancé, tão desacrecritaclo a pri'cípio.
O sucesso se deve justamente ao fäto cle que seu herói llre escapa e o estilo
alusivo lhe serve para "criar uma perpétua falácia"só. Chateaubriand
consegue trans-
mitir o caráter inapreensível do empreenclimento biográfìco graças ¿ì ur-n¿r estilística
enganadora que substitui pelo assíndetosi a expectativa de continuiclade;
que coloca
o negativo no lugar do positivo, o vzìzio no lugar do cheìo. Essa estilística remete.
por intermédio de Rancé, à situação do próprio biógrafo, então com 76
a¡os. Certo

8l' Dominique Viart' "Essais-Fictions: Les biographies (ré)inventées", em


Mar.c l)arnbre e Monicl¡c Gosselin-
-Noat (dir.), L'éclarentenr des genres au XX.ç¡àr:l¿, PreJses cle la
Sor.bonne Nogvclle. 200 l. p. 33-5.
82' ver Dorrit Cohn. "Vies fìctionnelles. vies historiqr-res: lirlites ct cas linrites".
L.ittérttrttrc.n. i0-5, ,uurçn
de 1997, pp. 24-48.
83. chateaubriand, vie de Rancé (1844), Livre cie poche/classiquc. 2003.
84. ldent. p.267.
85. Ident, p.210.
86. Nicolas Perot, prefírcio, irlent, p. 26.
87. FigLrra cle estilo qr-re consiste na ausência cle li.qação e rrtr.e clois tel.mos
oLt tnr¡ros cletermos cstrcit¿ìlncntc
rel acionados.

7l
O DESAFIO BIOGII,IíF'ICO. ESCREVER I]MA VIDA

de estar compondo seu derradeiro escrito, eIe faz o inventário das vaidades huma-
nas. Só ¿r obra parece capaz de pairar sobre essa paisagem de ruínas, túmulos, flores
murch¿rs e desgastes múltiplos do teinpo. Como notou Roland Barthes em seu prefá-
cio à Vie de Rancé, de 1965, "o tema eviclente é a velhice"s8. Assistimos a uma inge-
rência de Chateaubriand na vida de Rancé que não é mera projeção romântica, mas
superposição, resistência constante por meio de citações frequentes de suas próprias
obras em outros tantos fragmentos, cortes destinados a interromper o continuum de
uma vida que suscita nele a rejeição por razões de princípio. Longe de se deixar le-
var por seu herói, Chateaubriand permanece atento às quebras de tempo, às ruptu-
râs itÌstauradoras que são exaltadas colno busca de possibilidades novas: "Podemos
dar-lhe um modelo retórico, o anacoluto, que é tanto fratura de construção como
procura de sentido novo"8e. Essa biografìa anuncia, então, um segundo nascimento
de Rancé, aquele que o conduziu defìnitivamente da alacridade do mundo à quietude
do cl¿tustro: 'Aqr.ri começa a vida nova de Rancé: penetramos na região do silêncio
profundo"e0. Esse instrumento retórico evita a fìxidez semântica e obriga a perpetuar
a questão do sentido que passa, que gira enquanto mantém a distância da interroga-
ção sempre em suspenso. Serve também, como salienta Roland Barthes, para opor o
antes ao depois, para estabelecer urna antítese sistemática entre o universo mundano
e o universo solitário da vida monástica. Partindo do paradoxo assinalado por Bar-
thes eutre a renúncia à escrita, consequente à opção de Rancé pelo silôncio, e o fato
de the ser atribuída uma existência literária por intermédio de uma biografìa, che-
gamos à terceira leitura que verr se acrescentar ao bìnômio Rancé/Chateaubriand e
que evoca o desejo, o sonho de Balthes de uma escrita branca, de um grau zero da
escrita: "Pomo-nos então a sonhar com um escritor puro, que não escreve nunca"el.
Daí resulta uma implicação, uma superposição das subjetividades do biografado Ran-
cé, do biógrafo Chateaubriand e do crítico Roland Barthes.
O silêncio assustador a que se devotolr Rancé permanece, no fundo, um enig-
rna aos olhos de seu biógrafo: "Rancé não dirá uma palavra, consagrará toda a sua
vida ¿ro sepulcro"e2. Ao contrário, Chateaubriand não cessará de dizer e deixará para
a posteridade as Mentrjrias de Alént-ttîntulo. No relato dessa vida, o biógrafo se en-
volveu a ponto de parecer um¿ì personagem familiar ao universo do herói, ligado aos
lugares e momentos vividos por ele: "Rancé vai deixar Chambord, cumpre então que

88. Roland Barthes, ¡rlefíicio a Chateaubriand,Vie de Ranc:é, UGE, 10/18, 1965; republicado em Le degrë
i.ero de l'écriturc seguido de Nouveau.r essais critit¡u¿s, Points-Seril, 1972, p. 108.
89. Ident,p. l12. (AnacolLrto: falt¿r de sequência: ruptura ou descontinuidade na estrutura cìe uma fiase.)
90. Chateaubriand, Vi¿ de Rcut<:é, t.tp- t:it., p. 149.
91. Rolarrd Balthes, prefíicio a Chateaubriand,Vie ¿le Ranré, op. cit., p. I18.
92. Cìhateaubriand, Vi¿ cle Rancé, op. cir., p. 92.

72
A ßIOGRAFIA, (;ENERO IMPURO

eu também deixe este asilo onde temo ter permanecido por tempo demasi¿rclo"e3.
As
regras de vida estabelecidas por Rancé são particularmente rigorosas na abaclia da
Trapa transformada em reino de expiações. Ali tocios se levantarn às cju¿rs horas cla
manhã, um monge não entra nllnca na cela cle outro: ¿ìs enxerg¿ìs pr-rlulam cle biclios;
no refeitório, é preciso baixar os olhos e permanecer em silênciol não se pode fìcar só
no escuro. O tempo deve ser dedicado exclusiv¿rmente ¿ì prece e ao trabalho: "Rancé
morou trinta e quatro anos no deserto, não fbi nada, não quis ser nada, jamais hesi-
tou ante o castigo que se infligia"')a.
O fim do relato biográfico traz os úrltimos monlentos de Rancé. uma morte cllrs-
sica para um abade do Grande Século, morte prograrnacla, nragistralmente orquestr¿cl:r
numa encenacão segundo todas as regras. Rancé se mostr¿r aí de uma sereniclade que
tanto mais cresce quanto mais se aproxima a hora derradeira. Consola os religiosos c1¡e
vênr deplorar seu estado: "Não vos abandono, apenas vos precedo"e-5. Recebe a bô¡ção
do bispo e faz uma confìssão geral: "Estava preparaclo o leito de cinzas; Rancé exami-
nou-o tranquilo, quase com atnor"e6. Em seguida, urn últirno cliírlogo corn o bispo cie
Séez encerra-se com estas palavras: "Deus meu, l1ão vos clemoreis, vinde clepressa!"e7.
E Chateaubriand, seu biógrafo, comenta corno que conquistaclo por acllìele a quem de
início considerava monstruoso a ponto de dever ser banido cla espécie humana: "Con-
sumou-se assim o sacrifício. O arrependimento vos isola da sociedade e ninguérn lhe clá
o
justo preço. Todavia, o homem que se arrepende é irrenso"es. A morte clo
outro - calma.
serena, aceita - é também uma maneira, para o biógrafo Chateaubrianci, cle enlrentar
obliquamente a sua própria, pois a morte, na época romântica, vinha sob l'orma bern
mais assustadora. Ela assume os traços de uma companheira que ele jamais abanclo-
nou, tendo mesmo lhe consagrado toda a sua energia, e a quem afìrma várias vezes
querer juntar-se: "É tempo cle deixar o mundo que me deixa"; "Prefìro falar de clentro
do meu caixão"ee. Todavia, essa morte se apresenta no século XIX sob a máscara clo
espanto; a escrita de Mentória.s do Alént-túnulo é então uma f'orma de atravess¿rr o rio
para, na hora azada, encontrar-se já na outra margem.
O romancista de origem austríaca Stefan Zweig foi fbrteniente marcado pelo
advento da psicanáiise, cr-rjo modo de questionar aparece em toda a sr,ra obra bio-
gráfìca. Ele sai à cata de enigmas que tiveram por nome Fouché, Maria Antonieta.

93. Ident, p. 104.


94. ltlent, p. 220.
95. Iclent, p.251.
96. Ident, p.252.
97. Irlent, p.253.
98. Idem. il:ident.
99. cliatearrbriand, citado por Michel schneider, Morr.s intttgirtctires. op. cit.. p¡-t. 134-13-5

73
O Dfì,St\FI0 Ill0GR¡\l:1C0. ESCIIEVER UM^ VIDA

Mari¿r Stuart, Magaìhães, Erasmo, Balzac... abalando com talento ets imagens con-
vencionais dessas grandes ftgr.rras. Isso se dá notadamente com um¿ì. personagem que
atravessou a Revolução, o Império e a Restauração em grande estilo e sem muitos
percalços: Joseph Fouché (17-59-1820). O que a história guardou foi, sobretudo, seu
oportllrìismo, se não seu cinismo. Teria sido um homem capaz de qualquer infâlnia
para saciat' sua sede de poder.,Stefan Zweig, porém, quer fazer justiça a esse indi-
víduo "uotáve.l", equivocadamente apresentado como um traidor de nascença e um
intligante ab.ieto: "N¿ttureza de víbora, trânsfuga profissional, alma vil de esbirro,
nroraiist¿r lamentável, nenhuma injúria lhe foi poupada"r00. Stefan Zweig impõe-se
cotro ob.ietivo resgatar a grandeza da personagem, seguindo a apreciação já lison-
.jeira de Balzac sobre esse "gênio singular". As mr"rdanças bruscas de curso em sua
carreira são vist¿ts por Zweig como outros tantos indícios de interesse renovado, de
curiosidade sempre alerta: "Foi assim que, de maneira absolutamente imprevista e
só por satisfação psicológica, vi-me a escrever a história de Joseph Fouché"r0r. Ao
mesmo tempo que essa travessi¿r psicológica, Zweig visa a uma melhor inteligibili-
clade do poder e seu exercício efètivo graças a uma personagem das sombras e dos
bastidores, clue nraneja os cordéis e controla os heróis do proscênio. Eis o argumento
central que eÌe invoc¿r para justificar a composição da biografia de Fouché: "Gosta-
rí¿rmos cle examìn¿rr, para nos defender, os homens que mandam e, assim, o temível
segredo de seu poder. Apresento, pois, a história de Joseph Fouché como uma con-
tribuição útil e bast¿rnte atual à psicologia do político"ro2.
O retrato que Zweig traçar de Fouché é animado inteiramente pela ânsia de
compreender. Ele enfatiza certo núrmero de traços e gestos da personagem que va-
mos reencontrando ao longo de sua calreira e atenuam a suspeita de puro cinismo.
Assin-r, zwetg põe en-r evidência a decisão, desde cedo tomada por Fouché, de pre-
serv¿ìr sLra liberdade, sua singularidade, "sua repugnância em ligar-se inteira e irre-
vo-gavelmente a alguém ou alguma coisa"r03. É esse talento para presel'var-se, para
distanciar-se dos compromissos que lhe dará a plasticidade com a qual conseguirá
atravessar, incólume, a tormenta revolucionária. Sem dúvida, o virtuosismo Iiterário
de Zweig coloca-se a serviço da alte do retrato. Mar-rifesta-se, entre outras coisas,
pela evocação física da personagem em linhas bem balzaquianas, supostamente ca-
pazes de desvelar a psicologia de Fouché e até a coerência de sua carreira: "Joseph
Fouché, na época de sua eleição, tem 32 anos. Não é um belo homem, longe clisso.

100. Stel'an Zweig, Fouc'lté (1929), Livle de Poche, 2002, p. 9


l0I . Itletn. p. 12.
102. Ident, p. 13.
103. Idetn, pp.2l-22.
A BI()GIIAltIA, (ì!,NER? IMPUItO

Corpo mirrado. de uma secura quase espectr¿ìI, rosto con-ìprido. angr-rloso.


de ossos
protuberatttes, desagr¿rdavelmente 1èior o nariz é aquilinot desclenhosa
e fìna a boca.
sempre fechada; os olhos lenrbram, pela friezzr, osj dos peixes. sob pírlpebras
pesaclas
que quase os escondern; as pupilas são ciuzentas conlo as cle certos g¿ìtos,
le'rbranclo
glóbulos vitrifìcados"r04. Não se pocie cltzer, pois, que inspire sirnpatia.
rnas ¿rincla
¿tssim atrai seu biógrafo pela capaciclacle cle tirar proveitcl clos
outros. A somtrra f'oi o
pano de fundo de sua carreira I'ul-gurante e, sobretudo, de sua
lon.eeviclacle excepcion¿l
elÌ1 tempos tão tunlultuosos. Responsírvel pelos tiroteios de
Lião enr i793. no auge
do Terror. enc¿ìrnou todos os clesmandos no entanto. o clepor-tacio loi
- seLr cúmplice
Collot d'Herbois, enquanto ele galgava o mais alto escalão administrativo.
euanclo cto
confronto com Robespierre, qucrìr teve de fu-qir foi seLr protetor Barr¿is. ao passo
que
FoLrché, mais uma vez, ficava ao abrigo de qr-raisquer caprichos cl¿r
fortu¡ra. Napoleãcr
despediu Talleyrand, rtas conservoLr FoLrché em seu posto. Foi preciso esper¿r
o3
de junho de 1810 para assistir ao "Waterloo de Joseph Fouché". Ent¿ro.
selìs nervos
cederamrO't. Desta feita Napoleão o puniu, mas a humilhação n¿rd¿i mais si-qnifìcou
qìre um interlúdio passageiro, do qual Fouché soube tirar boas
lições p¿ìra o futuro.
Foi ele e não Napoleão qr,rem sobreviveu ao colapso clo regirne imperial, até qr-re
Lr-rís
XVIII o constrangesse tardiamente ao exílio.
Quando Zweíg escolhe Erasmo para tema biográfìco, está enr Lonclres. fugincio
dcr nazismo. Por meio da lìgura cle Erasmo , Zweig sonha com uma
Europa i¡tei-
ramente diferente da criada pela política de Hitler, que o força a um exílio ¿rinda
mais distante em 1941, no Brasil. Isso diz bem a que porìto o biógraf'o é assunrido.
aliciado por seu herói, o "guerreit'o da paz" 1.ìufira Europa humanist¿r. "o c-lel'ensclr
mais eloquente do ideal humanitário. soci¿rl e espiritual"r06. Inirnigo clcl fanatisnro.
Erasmo lhe enseja a oportunidacle cle dar força e vida à sua palervra cie order.n par¿ì
combater a maré montante inexorável do peri-qo totalitário em 1935: "Esse primeiro
europeu, esse primeiro cosmopolita consciente janiais aceitou a preponderância
cle
Ltma nação sobre outra"rO7. Nele, Zweig exalt¿r o homem que não quis tonrar particlo
na dispr-rta que opunha a lgreja romana aos clef'ensores cla literaliclade evan-eélica.
Agiu corno mediador e conciliador no conflito. que arr¿ì.ston zr Europa ¿ìs terríveis
guerras de religião. Nessa simpatia por persouagens que recusam alia¡ças
em nome
da liberdade, veûìos de novo o biógraf'cr sob os traÇos do biografado: .,Eraslno não
qlìer se ligar a ninguém [...] Em seu lbro íntirno, lllulca reconhecei.r ¿r ¿rutoriclade
cle

104. Ident. pp.2l-22.


105. ldent, p. 196.
106. Stel'an Zweig, Érc,.r,,r", Grasset, 193-5. p. I4
107. Idem, p. 18.

75
O DESAFIO I}IOC;RÁ¡'-rc). ESCREVER I]MA VIDA

um superior"r0s. O amor obstinado de Erasmo pelas Iiberdades levou-o para plagas


britânicas, como mais tarde seu biógrafo. Ali, surpreendeu as artes e ciências em
pleno desenvolvimento e, sem se tornar inglês, permaneceu como um visitante, um
visitante da liberdade, do saber.
O retrato de Erasmo evoca uma personagem cuja vida não reside verdadeira-
mente no corpo, mas unicamente no pensamento: "No físico, Erasmo é apenas um
frágil hipocondríaco; no trabalho, porém, é um gigante"r0e. O retrato que Zweig
nos olèrece não pode de maneira alguma ser considerado uma biografra. O autor
nota em Erasmo a fraqueza das qualidades, o caráter avesso às decisões para não
se deixar prender por elas, a falta de coragem em criticar as iniquidades dos po-
derosos. Ainda assim, o Elogio da Loucura é "uma das obras mais perigosas da
época"r'0. No momento do grande confronto do século entre Lutero e Carlos V em
Worms, onde está Erasmo? "Está, trêmulo de medo, encerrado em seu gabinete
de trabalho:rrrì. g Zweig comenta que, como os ausentes nunca têm razão, a causa
de Erasmo pode ser considerada perdida por fälta de coragem, de força de caráter
suficiente. O humanismo será varrido pelo movimento reformador que, este sim,
encontra Lìma expressão forte, uma ousadia extrema na pessoa de Martinho Lute-
ro. Essa fuga ao conflito vai se repetir quando uma nova chance de reconciliação
lor of'elecida por Carlos V durante a Dieta de Augsburgo. Se as ideias de Erasmo
poderiar-n ajudar na pacificação dos conflitos, estes se acirraram ainda mais e con-
denaram-no, doravante, à impotência: "Que pode fazer o intelectual quando o fana-
tisrno esbraseia os corações?"rr2. Zweig se coloca essa questão, de uma atualidade
candente em 1935, para esclarecer um pouco mais a personalidade de Erasmo. Em
23 de f-evereiro de 1942, sem encontlar resposta à pergunta numa Europa agora sob
o jugo de Hitler, ele se suicida.
Fazer justiça ¿ì certas figuras que a história oficial esqueceu ou depreciou é uma
razão de peso para os biógrafos. É o expecliente essencial da biografia de Fouquet por
Paul Morandrr3. Também aí o estilo do escritor se presta a um retrato de pinceladas
vibrantes, traçzrdo o mais das vezes com base ern oposições binárias: "Existem seres
egressos da noite, cujo impulso vital é, para a intriga sub-reptícia: Colbert, por exemplo.
Outros se espojarn gostosamente ao sol da felicidade e projetam alegremente sua ra-
magem até o dia em que a tempestade os vem punir por seu descuido temerário: como

108. /dr:rr. p. 4l .

109. Iclutt, p.76.


Il0. Itlenr, p.89.
lll. ldent, p.169.
|12. klent, p. 230.
I l3. Paul Morand, FortclLtel ou Ie sr¡leil offu.squé, Galliniard, 1961

76
A BIOGRAFIA, GENERO IMPURO

exemplo' Fouquet"rra. Com efeito, esse Fouquet brilhou a tal ponto que o Rei Sol
LLrís
XIV, sentindo-se ofuscado, meteu-o a descrédito e embastilhou-o após a grandiosa festa
promovida em Vaux-1e-Vicomte. Seu esplendor sem paralelo apagou-se numa úinica
noi-
te, a de 17 de agosto de 1661. Fouquet sucumbiu, não em consequência de um
fracasso.
mas, muito ao contrário, por causa de um êxito completo demais, de rimâ harmonia
que não é deste mundo: 'Às seis horas da tarde, Fouquet era rei de França;
às duras
da madrugada, já não era nada. Vaux, ou o sonho de uma noite de verão; Vaux
está
cinco anos na frente de Versalhes. Fouquet não será um Luís XIV prematuro?,,rr.t.
O
retrato se sustém pela escrita metafórica de Morand, para quem Fouquet é um curioso
insaciável, uma libélula fora de época, incapaz de perceber e evitar as ciiaclas qLre lhe
armam Colbert e Luís XIV.
O biógrafo põe em cena o choque de personalidades à maneira cle um diretor cle
teatro que quer impressionar o público. Com base na leitura da correspondência entre
Mazarino e Fouquet, que revela uma alternância de elogios e censuras do prirneircr
ao segundo, ele deduz: "Fouquet, supondo-se insubstituível, tomou a cólera de Ma-
zarino por mostras de humor;rrr(r.5" o biógrafo não pode penetrar na vida interior cie
suas personagens, pode, ainda assim e é o que tenta Paul Morarrcl
- -. explorar selrs
mistérios: "Esse monarca fechado em si mesmo [Luís XIVI nos deix¿r entrever seu
segredo"rrT. O biógrafo imagina e compara, fazendo de Luís uma personagem fàr-rstia-
na que se tornaria apolínea à força. Algumas marcas do comportamento de Luís XIV.
observadas como outros tantos traços recorrentes, podem contribuir para fr-rnclanlentar
hipóteses de ordem psicológica. O caráter irascívei do rei remontaria à inläncia. nras
ele soube refrear seus arroubos a fim de não provocar escândalos na Corte. A rigorosa
compostura em nome da civilidade cederá lugar ao retorno do reprimicio por ocasião
do caso Fouquet. Durante esse episódio dramático, Luís XIV "se mostrará tal qr-ral
é"r18. Esses traços psicológicos é queconstituem o verdadeiro horizonte de pesqLrisa
e escrita do biógrafo, para além dos âcasos da vida.
De seu lado, o escritor André Malraux sempre frequentou os píncaros e ali-
mentou a vida inteira uma legítima reverência por Napoleão. um fundador cle im-
pério a seu ver da mesma estatura de Alexandre, Aníbal e Tamerlão. Antes cle se
tornar um combatente político, primeiro na Espanha, depois nas fiieiras clo gaullis-
mo, Malraux atuou como editor e biógrafo. Entrando em 1929 para a Galliniarcl
como diretor artístico, criou uma nova coleção, "Mémoires Révélateurs". cujo ob-

114. Ident, Folio-Histoire, 1997, p. l4


115. Idem, p. 87.
116. Idem, p. 60.
117 . Idcm, p. 10.
l18. Idem, p.71.

77
:,,
t.
I
i
i
:

0 DI:Sr\ttl0 IJIOGII,/\þ'1C0. ItSCRIiVIiR LIM¡\ VtDA

.ietivo era pLlblicar biogreifias de grandes escritores e divulg¿ìr textos pouco conhe-
cidosr'e. Foi nesse quadro que ele prodr-rziu vtna Vie de Napoléon p(rr lu,i-ntêntet2tr.
Ainda que, como assinala Philippe Delpuech, Malraux vá mais tarde falar muiro
poltco clessa obra. notamos que ele continu ará a fazet" referêltcia a Napoleão ao
longo de tocla a su¿t vida. A obl'a o torna partícipe da construção da lenda dourada
napoleônic¿ì, que ele apresenta c,omo um estrategista infatigável e sem par. Gênio
da palavra. clo discurso, Mair¿rux recorreu ao exemplo clas arengas cle Napclleãc.r
ìts tropas antes das batalh¿is decisivas: segundo Philippe Delpuech, encontramos
nos ronlances de Malraux ulna clareza, uma precisão, uma sobriedade fraseológica
bem ¿ì maneira dos colnunic¿tdos de Napoleão. O herói desempenha aqui o papel
de gênio tutelar, protetor daquele que lhe se-qLle os passos até as culminâncias do
sopro épico da história.
O escritor Alain Gert'rer, que apresenta um programa d,e.jctz,t. cliário na Fran-
ce-Mr,rsique, "Le jazz est Ltn lorll¿ìn", publicou em 2003 uma Lriografìa de Chet
Baker depois cle três meses cle programação diária consagrada a esse trumpetistzr/
c¿lrrtor de som e voz dos mais surpreendentes, singul¿rres mesmo, ulAS cle destino
trái-qicor2r. Na capa do livro, Gerber classifica a bio-erafìa de "romance" e reivindi-
c'¿r total liberdade de itnaginação, de invenção de diírlogos e personagens. Ailtda

assim, o efèito de verdade sobre o ollvinte ou o leitor é contundente. Ao utilizar.


os testemunhos autênticos do próprio Chet, principalnrente grerças zì publicação de
sLra autobio-Qrafiar22, de sua mãe Vera Baker, cle Gerry Mulligan e alguns outros,
mas sobretudo em virtude de seu poder de evoczrção corrìo ¿lutor, logrou êxitcl na
lllistLtl'¿t. car¿ìcterística do gênero biográlico, de história autêntica e fìcção. O con-
ir,rnto é atrimado do princípio ao fìm pelzr br,rsca cla essência daquilo que consritui
¿r nlúsica inelãvel de Chet Baker.

Alain Gerber taz a iume os sonhos de infância do nrúsico, em Oklahotna,faz


ouvir o timLrre da voz de seus parentes e revive seu mergulho lento nas clrogas até cr
suicíclio enl Antsterdã, em maio de 1988. O biógrafo cria, assim, personagens tot¿rÌ-
n-ìerrte inraginárias, cot-llo o papcrraz,?,o fàscinante chamado Arrigo Prezzolipi, que
remói com arr¿ìrgura a intolerância da iustiça italiana para con-ì o tráfìco de drogas:
"Qr-re qr-rer que eu lhe diga? Não há o qLre fazer
[...] Isso, no mínimo, me dilacera o
coração. Partr que tentar preservar um país onde existem os Togiiatti, F¿rnfani, Nenni
e espos¿ls (corl Segui no meslro saco)? Parer que insistir etïì preservar o autorrespeito?

I 19. Os plirnciros títulos cle stra coleçi'io sho Ur¡¿: rie tla tl.'Artugtt.tn par lui-ntêmc,1929'../t¡untau¡: itttit¡te.s
rle IJtron. ll930 Confcs,tir¡n.y tle.1.-.1. Boucltutzl. 1930.
120. Anclré M¿rlraux. Vic rlc Nu¡toléon pur lui-nôtnc, Gallintarcl, I930.
121. Alain Gelber', Cftr:r, Fayarcl,2003.
122. Chet Birker', C¿r¡r¡¡ne.si j'ut,cti.t tles uiles, l0/18.2001.

7,9
A RIOGRAFIA, GENERO IMPUI].O

A canalhaé persuadidaavalortzát-lo cem vezes; e hoje os politiqueiros,


os paclrecos.
até os.iuízes lhe dão razão. A nova elite da Itália é a canaiha',r23.
À pergunta que. como ouvinte atento e cheio de adrniração, eu lhe fiz
sobre o
grau de verdade que atribuía a seu relato, Alain Gerber
me responcleu por carta:

A única respost¿l é zr príttica coticìiana, oLr clLr¿Ìse, daquilo que seria, nem
tar.ìto Lrrna ¡iogralìa
"romanceada" (corno por algurn tcnrpo pensei). mas
antes unra Lriogralìa ronì¿ìrìesca. oLr seja. culprrcla
em relaçño às stlas fontes cle ltnta clesenvoltura clue constitui
não apenas sua Iiber.daclc. mas lanlSérr sua
razão de ser - de certa lttaneira, seu icleal. Minha tarefa
mais penosa. a quc lnenos rlre corl'inlra, terír
sido curvar-ure à lei da pregr-riça' cultivar a boa vicla. a incxatidiro,
o abuso cle Iinguagenr. o tr¿ìvestir..ìcn-
to' a sublimação. a mentira. ir transposição onírica clesbragacla. a escolha
da visão contr.a a o6servaçiro
clos fatos e. por fim' a atitude inculta. Municlo dessa presunção,
serr a qual nacla scria possível (c1Lrer.
diz-er, tolerírvel eln sit consciência), tentei descobrir uma
celta vcrdade par.a além clo real. Enr suma.
quis proclanrar o l'also pa|a exprilnir, ap(.sa.r rla tu.dr¡. um verclacleiro
que e scm clúr,icla
l)enrancce,
deve permattecer, inexprimívcl. Infeliznrente não sou poeta,
mas apelei para a poética. ou pel. r'cr.ros
espero ter apelado'2{.

Como se pode deduzir desse arrazoado Lurì tanto complexo. Alain


Gerber rei-
vindica em altas vozes o direito clo biógrafo à criação. Ele oscila
nessa ar¡bivalê¡cia
entre a autenticidade e a ficção que acaba sendo o melhor caminho,
não para captar
o rnistério da riqueza do indivíclLro, ûìas ao menos para se aproximar
dele. Assirl. o
biógrafo se faz autor de um romance verdadeiro.
De seu lado, o escritor Pierre Mertens confirma que a maneira rnais prática
cle
inventar é ainda partir do real, coisa qlle de fato faz numa biografìa
em qlìe rel¿ìta sete
momentos da vida de um poeta expressionista alemão, Gottfriecl
Benrr (1gg6-19.56)n5.
Essa curiosa personagem atravessou o nazismo, recusando-se
¿ì. cleixar seu país. Che-
gou mesmo, por algum tempo. a aliar-se à barbárie que
depois rejeitou, obtendo ciepois
de 1945 um grande sucesso. o biógrafo proclrra dar conta de tamanha
cornplexiclacle
tratando como ficção esses elementos atestaclos:

Fìcção, nada mais que ficção. Que contâ o erro cle uma vicla
e a vicla cie rrn erro. O carnirho rrais
cLÌrto entre História e históila é aincla imaginar. Ac¡Lri, o biógrafb
não tem clrrtra escolh¿r exceto sc f,azcr cle
histo|iador c o cronista só dispõe cle urn Lecurso, tornar-se rcrnrancista.
Contuclo. . r.oma'cista sti co'sesnc.
ver claro na matéria descclbrindo-se poeta,r,'.

123. Alain Gelber, Chu. op. cit., p.296.


124. Alain Gerber, carta ao autor de 23 cle f'evereiro cle 2003
125. Pierre Mertens, Les ébLoLti.s.tcntent,s.Le Seuil, 19g7.
126. Itlem, quarta capa.

79
O OTSAI;IO B]OGRÁFICO. ¿SC]ÃIiY¿'R IJIVIA VIDI\

Nunr outro registro, François Bon apresenta sua obra sobre os Rolling Stones
como biografra e. ao rresmo tempo, romance: 'A biografia deve partir sempre da
sombra, atravessar a curta faixa pública e voltar para a sombra, aceitando-se como
romance dessa sombra"l?7. François Bon sabe muito bem que só encontrará a indeter-
nrinação com que se defrontam seus heróis se não ceder à tentação de avaliá-los pela
popr-rlaridade que conquistaram. Nesse encaminhan'ìento às avessas pâra recuperar
a incerteza dos instantes do passado e a pluralidade dos possíveis que exige fingir
i-9norância do futuro. "a biografia é um exercício tão selvagem quanto o romance,
do qual absorve a técnica e a for'ça r¡ítica"r28. Essas condensações novas do tenrpo
pressupõem a atuação do próprio biógrafb, François Bon, que era adolescente durante
o período de fastígio dos Stones, com uns dez anos a menos que eles: "portanto, é o
próprio rotrrance de meu tempo que resolvi escrever"r2e.

A "vidobrut"

Se passarmos da escrita biogrirfica à crítica literária, encontrarernos uffta relação


complexa entre os elelnentos f¿rctuais da vida e a parte ficcional d¿r obra. A história
literírria clássica, fortemente abalada pelo írnpeto estruturalista, teria transmitido o
patrin-rônio litei'ário essencialnrente pelo ângulo do liame entre a vida e a obra do
escritor. O mais dâs vezes, o sentido da obra é deduzido das peripécias da vida, e a
biografizr dos escritores estir no próprio cerne da inteligibilidade literária. O famoso
m¿inu¿rl de Lagarde e Michard desempenhou, errì terrnos de iniciação à literatura fian-
cesa dul'ante o século XX, o papel que Lavisse desernpenhara no século XIX para a
história. O estudo das obras por meio de excertos atribui à informação biográfica a
f'uncão de "embreagem", que torìla a parte peio todo e lhe confere valor heurístico. É
zr época en'ì que os nlanuais se desembaraçam do aparato retórico, até então essencial

no ensino das ciências humanas, e abrem espaço a uma pletora de dados biográficos a
partir de meados do século XIX. Expõe-se a vida do autor ou apresenta-se o homem
e seu c¿iráter, reservando lugar a uffta rubrica que deltne os gênios.
No século XIX, essa concepção domina inconteste, não mais sendo ouvidas as
críticas express¿rs pelo historiador literário Gustave Lanson, que questiona "uma cole-
tânea incoerente de fâtos e fónnulas próprias a aborrecer os espíritos jovens"r30. Ern

127. lrrançois Bour. /?o/1rrrg SIone"', urte biograpltic. Fayald.2002, p. 10.


128. Idenr, p. I l.
129. ldcrtt,l't. 15.
I 30. GLIstave Lanson. Hi.;toira da la Iittératura .frar4:ai.se, Hachette, 189 l, Plcfácio.

80
¡\ t] I 0G Il.A I; t t\, C;EN ER() I 14 p U R0

I900' na Revua de Svnthè'sc Hi,storic¡r,¡¿. cle


Henri Berr, Gustave Lanson con{èssa su¿r
arnbìção de sacudir os estuclos liter¿lrios esclerosacios. Pretencle
historicizar-a aborcla-
gem cla literatura não apenas justapondo cronologicarnente
as
-erancles figr-rras literiiri¿rs.
nlas também lançanclo as bases cle uma sociologia cla liter¿rtul'¿r c'lìie poss¿r
r.esponcler.àr
pergunt¿ì sobre a relação do leitor com a obra e os rnotivos
cio sucesso cleste on daqLrele
romance' Lanson insiste en-l romper conl ¿ì monografìa traclicional <ios grandes
alitores e
das grandes obras louvacl¿ts em nome cla perpetLriclacie cla natureza ,,Os
hunrana: Iivros
existem para os leitores... Quem lê e lê o qLrê? Eis as cluas perguntas
essenci¿iis,,rir.
Malgrado essas reticências, a biografia se impõe coûì curtas infonrações
ane-
dóticas que precedem os excertos das obras. confbrme o ntétoclo cle
Sainte-Beuve. O
gênelo biográlìco se fincie então com a obra e poclemos mesûlo
falar. conr Antoine
Compagnon, de "vidobra"r3z quando o relato cla vida se ¿ìpresenta couro
explicação da
obra' Os relatos biográfìcos. nesse caso, às vezes não passam cle reprocl-rções
cios textos:
"Manifestalnente, a história literírria caiu nas
,qarras clesse monstro fabuloso que ela
própria engendlou: ¿t vidobra"r3t. Essas apresentações cle escritores. cle
fato, não raro
são nleros pastiches. Assim é que La-earcle e Micharcl oferecem um retrato
clcr Chaleau-
briand imitando o estilo clo autor de Menúrias cle Alétn-trîntul,o: "Foi em
Saint-Malo.
em l768, que numa noite de tempestade a mãe cle François-René Cl-rateaLrbriancl llre
impingiu a vida"r3a. Essas assimiìações abusivas por vezes apenas retomam.
a título cle
disctrrso biográfìco, trechos inteiros das confi,ssõ¿.ç de Rousseau'35.
O modelo que serve <ie pzrdrão a toda essa históri¿r literírria e fornece os meios
para uûl lialne entre a vida do autor e sua obr¿r é, basicamente,
inspirado pelos retf¿ì.tos
literários de Sainte-Beuve, que fez do i'elato d¿i vicla o porlto principal do trabalho
clo
crítico: "Posso apreciar uma obra, mas acho ciifíciljulgá-la qr:anclo não co¡heço
o pró-
prio homemrrr36. 4 pintura de retratos psicológicos represent¿ì, segunclo
Sainte-Ber-rve. cr
âcesso privilegiado ¿ì literatura, pelo nrenos cle 1829 a 1849. Ser-r
moclelo. nesse âmbito.
é ainda Plutarco, colxo parâ a maioria clos retratistas: "Relacionemo-nos
con1 essas per-
sonagens, peçanros-lhes ideias edificantes. aclmirenro-las pelo qne tiveram
de herórco e
desinteressado como os grancles c¿ìr¿ìcteres de Plutarco, que continu¿ì¡los
estucla¡clo e

131' Gustave Lanson"'PIogt'anttne d'étudcs strr I'histoire^plovirrciale cle


la vie littóraire cn F'rance',. cr¡
E'sais dc tttéthotla ct d'hi.ttr¡ir<: littérairc (r903). Llachettc. 19(r-5. p. g3.
132. Antoine compagnon, La Troi,t^iènta né¡tt,tbric¡ue dcs Lcttre.s, Le
Seuil. 19g3.
133' BLigitte Diaz. "vie clcs ct'ancls ¿ìtrtct¡rs clu proglanrrne". Ilcr,¿r¿ rles St.iattc:e,s Ht.ttttaittc:,ç. n. 224. or¡t.-
dez. 1991, p. 258.
l3'l' Lagarde e Micharcl' Le'r grancl,s auleurs.frcrnç'ais tlu progrutnnte, lc XIX' .çièr:lc. Borclas.
çt.27 .

l3-5 Ver a crítica desse processo n¿r últinra biografìa. em data, cle Jcan-.lacc¡ues R<.¡usseau, Iìaymoncì
Trousson, Rous.seau, Tallanctier. 2003.
136. Sainte-Beuve, Nolrr¿rn u.r Iutttli.ç, 2?.1ul. I g(r2.

8/
O DI.,SAFIO I}IOGRÁFIC0. E,SCII.tì\/I:jR I.]MA V]D,\

reverc-.1-ìciandopor si nlesmos"'3t. Sua galeria de retr¿rtos glorifìca os heróis e as heroínas


atribLrinclo-lhes qualiclades morais: "Há lír b¿rstante ten-ipo, os retr¿ltos que esboço são para
rurint apenas urìt pretexto par¿ì pequenos ensaios de moral, uma sequência de capítr-rlos
cu.ios títulos não clenunci¿rm a {inalidade"'tt. É o caso, por exemplo, de rnadame Roland,
apresentarla como ¿ì inspiraclola do grr,rpo político que animava com o marido e do qual
1ìti "r-r gênio na fbrça, na pLirez¿ì e na gr¿ìça, a musa luminosa e grave em toda a santiclade
clo ur¿rrtírio"tre. por meio clessa personagem, Sainte-Beuve intenta rememorar toda um¿r
geração política: ele vê em m¿rdame Roland a quintessência daqr-reles que provocaram o
1789 e a querlt o 1789 nel¡ fhrtou nern satisfez verdadeiramente. Eie Lrtiliza suas M¿:ntó-

ria,; e slra cotresponclência para recorclar lutas. as sirnpatias e alltipatias cle madame
¿rs

Iìolancl, l-econlìgurando seu percurso de inrersão na febre revolucionária até o rnomento


eul que el¿r se cleteve perante o horror dos massacres de seternbro: "Madane Roland e
seus anri-9os. clepois dessas jornad¿rs fúnebres, se aliaram abertamenf.e, de cabeça ergui-
cla. ao particlo cl¿r o ponto de vista de Vauvenargues
resistênci¿r"raO. Sainte-Beuve acata
segundo o qual "os l-ìon'ìeus nascem sinceros e tnolrem farsatttes", ou seja, a sociedacie
s¡rscita un1 processo cle ciegenerercão, de degenerescência, ao qual apenas alguns casos
excepcionais não sucumbern. É o qu" sucede aos gênios, cujas qualidades são tais que
não poclenr servir de rnodelo, pois fbgem à sot'te comum. A fr,rnção do biógraf'o consiste,
port¿ìnto. em exaltar esses casos singuJares. Mas que as mulheres não se julguem capazes
cle fazer como rnad¿rnre Rol¿rnd para escapar à sua condição cle discriminação social, pois
"¡rulhel'es da tênrpera de maclame Roiand saberão sempre conqr:istar o seu lugar, mas
serão sempre exceções 1...1 esse gênio qr-re abria caminho e se impunha frequentemente,
senclo só ciela, não conseguiria, ¿r não ser por uma espécie de ilusão bizarra, comunic¿rr-
se â outr¿ìs'rr"+r. 4 p¿ìrtir cle nreacios do século. os retratos são substituídos por biografìas
concebidas cot'ì-to uma etapa preliminar a todo empreenditlento científico eill sell acesso
¿ì liter¿rtura: "Meu úrnico prazer é analisar, herborizar, ser um naturalista dos espíritos"rtr.
Esse trabalho cle tecelagem visa, pois, a ligar a escrita literária a elementos biográfrcos e
Seu contexto. p¿ìra valol'izar-ihes o ser,tido: "Cada obra de uln autor, vista e examinad¿r
em seu conteKto, cercada de todas ¿rs circunstâncias que lhe assistiram ao nascinlento,
aclquire seu pleno sentido - sentido histórico, sentìdo literário - e retotîa seu grall exato
cle originalid¿rde, novidade ou in-iitação"raì.

137. Sairrte-llcuvc, (Ii¿n,r'¿r,ç It, fìn des portruits Iittéraircs. Pc¡rtraits tle JÞnunes, Pléiade, 1960. p. 1135.
I 38. Saintc-llcut'c. L¿ t:ah i c r t'e rt. n. 961, Gal limar<i, 197 3. p' 246.
l39.lrlent. p. Il3ó.
140. Itlettt. p. I 149.
111 . Irlcnt. p. I 158.
142. SainLc-lleuve. CÌ¡l¡i¿¿r örii¡r, nt¿inuscrito conservado na biblioteca cle Lovenjclul, Chantilty, p' 2-5.

143. Sainte-ilcuvc. Nr.¡¡¡t,r'¿tu-t !muli.ç, Michel Lévy. t. lll. l8ó-5, p.23.

(r1
A BI OG II ¡\I: I ¡\, O ];N t. Ro I iI| P U RO

A outr¿i fonte de inspiração cless¿rs inf'ormações biogrirlìcas iiteríiri¿rs é ii ¡rsi-


colo-qia tal qualdelìniu o historiaclor Hippolyte Taine. qr-re planejav¿ì res_q¿ìt¿rr "as
¿r

re-qras c1a vegetação hunrana"r'+-+ cle unra mAneira ¿ìss¿ìz cleterminística. ¿ì


sernelhanç:a
das ciências natur¿ris. No preläcio a seu livro La lìr¡ntaitte eÍ sc,\¡ùblc,s. ele assimila
tr criação de unr poema a um fènôrleno bioquírlico: "Poclerlos consiclerar
9 hglre¡1
um animal de espécie superior, que procluz fìlosofias e poenl¿ìs rnais o¡r ¡le¡os co¡ì-ìo
o bicho-da-seda labrica seus c¿rsulos e as abelhas constroeln su¿rs colmeias"r''r. Se-
gundo Taine, o biógral'o é alltes cle tuclo um observaclor ¿ì nraneila clo zoólo-to gr-r
clo
botânico: ele classilìca em seu "herb/rrio" retr¿ìtos ,.ac,li-
itsicológicos. Taine pr-ete.c1e
vinhar a verdadeiln história, a históna clas almas, a alter-ação que solì-enr os
¡rrol'uncla
corações e os espíritos con{'orme a lnut¿rbiliclacle clo meio físico ou moral onclc est¿ro
inseridos"rttt. Ele encar¿ì a prírtica biogrirfìca coulo o médico enc¿rrâ a clissecac;ão c1t:
cadáveres- buscando partículas qLre explicluem o funcion¿rmento cla psic¡ue hum¿1na
em slr¿ì. si ngr.rlaridade:

Ac¿rbo cle rclcr Iltrgo. Vìgny. Larnar-tirrc. Mussert. Gnr¡tier e Sailrlc-lJcrrvc cor-rìo rcl)r.cscntarllcs
cl¿ì
plôiade dc 1830. A gr-rc ¡lorlto esscs tais sc e nganaranll
Quc iclcia lÌLlsa nutrìranr clo honrc.¡u c cla viclal
Cor-no a ccltlcaçixl cientílìca e hìstór'ica moclifìca o ponto clc vistal Matclial c 11'ìorlllnlcntc.
sor-r ¡¡l lit¡¡.r¡ rl¡
cspaço e llo tenlpo inlìnìtos. t¡l'n botão nr¡rll haclb¿i. t¡nr¿r inllorcscôncia nrínillla rrurn
¡roJi¡rcir.o prociigioso.
qLle ocupa a vasticlão clo occanor"r.

Se. pois. Taine visLlaliza o ¿írtomo incliviciual couro parte cle um toclo. c'r n-loclc>
de explicá-lo é partir daquilo que constitui su¿r sin-qularìclade. daqueles sin¿ris uri-
núsculos que vênr ¿r lunre na dissecação. cìaqueles fragnrentos ligaclos uns aos olrtro.s.
Critic¿tndo semilre o Lìso que se faz clas infonnações aneclóticas. Taine "enfatizava ¿r
irnportância conceitual de toclas as ninharias inclivicluais clesclenhaclas por Hege l"r'fs.
Segtlndo Taine. a chave de un-ia obra está er1'l sLì¿ì exterioricl¿rcle no meio. uo nronlelrto,
na raça. Seu determinismo é tal qrie Sainte-Ber-rve se af¿rstarí. um poLlco cle su¿rs teses.
reafirmando o car/rter artístico do gênero e, sobretuclo. Ltma certa liberclacle qLre não
pode se deixar recluzir por determinações restritiv¿rs: "Eul se tratanclo clo honlern. não
convém decerto fazer como fazemos com reìação aos anir¡ais e às plantas. O honrenl
moral é mais conrplexo. possr-ri a chamada I.iberclcttle. ä qual, ent tocias as instâ¡cias.

144. Hippolyte T¿rine, Hi,çtoire da lr.t littércttLtre angluisc.l,lachctte. I g(r3. XI-l Il.
l4-5. l-IippolyteTaine' citaclo porGeorges May. "Sa vie, solr æuvre.. Réf'lcxiuris sur la biographic littcir.lir.cr"
Diogènc. n. 139, .jul.-sct. 1987. p. 3.5.
146. Hippolyte Taine. Page,s choi.sis, victor Giraucl (olg.). I-lacherre. 1909. (r.
¡1.
147. lclcnt, pp.34-35.
148. Sabina Loriga, "La biographie co¡nnle problònrc", er.u Jacqr,res Revel../crr.r- l'écltellc.ç, HaLrtcs Ét¡clc.s
Gallimard. Le ScLril. 1996. p. 225.
O DESA,FIO RIOGRAFICO. ESCREVER UMA \I]DA

supõe uma grande mobilidade de combinações possíveis"rae. A posteridade, contudo,


só conservará suas posições nrais causalísticas, e o surgimento, em 1954, de escritos
póstumos de Proust sob o fíLllo Contra Sainte-Beuve teút sem dúvida contribuído
para rel'orçar essa imagem mecanicista.
Com base na aplicação um tanto mecânica dos postulados de Taine e Sainte-
Beuve, o estudo da história literária passa a considerar o trabalho do criador de cujo
gênio seguilros os traços. O escritor está agora no centro, criando uma obra enraizada
no contexto de sua vida e da singularidacle de seu caríúer. O retrato que daí resulta
gzrrante a coerência, orienta a interpretação e pretende fornecer as chaves essenciais
da leitura. Esse esboço psicológico zrponta o rumo a tomar para a descoberta da
obra: "O autor se torna um princípio de explicação estética t...1 O autor é o guardião
clo sentido oculto de su¿'r obra"rsO. Graças à aplicação mecânica desses postulados,
as infbrmações literárias oferecem traços ulrr tanto caricaturais dos escritores, mos-
trando sells retratos com base em certas característicars singulares e significativas
que intentzrm ser as chaves definitivas em nome de uma caracteriologia mais ou rre-
nos necânica. Assim é que Lamartine surge como a expressão de uma feminilidade
meìancólicarsr, enquanto Musset externa uma finura inesgotável: "Essas vinhetas de
escritores cheir¿rm a clichês"rst. A informação petrifica o autor, naturaliza-o a partir
de uma atitude. de uma representação única que o reduz à "paralisação na imagetr",
como bem a qualifrca Brigitte Diaz. Essa parzrlisação é fonte de mitos: Balzac em seu
roupão, de cafeteira ern punho, o patriarca de Ferney cultivando seu jardim, Diderot
corn seus traços grosseiros, indício certo de materialismo...
Esses bustos de cera, congelados, têm no entanto de se mexer para existir; en-
tão, o retrato se transforma em imagem-movimento num romance biográfico que se
cletém junto a certo número de episódios signifìcativos. A ilusão retrospectiva guia
os passos do biógrafb ou do autor da informação biográfica, que precisam captar os
rnínimos detalhes a lìm de integrá-los a uma visão coerente da psicologia da perso-
rìageìr, àquilo que a motiva ern slla obra, à sua vocação e inspiração literária. Assim,
para Fortunat Strowski , as Nr¡ite s de Musset "foram compostas ern condições absolu-
tanlente românticas, conl candelabros acesos, persianas descidas, cortinas fechadas e
mes¿t posta, coilro se a Musa realmente estivesse para chegar"r53. Em geral, a vocação
é favorecida por um rneio familiar intransigente, que impõe ao autor da inforrnação

149. Saintc-Ilcuve. No¡rr.,e¿¿ux Iu¡ttlis. op. cit., t. III, 1865, pp. l6-17.
150. ClaL¡ctc Abastado, "Poltlait de I'auteur: les biographies d'écrivains dans les lnanuels d'histoire littéraire",
cm"Écritules2-LePor-tratt",CahierscleSénriotitlueTextuelle,l0, 1987,ParisX,7t. 197.
l5l. JacclLIes Demogeot, Hi.stoire de La littéruture.frutçaise, Hachette, 1878, velbete "Larnar-tine".
l-52. Brigitte Diaz, "Vie dcs grands auteurs du prograrnrne",Revtte tles Sciences Hnntaines, art. cit., p.255.
I53. Fcl'tunat Stlowski, Tctbleau de Ia Litt.érature Ji-uttçrti.se d.Lt XIX".rlàcle, Delaplane, 1912, p. 190.

84
A ßtOGR¡\FIA, GËNERO IMpURO

biográfica o dever de bem situar o ambiente social, a atmosfera afetiv¿r que o rocleou
em sua infância. Da maneira preceituacla por Sainte-Beuve, o grnnde homem se re-
conhece na figura dos pais, principalmente da mãe. Assim. a de Lamartine é ,.tímicla
e passional, fazendo reinar na casa uma atmosfera poética e piedoszr"t5a, o que
fàci-
lita a expressão da sensibilidade de um dos mestres do romantismo francês. O autor
é apresentado, nesse romance autêntico de sua vida, como um herói: ele superou
os
obstáculos que poderiam entravar sr-ra inspiração e conseguiu valorizar, otìmizar
as
condições propícias a seu desenvolvimento.
A biografia se apresenta como exposição dos caminhos cla realização. segu¡clo
uma teleologia que faz do escritor um indivíduo dotado, desde o berço, de todas as
qualidades exigidas para se tornar um criador excepcional. A informação bio_sríilìca
se transforma, pois, em lição de moral, em verdadeira mensagem ética nos termos
da ideia de Sainte-Beuve: "O estudo liter¿írrio me conduz rnuito n¿rtur¿ilmente
[....1
ao estudo moral"rss. Além de sua função pedagógica cle ferramenta própria par¿ì a
avaliação dos conhecimentos dos alunos, contribuindo para o exercício de u¡ra gi-
nástica intelectual no uso das interações entre vidas e obras de escritores. a inlbr-
mação biográfica deve também contribuir para ilustrar o gênio nacional em torno
de certo número de figuras. A história literária desempenha, nesse plano, o papel cle
complemento do breviário histórico nacional que é o Lavisse. Os heróis da crierção.
santificados ao lado dos heróis da nação, devem suscitar o desejo de imitar e jclen-
tificar-se, o que contribui para erigir as bases de um consenso repr-rblicano rico em
novas vocações. Por isso Molière é "de raça gaulesa pelo torneio clo espírito e pelcr
tom das facécias [...] Seus ancestrais não foram nem gregos. nem romanos. nem
espanhóis; é um gênio de tradição puramente francesa"rs6. Uma verdadeira trans-
ferência de sacralidade se cristaliza. na sociedade leiga, entre esses novos honrens
'a.
ilustres que fizeram a literatura fr"ancesa com o mesmo talento e senso cle sacrifício
t,
It
claqueles que, no âmbito da história, governaram o país ou sucumbiram em batalhas.
O pretenso Panteão republicano, no sentido em que Marivaux fäla do "museu irr¿ì-
t,
ginário", recupera as grandes figuras do Antigo Regime, notaclamente o famoso trio
,i
it das glórias do teatro que foram Corneille, Racine e Molière. Ao mesrno tempo qLre
esse zelopatriótico a animar a escrita históricar57 tanto quanto a abordage¡i literária,
uma espécie de atenção científica orienta o método escolhido nas duas disciplinas:
!. elas tomam assento na escola das ciências naturais, clas ciências experimentais en1
t.

154. Cha|les Des Granges, Histctire cle la Iitté.ratLLr¿. IJatier, 1914, verbete "Larnartine".
I 155. Sainte-Beuye, Nc¡uveaux Iundis,22 jul. l862.
156. Renó Dounric, Histoire de Ia IittératLtre .fi^ançttisc, Delaplane, 1910, p. 324.
157' Ver Christian Delacroix, François Dosse, Patrick Garcia, Les courant.ç ltistorit¡ues
ctt Fruttt:c XlX"-XX"
,riàc/¿, Annand Colin. 1999.
t.

8-t
'

)..

O DIìSAFI0 I]IOGIiÁt:ICO. I'SCIII.,VL,R. L]iI4i\ \IIDÁ

pleno vi-qor no fìm clo século XIX. Evoluciclnismo sirnilar inspira um Jules Michelet,
setrpre I'ascin¿iclo pelos trabalhos cie Geoffroy Saint-Hilaire, e Lull S¿rinte-Beuve olr
um Taine. que perfìlha a nretitfbra botânic¿t "tal 1ìrvore, tal fruto". A psicologia dos
hurnores pass¿ì a ser f'onte essenci¿rl cias distinções estabelecid¿rs entre tipos de car'á-
ter clilèrentes. c¿ìpazes de desvel¿il'os n-listérios do gênio criadol.
Pclclenos ¿rssinr se-9uir ¿r tra.ietória de Baudelaire nos m¿rnuais escol¿rresr58. No
início clo século XX, B¿ruclelaire ainda cheira muìto ¿r enxoli'e para ser aceito no bre-
viírrio naciou¿rl. seu temperal-ìlento "bilioriervoso" repele, quando uão o condena de
vez ao in1ènio. Só depois cla Segr-rnd¿r Guerra Mr-rndial ele ascende eto patamar clas
glórias clo patrimônio literírrio da nação. O -qrande manual dos anos 1950-1960, o
fanroso Castex e Surer. cìonta a vida de Bar.rdelalre sob o título "Carreira". subdividido
em três mornentos: esse itinerário pretende lornecer as chaves da obra: "Baudelaire
fìli, a vicl¿r inteir¿r, um desgraçado. Sol'ri¿r por caus¿ì de sua solidão moral, por causa
de suas dilìcLrldacles rnateriais, por caus¿r das decepções de sua carreira, por causa de
sLì¿ìs taras físicas. Essas misérias todas explicaln a intensidade de seu spleen"t5e. A

psicologia é o recurso para invcstigar as chaves essenciais que dão entr¿ìda ao mun-
clo de Baudelaire. Todos os manuais cia época apresentam uma estrutura que seglle
a genealogìzr do gêr-rio de Baudelaire, seus estudos, seu dandislro, suas viagens, seu
uso cje drogas, sua doença e su¿ì n'lorte. pondo em funciouamento "o torniquete da
explicação: a obra é fonte da biogralìa. a vida é fbnte da obra"r6('. Como constata
Clar-rde ALrast¿iclo, essas apresentações biográfìczis de Baudelaire em livros escolares
procllr'¿ìl-ì'ì explicar a obla pelo homern, quando na verdade a explicaln por uma "irna-

-selr iclealizo,1o::I{ir desse homem.


A Íinsia do cletalhe, da minudência, e a fètichização dos objetos concretos per-
tencentes ao universo coticli¿ulo clos heróis do passadc), col-ìlo o chapéu de Napoleão
e a cafeteil'a de B¿rlzac, s¿lntificados pelo contato direto com o corpo da personagem
e possível chave de interpretação da obra literária (prova de autêntico domínio do
biógralb sobre o biografaclo), tudo isso é posto como a ridículo pelo escritor inglês
-Tuli¿rn Barnes num texto saboroso oncle narra as desditas de um biógrafo em busca
do legítinro papagaio de Flaubertr('2. Esse pr-ojeto pretencle demonstrar que cumpl'e,

158. Clar-rclc Abastaclo. "Poltrait clc I'autcur: les biogra¡rhies cl'éclivains dans lcs mauuels d'histoire litté-
ririrL-", cm "llcritures 2 * Lc Poltlatt", Cahicrs tla Sérniotic¡utt Tc.rtt,tel.le, o¡t. c:it., pp. 199-209.
159. Piclrc-Geor-{es Castcx c P. Surcr'. Muttuel de,s étttdcs littéraire,s .fi'uttçaise s. XIX'' siècle,l-lachette,
I 950. p. 262.
160. Cllauclc Abnstaclo, "Poltr¿iit de l'auter,rr': les biographies cl'écrivains d¿urs les nanuels d'histoile lirté-
laìr'c". cr.t.l "licritules 2 - Lc Portrait". Cuhier,ç tle Sániotiqt,ta. |'axtttclle, op. cit., yt. 207.
161. klant, p.208.
l(r2. Juliu IJarnes. La parroqtrt,t da Fluttbcrt (198.t). Stock. 1992.


A BIOGRAFIA, GËNDRO I¡4PURO

enfim, deixarem paz os escritores e limitar-se ao estuclo cle su¿rs obras sern preocupa-
ção com as pegzidas que a pessoa deixou atrirs de seus livros. Barnes torn¿Ì o c¿rso cle
um escritor, Flaubert, que como nenhum outro t-ez valer ¿r irnportância de su¿r ol'¡.¿r e
a insignificância do homem como personalidade privacla. OLa, cor-ltinuamos a perse-
gui-lo e ¿ì ollsar, como Sartre, construir uma biografia tot¿rl. Jr-rlian Barnes imagina a
história de um desses bió-qrafos de Flaubert que relaciona o papagaio encontraclo n¿r
casa-museu do escritor em Ruão e o fato de esse animal ter est¿rdo sobre su¿r rnes¿r cle
trabalho enquanto ele escrevia IJnt Coraçao Simples, que tem por personagern pr-inci-
pal o papagaio de Félicité. Loulou. O tal papagaio suscita de repente um senti¡ento
de familiaridade: "Nessa ave verde, bastante comun'ì [...] al-so me levav¿r a crcr qlre
eu quase conhecera o escritol'"'ut. O biógrafb se perde então em conjectur¿ìs est¿ìpa-
fúrdias. Félicité seria quase incapaz de falar, a clespeito de Flaubert. e o papagaio
desempenharia o papel de medi¿rdor. Insuflaria então. con'ìo o Espírito Santo. o clonr
das línguas. O papagaio simboiizaria, pois, um corneço - o verbo. ¿r comunicacãç
possível. Ei-lo encarregado cle um dom superior a ponto cle o bió-urafo se perguntar:
"Será o escritor algo tnais que urn papagaio sofisticado'7r:r6-1. { ave ocup¿ì t¿trn¿ullro
espaço que o biógrafo procllra de maneira obsessiva. na obra cle Flar-rbert, clescolrrir o
momento exato em que ele encontrou o animal. Resta saber se o papagaio cntrevistcr
na casa de Flaubert é mesmo "o" papagaio. O biógralb se l¿rnca a uma empresa cle
¿ìutenticação, mas sua rede não lhe pennite apernhar realmente o peixe: 'A recle se
enche e o biógrafo a puxa; separa, rejeita. põe de lado, joga fclra e vencle. Ncltem ciue
ele não apanha nunca o que quer, pois sempre há mais peixes a apanhar"'t". Alénr
dos traços de seus encontros com papagaios. o biógrafo interroga a obra de Flaubert,
examina seu bestiário, a etimologia do nor11e, o significado do terno na Grécia anti-e,a.
Chega a algumas hipóteses, ûras, para cúrmulo da desgraça, vê-se cliante cle uma mul-
tiplicidade de papagaios - o de Félicité. o ernpalhado de Croisset. o clo Hôtel-DieLr.
sem falar dos vivos e allsentes, como o da Et\ucaçcio Sentinlentctl, qr-rando Frédéric
depara com um "poleiro de louro". O biógrafo do relato de Barnes leva dois ¿tnos par¿t
resolvel o enigma do papagaio, o qlle em definitivo llão parece qLtase nacla perto clos
sete consagrados por Sartre zr redigir L'idiot de la.[a.mille - c1r-ranclo poderia nruirct
bem aproveitar esse tempo para "redigir panfletos maoistas"'ó6. Qual é o papa-saio
impostor: o de Croisset ou o do Hôtel-Dieu? Çada um dos guardiões desses clois lLr-
gares reivindica, alto e bom soûr, a autenticidade de seu louro com r¿rzões cle peso. A

163. lde.nt. p. 19.


164. Icle nt, p. 21.
165. Itlent, p. 44.
166. klem. p.20(:

87
O DES¡\I:']O ßIOGRÁFIC(). I'SCII,EVER UMA VIDA

vlsita ao secretário da Société des Amis de FlaLrbert, um terl Lucien Andrieu, mergu-
lha o biógralìl nos abistnos cla perplexidacle: explicam-lhe que. quanclo dzr instalação
em i905 do lnusett de Croisset, decidiu-sc recuperar para a instituição o papagaio
pedira emprestado. Ali ele descobre nada rnenos que cinquenta louros.
c¡ue Flar,rbert
Corno saber qual estivera sobre ¿r mesa cio escritor? "Pegaram um exempl ar de (Jnt
Crtrctç:ão Simple.s e releram a descrição de Loulou por Flaubert
[...] Escolheram então
cl papagaio clue tlelhor se enquadrava no retrato"rÓ7. A autellticidade do escolhido
rlão é cle maneira algutna seglìra. pois Flaubert devolveu o papagaio ao museu em
1876 e só trinta anos depois o pavilhão dessas aves foi instalado. Não irnporta qr-ral
dos ¿rnimais é o verdadeiro, caso algum o seja. Essa história bullesca mostra a inuti-
liclade cla pesqr-risa biográfìca de detalhes da vicia, de h,rgares percorridos, de objetos
possuícios clLle em nada esclalecem a obra, apenas ocupam os lazeres cie espíritos
lnaní¿ìccls que "despeldiçam a velhice para fazer arguma coisa"ró8.
Antes da ironia fèrina de Julian Barnes, Marcel Proust jír tomara cla pena para
escrever Cr¡ntre Sainte-Beut,e. Aí, enuncia o que é do domíuio da arte e o que é do
donrínio d¿r crítica. Postula e reivindic¿r em altos braclos ¿r autonornia do narrador e,
portanto, a existência de uma barreira intransponível entre a personalidade psicológica
do escritor e seu universo literário. Para fàzer essa ctistinção absoluta, ele solapa as
bases da "vidob[a". Proust se insurge, pois, contr¿ì o que chama de "färnoso método
de S¿rinte-Beuve"': "Esse métoclo, qne consiste ern não separar o homem da obra
[...1
Esse métoclo ignora o que utna flequentação um pouco profunda de nós mesmos nos
ensina: que o livro é prodr:to de um e¿¿ cliferente daqr.rele que rnanifÞstamos em nossos
hábitos, na sociedade, em nossos vícios"r('e. Sainte-Beuve, aos olhos de proust, não
entendeu nada do que especifìca a atividade literária, a quáìI, na essência, sem voltar
as costas à vida real, utiliza-a e transforrìa-a graças à alqLrimia do estilo. Essa meta-
morfbse collstitui um segredo entre o autor e o na.rrador, devendo permanecer opaca
ao leitol' qr-re não entroll no jogo. Proust opõe o que é da esfera da mundanidade a
uma outì'¿l relação, bem diversa, corrì o mundo descrito na obra literária. Pesquisar
junto a testemunhas ou amigos, explorar a correspondência ou os <iiários íntimos
seria um nrodo de se confundir, porquanto as infolmações coletadas nos falam de
outro ell que não o responsável pela literatura.
Essa radicalização da oposição entre duas identidades lembr¿r, não pr-opria-
lllente um conflito de concepção crítica, mas antes um aspecto biográrfico da vi<ia de
Proust. A hipótese elaborada por Michel Sclineider mostra qlre por trás da polêmica

l6l . ltlet¡t. p. 248.


168. Ident. p. 206.
169. Marcel Proust, contre sairÍc-llenve, calliniard, rclées/NIìF. 1954, p. l-57

88
A BIOCRAFIA, GENDRO IMPIJII.O

está o segredo da sexualidade de Proust, inconfessírvel à sua mãe. Ele recrimina ¿r


Sainte-Beuve buscar correlações no trato do escritor cotrl as mulheres. que para ele
é justamente a pergunta a calar: "De resto, Mamãe nunca fez isso. Marcel tinha-
sern
dúvida, fortes razões para repelir semelhante método, pois ao menos esse livro, Co¡i-
Íre Sainte-Betve, se esclarece pela vida do autor"r70. Em verdade, afora essa questão
tabu - sua sexualidade -,
Proust não fica muito longe do método de Sainte-Beuve
no Em Bu'scrt do Tempo Perdido. Em suas obras sobre escritores. cede ao atrativo
biográfico e lamenta não sabermos muito sobre a atuação de Bauclelaire como agen-
te de li-eação. Escreve, no Jean Santeuil: "Poderei chamar este livro de romance?
Talvez seja menos ou mais que isso, a essência mesma de minha vida, sem mistura,
retomada nos mornentos de angústia em que ela decorre"rT¡. Esse priureiro romance.
amplamente autobiográfico, permanecerá inacabado por causa de uma péssirna es-
colha enunciativa (é na terceira pessoart2¡. Podemos ainda evocar o úrltimo volume
do Em Busca, O Tempo Recuperado, quando o narrador confess¿r ao leitor: "Benì
sei que todo esse material da obra literírria é minha vida pregressa; bem sei que os
episódios vieram a mim em meio aos prazeres frívolos, ¿ì ociosicl¿rcle, à ternura, àr
dor"r73. Em outras passagens sobre literatura d.o Contre Sain.te-Beuy¿, Proust não
parece tão distanciado do método que enuncia ao opor a este último dois trechos 6e
uma carta de Balzac à sua irmã, para demonstrar um erro de apreciação de Sainte-
Beuve sobre Balzac. Não bastasse isso, como sublinha Georges May, é espantoso
ver Proust endossar o método que critica e "valer-se da tal carta, portanto de unr
documento da vida privada do romancista, para explicar certos traços de Rastignac
e Vandenesse. personagens que pertencern à obra"r74. Sem dúvida, Proust não cle-
duz daí que a vida seja a chave da obra. A relação entre o autor e sua personalicla<Je
existe no pensamento de Proust, mas ele preconiza partir de prefèrência da obra, na
medida em que ela exprime a vida real do escritor, seu eu verdadeiro, o eu que apa-
rece na escrita. Com base nessa abordagem, podemos recuperar o liame dialético
que vincula o autor como eu psíquico (o "eu obscuro" de Proust) àquilo qìle escreve.
Proust recomenda. no entanto, um rnétoclo que mantém à distância a vida privada
do escritor: a seu ver, privilegiá-la afasta o leitor do que lhe desperta o interesse, do

170. Michel Schneider. Manuut, Gallimard, col. "LUn er I'Aurre", 1999, pp.32-33.
l7l. Marcel Proust, Jean Sanreuil, citado pclr-Michel Schneider. o¡r. cir., p. -5g.
172- Corno me observou Yveline Lévy-Piarroux, podernos notar aqLri urn paracloxo bastante esclarecedor
de Proust, que utiliz-a a primeira pessoa no Ent Bu.çcct do'lentpct Pertlitlo, embora se situe clararnentc
mais longe da realidade estritarnente vivida.
173. Marcel Proust, Le temps retrort'é, citado por Michel Schneider, op. cit.,p.59.
174. Georges May, "Sa vie, son (Euvre. Réflexions sur Ia biographie littéraire". Diogènc. n. 139, jul.-set.
1987. p. 42.

B9
O DDSI\I:IO T]IOARÁ]:ICO. ESCII,I:,VEII, UMA VIDi\

que constitlliu slra própria vida, ou seja, a esclita. E esse afastan-ìento o condena ¿r

passar ao largo de sua singularidade.


É nessa busc¿r por clentro <ia obra, para melhor conhecer o ârnago da persona-
lidade de Proust, qr-re Michel Schneider se empenha. Ele vê no relacionamento com
"Marrãìe" um dado privilegiado, pois essa designação revela seu único apego: "Mamãe
é a niãe imortal, aqueia clue não podc¿ nenr deve morrer, janrais. Dizer 'minha mãe' é
aceitar a ideia de sua lrorte"r75. Schneider colhe ensinamentos preciosos dessas idas e
vinclas eutre ¿Ìs menções à imagem de "Mamãe" na obra de Proust e as relações efèti-
vas de Marcel com slr¿ì mãe. Quando ela lÌlorre, ern 1905, Marcel tem 34 anos e janiais
deixou ¿ì c¿rs¿r paterna. Esse desaparecimento constitui pala ele uma ruptula instaura-
dora que começa por uma dor insuportável a ponto de mandá-lo ao hospital. Mas virá
o tempo em que ele chamarír de "ernancipação das láglimas", ao termo do qual consa-
grarír iì "Marrãe" o Ent Buscct do Tent¡to Perdido. Até lá ele continuará escrevendo, é
certo. nas principalnrente sobre o ato da leitura. Proibia-se escrever verdadeiramente
na primeirzr pessoa; porém, a ausência da mãe irá lhe perrnitir o ato da escrita como
negação de um¿r separação inrpossível e, contudo, irreversível: "Toda obra é, talvez,
unla negação da separação maior [....1 Bem sei que tudo está morto, mas agirei como
se o não soubesse"r76. E isso a ponto de Michel Scirneider ernitir a hipótese segundo
a qr-ral o Ent Bu,st:¿¿ seria um fìlho que Marcel tel'ia fèito em "Manlãe" e, ao nlesmo
telnpo, um meio de fazer da mãe um fìlho, o que ele parece exprirnir num esboço de
i908: "O trabalho nos torna um pouco mães. Às uez"s, ¿rchando estar perto do fim,
ao sentir o fi1ho no verìtre e seÍn saber se teria forças sufrcientes para o parto, eu me
interpelarva com um triste e doce soniso: 'Ver-te-ei algum dta?"'177.
Esse vínculo irìternalizado da obra de Proust corr a biografia justifìca, pois, a
aproxirnação da vida e da obra, a ponto de Roland Barthes saudar o esforço biográfì-
co publicado sobre Proust por PainterrTs. Fazendo uma comparação com o rnodo pelo
clual Plutarco associou suas evocações de heróis da antiguidade nas Vi¿IcLs Paralelc¿s,
ele percebe uma relação especulaf entre Marcel e seu narrador, rnas, diferentemente
clo que ocorre enl Plut¿ìrco, Barthes diagnostica aí antes uma homologia que urra ana-
logia. O pr¿Ìzer conl que Barthes lê a vida de Proust por Painter nasce da inversão da
¡:erspectiva praticada no gênero biográfrco tradicional: "Não é a vida de Proust que des-
cobrirnos elr slra obra, á sua obrct que descobrintos nctvida de ProtLst. Lel o trabalho
de Painter (cuja maior qr-ralidade é a transparência) não é surpreender a origem do Ent

175. lvlichel Schneidcr, Murtcut, tsp. cit., 1999, p. 33.


176. Itlcnt. p. 163.
177. Marccl Proust. Canteî /, 1908, citado por Michcl Schneider, Mant.an, op. cil., p. 223.
178. Ccolgc D. Painter. Mart:el Prctu.st, L. l: 187 1-1903: Ies cutnées tle jewrcsse; 1904-1922: I.es années
tlc ntattt.ritó, Mercr¡Le de Flance, 1966.

90
A BIOGR]\I;!A. GLNI'RO IMPURO

Ilttsctt. é ntanusear dublê do romance, como se Proust houvesse escrito duas vezes
r-rrn

o nìesmo livro - no próprio livro e na vicl¿ì."r7e. Finalmente. o pararcloxo biogrirfìco nos


leva a contemplar a vida do escritor não colno algo que antecedesse e cletern-iinasse ¿r
obra, mas como aigo que se lhe seguisse. Podemos então concluir que se operou ¡nla
osn]ose dos dois registros rlagia da escrit¿r. "porc¡uanto as cJuas vidas paralelas

-qraças
unem indissoluvelmente su¿ì duração. A escrita do narradol'é, ao pé cla letra, a escrita cle
Marcel. Jír não há autor nem personagem, jír não hir mais que Lrma única escrit¿r"rso.
A ruptura inst¿iuradora da perda da figura materna em Proust se re{lete. uln po¡-
co arref-ecida, em Barthes. Sua conferência sobre Proust. cle l9 cle outubro cle 1978.
"Longtemps.ie rne suis couché de bonne heure", é largamente inspiracla pela nlorte,
unr ano ¿ì.ntes, de sua própria mãe, no dia25 de outr,rbro de 1971, morte senticla c1e
maneira igualmente dramática: "Será, se me permitenr, Prr¡ust e eu. Quanta preten-
são!"r8r. B¿rrthes se interroga sobre as ruptllras que afetam o "meio da vicia". seja a
de Rancé, que erbandotra a carreira mundana após encontrar o corpo cla aurante cleca-
pitaclo para se refr-rgiar no silêncio eterno da Trapa, seja zr cJe Proust cluando percle a
mãe, perda evocada numa indistinção entre ele, Proust, e o B¿rrthes sob o impacto cle
tragédia igual: "Um luto cruel, um luto singr,rlar e irredutível pocle constitlrir a n-ìeu
ver um 'auge do particular', como dizia Proustl embora tardio. esse luto serír parer
mim o nreio de minha vidar pois o 'rneio da vicla' talvez outra coisa não se.ja que o
momento no qual descobrimos que a morte é real e não apen¿ìs ¿rssustaclora"lsl.
Desse traLtffia nada pode resultar para quem optoLr pela escrita. seniro a cles-
coberta de uma maneira nova de escrever. uffì novo ponto de partida para conrbater
a atração da morte. Ent Busca do Tem¡to Perclick¡ é a procura cle ulna terceira via
entre o romance e o ensaio, onde a temporalicl¿rcle anule as leis clássicas clo relato
cronológico linear. A sucessão dos fragmentos que daí resulta desorganiza "a ló-eica
ilusóri¿r da bio-qrafia quando segLle. por tradição, a ordem puramente mateniática dos
anos"r83. Essa clescollstrução não significa, porém, Ltma negação da pertinência bio-
gríifÌca na medida em que a obra conserve elementos da vida leai. mas esses últimos
são "de algum modo, deportado.ç"rsa. Barthes assinala dois clesloc¿ì.nlentos principais
em Proust. Em primeiro lugar, o da pessoa que enuncia. O narrador, sob a lolrp¿i_qerr

179. Roland Barthers, "Les vies parallòlcs", La Quinzainc Li¡tr;raira,l-5 nlar. 1966; republicaclcl eni (Et.¡,re.s
cotrt¡tlètes. t. II. 1962- I 967 . Le Seuil. 2002. p. 8 I 2.
180. Idcnt. p.8i3.
l8l. Rolarld Barthes, "Longtcrnps.jc ntc sLris cotrché cle bonne hcule". conl'erência no Collège clc lìrance.
l9 de outubro de 1978, putrlicacla na coleção "Les lnódits du Collè-ee cle Flance". 1982: repLrblic-.acla
em (Euyres r.:ontplères, t. V. 1977-1980. Le SeLril. 2002. p. 459.
l8?. Idettt. p. 467.
183. Ident. p.463.
184. Idcnt, p. 463.

9l
O DESAFIO BIOGRAF]CO. ESCREVER UMA VIDA

do "elr", não é de fato o eu da autobiografìa, que realiza assim uma duplicação do eu


do escritor com respeito ao eu da vida mundana e torna vã toda tentativa de saber se
cl narrador é mesmo Proust - "é simplesmente vm outro Proust, não raro desconhe-
cido dele mesmo"rs-5. O segundo deslocamento evidenciado por Barthes é o de um
relato que não constitui mero acompanhamento de uma vida, mas a demonstração
do desejo de escrever. Há, pois, algo de essencial que passa da vida do autor para a
obr¿r. reconhece Barthes, "mas uma vida desorienta¿ott186 em consequência desses
deslocamentos sucessivos. Paradoxalmente, Barthes se mostra adepto da postura de
Painter: "Gostei muito de seu Proust, pois Painter foi o primeiro a reabilitar o 'mar-
celismo', isto é, o interesse real pela pessoa privada de Proust e não só pelas perso-
nagens de sua obra"rs7. Essa legitimação do interesse pelo autor, velado por sua obra,
exprime-se ao termo de um percurso durante o qual Barthes aventou a teoria dos bio-
graf'enras (voltaremos a isso). Em 1979, período marcado pelo declínio do paradigma
estruturalistarss, Barthes confèssa seu desejo frustrado, que jamais realizou a não ser
f-ragrnentariamente: 'Às vezes, tenho vontade de escrever uma biogra¡u:rr8e.
Dessa perspectiva, as abordagens biográficas contemporâneas, animadas pela
busca de detalhes ínfimos, reveladores da unicidade do gesto, não estão muito dis-
tantes da junção da vida e da obra, mesmo que a pretensão seja menos um apanhado
totalizante que um exame microscópico * sempre, no entanto, para produzir um sen-
tido mais globalizante, para evocar a arnplitude de uma trajetória e a exemplaridade
de um sujeito. Esses estudos recentes procuram "medir o perfil de uma vida, sair em
busca do momento decisivo em que tudo acontece ou se rompe"ln0. Bem longe dos
modelos antigos das Vidas de Varões llustres e das biografìas romanceadas, essas
tentativas de evocação biográfica pretendem tomar seu próprio rumo no emaranha-
do entre ciência e ficção, entre ensaio crítico e obra de criação, entre o que Barthes
chamava de "figura do escrevente" e a figura do escritor: 'Assim, essas biografias
imaginárias parecem restabelecer o liame, desacreditado desde Proust, entre a vida e
a obra, como se assistíssemos à reabilitação de Sainte-Beuve. Mas tais coisas são, con-
vém dizer, bastante complicadat,rer. f nesse espaço incerto da vacilação e do abalo

l8-5. /¿/¿r¡rr, p.464.


186. Idant, ibitl.ent, p. 464.
1 87. Roland Barthes, "Pour un Chateaubriand de papier", Le Nouvel Observateur, l0 dez. 1 979; republicado

en1 (Euvres r:ontplète.s, t. V 1977-1980, o¡t. cit., p. 768.


188. Ver Flançois Dosse, Hisr¿.¡ire du structttrali.snrc,l. ll, Le chutt du cygne, La Découverte, 1997.
189. Roland Barthes, "Pour un Chateaubl'iand de papier", art. cit.; republicado em (Eut,res cont¡tlètes,r.Y,
19'7'7-1980, op. cit., p. 768.
190. Dorninique Viart, "Essais-Fictions: les biographies (ré)inventées", ern Marc Dambre e Monique Gos-
selin-Noat (dir.), L'éclatentetú des genres au XX' siècle, o¡t. cit., p. 337.
l9l. Iden, p. 340.

92
A ßIOGRAIIIA, GENEII,O IMPIJRO

de identidades que se inscrevem inúmeras tentativas dialógicas em que se misturanr


alternadamente a factualidade autenticada e a ficcionalização do sujeito evocado em
biografias impossíveis, "que assumem sua posição incerta"re2.
De novo, é o escritor Stefan Zweig que nos serve de guia para a valorização des-
se espaço entre a vida e a obra, numa mescla tal que as duas dimensões acabanr por
se confundir. Ele consagrou diversas biografias a poetas e romancistas, entre os quais:
Stendhal, Casanova, Tolstoi, Dickens, Dostoiévski, Verhaeren e Balzac. É na de Balzac
que nos deteremos por um nlomento, a fim de avaliar até onde a vidobra pode se revelar
um programa fecuncloret. Ao mesmo tempo em que um retrato capazde bem traduzir a
força titânica de seu herói, Zweig pinta a vida de Balzac como um romance eivado de
intrigas, surpresas, contratempos. Honoré tira seu vigor sobretudo de uma fraqueza, a
de suas relações com a mãe: "Nunca tive mãe!", exclama eie numa carta. e Zweig vê
nisso um elemento decisivo, uma falha inerente à sua personaridade:

Mal podemos ilnaginar, não hír dúvida, mais frieza e indiferença de uma rnãe por seu lìlho. Apen4s
o dera à luz e, ainda no leito de parturiente, afastou o bebê da casa como se sc tratasse cle um leproso.
O pequenino foi posto sob os cuidados de uina anra, mulher de um policial. c perrnarreceu ccr¡l ela ató a
idade de quatro ânosre1.

Encontramos resquícios dessa infância sofrida no romance Lotlis Lcunberr. no


qual Balzac se desdobra em duas personagens, o poeta Lambert e o filósofo Pitirgoras.
Ora, ele fazde Lambert, para acentuar sua identificação corn o herói, um órfão de pai
e mãe. Nas leituras é que Lambert encontra refúgio. Graças a seus escritos. vinga-se
dos primeiros tormentos e humilhações, da mesma maneira que Balzac. Entretanto. foi
necessário ao escritor passar por um violento conflito familiar, pois seus pais o obri-
garam a estudar Direito na esperança de vê-lo tabelião. Teve de lutar corn firmeza e a
família nada fez para deixá-lo dar livre curso à sua vocação. Instalou-o numa m¿rnsarda
miserável em Paris, sem eira nem beira, sob condição de que em um ano prestasse os
exames. De novo, traços desse período se encontram ent A Pele do Onagro. romance
em que descreve seu ambiente como uma espécie de cárcere; mas. diz ele, "nunca uma
prisão, pois que voluntária"'e5. Desde logo obrigado a ganhar a vida por cont¿ì própria.
Balzac se põe a escrever para cobrir as despesas, de início modestas. Mas seu amor
ao luxo não tardará a arrastá-lo a uma situação'de servidão perpétua. Será perseguiclo

192. Ident, p.343.


193. Stefan Zweig, Balz.ac. Le rontcut de sa t,ie. Albin Michel, 1950; republicaclo em Hacl.rerte. Livre cle
Poche, 1999.
194. Idem, p. 15.
l95.HonorédeBalzac, ktpcaude chagrin,citadoporStelinZweig,op.cit.,p.3T.

9.1
O DI:.SAFIÒ ßIO(|II.ÁI:ICO. ¿SC1ì/'Y1'1I UMI\ VIDA

a vid¿r inteira por credores e rneirinhos. Zweig descreve com vivacidade esse escritor
sempre metido enr enrascadas qr-re trabalh¿r como um galé para honrar suas dívidas:
"Quanto mais ganhzr. mais quer ganhar. Escreve corno um condenado. quase serl fô-
lego, pulmões estollrando, para escapar à prisão detestada da família"re6. A admiração
de Zweig por Balzac não o faz cair na apologia. Mostra-se ffìesmo sevelo sobre ess¿t
prinreira tase no curso da qual Balzac "gerratujou", enquanto estudava, dez mil linhas
clue nada têm de litetatura: "Prostituição, eis o que era - não podemos dar outro nome
a esses rabiscos -, prostituição larnentável"re7. Mais uma vez, vida e obra se cruzam. A
Pele do Onctgro rìarra as desventur¿rs e fracassos sucessivos da juventude de seu herói:
"Eu era vítima de cria-me destinado a grandes coisas, mas
um¿r ambição excessiva,
era colno se estìvesse no nada"res. Balzac f'oi iniciado no amof por uma mulher com a
iclade de sua mãe, nradame de Berny, que o tornará autoconfiante e lhe proporciona-
rír uura paus¿ì para respirar. Foi por causa dela, assegura Zweì-9, qr-re Balzac se tornoLr
Balzac. Mostrou-se para o escritor ulna verdadeira mãe, confidente, amiga, amante - e
isso por quase dez anos. Mais tarcle ele traçará dela, ainda segundo Zweìg. um retlato
eni O Lírio do Vale, sob os traços cle r¡adame de Mortsauf. O biógrafb Zweig insiste.
err relato, nllrl-ì traço de destaque, motor de seu biografado. No caso de Balzac, a
seLr
ibrça cle vontade é que lhe perrnite compreender o alcance desmesurado da tarefa que
se inrpôs, o projeto de pintar o conjunto da Conúdict Humana. Quando começa a es-
crever essa obr¿r rÌlonurnental, desperta a adrliração cle Zweig:

Obsc.rval'[Jalzac enr canlpo, cis serl c]úvicla o cxemplcl nrais grandioso que poder'íar-nos tel cla

continuidrde cle uur ato cliaclol n¿r literirtul'a clos tenrpos nrr>clel'nos. Como urna íu'vore vigorosir, nutricia
clos sucrls eLenlos cla tcrra. ele alteia seu tronco luxuria¡rte, estenderlclo cada vez- nr¿ris alto, para o céu, a
rânlagcrìr espessiì de sua olrrar!").

Sua vida verdacieira, a autenticidade de sua biografia está unicamente na obr¿r:


"Nenhum contemporâneo conseguiria escrever sua biografia; seus livros a escreveram
por e1e"200. A maior parte do tempo c'le Balzac se destinava ¿ì escrita e, cluando ele se
afastava d¿r mes¿i. era o rnais das vezes pzrra ir à cata cle decepções amofosas, como foi
o caso coûì a duquesa de Castries, que o fèz correl a Europa em vão. Vingar-se-á dessa
lrumill-ração, segundo Zwetg, inventando a personagem-título de A Duc¡nesct tle Lattgeais.

196. Stef'arr Zweig. lJctl:.ctt:. Le rc¡ntatt dc su yie, op. r:it., yt.60.


197. Idatrt, p. (t3-
198. IJonor'é cle Brlzac. La peuu de chagritt. citado por Steiàn Zweig,llal.zac. Le rottrun de sa vic. o¡t.
r.ir., p.73.
199. Stef an Zrvcig, IJaltuc. I.e ftnttutt dc sa vie , op. <'it., p. 137.
200. ldent. yt. 17 l.

94
r\ ß 1 0(ì R t\F I t\. (i I:.N E RO I M p Ll Ro

Balzac se Íìove num mLlndo ao mesmo ternpo real e imaginirrio, sem fì-onteir¿ì cert¿ì.
entre ambos; sua vida é uffì roffì¿u-rce e selr romance. um¿r vicla. Urn belo cli¿r. o roul¿ìnce
se transforlla em vicla; e nasce daí. graças eì paixão que ele nutre em sua fzrptasia por
uma princesa de sonho. um rorrance verdadeiramente viviclo. o de seu encoutro cor-ìl
madame Hanska, que tolïara a iniciativa de escrever-lhe sob o pseuclônimg ¿e 'A Es-
trangeira" para confessar a admiração que a obra cle Balzac nela suscit¿rv¿r. Af'ora essc.
impulso passional, ele continua a amargar vicissitudes ein sllas especulações financeiras
e investimentos cada vez mais delirantes, entre o fracasso da construção clos J¿irdies
e o das minas de prata cla Sardenha, errì Nurra. Contuclo, "nacla cia confisão extern¿t
penetra a esfera de fectrnda lucidez em cìue se constrói sua obra"r')r. Balzac cies.rpare-
ce na noite de 17 para 18 de agosto de 1850 e, na celimônia clo enterro. é Vítor Hu_eo
quem lhe presta homenagem.Zweig encerra sua biografia coÌl1 estas paìavras. qlre re-
Iembram ainda a junção inextricável de um percurso de vida com a criação romanesca:
"Palavras assim, nunca Balzac as ouvira enquanto vivo. Do alto do Père-Lachaise ele
irá, como o herói de seu ronìance, conquistar a cidacle"2o:. A vida e o próprio destino
póstumo tiram daí o modelo ficcional de uma circulariclacle que fundamenta o clireito
de pensar em conjunto essas dr,ras dimeusões.

A im.plicaçã.o clos biógrafos

Em geral, o biógrafo expõe as motivações que o levaram a acompanhar a vicla


do biografado e retraçar-lhe a carreira. Revela seus objetivos, suas fontes e seu nréto-
do, elaborando assim r-rma espécie de contrato de leitLrra com o leitor. Essa prática de
expor intenções é bastante clássica, mas assume no gênero biogrírfico unra inrportância
singular que a transfornra nurn rito quase obri-qatório - tanto meris que. muit¿rs vezes. o
biógrafo não é o primeiro a se,quir as pegadas cla personagem. Ele sente ¿ì necessiclade
de se explicar junto aos leitores, de antecipar-lhes o que irão descobrir enr termos cle
questões novas e aberturas de arquivos inéditos. O biógrafo justifica sua escolha e enfà-
tiza os ¿ìrgumentos que ensejarão uma maior proximicia<1e corì ¿ì personagem escolhida,
em função de suas pesquisas, cle sua sensibiliclade e de seLìs compromissos.
Definida coûto relato no qual o narradorrse ausenta da história clue conta (hete-
rodiegética), ao contrário da autobiografìa (autodiegética203), a bio_era{ìa não é. porérn.
escrita a partir de uma exterioriclade total. Por isso. a biografia clírssica aparece na ter-

20l. ldent. p. 371.


202. Idem, p. 495.
203. Gérard Geneu.e. Figures 1/1, Le Seuil, 1972. pp. 25l-253

9.5
O DESAFI0 ll|OGII.AFIC). ESCREVER UMA VIDi\

ceira pessoa do singular: o autor, também narrador, se distingue da figura biografada.


Mas as tensões próprias ao gênero são nesse ponto tão fortes que constituem quase
sempre objeto de explicitação por parte dos biógrafos. Philippe Lejeune ressalta duas
grandes contradições inerentes à biografia. A primeira se situa entre a ambição de ob-
.jetividade e a postura real do biógrafo. Seu discurso, sua competência e sua erudição
tendem a "lîascarar a inevitável parcialidade e os fundamentos ideológicos de seu pro-
.ieto. Por que se escrevem biografias? Nunca, sern dúvida, alguém escreveu a vida de
outro homem só com vistas ao conhecimento"2O4. A segunda grande contradição, da
qual a maior parte clos biógrafos sequer parece consciente, diz respeito ao fato de que
qLrerer registrar a vida de uma pessoa pressupõe o domínio e a visão totalizante daqui-
lo que ela foi durante sua carreira. "Ora, os teKtos dos biógrafos, embora 'cornpactos'
no nível do discurso. são em geral muitíssimo lacunares no que toca à informação"205.
Daí a técnica do beclramel, que se serve da psicologia para tapar bulacos e irnpingir o
rnolho biográfico dando a ilusão de resgatar a plenitude da pessoa.
Se a biografia se opõe à autobiografia, ambas dependem de um mesrro pacto
referencial, ao contrário da fìcção: "Querem dar informação soble uma 'realidade'
exterior ¿ro texto, submetendo-se portanto à prova da verificaçõo. Sua finalidade não ó
a mera verossinrilhançâ, mas a semelhança com o verdadeiror:206. Mas, também aqui,
veremos a que ponto essa distinção útil, 1'eita por Philippe Lejeune e os semiólogos,
deve ser matizada, nunca assumida em ternros absolutos. Decerto, como afirma Philippe
Lejeune, o modelo do biógrafo é a vida do biografàdo "tal qual foi". Sob esse aspecto,
o empreendimento visa a uma senelhança tanto no plano da exatidão da infonnação
quanto no da fidelidade ao significado dos fatos e gestos que se narram. A semelhança
buscada não pode nLlnca ser atingida e só constitui, para o biógrafo, urrra meta de traba-
lho, urna intencionalidade que o impele para a "representância"207, no dizer de Ricceur.
Poderí¿imos então postular, t¿rl como Philippe Lejeune fez para a autobiografìa, a ideia
de um pacto biográ.fico qlÌe comprometeria o autor coln sell leitor.
O biógrafo, mais que em qualquer outro gênero, deve já no início justificar suzr

escolha e explicar ao leitor em quê essa vida vale a digressão:

Na biografìä, autor e narrador estão por vezes ligados nunra relação de identitlade. Essa relação
pode fìcal inrplícita ou indeterminada, quando não se explicita, por exelnplo, nunr plefácio (digamos, o do
Irliotu rla Famíliu. clnde o biógrafo Saltre cornunic¿r Ler contas a ajustar corìl seu l¡odelo, Flaubert)ros.

204. Philippe Lejcune, Je e.çf un uutrc, op. c'it., 1tp.77-78.


205. Ide tn, p.78.
206. Philippe Lejeune. Lc ¡tacle atúohiographique, op. cit., p. 36.
207. P¿rLrl Ricær-r, La ntétnoira, I'ltisroire, l'oubli, Le Seuil,2000, pp.359-369
208. Philippe Le.jer"rne. I.c pttctt: autobiogra¡tlti4ue, op. r:ir., p. 38.

96
A ßl0GRAFlt\, Gf;NERO tÌt4PUR0

B i o g rcr/ia s e.t (' r iÍ e s ¡t o r ¡t ol.ít ic o.s

Há um caso que exige, como nenhum outro, a explicitação das motivações clcr
"eu" do biógrafo: as biograftas escrit¿is por políticos. Nesse plano. pgclemos falar cle
verdadeiras "afinidades eletivas" entre os políticos e sua circunscrição eleitoral trans-
fbrmada, para a ocasião, em solo de enraizamento. Alai¡r Juppé, clepois cle deixar
Matignon. ìmpôs-se a tarefa de escrever urla biografia cle Montesquieu: "La¡cei-¡le
em rosto esse desafio::20e. g
ex-prinreiro-ministro, prefeito e cleputaclo cle Borcléus.
curva-se sobre sua identiclade regional e, para essa obra. associa o próprio nome ¿ìo
de Montesquieu, glória inconteste da cicl¿rcle que ele administra. Os borcleleses. cìo¡r
efèito, ergllem bem alto o pavilhão qr-re reivindica os três "M": Montiligne, Mclntes-
quieu e Mauriac. Alain .Tuppé se guarda. entretarìto, cle ceder iì tentação clos fìgr-rrões
políticos que. livres de suas altas responsabilidacles. costlìlranl se converter à biogra-
fia histórica. Ele prefel"e valorizar o caráter sempre atual das orientações enunciaclas
pelo autor do Espírito clcts Leis e ver aí um possível recurso ou nreio de travar conr
armas nrais afìadas o comtrate político. Concluinclo sr-ra biografia, Alain JLrppé não
dissimula a adequação que vislumbra entre um lugar, um homem ilr-rstre e o legaclo
histórico que presurne encarn¿ìr: "Se vos falei de Montesqr-rieu foi porque Borciéus. é
cl¿rro^ tem muito que ver coln ele. Afìnal lír estão selr llorre, sua estátua, seLls livros.
seus admiradores e os especialist¿ìs em sua obra, mais nunlerosos que em qualqLrer
outra parte"zr0. Orgulhoso desse enraizarnento reencontrado. o biógraf,o político pocle
então encaixar-se em seu molcle como o inspirador, o grancle homem qLre vai lhe
perrnitir reaparecer em cena. O autor proclama a atualidade t¿ìnto da fìgr,rra conro cl¿r
natureza de sua mensagem - no caso de Montesquieu, a resistência ao absolutisrnc)
e a def'esa das liberdades: "Por 250 anos, suas ideias permaneceram vibrantemente
atuais, pois entre despotisrno e democracìa é que p¿ìssa a linha divisória"r". Surge
então a identificação possível do "eu" do biógrafo com o biografaclo:

Vivi duas ou três décadas cle cnfì'entanrento.icleológico el'ìtrc o c¿ìlllpo clo cles¡rcltisnro, para falar
conro Montescluicr.r. e o caml)o da libcld¿rde - entrc nrinha passagcm pelir lr-r¿r cle Ulnr. em 196:1. ató ac¡Lrclc
dia de Ilovembro cle 1989 enl que cairr o rnuro de Berlini. Tirdo era tão sinrplcs, lra ópoca!r'r.

Mas ele reconhece que chegou o momedto cle contemporizar e que ficou nrais
perigoso assumir riscos.

209. Alain Juppé. Monte.sr¡rricu. I.c ntodan¡e. Per.rin-Grasset. 1999, p. 12.


210. Ident. p. 265.
211. Ide.nt. p. 267 .
212. Ident. ilticlcm.

97
O DESt\l:lO ßlOGRAI|lCO. ESCREVER LllvlA VIDr\

A iclentificação cotn ¿ì personagem biografada é igualmente notória no caso do


ex-nrìrristro cla Eclucação François Bayrou, qLle publicou um Henri 1V213 em 1994,
quanclo exercia suas funções descie abril cle 1993. Centrista conciliador sob a presi-
clência de François Mitterrand, f-ez-se o arauto do consenso político e dedicou sua bio-
grafia "amantes da reconciliação". A obra pacificador:a das duas partes da França.
¿tos

ernpree¡clicla por Henrique IV entre católicos e protestantes, François Bayrou quer


contiiruá-la harnrgnizando a <iireita e a esquerda em tofno de uma postura de centro
que ele próprio encarnaria e que o levou anos mais tarde, em2002, ¿i se canilidatar
zì presiclência. Com essa biografìa. Bayrou se esforça para apagar a lend¿r dourad¿r
<la persona-qetn e lhe irnpingir resolutamente um ar de modernidade, o do resgate cl:t
tazltcs cle Est¿rdo graças ¿ro estabelecimento de um sistema administrativo e educa-
cional eÍic¿tz. De novo. ¿ì colllparação com a situação política vivida por Bayrou vem
¿ì baila para.iustific¿ìr o empl'eendimento biográfico: "Nosso nrundo mudou
também;
nós tar-nbém acabanros de s¿rir das guerras cle religião [...]"t'0. Ele vê em Henrique
de Navarra o hometn que soube resistir ao confclrmisnio e zì desesperança para tor-
nat--st: o grande reconciliaclor, o qual, contla toda expectativa, soube encontrar uma
saícla para a guerr¿ì civil ern que se engalfinhavaût os dois adversários. A essa pro-
.ieção política vem.iuntar:se. collto para Alain Juppé, o enraizamento territorial que
p¿ìrece justificar os víncuios entre Bayrou e seu herói, Henrique IV. Os laços da
terra engenclranr dois t'rearneses épicos: "Dir-se-á sern dúvida que eu busquei urna
iclentificação... É verclacle que Henrique cie Navarra cresceu no castelo de Coarraze,
a r¡ns clois quilôntetros da casa onde nasci"2r't. Nem assim Bayrou reconhece querer
transfgrmar ess¿ì pr:ojeção em l-ragiografra. É moderno e pretende ver elr Henrique
IV a¡renas unr homem de carne e osso col'r1o ele mesmo, não utna figura talhada em
ntármore ou e¡volta num sudário. Entretanto, Sempre recorre ao superlativo para
qualificar a relação clo biografado com a história nacional: "Nada é n-rais moderno,
rurais inovaclor r¡ue a política progressist¿r conduzida por Henrique com a ajuda de
Suliy. Pela pri¡reiravez. eût nossa história, um poder aventou o projeto de edificar
cluradouratÌ-ìente uma política fiscal, econômic¿r e diplonriitica, uma política de or-
ganizaçãio clo país, uma política cle recuperação moral e intelectual, uma política de
eclucação"2ró. À identiltcação do biógrafo conl o biografado corresponde, confbrme
sucecleu a Alain Juppé, uma assimilação da situação histórica vivid¿r por Henriqr're
IV ao qlie se p¿ì.ss¿ì em nossa contempor¿rneidade. Assim Bayou pode tomar de em-

213. I;rançois Bayror,r, Ht'nri IV, lc roi lil re, Flarnnlation. 1994.
214. ltlt'nt. p. 10.
215. ltlctrt. 1t. | |
.

216. ldent. p. 518.

98
A ßI0GRAI:IA, GENI.RO IIVI PIIRO

préstimo os ouropéis da história par¿ì seu conrbate político presente: "O clesafìo c1r_rc
ele enfrentou é da mesma natureza clo nosso: uma mudança cle época... Cinco sécuìos
depois. eis-nos rnergulhados numa crise i-guerl"2r7.
De seu lado. o
-saullista Philippe Séguin tenta fazer
jr-rstiça a LLrís-Napoleão Bo-
nap¿ìrte, que teria pagado beur caro sr-ra fideliclade zìs próplias cc¡nviccões. Dupla¡le¡tLl
venciclo pela inragenr esmagadora cle Napoleão I e pela derrota de Secian. nern por.isso
careceu de méritos. Nessa biografia que lembra um clesafio, o alttor. escolhenclo ul¡¿r
personagem mal-amada, veste a to--g¿ì de zrdvogado para clar largas ¿ì Llul¿r retóric¿t niuitg
especial. a clo litígio. Podemos ler trajetória coïno se ela clisfarçasse a clo pr-óp¡o
ess¿r
Philippe SégLrin. ainda fiel a certos icleais gar:llistas já agora marginalizaclos. Clabc
celebrar a folça e er grancleza, ao preço cla solidão, nessa "r,icla cjue se transfbl.l¡a. eul
destino por obra da vontaderr2rtì. Q biógrafb censura as lì'ases f'erinas cle Vítor. l-Iugo, que
perseguiu Luís-Napoleão "corn r-rm ódio inexorável"2"'. mas l¿rrnenta tambónr a ironia
cieMarx quando afìrma. em O l8 Brumário de I-uí,s Bona¡tarte, qLre r1o caso cle Napo-
leão a história se repete. prinreiro como tragédia, clepois colro farsa. Philippe Séguin
assunie plenamente sua subjetividade. Para ele^ escrever uma biografia é o mesnìo que
conrbater na arena polítìca: "Este livro é. nãcl o nego. urra tentativ¿r cle tomar particlo.
Procura, às claras. dar ¿rs t'azões pelas quais não clevemos pern'iitir qr,re Lr-rís-Napoleãxr
Bonaparte delìnhe num canto escuro e vergonhoso cle nossa menrciri¿r coletiva"I".
E o que acontece quando o bió-qrafb é r,rm político de esquercìa'? Emprega os
rnesnlos meios retóricos e se esforça p¿ì.ra dar à luta política a ntesnta grancleza cle
alma? A mesma projeção pessoal? A .iul-ear pela biograha consagracla ¿r Franciscç I
por Jack Langtt', avaliamos a permanência clo enr nteio às vicissitucles políti-
-qênero
cas com uma únic¿i ressalva: uma atitucle mais ética. qLre consiste c-m reconhecer ¿ìs
próprias dívidas na realização do empreendimento. Assirn é que Jacl< Lang exprinrc
sua gratidãro aos que, documentalistas e historiadores, o a.juclaranl e acompanharzrn1
na redação de sua biografia: Françoise Kermina, Laurent Siguier e o professor cla
lJniversidade de Tours, Gérald Chaix. O preteito cle Blois tarnbén-i encontr¿ì.
-sr¿ìças
ao herói de sua cid¿rde. oc¿tsìão para uma legitimação histórica enraizacla num loc¿rl,
mas é sobretuclo na obra cultt-u'¿tl do rei da Renascença. em seu 1àscínio pelas ¿ìrtes e
a civilização italianas, que o ex-ministro da Cultura insiltua um¿r continuicjacle cntre
o passaclo e slra atuacão pública atual. Ele sr,rperpõe também as duas épocas: ¿i vivida
por Francisco I - o Renascilrento. o Campo de Drap cl'Or, ¿r circum-navegação clo

217, Ident, p.521.


218. Philippe Sóguin. Louis Nupoléott le grand, Crasser. I990. p. l3
719. Idern, p. l(t.
220. Itlcm.p. 19.
22 l. Jack l,ltng, [:rançoi.s l",le rôt,e itr¡lien. Pcrrin. 1997.

99
O DESAFIO Bl)GRAlllCO. ESCREVER UMt\ VIDA

globo por Magalhães, o humanismo de Erasmo, a Reforma de Lutero - e o período


de mutações atravessado por outro François, François Mitterrand: '.A meu ver, só a
segunda metade de nosso século, com a revolução das comunicações e da informá-
tica. pode ser compal-ada àquela época"z2?. No entanto, embora seja lícito concluir
que todos esses empreendimentos biográficos se devem ao mesmo oportunismo elei-
tor¿rl, não é rnenos verdade que ¿ì oposição direita/esquerda tem o objetivo confesso,
segundo Jack Lang, de celebrar com sua biografia os valores pluralistas. Estes, com
I, revelam sua f-ecundidade graças ao subterfúgio de que a pró-
a frgr.rra de Francisco
pria cidade de Blois é exemplo em razão de seus inúmeros débitos para cotrt a Itália
renascentista. Lang celebra uma França feita de diferenças e lembra sua origem Io-
rena perguntando-se o que fundou a comunidade nacional a partir de expressões tão
disparatadas: 'Arriscarei uma respost¿r: a vontade de juntar-se. Ora, essa vontade é
fruto de um trabalho empreendido ao longo de gerações"223.

Biografias escrilcts ¡tor hi.storiadores +


r9
fJ
Entre as exposições de motivos dos biógrafos de personagens históricas, po- rn
denros surpreender alguns topoi recorrentes, não irnporta o período contemplado. O :r
biógrafo justifica sua escolha multiplicando os motivos que o levaram a aproximar-
se do outro. Faz-se, não raro, justiceiro frente a uma posteridade que não lhe pare- -¡r
it
ce à altura da grandeza real da figura em questão. Pode, muito simplesmente, citar -l
novos fecursos de arquivo. E pode também defìnir seu empreendimento colrlo unìa s"-
des¡nistifìcação da lenda, em noûre da verdade histórica. Por outro lado, o biógrafb
"js
ñ
às vezes reduz o biografado a um simples pretexto para resgatar um momento, um .Y
contexto, uma época. Esse exercício o leva a delìnir seus objetivos com relação ao
q
¿,
leitor e a preciszrr qual fbi seu grau de irnplicação subjetiva na tarefa.
Ern primeiríssimo lugar - tópos nao obrigatório, mas ainda assim rito consagra-
do -, o biógrafb expõe em geral sell "eu", o percurso que ensejou o encontro com o
sr-rjeito biografado, a relação pessoal entre ambos. Como acabamos de ver no caso das
obras dos políticos, o biógraf-o costuma inserir-se na vida alheia a ponto de a separação
entre autobiografia e biografìa quase desaparecer, assegurando um ganho suplementar
de grandeza histórica. Goethe já mencionara essa dupla obrigação que implica, para o
bió-grafb. conlrecer-se benr e conhecer ainda melhor aquele cuja vida irá narrar: "Pare-
ce que a tarefà principal da biografia consiste em representar o homem em suas rela-
ções temporais [...,1 Mas para tanto seria necessária uma condição que, diríamos, está

222. Ident, p. 9.
?23. ltlent, p. ll
ÇI{-1,t
t00
t r,l q I t "l ü--
*l"* ir ,,\
--t
A BIOGRAIIIA, GENI'RO IMPURO

fora de nossa expectativer: conhecer-se a si lrìesmo e a seu século,,2za. Esse


horizonte
irnpossível - a dupla transparência psicológica do biógrafo e do biografado
- impcie
a explicitação do "eu", de seus modos de inscrição, desejos e escolhas.
A ancoragem do "eu" no interior do próprio sujeito escolhido é mais ou ¡lenos
explicitada. Está, toda inteira, na biografia que Pierre Broué consagrou a Leon
Tr-otski:
não é apenas o historiador, mas também o militante que acompanha o itinerário
do
herói de sua família política, desse "Trotski ao qual dediqr,rei mais de trinta anos
de
trabalho em minha vida de pesquisador, antes de poder escrever esta biografia,'225.
E
lá vai Pierre Broué evocando seu primeiro encontro, todo livresco, aos catorze anos.
com o fascínio experimentado diante dos quatro volumes de capa vermelha, perfilaclos
na estante dos pais, daHistória cla Ret,oluÇã.o Russa, de Trotski. Ele apanhou um ¿ì
um esses volumes e os foi devorando apaixonadamente. Impregnação, pois, precoce
e
profunda: desde 1944 Pierre Broué, denunciado como "trotskista", passolr a
sravit¿rr
agilmente na pequena galáxia dos militantes da IV hiternacional.
No mesmo registro do historiador-militante, apanhado entre as exigências de sua
disciplina científica e de seu engajamento político, Philippe Robrieux, ex-secrerário-
geral da Union des Étudiants Communistes (UEC), apressa-se a ficar diante
de seus
leitores' Na biografia que consagra a Maurice Thorez2z6,lembra a força cle sua acle-
são às fìleiras do PCF: "O Partido permanecerá como a grande experiência
de minha
vida [..-l Conheci Thorez. Ele me fascinou [...] admirei-o. estimei-o, cletestei-o":r7.
A
ruptura com quem foi para ele a "carne de sua carne" suscitou unr longo trabalho his-
tórico no afã de descobrir a face oculta da história do comunismo. Consagranclo ao
líder do PCF uma biografia, ele reconhece ter mudado de ponto de vista: "Enquanto ier
avançando em meu trabalho, constatei que o caso Thorez, singular embora, tinha
um
valor exemplar até então ignorado por mim. Supusera que sua vida se explicava pelo
cinismo e a corrupção total. Fui obrigado a modificar esse juízo simplista"228.
Em outra vertente do engajamento político. a proxirnidade pessoal <1o biógrafo
e do biografado pode dar origem a uma pLrblicação. É nesse quadro que Joachìm
Fest
consagra uma obra a Albert Speerzze. Autor, em 1973, de uma biografia de Hitler.
Fest conheceu e entrevistou demoradamente Speer sobre seu relacionamento com o
Führer, ajudando-o ainda na publicação de svas Mentórias apedido do editor Wolf

224. Goethe, Souvenirs de nta t,ie, poésic ct t,érité, Aubjer. lg4l prinreira parte, citado por.lean
, Hytier
idenr, p. 100.
22,5. Pierre Broué, Zrn¡skv, Fayard, 1988. p. 13.
226. Philippe Robrieux, Maurice Thorez. vie secrère et t,ie publitltLe, Fayard. 197-5.
227. Idem, p. l.
228. Idem. p.2.
229. Joachim Fest-. AIbert Speer, perrin, 200 l.

101
O DI:SA]:IO BIO(iIIIiI;](:0. ESC:]IEVEII LIIVIA VIDÅ

Jobst Siecller. Elnbora l'amiliariz¿rdo conl o clossiô Speer, Fest hesitou muito tempo
¿rntes de se entregar ao _qênero biográfico. pois era lbrte "¿t tendência a considerar ¿r
biograta colno um gênero llleltor"l3t)e, não bastasse isso, o caso se presta llral a c¿L-
tegolizações excessivanlerlte sirnples. É com et'eito urn "honterÌl sem qualidtrdes":ìr.
de talentcls rlúrltiplos. c¡ue Fest nos pinta na 1ìgura dessa personagem estranhíssima,
clLìe nunca aderiu ao NSDAP e, toqlavia, cor-ltinuou ligado a Hitier nullla relação de
anlizade jamais desmentid¿i. Esse trato arnigávei começou clesde seu primeiro etl-
colttro, chegando Speer a tornal'-se "objeto de unla afeição de cunho nitidamente
crótico - ele era o 'amor inlèliz' de Hitler, nas palavras de um colaborador próxirno
Hitler, egomaníaco, tudo fèz pzrra seduzir Speer, que nunc¿ì
clc Speer"r'tt. Colrr efeito
perlìlhou verdadeil'alrente a ideologia clo regirne e, no entanto. estava sempre pronto
a segLrir o chefe aoncle quer que ele fosse, sem reservas.
O exercício que consiste ern explicitar os motivos pessoais, a relação subjetiva
com o tema da pescluisa, não é privilégio clos biógraf'os empenhados numa causa po-
1ítica. É de uso corrente entre os historiadores profissionais, ainda que a relação esta-
belecida seja n-rais exterior, n-ìenos passional. Pode ser tambérn o ensejo. para o autot',
de se situar' lÌente ao próprio gênero bio-erálìco, durante muito terìlpo objeto de um
verdacleiro no círculo dos historiadores erurclitos. Quando Pierre Sollin empreen-
t¿rt-ru

cleu a publicaição de sua bio-qrafia de Waldeck-Rousseau erl 1966, tinha consciência de


estar n¿rclanclo contra a corrente cle um¿i história que priviiegia as lógicas holístic¿rs e
c¡r-rantitativas, e adota uma postura Lìm tanto defensiva ao apresentar seu projeto como
à margern clo gênelo, na irìtenção de resgettar o per:fìl de uma época.

As biogralìas sao, hojc, r¡uito cliticadas na implensa. Jír não parcce clue os indivíduos Íàçam histór'ia.
¡rois intelcssant rllcnos que as ulassas. Acortrpirnhal pass(r iì l)rìsso o itincr'írrio de V/aldeck-Rousseat¡ serilt
Ltnla tûrcfiì anltcrônic¿t c. de rcsto, vã: u existência clcl cx-plesiclente do Conselho deixa tão poLlco espaço
ao pitolcsco cluc.jarnais atlaiu urr escritol secluer [...] O ¡:r'esente trabalho não ó, poltanto, lrlr¿t "vida cle

Wa ldcck-RoLrssc¿ru"rri.

Dclis anos nrais tarde, enr i968, Jean-Marie Mayeur exprimirá o rìesmo sentlmen-
to cle estar I'ora de época por ter escrito a biografia do padre Lemire23a: "Ninguém mais
gosta cie biografias. A própria história religiosa, que no entanto sempre teve predileção
por esse gênero, parece tê-lo repudiado [...] O conhecirrento da época é indispensável

230. /1errr. p. I l.
231. Idctn. p. 322.
232. ltlcttr,lt. 15.
23-1. Picne Sorlìn, I4/r¡1¿l¿rt'li-llt¡us.sautt. Anl.rtnd Colin, 1966, p.7.
2i,+. O paclrc Lemire n¿rsceu no Norte cla F'r'ança cni l8-53, dc u¡n¿r l'anríli¿r dc agricr-rltoles. Foi elcito
clcplìtado cm 1893 c reelcito ató su¿r nrortc cni 1928.

102
/\ ßIOGlIAþ'IA, GI'NIiRO IMP{JRO

parâ a compreensão do htlmem. Inversamelìte, no espelho de uma existênci¿r. refletem-


' se os problemas do tempo. Sobretudo quando queremos compreencler ¿ìs correntes cle
, ideias, de mentalidades, zr biografìa pode ser preciosa"235
O envolvimento do biógrafo pode ser passional, como é o c¿rso de Régine per-
noud, que cons¿ìgrou boa parte de su¿t carreira de pesquisaclora a Joan¿i ci'Arc. Régi-
ne não só publicou urna [riografia da Donzela ("Pessozr e sonjente Pessoa. eìs quern
ela é ante as ideologi¿rs sufbcantes, os fanatismos assassinos":3(') corro funclou un-r
Centto Joana d'Arc em Orleãs, eni 1973. Régine Pernoucl cont¿ì colno se viu atraícla
por essa gr:ande 1ìgura de nossa história. Ao sair do colégio, não tinha intenção al-
guma de cultivar os estudos históricos, qr-re até então não a h¿rviam verdacleir¿rmerr-
te entusiasmado. Aproximou-se da literatura e depois. planejando ser bibliotecária.
matriculou-se na École des Chartes, onde descobriu o método cle ieirura clos textos
originais e tomou gosto pela Idade Média. Saiu de lir em 1933, convertida ¿ì hist<iria
e desejosa de comunicar sua paixão ao grande púrblico. Seu prinieiro livro, publicaclo
em 1946231, conhece stlcesso imecliato e encorajer-a a prosseguir no mesmo carnin¡o.
Mas, até então, não sentira nenhum interesse especial por Joana cl'Arc: "O e¡con-
tro com ela foi repentino e fulminante. Tudo coIrìecou, sempre volì me lenlbrar. n¿r
véspera do Natal de 1952"238. Régine era então zelaclora dos Arquivos Nacio¡ais e
recebeu um telefonema do diretor da Revue cle Pctris- Marcel ThiébaLrlt. c1r-re ll-re pe-
dia um artigo sobre o processo de reabilitação da Donzela. Régine pernoud recusou.
pois não se interessava enì nada pela personagetn. Mas Thiébault insistiu e ela lì-
nalmente resolveu compulsar a edição cle Quicherat para encontrar ¿ìrgumentos qLle
fundamentassem sua recusa: "Comecei a folheá-la cle pé, no aito cla escada. E. cligo-
o sem exagero, foi como se uma parte de minha vida terminasse e outra começasse.
com Joana à frente, onde desde então permaneceu para sempre"z3e.

Da descottfiança dos historictclores cont


relaçã.o à cluebra de utn îabu

Em nreados dos anos 1980, o distanciamento clos historiadores eruditos com


respeito zto gênero biográfico era explícito e, ainda em 1989, Marc Fen.o escreve Lrnl

23-5. Jean-Marie Mayeur, Un prêtre tléntocrate. L'abbó Lemirc 1853-1928. C¿tster¡ran, 1968. p.9.
236. Régine Pernoud e Ma.ie-Véronique clin, Jeunne ri 'Arc. F-ayarcl. 19g6, p. 13.
237. Régine Pemoud. [-untière tht Mr¡t,en zîgc, Grasset, 1946.
238. Ré-s¡ine Pernoud, em Régine Pernoud e Jean Tular<l , Jeannc tl'Arc. Napolóon. I-c paradoxa drr ltiop,-
ruph.e, o¡t. cit:., p. 62.
239. Régine Pernorrd, op. cit., p.63.

t03
O DE,SI\FI() BIOGI],Áf IC(). I:SCII.I'VE\] I.JMi\ VIDA

artigo en7 Le McLgctTjna Li.néruire sobre 'A biografìa, ess¿r Desfàvorecid¿t da Histó-
ri,r"l*0. Evoc¿r clois colóquios clue ac¿rbavam de se realizar, um sobre a Revolução
Russa de 1950, clue não mencionou Nicolau ll, e o outl'o, organizado pela Fundação
Naciorial de Ciência Política, sobre o governo de Vichy, onde não se falou de Pét¿rin.
Perguntanclo-se sobre os motivos cle semelhante tabu n¿r história erudita, ele cita a
radicalização clemocrática, clue combate a evocação dos grandes homens, e a ¿rbor-
dagem historicist¿r. que tende a preservar a separação estanque entre os domínios da
carreira pública e da vicla privacla. Ante o interesse pela vida cotidiana, ele se espan-
ta, porém, rie que isso não benelìcie em nada o gênero biográfico.
Toclavia, alguns iristoriadores renomados corno Marc Ferro atravessam o Rubi-
cão no finr dos anos 1980. Seu caso é dos rnais itlpressionantes porque ele pertence à
diretoria d¿r revista AnnaLes clesde 1969, publicação que sempre considelou o gênero
collto apanírgio de plumitivos. Enr sua biografìa de Pétain (1987), Ferro enuûlera as
prevenções qLle teve de superar. Dedicando a obra à memória de Fernand Braudel,
que acabara de morrer, acrescenta:

Por-algunt tenrpo hesitei eul I'alal do pldeto a Fcniand Blaudel, pois era conlo se jÍr ouvisse de
n¡terrão seus sârcas¡.tos sob¡e minha tencl0ncia invetelad¿r ¡rarla a história tradiciollal [...lAdenrais, scntia
ccrtos escrúpnlos, como cli|etor-adjLrntcl cla rcvista Antales, eni aborclar Llrlì tem¿ì tão distanciirdo dos que
essa cscol¡ da "[istória l]ov¿ì" costutna tratar. Aliíts, acusanl-na de ter t'onlpido conr a biogralìa política.
palricuIarnrentc no âmbito cia histór'ia cotlletlporâuenr'r'.

Historiadores da contemporaneidade e da política sem víncuio algum com os


Annct[e.s, como Serge Berstein, tambérn se nlostravam reticentes na mesfiìa época.
Publicanilo uma biogt'¿ìfia clo grancle líder cios radicais-socialistas Édouard Herriot,
Serge Berstein acha necessário precisar logo de início:

MeLr p¡opósito não era escrever Lrma bioglafìa dc Éclouarc'l Herriot. Sem dúvicia, a rlart'açño seria
iutcfcssânte. t1ias ntuitos outros tentarant o emplcendinrento e, por curiosir e conlplexa que seja ù pcl'sona-
liclaclc cle IJerriot, sc¡l alcance Itistórico lne l)arece linritado [...lAs páginas qtrc sc segucrl constitr¡enr un]
crrsaio biográlÌco qr,rc tet'ìta cornp[eendcr sobl'e cìucì sistema de valores, sol)re c¡ue concepções e cotì qttais
relel'ências ele molclou o conjunto cle icieiirs políticas que o ot'ientar¿ìl1l ¿to longo da vida2t:.

anos 1990, os historiadores eruditos, autores de biografias, já não precisam


Nc'rs

se justiiìcar junto a seus pares por ter escolhido esse gênero. que não constittli mais
objeto cie depreciação. Ao contrário, tendenr a aLlmentar-lhe o valor. A encomenda

240. Marc Fe¡ro, "La bioglaphie, cette hanclicapóe de I'histoile", Le Mttgttline Littéraire. abr. 1989
2.il . Vlalc Ferr<t, Pétuirt, Iìayar:d, 1987, p. il.
242. Serge Berstei¡i. Etlouard Herrir¡t oLt Iu républiqt(e en persotu¿c, PFNSP, 1985, pp.9-10.

104
A B]O(iRT,FI I\, GËNERO IMPU Iì,0

de Claude Durand a Pierre Chaunn. na Fayard, de uma biografìa cie Carlos V só se


materiaiizou em 2000, mas não por desdém ao gênero, muito ao cctntrário. Chaunu
,l994:
esclareceu numa conversâ que tivemos ent

No mett entender, o gôncro biogrírfìco é o rnais dil'ícil [...] Tonr¿u'urn hor.ne¡r e tent¿rr i¡scr.i-lq
totaltrente etll stra época serír, sc Deus o pelrnitir, ulll exercício ao qual Lenciono rnc entl.egar. O cnrpre-
cucliurento talvez. callre rrelhor à velhice. pois ó necessírrio ter palrrilharlo ¿r sencla cla vicla l)ara scr ¡11ì
bonr biógrafo:ar.

Ele realizou esse projeto alglrns anos mais tarde. assin¿rnclo o Charle.s Quint
corrt unla colaboradora qlre foi sua alunazaa.
O gênero atrai a tal ponto os historiadores qr.re alguns cleciclern tÌlesmo, par¿ì
cultivá-lo, transpor as sacrossantas fronteiras que separanl os qu¿ìtro períoclos con-
vencionais: idade antiga, nredieval, moclern¿ì e contemporânea. Assim fbi que r,rnt
grande especialista em Espanha moderna como Bartolomé Bennassar publicou unra
biografia do general Franco:

Por qLre unr historiad<lr cuja obra tem sido. pela maior p¿rrte, consagracla à iclaclc "rrroclcrnr". cJucr
sc tratc (o nrais das vez.es) cla liistória da Espanha, clo Meclirerrâneo ou da Ar¡érica espanhola. sc poc a
escrever sobre hist<iria corìternporânea'l Reivinclico esse direito 1...1 A época clo hor¡em que aplesento irc¡ui
foì cluase a rniuha: a diferença é só de unra geração, que basta para eslabelecer o necessíuio dist¿ìnciamento
entre o olhar e o objeto, mas n¿-io para diluil a visibilidacle:r.5.

Essa revalorização da biografia graças aos deslocamentos do olh¿rr cio histoliaclor


qlte ela implica parece bastante significativ¿r no livro sobre Mussolini pubiicaclo por
Pierre Milza em 199924ó. Especialista em Itália contemporânea desde os anos 1960.
ele inscreve seus trabalhos no quadro da renovação da história diplornhtica e busc¿i
construir urn perfil das relações internacionais segundo a concepcão inar.r,quracla por
Pierre Renouvin e retomada por Jean-Baptiste Duroselle. Investiga a ação das "forçers
profundas" na guinada fascista da ltália. Sua primeira obra é consagrada às repre-
sentações da opinião pública francesa sobre o fascismo italiano2aT. Naqr-rele momento.
na França como entre seus colegas transalpinos, "o gênero biográfico não estava em
n1od4"248. Nos anos 1970, ele invoca os aspectos econômicos e sociais, principerlmente

243. Pierre Chaunu. ern Piene Chaunu e François Dossc. L'irr.çtr¿nt éclaté. Et'ttdiens. Aubier'. 1994.p. 192
244. Pierre Chaunn e Michel Escamilla, Charle s Quint, Fayard. 2000.
?45. Bartolomé Bennassar. Franco, Per:r'in. 1995. p. 17.
246. Pierre Milza. Mussoiirri. Fayard. 1999.
24l .PierreMilz-a, L'ltalie.[ascistc devont I'opittiort.fi'artçrti.sa. 1920-]94(). Armancl Colin. 1967.
248. Pieme Milza. Mussolitti, op. crl., p. I.

t05
O DL)S¡\I'IO BIOGRÁTICO. I'SCREVE]?, I.JII4I\ VIDA

as fbrças do grarrde capitalisrno, para tornar inteligível o regime fascista. Se, na dé-
cad¿r de 1980, retorna a análise ¿rmenizando o papel determinante qlre thes atribuíra,
aincla não avalia bem o desernpenho de certo número de atores nraiores, dos quais o
primeiro é Mussolini: "Vale dizer qr,re a personalidade do Duce me parecia dependen-
te cle uma problernátic¿r rrenor e que o nó do problerna se situ¿rva em outra parte"z4e.
Em seguicla a crise dos modelos determinist¿ìs e o desafio representado pela visão do
lènômeno segunclo o biógrafb italianó de Mr¡ssolini, De Felice, convenceram Pierre
Milza a lançar-se a um empreendirnento de ordem biográfìca. De fato, não é possível
entender o "mussolinislno" pela nrera evocação do substrato que lhe deu a possibi-
liclade de existir; cumpre t¿rmbém "aquilatar o peso que possam ter tido as 'coisas
da vid¿t' na conciuta de um indivídr-ro nada invulnerável aos acasos da existência co-
rrrLur-ì"250. Ess¿r valori'zttçã,o da contingência e dos fätores singulares não implica, po-

rétt-t, lt ação cle unt deternrinisn-lo que, ao contrário do precedente, só levaria em conta
fatores psicológicos. Ao termo de sua tarefa, o biógrafo indaga se é preciso imputar a
ìnteligibilidade do f'enômeno unicamente aos traços específìcos de urn Mussolini cuja
violência, autoritarismo e arnbição programaram o ditador que veio a ser. Pierre Milza
constata que vários biógrafbs de Mussolini caíram nessa armadilha, em finr de contas
Llma cert¿ì f-orma de ilusão. De seu lado, ele prefère valorizar os fenômenos de ordem
Qerzrcional, pois "Mussolini partilhava [essas pulsões autoritárias] corn bom número
de representautes de sua geração coul os quais se envolverá em 1914"25r.
No mesmo ano, 1999, o grande especialista em história britânica contemporânea
François Bédarida pr-rblicou urna biograha cle Churchill2s2. Como Pierre Milza, ele ins-
creve seu projeto no quadro de um movimento histoliográfico geral que retoma a inda-
gação do lugar clo ¿rutor na narcha da história. A empresa biográfica é aí apresentada,
tambétn. como pr-riante e âo rnesmo tempo sutil, o que f'az dela um desafio muito longe
de "Lur exercício fãci1"253. Obrä que, p¿ìra os especialistas, coroa uma vida inteira de
pesquisits, a biografia de Churchill procura evitar o escolho da teleologia e colocar, com
justeza. o problerna do lugar dos indivídllos no processo histórico como um todo.
Entre os Íopoi clássicos encontrados nas intenções expressas pelos autores de
biograliars históricas figura a vontade de resgatar a grandeza histórica, trazê-la a lume
evoc¿rndo sua encarnação singular. Quando o especialista em história dos Estados Uni-
dos. Anclré Kaspi, publicou urna biografìa do presidente Franklin Delano Roosevelt,
insistiLr rlo fato cle que, segundo as pesquisas de opinião "tão ao gosto dos america-

249. Itlatt. yt.lll.


250. Idettr. yt. Y.
25 | . ltlent. p. 886.
2,52. Iìr'ançois Bédarida, Clttrcltill, h'ayard, i999
253. ltletrr. 1't. 22.

106
A BtO G I?. t\ I" I A. G LN ER0 I 14 P IJ Il.0

nos, ele é ainda hoje incluído no número clos 'grândes' e quase sempre entrc os 'rnuito
grzìndes"'r5a, logo depois cie Washington e Lincoln, mas antes de Wilson. Qr.ranclo Jean-
Pierre Rioux decidiu recuperal'a fìgura do general De G¿iulle, interrogor-r-se soLrre o que
fez su¿r grundeza na memtlria coletiva dos franceses2s5. Foi também àr
-grandeza. nras
desta vez à do homem da sombra e não nrais ao valor totêmico fr-rlgurante clo general.
que se consagrolt Éric Roussel com sr-ra biogralìa c1e Jean Monnetr5('. Dauclo-o coll'ìo
o pai da Europa moderna, seu biógrafo lembra clue ele conta também ent selÌ ativo ter
participado do esfbrço de guerra franco-britânico durante a Primeira Guerr¿i Mundial.
larnçado a ideia de um¿r Sociedade clas Nações, contribuído para restaur¿ìr as lìnanças
pírblicas da Polônia e da Romênia. e colaborado corn o progr¿lma de reconstnrção da
Europa sr-rgerido por Roosevelt, além cle iniciar o primeiro Plano na França. É a
-grande-
za subterrânea de nossa modernidade fundadora que Ronssel traz ¿\ luz: "Sel-n diploma,
quase sempre sem cargo ofìcìal, ïaz jta rnais de meio sécuio que Jezrn Monnet persegue
o mestrro projeto utópico. tresloucado, m¿rravilhoso: unir os homens e criar entre eles
laços cacla vez m¿ris sólidos, consa-grados por instituições"2s7.
No entanto. o mais das vezes, essa suposta glandeza nãro é rigorosiimente ¿ìv¿ì-
liada numa época esquecida dos méritos passados. e o biógrafo legitìma selr en'ìpreen-
dimento cuidando de fazer justiça ao bi<lgrafardo, vítim¿r cla in_qraticlão. Eis. sem clúvi-
da, unr dos topoi prefericlos pelos biógrztfbs que posarn de aclvogados de seu própricr
projeto e da curiosidade de seus leitores. Qr"ranclo Christian Baechler pr"rbücou. em
2003, uma biografia de Guilherme II, o último inrperaclor alemão, quis fazer justiça
a uma vítima do clesmoronamento da Alemanha ern 1918. A partir de 1919. os bió-
grafos o apresentaram como um alrtocrata sedento de sangr.re que conduziu seu país
à ruína num ato de cegueira à altura de sua natureza de "psicopata". Essa demoniza-
ção qr.rase unânime, de poucas exceções como a curta biografìa pr-rblicada em l919
por Walther Rathenau, segue o ponto cle vista dos testemunhos contemporâneos. que
atribuem a Guilherme a vocação par¿ì o pocler pessoal. O biógralo de hoje deve, pois.
revisitar essa lenda negra para confrontír-la com o que poclemos estabelecel da rela-
ção do imperador com seu círculo, inserindo todos os elementos tarìgíveis no qu¿ì-
dro do sistema político germânico. Ora, esse estudo biogrirfico, segr-rndo Christian
Baechler, "busca matizar os julgarnentos prolèridos contra o homem, sua ¿rtuacão e
suas responsabilidades na catlrstrofe de 1914;1918. Sob o inclivídr-ro superfìcial. vai-
doso, zrrrog¿rnte e egocêntriccl se esconde ulra pelsonaliclacle nr¿iis complexa. cheia

254. André Kaspi. Frarklitt D. Rooset'¿l¡. Fayarcl, 1988. p. 602.


25-5..lean-Pierrc lìioux. Dt: GctuLle. La France rì r'il. Liana Levi.2000
256. Eric Roussel, Jean Monttct. Fayarci. 199(r.
257. Idem. p. 19.

t07
O DI.SAI;IO ßIOGR}íIìICO, ESC]I.I'VER UMA \/1DA

cle contradições e 1ì'agilidades, trágica em muitos sentidos"rss. Não se trata, porém,


de pintar um retrato fantasioso do espantalho legaclo à posteridade e transformá-lo
em santo. O biógrafo esboça um perfìl eivado de contrastes, no qual os méritos são
o mais das vezes auiquilados pelos defeitos, como a mania das novidades, que entre-
tanto não venci¿t sua preguiça natural, ou o humor instável, que o tornava impulsivo
em quaisqtter circunstâncias e o impedia de aprender com a experiência histórica.
Sob a carapaça t'orte e viril do irnperador, o biógrafo clescobre certa propensão à
melancolia e a ull'ìa const¿ìnte debilidade nervosa, a ponto de seu círculo procurar
poupar-lhe a mínima coiltrariedade, o que o fazia viver num mundo de ilusões. Essas
características levatl o biógrafo a contestar a hipótese de um reginre autocrático: 'A
personalidade de Guilherme II inviabiliza um 'regime pessoal' [...] Urn tal regime su-
põe trabalho regular, estudo de documentos (de que ele éincapaz) e também vontade
fìrme, reflexão serena"r5e. Em definitivo, o biógrafb, após acompanhar toda a carreira
de Guilherlre, se sai com urna imagem bem diversa da do belicista que o irnperador
deixou: "Espzinta-nos a vontade de paz de Guilherme II, sobretudo a partir de 1904-
I905. quando o isolarnento da Alemanha se acentua"tt'0. Sem fàzer dele um pacifista,
Christian Baechler procura, corÌro historiador, nrantel'-se distanciado do que considera
um excesso de opróbrio, n¿rscido de uma representação cristalizada no nomento da
quedir e que "lhefaz ao mesmo tempo muita honra e muita injustiça"26r.
Paul Murray Kendall, ao publicar seu Loui,s X1, quis também corrigir uma lenda
negr¿ì cìue se enraizol"t na memória coletiva menos de uma geração após a morte do
rei: "Contava-se que, por ocasião de sua últirna doença, Luís se fartava com o sangue
de recém-nascidos, que assassinâra o irmão e que se deleitava ouvindo os gritos de
suas r'ítimas torturac1as..."2ô2. Cerca de trinta anos mais tarde, Jean Favier retoma o
dossiê LLrís Xl e, elll sua biografìa, terÌta, como historiador', fazerjustiça a toda uma
lenda negr¿ì. que ainda cerc¿ì a personagem, lnas sem transformar o relato em apolo-
gia. Jean F¿rvier consagra, pois, unr capítulo ao estudo da ,,imagem e da lenda', de
Luís Xl para situar o olhar do historiador entre os escritos dos incensadores e dos
detratores. Essa última categoria é, de longe, a mais prolífica porque os primeiros
bajuladores cle Luís XII vão opô-lo fävoravelmente a Luís XI e os numerosos sim-
patizantes de Francisco I vão transformar Luís XI na encarnação da barbárie. Mais
tarde, no século XVIII das Luzes, Luís XI simbolizará as idacles negras do obscuran-
tismo medieval e da tirania anacrônica. Segundo Montesquieu, esse rei pouco mais

2-58.Christian Baechlel', Guillautne tl'Alletnagne, Fayarcl, 2003, p. 463


259. Idetn. p. 46-5.
260. Idctn. p.469.
261. Ident. ibitlen.
2ó2. PaLrl Murlay Kendall, Louis XI , o¡t. t:i:., p. XXV.

108
A I]]OGRAFIA, GENERO IMPUIIO

é que "um tecido de velhacarias miúrdas, sem constânci¿ì e sem objetivo certo". O
romantismo, de Walter Scott e depois de Vítor Hugo. encontra nele a próprìa inragem
da repulsa mais radical. Já Lavisse repisou o aspecto físico clesse rei pgnco anrável.
de fìgura "desgraciosa e frárgil", de rosto "afe¿rdo pol' urn narigão clesmesurad¿rmente
comprido" e de "gestos embaraçados", mas trabalhador rnetó<lico que prefèria a paz
à guerra.Ainda em 1968, Peter Lewis clenunciava seu "amor patológico aos animais"
e seu "imenso talento para suscitar ódios".
Será, pois, preciso esperar Paul Murray Kendall p¿ìra termos um ponto cle vist¿r
mais matizado, que rompe coln a lenda negra e reconhece nesse rei uirn prccursor clir
modernidade política. Jean Favier, clesprezando a lenda, traça o retrato "de unr est¿i-
dista" que evoca um devorador, não de criancinhas, mas dos livros cle história achados
em abundância em sua biblioteca. É o retrato de um homem pragmático, ávido por-ti-
rar lições de sua experiência pessoal e dotado "de uma enorme capacidacle para ouyir.
analisar a situação e reagir"2('3. Homem todo ouvidos, acha-se no centro de inúrmeras
redes que sempre consulta antes de entrar em ação. E taVez a prr-rclência o que mais
catacteriza essa pessoa inventiva, que desconfia dos próprios irnpulsos. Se lhe censu-
raram o ônus excessivo das despesas militares e diplornáticas, o bió-srafb retruca invo-
cando de preferência seu realismo a propósito cla política fiscal. Guerre¿rr é negocierr:
"Falta de escrúpulos, duplicidade, contemporização, eis o arsenal político cle que se
serve LuísXI, sabendo embora qr.re não detém o monopólio desses recursos"?('*. Certo.
acabou preso à teia que ele próprio tecera, principalrnente no começo. mas aprendeu
com isso a não confiar em ninguém e, sem dúrvida, nãro se desmereceu colrìo "ofìci¿rl
da Coroa", papel que tomou em tudo corro crivo de seus atos e.ir,rlgame¡tos.
Um pouco mais tarde Francisco I não chegou a ser tão demonizaclo, mas a pos-
teridade nem por isso o poupou, de sorte que seu biógrafo, Robert J. Knecht, sugere
uma outra imagem de seu reinado265 - desde Henrique IV, "esse Valois se tornou ob-
jeto de uma longa e sutil campanha de difamaçiott266. Transformar¿ì.m-no em seclutor
incapaz de resistir às mulheres e aos desafìos guerreiros, em monarca poLrco zeloso
dos interesses da nação, que subordin¿iva às su¿rs paixões pessoais. Ora, Francisco I f'oi.
em vida, considerado um grande rei tanto na Françtr como no estrangeiro. ¿r ponto
de ficar conhecido como "le grand roy Françoys". Duplarrìente clistanciaclo d¿is teste-
munhas da época e da lenda negativa, o biógraf'o procura avaliar o impacto. a longo
pÍazo, de seu reinado: "Sob esse aspecto, o governo de Francisco I é cle irlportância

263. Jean Favier. Louis XI, Fayard. 20A1, p. 921.


264. Idcnt, p.934.
265. Robert J. Knecht, IJn ¡trince de la Renaissance. François I" cl sotl ro\(t1tme. F-ayarcl. 1998
266. ldem, p. 9.

t09
0 DI:St\l:10 ßl0OllAFICO. fS'C/lrV[/l LINIA VID¡\

capital na mecliclà enl que conheceu mudanç¿ìs fundamentais na estruturr política.


econolr-lia, socieclade. religião e vida cultural na França"2Ó7.
Mais tarcle, Luís XV será obieto de uma lenda que fez dele a imagem cio des-
caramento vigente na Corte: conhecìdo como o Bem-amado no início de seu gover-
no. logo se tornou o Mal-amaclo na rnenróri¿r coletiva. É essa lencl¿i que o historiador
Michel Antoine leva em cont¿l em sua biografìa de Luís XVr6s. Vemos empreendi-
ìrento semelhante de retifìcação cle irnagem ua bio-urafìa de Luís Filipe por GLry An-
tonettir6e. O traço nan'¿rtivo quc' tlais contribuiu para perpetuar a lembrança desse
herói do complomisso surgido durante a Monarquia cle Jr,rlho, após a Revolução de
1830. e cìue permanecerá no poder até a de 1848, deve-se em essência à obra de dois
gmndes escritores frernceses, Alexis cle Tocqueville e Vítol' Hugo. Ora, unt e outro
deixaram clele uma irnagem matizada, nras cia qual a posteridade só conservará os
aspectos negativos. Hr-rgo se aliarh ao regime. o que o induzirii a saud¿rr o advento
de um rei sóbrio, sereno, pacífìco e bom conhecedor de toclas as línguers da Europa.
M¿rs de Hugo só nos lìcarão al,gumas frases sobre o início do regime, pois, legitirnista,
ele se ll-re oporá com sarc¿ìsmo: "1789 parir"r unr rronstro: 1830. unl anão". Quanto a
Tocqr,reville,laz de Luís Filipe o rei clos burgueses, imzrgem que permaneceu colllo
r-rura vul-eata na historiografia ulterior. Ser: biógrafb Guy Antonetti se afasta dessas
cluas inra-eens redutoras pâr¿Ì re¿rvaliar o momento e aquele que o encarnou: "1830 foi
p¿ìra a re¿rleza o que o ug,g,ittrnantettto do Segundo Concílio do Vatic¿rno será para
a lgreja"l7". O rei se ¿rgarra aos "peralvilhos de Corte" e ¿ì "caterva de emigrântes",
seguinclo nas pegadas do triunf¿rlismo e alinrentando forte tenciência a preservar os
f¿rstos cla lepresentação real. Teri¿r sido antes unì monarca de notáveis, e portanto de
um reino ¿rinda essencialmente agrícola, que o representante de uma burguesia comer-
cial. Enfatizando sua herança, Guy Antonetti saúda principalmente sua capacidade de
preservar a paz. O fracasso nada tem que ver com a cegueira que lhe increpam, nras
pura e simplesmente com o fato cle ele ter visto "l830 como a perf-eição insupelávei,
o ponto cle equilíbrio político, o rem¿ìte da história da F'rança"27r.
A herança deixada por Adolphe Thiers será ¿rinda rnais negertiva. E, mesrllo,
a visão bastante pc'jolativa qlre se tenr dele, eln coutlaste com o sentilnento ampla-
mente corlpartilh¿rdo no nlomento de sua morte em l877, cle uma grande perda para
a França. é que constitui o ponto de partida do desejo biográfìco de Pierre Guiral:
"É justamente esse contraste elltre a irnagenr de 1877 e a cle 1986 que nos induziu

26J. Idcttt. p. -5ó3.


26tì. lVlichel Antoine. l-otti.s XV, Fayarct, I989.
2óc). Crry AntoneLti. I-ottis-['ltili¡tpc. Fayar'<.l. I 994
210, Itlctn. p. 943.
27 l. ltl¡:nt. p. 948.

t t0
A BIOGRAl:IA, GENI'RO IIúTURO

a escrever [...] Por que o fìm de sua glória? Por que os óclios atuais?"??]. Há. sern
dúvida. o repúdio dos republicanos progressistas, que veem nele o destruidor cl¿i Co-
muna: e há também a fronda dos bonapartistas. para quenl ele sempre resistiu ¿\ ideia
da restauração irnperial, e a dos monarquistas de tendências confusas, que nãro lhe
perdoam ter contribuído para fundar ar Repúrblica. Todas essas famílias políticas irão
desenhar-lhe um retrato responsável por legados puramente negertivos, embora "d¿r
Restauração [....1 a 1871 [...] ele haja sido representante de todos"rT:r.
Podemos mesilìo remontar ao primeiro capetíngio, com seLr biógrafb Yves Sas-
sier, para avaliar a que ponto o traço deixado à posteridade sofreu com os perczrlços
ulteriores a um reinado2Tt. Efetivamente, o homem que subiu em 987 ¿ìo trono cla Fran-
ça, membro da que será a última dinastia francesa, teria adc¡uirido a má repr-rtação cie
seu século, desse Ano Mil por muito tempo considerado um período particularmente
sombrio na história da cristandade ocidental. Alérn disso. tarclou muito p¿ì.ra qlre solr-
béssemos alguma coisa sobre esse rei cle eras obscuras. pois a única lante^ Richer de
SainçRérni, desapareceu logo depois da morte do monarca e s<'l reaparecelr llo sécul<>
XIX. Um segundo motivo contribui, no século XII, para expelir Hugo cla historiogrzrfìa
graças ao tema do retorno clo reino de França ¿ìs nrãos dos herdeiros de Carlos Ma_{no:
"Hugo Capeto deixou então. ûìesmo pelo lado negativo, de peltencer ¿ì hist(rria"r75.
O Talleyrancl de Emmanuel de Waresqr-riel também encontra sua fonte no clesejo
de fazer justiça a um homem que sempre foi clifamado. vilipenclìado, desprezador?6.
Sua biografia procura combater a lenda romântica. Para essa lenda. a persona-qem qlre
sobreviveu a todos os regimes era Llfir bispo corrr-rpto, ulr cliplornata seur visão e um
ministro sem escrúpulos: "Os r:omânticos, dominando seu século. janais lhe perdoa-
ram ter cortejado a democracia com meias de seda e peruca empoada, orgulhoso de
sua estirpe [...] Quiseramfazer dele. parzr a posteridade. um cadáver putrefato"]7?. A
essa visão severa dos pósteros, o biógraf'o opõe o fato de Talleyrand ter siclo um ho-
mem do século XVIII. Nasciclo en 1754. já tenr 3-5 anos em 1789. não poclendo por
isso ser julgado segundo os critérios de uma geração ulterior, que não fbi a sua e não
cultivava seus valores. Essa persorlagern enigrlática.jár inspirou mais de uma centena
de bio-erafias. Waresquiel de modo algum tem a intençãro de elalrorar Llma lencla dou-
rada em oposição à lenda negra: procura apenas entendel até oncie o imobilisrno de
Talleyrand foi para ele uma arnradura contra os peri-eos da época. Daí ressalt¿ì Lrma

272. Pierrc Guiral. Adol¡thc Thier.s. F'ayard, 1986, p. 8.


2J3. klcnt, p.540.
274. Yves Sassier, Hugltes Ca¡tet, Fayard, 1987.
275. Ident. p. 19.
27(r. Emrnanuel de Waresquiel, T'allctrattd. Lc prirtcc intntoltilt,, Fayarcl. 2003
217. Idem, p. 9.

ltl
O DIiSAFIO lJIOGRÁI.ICO. t'SCREVER LIMA VIDA

person¿ìgem visceralmente {ìel a si mesma para alérn da diversidade de compromissos


cour regitnes contraditórios. Além da constância da identidade da personagem, que
ele resgata. Waresquiel integra a seu campo de estudo a história das representações
delbrlnadas da figura. que participanr, inciependentemente cle seu grau de veracidade
oLr f¿rlsidade, da imagem de Talleyrand: "Ele não existiria a não ser de modo imper-
fèito caso não se mesclassem sem cessar o relato cle sua vida, por um lado, e o da
forrnação e desenvolvimento de suas imagens, pot outro"278.
Entl'e todas ess¿ts tentativas de fazer justiça, o empreendimento biográflco de
Bernard Quilliet constitui, de certo r.nodo, uma exceção à regra. Na biografìa de Luís
XII, ele enfatiza o caráter basicamente não heróico desse rei: "Personalidade medío-
cre quando senhor feudal, embora fosse o senhor f'eudal rnais influente do reino, Luís
XIi, r-¡ma vez rei, cclntinuará senhor feudal e personalidade medíocre"27e. O caráter
reservaclo do monarca valeu-lhe, entret¿luto, o
título lisonjeiro de "Pai do Povo" em
i506 e. se ele é pouco conhecido, teve corìl Voltaire seu momento de glória, pois o
nlestre cle Ferney não poupou elogios a esse anti-herói.
Combater as injustiças perpetradas pelo tempo, mas também distanciar-se das
lendas douradas a lìrn cle irnpor um ponto de vista mais imparciaì o do historiador
- -,
parece, pois, representar beln uma das motivações maiores dos biógrafbs. Notamos
essa intenção no especialista da era napoleônica, Jean Tulard, que consagfou uma
biografia a Murat2s0. EIe se prencle a uma dupla lenda onde esse herói aparece como
o responsável pela últirna perfídia que teria arrast¿rdo Napoleão à queda e ao exílio
em Santa Helen¿r: "Ecoando esse julgamento, a maior parte das biografias de Murat
lhe foram fr¿rncamente hostis"28ì. Pintam-nos, nesse caso, urïìa figura emplumada,
incapaz de ver além da ponta de seu sabre. Contrariamente a tal visão, o período
ronrântico lhe foi muito favorável e contribuiu para o surgimento de uma lenda dou-
rada de qr"re Bzrlzac, Stendhal e Chateaubriand irão propagar a imzrgem. O ponto de
vista de Tulard pretende "despojar Murat de suas duas lenclas"28z.
O filr de um reinado e suas circunstâncias é o mais das vezes, evidentemente,
o momento de cristalizaçãro de uma imagem que perdurará por muito tempo, mas
clue os historìadol'es poclerão revisitar nrais tarde com base eln novas inflexões. Su-
cecleu isso quando Hélène Carrère d'Encausse publicou a biografia do homem expul-
so do trono pela Revolução Russa de 1917, o últirno tsar, Nicolau II2s:r. Em que pese

278. ldern. p. 21 .

279. Bernarcl QLriiliet, Lr¡uis XII, Fayar.cl, I986, p.4-54.


280. Je¿rn Tularcl, MLtrctt, Fayard, 1999.
281. ldent, p. 387.
282. Ide¡tt. ibitlem.
283. Hélène Calròre D'llncatrssc. Nicctlu.¡ II, la trttn,sition inferrontpur:. Fayarcl, 1996.

t12
A RIOGII.AtIIA. GI'NERO IA4PUIì0

a in'ìageln de unr imperador grotesco. incapaz cle compreencler os desafìos cle seu
século, cheio de veleidades, submisso às piores inflr-rências e senl vontacle próprier.
sr'ra biografia nos apresent¿ì o último dos Romanov cou'ìo aquele que tentoll concluzir
a Rússia ¿ì niodernidade, respeitando embora as traclições do país. Seu fracasso se
deve. pois, à tensão levada conscienterÌ-ìente ao extremo. a ponto cle ser vivenciada
como um "verdadeilo drama íntimo"2Sa. O projeto biográfico cle Carrère cl'E¡c¿russe
se alicerça na ideia de fazet-v¿rler a perspectiv¿ì I'ristórica ante as inragens clue zrté
então haviam pr:evalecido. Os bolchevistas, principalmente, pintaram cle Nicolau II
o retrato de um sanguinário, imagem que se irnpôs até 1989: "T¿inta malevolêllci¿r
exige uma reavaliação mais equilibrada do tsar e daquilo que ele tentou f1zcr."rs5.
Sem, contudo. procurar desmentir essa imagem pejorativa e sair-se conl a apologia
de uma hagiografia, a autora vê no in-iperador um anti-Peciro. o Grande e unr anti-
Lênin por slla ânsia de combinar modernidade europei¿ì com sucesso pela via das
reform¿rs. Mas os obstáculos a superar e a eclosão da guerra liqr-riclarão urri pro.jeto
que, entretanto, estava animado por uñìa vontade de ferro.
Entre os outros topoi tnats utilizados peios biógrafos a fìln cie jr,rstifìcar seLt e¡1-
prendimento, ellcontramos coll-ì igual freqr.rência o zrrgumento arquivístico, segunclo o
qual a descoberta de documentos até então inacessíveis permite fazer uma nova leitu-
ra ou corrigir as antigas. O bióglafo se empenha. pois. em reabrir o clossiê para neìe
incluil as informacões novas das quais se acha asora cle posse. Quanclo Pierre Milza
escreveu a biografia de Mussolini publicada em l999, evocoLl sua consulta cle centen¿rs
de fìchas dos arquivos "secretos" do Duce. que vasculhou de altcl ¿r baixo. De ser-r lado.
Bartolorné Bennassar lamenta que se tenha demol'aclo tanto a conhecer bem o gover-
no do Caudilho, fato devido à difìculdacle de obter, até a morte de Franco em 1975.
uma docunrentação suficiente. A partir dessa data tudo mucl¿r: as línguas se soitzrm, os
testemunhos se multiplicarn sob diversas formas e sllr-qem relatos cle vicla, nlemórias,
crônicas, diários cuja soma oferece ao historiador un'ìa seara única. Soa então a hora clo
historiador, ainda que su¿ì colheita permanec¿ì incompleta. pois os arcluivos pessoais cle
Franco são propriedade mantida intransigentemente ao abrigo cle olhares incliscretos por
uma fundação privada. A biografia clo padre Lemire por Jean-Marie Mayeur encontr¿t
também suzts condições de possibilidade na "descoberta cle um ¿ìcervo inrportante cle
arquivos pessoais fquel convidava ao empreenclilnerlto"2s(,.
Autor de uma biografia de Poincaré. o historiador François Roth luta contra o
empobrecimento d¿r nremória que dilui os traços marc¿ìntes cla persona_qem: e. se ele

284. Iclem,p. 15,


285. Iclent. p.473.
286. .lean-Marie Mayeur, un prête d¿t1locrole. L'abbë Letnire 1853-lg2g. o¡t. t:it.. p.9

ll.l
O DI;SA1;IO B]OGII,AFICO. ESCII,EVEI], UMA \/IDI\

pode colabor¿ìr para restituir as linhas gerais clessa figura política, é sobretudo "graças
à ¿rbertura dos arquivos franceses e estrangeiros"2sT. Há algo aí qr,re escapou aos con-
temporânecls. m¿rs também aos primeiros biógralos. Doravante, o bióglafo pode dispor
das anotações diárias de Raymond Poincaré, que esclatecem o leitor sobre seus senti-
nlentos, hesitações e clecisões. É. pois, ern busca clo "verdacleiro Raymond Poincaré"
que o biógrafo palte, ignorando a lerlda negra do "Poincaré-ou seja-a-guerra" e a lenda
dour¿icia do "s¿ilvador do franco". Quanto a Pierre Broué, classifica o momento em que
escreveu a biografìa de Tr-otski con.ìo propício a urn melhor acesso aos arquivos, pois
¿rssirn lhe foi possível ïazer a pesquisa sob boas condições: "Pude consultar os dossiês
dos etlquivos de secretari¿rs do Interior - na França e no México -, vários arquivos
partìclrlares e solrretudo os papéis do próprio Trotski"28s.
Zeloso de preservar o outro cia fìnitude da existência, de arrancá-lo à extinção
e ¿ro olvido, o biógraf'o estabelece uur vínculo privilegiado com a morte que pode ir
a extremos. conlo é o caso de Michelet: ele concebeu a França como uma pessoa à
quai consagrou toda a sua vida na tent¿ìtiva de recuperar-lhe os traços, consumindo-se
nesse contato nunl transporte rornântico totalmente absorvente. A relação biográfìca
conserva sempre certa ambivalência e o biógrafo surge ao mesmo tempo como em-
balsam¿rdor potencial e coveiro. Apanlrados entre o risco da dissolução do biógrafo
em cont¿ìto com o biografado e a defesa de sua irredutibilidade, muitos procuram
ameniz¿rr essa relação recorrenclo ao "ele"; o biógraf'o, porém, "deve arrostar o 'tu,
ti' conflituoso e se decidir pelo 'eu, mim"'2Se. Aqui, o biógrafo se aproxima de um
dos expedientes essenciais que funclaram o gênero histórico, desse histor tido por
Hel'ódoto como instrumento destinado a retardar, na escLita, o desaparecimento dos
tlaços, da atividade dos homens. A pesquisa do Pai da História sobre as guerras per-
s¿rs vis¿t a evit¿rr a morte socializando-a. A bioglafìa, corlo relato de vida, conserva

essa relação privilegiada com a morte, e ainda com maior intensidade. Pierre Chaunu
enfatiza bem essa relação num diálogo que tivemos:

O crnpreendirrento [lriogr'áfìco] talvez convenha rnelhor'¿ì velhice, pois é necessár'io ter ¡rercorrido o
carllittho da vida para scr unl born trióglalb. E, isso sc¡¡ onritir o quc nos ¡rarece bastante oportullo quando
tcrllorì sctcnta ¿lnos: a maior paltc dos biografados .iri nrolreu. Eles podent, de algr-rnr modo, nos ensinal ri
passar clesla pala nrell-ror' [...]21"'.

2lÌ7. Irlançois Iì.oth. /lat,lr¿.lttl Pr¡incaré, Fayalcl, 2000. p. 7.


288. Pierle Broué, 7i'¿r¡,çtt,, op. t:it., p. 15.
289. Danicl Maclclénat, Ltt ltìogru¡thie, o¡t. cir., ¡t.92.
290. Pierre ChaLrnu, em Pien'e Chaunu e lrlançois Dosse, L'i¡rs¡ant ér:lttté, o¡t. cit.,p. 192.

1t4
A BIOGRAFI¡\, Gi;NIIRO IMPTJRO

Enîre ,jornal.isnto e h.istóri,a,; o "c(tso,' Lar:or,ttt.tre

Gênero impuro. a biografìa pode tambérn se situar no ponto cle interseccão entre
o ofício do jornalist¿ì e o clo historiaclor. Há uffì c¿rso fanroso por ess¿ì clupla icienti-
dacle. o de Jean l-acouture. Podemos seguir com interesse seu percurso.
as grancles
mutações de su¿r vivência profìssional e as tensões próprias ao caráter híbriclo
cle um¿r
escrita biográfìca encravad¿r entrejornalisnto e história. Jornalista no conleçìo.
Jean
Lacouture foi, depois, agaloado como historiaclor por seus pares e ho¡e se afìrnra
co¡1o
um profissional da biogralia2er. Apresentando-se conlo tal, encarna a reclenção
do gê-
nero. Lacouture atingiu, nesse domínio. a excelência. Afora as quralidades pessonis.
a capacidade de empatia, o estilo propício ¿ì evocaçhc'r de pers<lnergens e nnra curio-
sid¿rcle que o torna capaz de acompanhar os biografzrdos nos nlínimos
cietalhes. sua
dLrpla adesão zìs regras específìcas do mundo jornalístico e às exigências <le
respeit<r
à verdade do mundo historiográfico faz da obra de Jean Lacolìture um exenrplo cla
riqueza potencial do gênero biogreifìco, que ele. sem dúvicla, elevolr ¿ìs culminânci¿rs.
Tem em seu ativo nada menos que qr,rinze bìografias, todais de alto nível e ¿rlgumas
de peso. cor1lo a trilogia consagrzrda ao general De GaLrile.
Lacouture sente verdacleiro fascínio pelos homens c1e zrção a quem errprest¿r
sua pena para fazê-ios reviver: "Donre colìr sells heróis, perm¿ì.nece a seu laclo. se-
,qLle-os, casa-se conl eles":nt. Essa capaciclacle, levacla acl paroxisrno. lanca suas raízes
sem clúvida alguma na culpa qlre o rói desde a Segr-rncla Guerr¿i MLrnclial. Nasciclo en-l
1921 em Bordéus, Jean Lacouture tenr seus vinte auos uo coûìeco clo conflito e seus
pais sejuntaram imediatamente ao generarl De GaLrlle. No n'ionrento enl que a situa-
ção se agrava, em 1942, a mãe esper¿ì enr segredo qr-re ele entre para a Resistôncial
lllas o filho a desaponta e prel'ere pôr-se a salvo no c¿ì.lnpo. Só mais tarcle (i944) se
torna urn rtmquis. Jamais se perdclará essa hesit¿tção e a decepçero que causolr ài ¡rãe:
"Escrevi-lhe (à rninha mãe) uma longa carta após a gLlerra, un-ia vercl¿rdeira conlìs-
são. Ao contar-vos isso, cubro-lne de urna espécie de suor cle vergonha. um protesto
íntimo contra ¿ì personagem que fni":er. Lacouture soutre transformar a culpa el¡ c¿r-
pacidade de engrandecer os ¿rtos de seus heróis. Acluilo c¡ue ele não pôcle ser^ r,iveu
por procuração, tornando-se o araì"ìto da glória alheia.
No final da guerra, Lacouture, após participar cla Iibertação cle algumas cicla-
cles do Sudoeste com a 2" DB, deseia persever¿ìr num engajamento ciue lhe ó ai¡da

291 . .lean Lacouture , Pro.fe.ssion biographe . Cr¡tn,er.sa.tiott.s ut,ec Clotttle Kie.jrnan.l-lachcttc. 2003.
292- Pierre Nora. citaclo por Sylvie Crossrnan, ./can Lar:outttrc. [,rt ltiogrct¡tltir: rltt bio,qraphe. Ballancl
t993. p.273.
293. Jean Lacoutule, ProfÞ.s,tiott biographe. o¡t. cit.. p. 33.

It5
O DESAI:]O BIOGI].ÁFICO. ESCREVER LIMA VIDA

mais por ter sido tardio. Decide seguir os passos do general Leclerc, nomeado
c¿ì.ro
comandante supremo na Indochirìa: "O que, sobretudo, motivou minha decisão foi o
fäscínio que exercia em mim o general Leclerc. O sabor do 'herói""eo. Essa tendência
¿r fìcal sob o domínio de figuras heróicas foi reativada pela passividade em tempo de

guerr¿ì que ele nunca se perdoou. Lacouture exprime coll lucidez e franqueza esse
deslocamento de subjetividade do biógrafo, que a seu ver implica o ato biográfico:

Talvez- minhas biogralìas sejam apenas autobiografias de substituição. unr .iogo de papéis camuflados

[...] Bom corrbatente da Resistência, eu decerto não teria jamais pensado enl escrever uma vida do general De
Caulle [...] Alintcntar, na carência, o desejo de um eu maior. Descrever, honrar os melhores, os m¿ris eminentes
1...1 nós ¿ìu1¿lulos os her(tis":es.

Foi no Vietnã que iniciou sua carreira de jornalista, editando um periódico


destinado à tropa, Caruvelle, e incentivando outro que militava em favor da paz,
Pttri,s-Snt'gon. Essa atividade o pôs em contato corrì os principais responsáveis pela
situação. Assim foi que assistiu à assinatura dos acordos entre o Vietnã de Ho Chi
Minh e a União Francesa, em 6 de março de 1946. Estava então no âmago dos acon-
tecimentos: 'A histólia me conclama, as personagens me fascinurnrr2e(r. Entretanto, a
política de canhoneio praticada por Thierry d'Argenlieu, em dezembro de 1946, logo
torna caduco o acordo assinado pelo general Leclerc. Pouco entusiasmado pela pers-
pectiva de participar da guerra, Lacouture passa a colaboral'coln seu amigo Georges
Buis em Rabat, no serviço de imprensa do residente-geral do governo francês. Sua
postura ¿ìnticolonialista o torna indesejável e ele tem de deixar o Marrocos em 1949,
entrando para o jornal Contbat e depois para o Mottde. Em 1953, ei-lo que parte de
novo da França para representar a Agência Parisiense de Informação no Cairo. Nesse
clima dos anos 1950, o vento da história sopra forte no rumo de um movimento geral
de descolonizaçáo. A conferência de Bandoeng, em 1955, vê desfilar os novos líderes
que irão cristalizar âs esperanças de urn Terceiro Mundo nascente, como alternativa
ao choque frontal entre os dois Blocos. Jean Lacouture está nos postos avançados a
fim de observar essa eclosão, pois se acha na capital egípcia e, entrementes, tem vá-
rios encontros com Nasser: 'Admirei-o e sempre pensei que ele queria devolver ao
Egito urn papel internacional"2eT.
É dessa experiência interna de descolonizaçãro que vai brotar a primeira obra
biográfrca de Lacouture, colll os cinco retratos de líderes do Terceiro Mundo: Ho

294. Idetn. p.35.


295. Itlem, p.36.
296. Idcm. p. 52.
297. lrlenr, ¡t. 68.

ltó
A BIOGRAFIA, GtìNERO IMPI]RO

chi Minh, Bourguiba, Ferhat Abbas, Maomé v e sékou Touré2e8. o rivro


aparece
em 1961, em plena conferência de Évian, que irá pôr termo ao conflito
argelino. La-
couture conviveu com todos esses líderes. Encarregado de acompanhar
De Gaulle,
em 1960, numa via-Qem à África negra, Lacouture ficou bastante impressionado
co¡n
a personalidade de Sékou Touré, a ponto de seu confrade do Fignro
chamá-lo cle
"Lacou-Touré". Ele já tivera ocasião de conhecer bem Ho
Chi Bourgr_riba e Minh,
Ferhat Abbas: "Cinq hontmes el la France é o primeiro passo enr
minha carreira cje
biógrafo"2eo. Dos cinco retratos surgirá a primeira biografia com
a publicacão, em
1967, de seu Hó Chi Minlf)o. Essa primeira biografia, à moda
de retrato, é o prolon-
gamento dìreto de sua atividade jornalística, como o será
também, um pouco mais
tarde, a obra sobre Nasser3o,.
Mas, ao mesmo tempo, Lacouture procura superar o imediatisrno próprio
à ati-
vidade jornalística e mergulha num processo de aprofundanlento:
viaja para Harvard
em 1966, a fim de preparar uma tese de sociologia sobre a personalizaçã.o
do pocler,
que será publicada em 1969302. Seus retratos, de grande densidade
teórica, são o meio
de dialetizar as relações entre subdesenvolvimento econômico e supercompensação
política. Ele descreve esse fenômeno fazendo uma verdadeira tipologia clos
líderes.
Lacouture opta pela densidade temporal e pela tendência à irnplicação total
cle seu
próprio "eu" no conhecimento do outro. Afasta-se, assim, do horizonte jornalístico,
que responde a uma interpelação cotidiana e exterior ao eu, e escolhe
temas nrais
íntimos, mais de acordo com sua sensibilidade pessoal.
É a certidão de nascimento de um novo tipo de biografia, distante do mero re-
trato e exaustiva; não mais "insistência na imagem e sim 'biografìas', 'atos
de amor'
pol homens que me apaixonam ou me são caros',303. são, pois, livros fortemente
estruturados, que respondem aos cânones clisciplinares da história com um
vasto
aparato de notas, a indicação exata das fontes e o registro dos arquivos cons¡ltados.
Dessa vez, é' o desejo interior que o domina e se transforma em alavanca cla
escrita.
A escolha de Lacoutttre incidiu prirneiro em François Mauriac, mas o agente lite-
rário inglês que procurou dissuadiu-o e mostrou-se bastante favorável a seu pro.jeto
de escrever uma biografia de Malraux. A obra apareceu em 1913 e ganhou o prêmio
Aujourd'hui30o. Esse sucesso transformou o livro em modelo de suas biografìas
ul-

298. Jean Lacouture, Cinr¡ hontntc.r et la France, Le Seuil. 1961.


299. Iean Lacouture, Prc¡fe,ssion bbgraplrc, op. t.ir.. p. gl .

300. Jean Lacouture, Hô Chi MÌnh,L.e Seuil, 1967.


301. Jean Lacouture, Nasser, Le Seuil, 1971.
302' Je¿ur Lacouture, Quarre honuncs et leur pettple, sur-pouvoi.r et sctus-dét,elope,tlenÍile Seuil. 1969
303. Jean Lacouture. Profession biographe, op. cit.. p. gl.
304' Jean Lacouture, André Malrar.Ã, une t,ie cran.ç Ie siècle , Le Seuil. 1973.

il7
o DltsAF10 ßt0GItÁFIC:O. tisC/ì¿'y¿-/t r.Jivti\ \trDA

teriores: aiasta-se tanto cla ¿rtividade.iornalísticzr que Lacouture pLrblicou, em l974,


uma espécie de nremória-balanço dess¿r prirneira époczi3Os.
Desse nìolnento data. com efèito, a conversão clefinitiva de LacoutureaostattL.t
cle biógrafo prolìssional. autor antes de tudo, mas t¿imbérl editor ness¿t irrea. A par-
til'de ele patrocina na Seuil "La Traversée du Siècle". coleção cujo objetivo é
197-5.
evocal' os glancies momentos do século a partir de alguns atores ou testemunhas im-
pottantes: "É o séculcl visto através dos homencl"306. As primeiras publicações foram
cotrsagradas a Alexandre Minkowski. Georges Buis e Haroun Ta'¿ieff . Sua segundzi
prefèr'ência é o Iíder soci¿tlista Léon Blunli07. Suas ambições de correlação socioló-
gicatfìrrarr abandonadas em proveito de uma postura cada vez meris explicitamente
histórical no plefítcio, "o jornalista J. Lacourture não existe ln¿ris e aqr-ri é quase um
hìstonador qlle se apresenta"3t'8. Na pírgìna cie agraciecimentos, torna públìc¿r sua clívi-
cla pzrra coln os histori¿idores Madeleine Rebérioux, Jacques Julliarcl, Georges Haiupt,
René Girault, Michei Winock e Pierre Nora.
Essa obra o consa-qroll entre os historiadores. Jacques Le GofT confiou-lhe a reda-

ção de um texto sobre "L histoire imnédiate" no volume que editou sobre a Nouvelle
Histoire:ìOe. Ess¿r consagração é t¿tuto mais espetacularr quanto, em l978, como vimos,
a biografìa uão estava em odor de santidade junto aos historiadores universitários e
rnuitcr menos na escol¿r dos Annale,s. De resto, os vínculos entre jomalismo e história
eram vistos com indisfarçírvel suspeita. Lacouture tinha, pois, seus motivos para per-
111¿ìllecerà tnärgetn das orientações historiogr'áfìcas, mas ainda assim se impôs pelo
taìento pessclal; e sLl¿ts pub[caçoes se tornafAm um ponto incontornável, que os his-
toliadores cla vida contetnporâne¿r não podem mais ignorar. Ness¿r dem¿rnda em tàvor
d¿r história irnedi¿ita, L¿rcouture reivindica a posteridade de um dos pais da história,
invocando Tr-rcídides corno precursor corn sua Guerra do PeLo¡tor?¿Jo, que se inscreve
num "moclelo de irnediaticidade hìstóric¿r"irt'. Alénr disso, é a crônica das guerras que
cotlstitlri, segundo Lacouture, o modelo de uma história in-rediata expelida do discurso
histórico em norìe do plimado da longa duração. Uma outra particularidade do his-
toriaclor clo imediato é ignoral a conciusão dos acontecimentos que relatzr. Ora, como
<lbserv¿i Lacouture, essa ornissão pode se transforrnar erì vantagem porque a opacidzide
clo 1'l-tturo permite ronlper com ulï¿r certa fornta de teleologia e causalismo às avessas

30-5. Jean L¿rcoutulc. (Jrt .tung tl'ettc'rc, Stock-Le Seuil. 1974.


30ó. S¡rlvic Clossnran. .lcatr Lecouture. Ltt ltiouro¡tltie tlu biographe, o¡t. <:it.,p.27B.
307. Jca¡ Lacouture, l,ór¡n ßlunt. Le Seuil, t977.
30[3. I]rigitte Gaïti, "Jean L¿rcouture biographe", Politi.r.21 , 1994, p.77.
309. Jean l-¿'Lcottture . "L'histoire imrlócliatc", cnr J:icqucs Le Cof'f- (rJir.), Ltt Nout,elle Hi,stoire. Retz, 1978.
pp.270-293.
310. Irtent, p.21?..

I t8
A BIOGRAÍ II\, GÊNERO IMPTJRO

qlìe retira aos vencedores a fbrça poterrcial. Esse artigo-rnzinifesto


ternrina com ¿ì rea-
proximação, em curso. do jornalista e do historiaclor nlu-na paixão
unìtária de exigê¡cia
cle inteligibilidade que obriga os dois processos de conhecimento,
não a se confunclir.
mas a se intercambiar: 'A imprensa e os pesquisaclores 'imediatistas'
esc¿ìr-rc¿ìrarau-ì
as portas dos arquivos' Os historiadores sabem considerar o presente
e aplicar às su¿rs
convulsões o rigor profìssional":1rr. Lacouture insistirá em mostrar a
fecundiclacle cle
um procedimento de pesqr.risa que recolhe os testemunhos orais cruzanclç-os
corn as
fontes escritas, mesclando a relação do jornalista com a instantaneidade e
o esfbrço
cle objetivação do historiador. Ser-r espaço de prospeccão. sua incla,gzrção
d6 qure se.ja
a grandeza política são marcados por uma incleterminação fundamental,
fonte cle un1
enigma difícil de resolver. Sua escolha clos biografados leva em conta as rensões
in-
ternas que os tornam problemáticos. difíceis de classificar e inserir nesta
ou ¡aquela
conexão. A ambivalência se prolonga numa indistinção epistenroló-eica que
caracteriz¿r
a própria escrita, muito apropriada ao objeto.
Já consagrado como biógrafo, Lacouture se volta para sell primeiro
desejo. fàzer
reviver uma fìgttra familiar da infância, aquele que chamará cie seu "sarlto paclroeiro',
e sua "estrela do Pastor": François Mauriac3lt. Por esse livrcl, recetre primeiro
o prêmio
de Biografìa da Academia Goncourt. A escolha the é tão cara qlre ciirh a unr jornalistn
do Sud-Ott¿sr: "Eis o homem que eu gostaria cle ser" o que situa o biogralàclo
- numa
posição de proximidade tal que as fronteiras entre autobiografia e biografia
tenclem a
esfumar-se. Mais que para outr¿ìs aventllras, podernos acatar, a propósito
clest¿r, o que
diz dele seu editor na Seuil, Paul Flamand: 'As biografias que Lacouture escr.eveu per-
tencem à sua própria" e, ainda, seu amigo e colega no Moncle, Jacques Nobécourt,
ao
falar de "romance familiar" e "autobiografia sonhado"3r3. Ele reencontl-a. com
Mauriac.
seu meio bordeìês de burguesia honesta, culta e católica: "De algum
rnodo,.juntermente
com Mauriac' foi conr meu povo que tratei"3ra. O que o seduz em Mauriac
é, cle resto.
aquilo que pelcebe em todos os selrs personagens: caráter dúbio, contraclitório. que
sus-
cita reações sempre diferentes diante do inéclito. Ao mesmo tempo fortemente enraizacio
em seu tneio, com o qual não romperá jamais, e distanciaclo dele, foi indLrziclo a
tomar
posições não conformistas, como será o caso do dossiê cla descolon ização
ar_gelina. enr
que se colocou em total contradição com seus pares icleológicos. Essa personagerl
dúr-
plice, de percllrso não determinado, tem tLlclo para seduzjr o amante da complexiclacle
humana que é Lacouture: 'Aos olhos clo bió-qrafo, Mauriac é um tema magnífico porque

311. Ident, p.292.


312. Jean Lacouture, Frcutçois Mattrir¿c, Le Seuil, 19g0.
313' Paul Flamand e Jacques Nobécourt. citaclos por Sylvie Cross¡¡an, .lean Lctcot.tlttre.
La biogra¡thic ¿tr
biograplze, o¡t. cit., p.274.
314. Jean Lacouture, Profession hiogrctphc, op. cir., p. l lg.

il9
O DESAI:IO BIOGII,/iFICO. ESCIIEVIìR IJMI\ \IIDA

colr ele est¿ul1os sempre no sir-ìuoso, porqlre nenhuma de suas escolhas é óbvia"3rs. O
enrpenho tresloncaclo clo biógrafb enl resgatar o tormento do biografado não deve ter
sic¡l ul-l-l¿t ¿ìventura senr riscos. Deve ter siclo perigosa e sobretudo, cottlcl ele próprio
cont'essa, "o livro rnais passional c¡-re jár escrevi"'ìrÓ'

A outra biografia cle adesão e empenho sem reservas é a de Pierre Mendès Fran-
cer'7: "Se eu tivesse de escrever apenas duas biogralìas na vida. seriam as de Mauriac
e Menclès"3't. Ante tamanha adnriração pelo hornerrl e sua política, Lacouture nega,
o acus¿ìr1l de não tel sitlo suficierìtenente crítico, ter feito uma hagio-
pel.¿ìnte os que
gralia. Reconhece, entret¿ìnto, a eviclência cle uma Lriografìa muito subjetiva, cqo parti
pris é explicitamente ¿rssumido. Enc<lntra em Mendès ¿ì n'ìeslrì¿ì ambivalência humana,
clesta f'eit¿i no plano político. Menclès é um desarvorado radical entre os socialistas
oLì u¡t socialist¿t entre os l'adicais? É o representante da nova cultura especializada a
serviço clos interesses republicanos ou o contestador de 68 da reunião de Charléty'l
Homent clo pocler, só o exerceu por sete meses. Pelo restante da carreira, perlnanecerát
o político clos paradoxos.
A essas biografias clo clesejojuntam-se as que Lacouture qualifica de biografias
de encomend¿r. Esse terceiro tipo de escrita fàz surgir o monulnento que é a biografia
do general De Gar-rlle, uma trilogia de 2400 páginas publicada entre 1983 e 19863re.
L¿rcouture escrevera jái urn curto ensaio biográfico sobre De Gaulle ern 1965, que lhe
valer¿r un-izr tr'liacla do general: "Receìo", disse ele a Mauriac, "que o teu M. Lacouture
não haja captado ¿r verciadeir-a dirnensão da personagem"i2O. Seu editor, Paul Flamand,
voltgu a pressionar Lacouture dez anos após a morte de De Gaulle, em 1980, ponde-
ranclo-Ìhe que ele não podia clar-se o luxo de fugir a essa tarefa. Tocou-lhe no ponto
fraco: nosso biógraf'o nacional lançou-se de corpo e alln¿r à aventura. Mas o esf'orço
exigido 1bi tal que Lacouture mergulhou numa depressão profunda. Subiu alto demais
e percleu o fôlego. Confìdenciou a uma amiga: "De Gaulle me gerou!" E uma de suas
sobrinli¿rs. psicóioga e sutil analista, Annie-Marie Duchesne, saiu-se com esta frase his-
tóric¿i: "De Ga¡lle é a nrãe dele, senr dúvida nenhuma! Foi ela quem, por primeiro, com
um or:gulho e um ímpeto exemplares, revelou-se etn 1940. no lnomento da charnada do
l8 cie junho, Lul¿t militante gaüllista inquebrantável"3rr. Com essa biografia, Lacouture

315. lrlt:ttt. p. 124.


316. Idettt. p. 129.
317. Jean Lrìcotrttlrc. Picrre Mentlùs F-ruttt:c, Le Seuil. 1981.
318. .lean [-acoltture. Pro.fe,s.sìott biogru¡tltc' o¡t. t:it',1's. 82.
319. Jean Lacouturc. De Gtu.tlla L Le rebclle (1890-1941):2. Le polirit¡Ltc (Ì944-1959);
j. Le sottvcraitt
(1959-1970), Le Seuil, 1984. 1985, 1986.
320. Dc Gar¡lle, citaclo pol Jean Lncouture, Da (ìunlle 2. Le politiquc, Le SeuiÌ, I985' p.7.
321. Sylvie Cl'itssl.nan. Jeun Lncr¡tttura. Lu bittgraphie du biogra¡the,o¡t. cil., p' 288.

r20
A BIOGRAFIA, GI'NERO IMPIJRO

retoma a prática jornalística e solicita testemunhos, valorizarrclo o concreto, o vrvido.


Ao termo de uma longa e perigosa aventlrra, no curso da qual o biógrafo m¿ì.nteve com
o biografado uma relação de estreita proxinridade e convívio obsessivo. o ¿rutor se sente
ao mesmo tempo extenuado e incapaz de descer d¿rs alturas exploradas:

Confesso hurnildemente que, depois de abordír-lo corr certo rneclo e perseguiclo com a consciência
lnuito níticla de minha incapacidade clc esclarecer bom uúrnero de f'¿rtos clesconl-reciclos, cle sepirrar.ac¡r-ri c
ali o verdadeiro do falso, clc ct'guer a vista tão alto quanto a personage¡r exigia oLr uìesmo cìc expr:r.con.r
cqtliclade um ou olrtro detrate do qual nrinha próprìa carreira rne f'ez partìcipar. não
¡rucle ver-lhc <¡ fìrn
sern alguma tristez-a,

confessa Lacouture no início clo terceiro volume de sua trilogia32z.


Ex-aluno de um colégio de jesuítas, Lacouture conser-erará mais tarde dois vo-
lumes a esses religiosos, volumes qlle classifìcará de "multibio_rlrafia"323. Numa lon-
ga jornacla pela história da Cornpanhia de Jesus, confìrma-se o gosto do bió-erafo
Lacouture pela volta aos traços cle seu passado, segundo uma perspectiva quase au-
tobiográfica. rìas que passa pela identidade do outro a fim de reconquistar seu pró-
prio "eu" graças à ascese do trabalho, da pesquisa e da escrit¿r. Com a biografia cle
François Mitterrand, publicada em 1998, um c¿ilhamaço de mais cle mil pir-ginas em
dois volumes, Lacouture escolhe para personagem aquele que enc¿lrna a seus olhos
uma ambivalência tão acentuada que não snscita nele nem adesão nern admir"ação.
Acompanhou sua calreira, mas a distância. A paixão irnplícita no exercício da escrita
biográfìca é tal que não podemos lamentá-lo e Lacouture vai prossegr,rindo incansavel-
mente em sua busca de heróis. Depois de François Mitterrat¿rl, escreve Grctct Garbo
e a seguir biografias de Germaine Tillion, Montesquieu e Stendhalr2a.
Essa intimidade conr o outro, o sujeito biografado, é tão precisa e constitui ta-
manha fonte de enriquecimento para qlrem a ela se entrega que aceiba por se torn¿rr
sua seiva vital. O biógrafo passa a ser então um biófago. absorviclo pelo fascínio clo
olltro, verdadeiramente imantado por esse f'ascínio e tributírrio cla grandeza alheia a
fim de f,rmar sua própria identidade. Na operação biográfica, o horizonte cle totalidade
escapa inexoravelmente: "No campo da biografia não podemos, é claro, saber 'tuclo'
a respeito de ttma pessoa nem dizer 'tudo'. Uma vida rìos ¿ìgarra e nos escorre por to-
clos os poros, por todas as veias"325. Esse horizonte indefinido, e sempre inacabado por

322. Jean Lacouture, De Gaulle -J. Le souyerain, op. cit., p.7.


323. Jean Lacouture. Jésuites l.Lcs conquérant,s.2. Lc.ç ret,cttttnt.l, Le Seuil, lg9l.lg92.
324. Jettn Lacouture. Grela Garbo, ltt ckrnte crux cunéras, o¡t. cit.; Lc lénoi¡qrtctge (sl Lu't c:otnbat. LIne
biogra¡tltie de Genttaitrc Tilliott. Le Seuil, 2000'. Monta.squícu. Les venclctnges tle Iu libcrté. Le Seuil.
2003; Standltal. Le br¡nheur vt¿gctltctnd. Le Seuil, 2004.
325. .lean Lacouture. Pro.fcssiott biogra¡the, op. cit.. p. 193.
O DES¡\ltlO BIOORAItIC0. DSCREVLR UMA VIDA

princípio, re¿ì.limenta continuamente o desejo do biógrafb, embora ele saiba no fundo


que, ao subir as encostas escarpadas de uma nova aventura biogr:áfica, condena-se ao
mesfiìo movimeltto de Sísif'o, que lola toda vez que sobe. Com Lacouture, temos urn
tipo de biografta que revela não apenas o caráter híbrido possível entre jornalismo e
história, mas também a fecundidade de um bom equilíbrio entre esses dois métodos
cìe investigação. Por exemplo, o que Lacouture acha importante - e nisso difere do his-
toriador profissional - não é bern a massa arquivística que irá descobrir: "Confissão
indispensável: tenho rneclo de arquivosr:326. E1. pref'ere o contato, o diálogo, àquilo que
Arlette Farge chama de "gosto do arquivo". Simon Nora, colaborador de Pierre Mendès
France, fìcou assim literal¡nente siderado no momento da publicação dessa biografìa de
rnais cle quinhentas pírginas. É que, quando abriu a Lacouture seus arquivos pessoais
concernentes a Menclès, o autor não os compulsou pol mais de quinze minutos, muito
enrbora a documentação f-osse abundante. O prinrado da ol'alidade induz o biógraf-o
Lacouture a privilegiaf, com algumas exceções notórias, zr época contemporânea. O
que atrai sua curiosidade é ¿r coisa inédita. Isso se aplica ¿ìos seus sujeitos biografädos
quando ele lhes enfirtiza a capaciclade de escapar ao conclicionamento. É o que, fun-
d¿rmentalmellte, o c¿rr¿rctet'iz¿r colrìo biógrafo, mas se mostra verdadeiro também com
relzrção a seu método, o do parto seIrr dor por obra do diálogo: "O parto pela entrevis-
ia, eis meu método b¿isico"3l7.
Daí o perfil insubstituível de sua obra, que retoma o diálogo com seus in-
terlocutores privilegiando a relação inteiramente pessoal que ele mantém, eln tais
oc¿rsiões, coln os informantes. Isso não impede que haja alguns ângulos mortos em
seus trabalhos, como o 1àto de descurar a contextualizaçio social das personagens
e evitar siste¡naticamente, o que ele de resto reconhece, quaisquer considerações de
ordetn psicanalítica. Seu trabalho se orienta antes por unra espécie de intuição que
pela aplicação de umzr grade de leitura. As biografias de Lacouture são sustentadas
pela escrita. A esse respeito, participarn de uma dirnensão maior do gênero biográ-
fìco, que é sua c¿rracterística ¿lo lnesmo tempo literária e subjetiva.
Em todos os domínios que dependem da transversalidade, a escrita biográfica
clíl um passo à frente, pois se estriba num entrelaçamento de disciplinas que abre ca-
minho para hipóteses não reducionistas. Entre história e fìcção, jornalismo e história,
o f¿rto de captar os mil e um desvios da existência humana é a seara do biógrafo,
clue extrai o mel de todos os traços à sua disposição a fim de responder ao enigma
colocado ¡:elo senticlo da vida.

316. ldertt. p. 81.


321. Idenr. p. 86.

122

Você também pode gostar