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Escola Secundária António Nobre

Os Maias
Eça de Queirós

Fonte: Colecção
Apontamentos
Europa-América
Índice
Capítulo I Pág.8
Comentário Pág.8
Capítulo II Pág.9
Comentário Pág.9
Capítulo III Pág.10
Comentário Pág.11
Capítulo IV Pág.12
Comentário Pág.13
Capítulo V Pág.14
Comentário Pág.14
Capítulo VI Pág.15
Comentário Pág.16
Capítulo VII Pág.17
Comentário Pág.18
Capítulo VIII Pág.19
Comentário Pág.20
Capítulo IX Pág.21
Comentário Pág.22
Capítulo X Pág.23
Comentário Pág.24
Capitulo XI Pág.26
Comentário Pág.27
Capítulo XII Pág.28
Comentário Pág.30
Capítulo XIII Pág.31
Comentário Pág.32
Capítulo XIV Pág.33
Comentário Pág.35
Capítulo XV Pág.36
Comentário Pág.38
Capítulo XVI Pág.39
Comentário Pág.40
Capitulo XVII Pág.41
Comentário Pág.44
Capítulo XVIII Pág.45

Pág.2
Comentário Pág.46

Resumo sucinto do romance


No Outono de 1875 fixam-se em Lisboa Afonso de Maia e
seu neto único, Carlos da Maia, que, após ter-se formado
em medicina, regressa de uma longa viagem pela Europa e
traz agora grandes projectos de trabalho profissional.

Carlos era o último descendente dos Maias, uma família da


nobreza beirã, cujos últimos representantes a vida tocara
com o infortúnio, de facto, já por causa das suas ideias
liberais, Afonso da Maia tivera de se exilar em Inglaterra.
Mas, pior que o exílio, fora o carácter da esposa, beato,
devoto e tacanho, tão diferente do seu, o que, alem de lhe
impor um indesejado regresso a Portugal, o inibira de
educar como desejava o seu único filho, de seu nome
Pedro. Fruto da educação que recebera, o carácter instável
de Pedro levou-o à ligação com Maria Monforte, filha de
um negreiro, e a fazer com ela o casamento que, mais que
qualquer outro, desagradaria a Afonso. Desse casamento
nasceram dois filhos: uma menina e um menino. Afonso só
conheceu o menino: a Monforte abandonou Pedro para
seguir um italiano e levou consigo a filha. Foi nessas
circunstâncias trágicas, após um largo corte de relações,
que Pedro regressou a casa do pai para lhe dar conta do

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sucedido, lhe entregar o neto e se suicidar. – Morte de
Pedro

Todos pensaram que o velho Afonso não resistiria a mais


este desgosto, e que em breve se finaria na solidão da sua
quinta de Santa Olávia. Em vez disso, o ancião remoçou
com a tarefa de dar ao neto a educação de que não pudera
fazer beneficiar o filho: uma educação livre, sem
preconceitos, em que o corpo e a alma harmoniosamente
se desenvolvem para o ideal da mens sana in corpore sano.
Foi esta educação que culminou na formatura de Carlos em
medicina, e na viagem de estudo de que regressava,
quando se instalou no Ramalhete, em Lisboa.

Instalado em Lisboa, Carlos tem grandes projectos de


trabalho na prática da medicina e na investigação
laboratorial. No entanto, para isso faltava-lhe a
determinação, e em breve começa a flanar na vida diletante
e inútil que era a dos burgueses da capital. Reencontra,
alias, o seu amigo Ega, colega dos tempos de Coimbra, que
não era certamente a companhia mais indicada para quem
desejasse dedicar-se a um trabalho sério.

Ega tem um caso com a mulher do banqueiro Cohen, e


convida Carlos para o jantar que vai oferecer no Hotel
Central ao marido enganado. Aí conhece Carlos o inglês
Craft e Dâmaso Salcede (que se tornam habitués do
Ramalhete) e vê, pela primeira vez, no peristilo do hotel,
sem conseguir saber-lhe o nome, aquela que será a sua

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grande paixão e que vem a saber pelo Dâmaso ser a mulher
de Castro Gomes, um brasileiro de passagem por Lisboa.

Pese o seu interesse pela dama desconhecida, Carlos inicia


uma relação adulterina com a condessa de Gouvarinho,
enquanto a ligação de Ega com a Cohen termina,
descoberta que foi pelo marido. Os amores da Gouvarinho
não curam, porém, da paixão pela desconhecida. E, na ânsia
de a ver, parte intempestivamente para Sintra, onde a
supunha com o marido e com Dâmaso.

Regressa desiludido, mas acaba por lhe entrar em casa,


embora com ela ausente, chamado por Dâmaso para cuidar
de Rosa, a pequena filha da senhora. Carlos concebe planos
para encontrar a misteriosa mulher, chegando mesmo a
pedir ao Dâmaso que o apresente ao casal. Dâmaso acede,
desconfiado, mas não chega a ser preciso: a criada da
senhora adoece e esta manda um bilhete a Carlos pedindo
para a servidora os cuidados do médico que lhe tratara a
filha.

Entre ambos inicia-se uma relação que, a princípio, era


apenas de estima, mas que Dâmaso surpreende com
desrespeito, e que logo se transforma em paixão recíproca.
Para viver essa paixão, Carlos acaba a sua relação com a
Gouvarinho, e instala Maria Eduarda (assim se chamava a
dama) na casa que adquirira ao Craft nos Olivais. É dividido
entre as sestas nos Olivais e as noites no Ramalhete que se
passa parte desse Verão, enquanto o avô partira sozinho
para Santa Olávia. Carlos junta-se-lhe aí, de fugida, depois
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de ter levado Maria Eduarda em breve visita ao Ramalhete.
No regresso, recebe a visita de Castro Gomes, que, em vez
do desforço que Carlos esperava, apenas deseja dizer-lhe
que a mulher com quem Carlos dorme não é esposa sua,
pelo que se limita a retirar-lhe o nome e a suspender-lhe a
mesada.

Muito humilhado Carlos vai aos Olivais, onde, confirmando


embora a veracidade da versão de Castro Gomes, fica a
saber que Maria Eduarda não era a vulgar cocotte que as
circunstâncias poderiam fazer supor. É ela, aliás, que, no dia
seguinte, faz questão de lhe contar toda a sua vida, onde se
adivinham culpas maternas e sofrimento próprio. Carlos,
comovido, propõe-lhe casamento. O desrespeito de
Dâmaso, entretanto, que já se vasara em pôr meia Lisboa a
badalar a relação de Carlos com a aventureira, desce agora
mais baixo, e atira com o escândalo para os jornais, através
da Corneta do Diabo. Ega consegue suster a saída do jornal
e comprar o silêncio do jornalista, ao que se segue a
humilhação definitiva de Dâmaso, obrigado, para não se
bater em duelo, a assinar um papel em que se confessa um
bêbado incorrigível.

O Verão termina, e Maria Eduarda regressara dos Olivais a


Lisboa. O único obstáculo que parece opor-se agora a que
aos dois amantes consumem pela união conjugal a sua
felicidade é o desgosto que Carlos não quer com ela dar a
avô. Eis senão quando um parente de Dâmaso, o Sr.
Guimarães, residente em Paris e de passagem por Lisboa,

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desconhecendo em absoluto o que se passava, aborda o
Ega para que ele se encarregue de entregar a Carlos ou a
sua irmã, Maria Eduarda, uma caixa que a mãe deles lhe
confiara à hora da morte, e que continha papéis
importantes.

Ega, atordoado, certifica-se da brutal verdade: o amor de


Carlos e Maria Eduarda é uma incestuosa relação entre
irmão. Resolve comunicar o facto primeiro ao procurador
dos Maias, que procura no dia seguinte, para que seja este
a prevenir Carlos. Este fica transtornado, mas não rompe a
relação: continua-a até que começa a perceber uma certa
repugnância física na relação carnal com aquela que sabe
sua irmã. Não antes, porém, que o conhecimento de que se
passava fulminasse de morte o avô.

É essa morte que acaba por decidir Carlos a romper. Após


sepultar o avô, parte para Santa Olávia, deixando o Ega o
encargo de explicar a Maria Eduarda a situação. Esta, a
conselho de Ega, e já a expensas dos Maias, parte para
Paris. Carlos e Ega viajam também, até que o primeiro se
fixa em Paris.

A história termina com o encontro de ambos, dez anos


depois, em Lisboa, onde Carlos vem de visita, onde anuncia
a Ega que Maria Eduarda casara em Orleães, e onde ambos
dão como falhadas as respectivas vidas.

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«Os Maias» -Resumo Alargado
e Comentários

Capítulo I
Apresentação do Ramalhete, a casa de residência do
protagonista, Carlos da Maia, em Lisboa; apresentação
também de algumas personagens, como Afonso da Maia,
cujo retrato físico e moral se traça. Toma-se contacto com a
família Maia, e assiste-se em resumo à história da vida de
Afonso da Maia, com as suas ideias liberais contrapostas ao
conservadorismo da família e da mulher, e à historia da
educação de seu filho Pedro, até ao casamento deste com
Maria Monforte, onde está o ponto de partida para a
historia que Eça pretende apresentar.

Comentário
O capítulo tem duas partes distintas: a primeira gira a volta
do Ramalhete, a casa que Eça faz questão de descrever com
minúcia. É a propósito de Ramalhete que o leitor contacta
com o protagonista (Carlos da Maia) muito ao de leve, e
mais longamente com o seu avô, o velho Afonso da Maia. A
história deste até ao casamento do filho com Maria
Monforte, a negreira, ocupa toda a segunda parte.

A importância deste capítulo é fundamental. Não só nos dá


a chave para o drama básico do romance, como faz a
apresentação dos dois mundos que ao longo de toda a
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obra se defrontam: o de Afonso da Maia, saudável, livre,
moderno, contraposto ao da sua mulher, soturno, triste,
beato e, por isso mesmo, doentio. Pedro será o fruto do
segundo, como Carlos se pretende o resultado do primeiro.

Capítulo II
Casado com Maria Monforte contra a vontade do pai, Pedro
parte para a Itália com intenção de ali se fixar. A
volubilidade de Maria altera-lhe os planos e fá-lo voltar a
Paris primeiro, e regressar a Lisboa depois, fixando-se em
Arroios. Afonso esquiva o encontro com o filho e partindo
para Santa Olávia, a sua quinta no Douro. O casal recebe
entre os seus íntimos o italiano Tancredo e Maria adia a
inicialmente desejada reconciliação com o sogro, que
entretanto regressara a Lisboa. É Pedro quem acaba de
voltar para o pai, após ter sido abandonado por Maria, que
foge com um nobre italiano, levando consigo a filha que
tiveram, e deixando-lhe o filho Carlos Eduardo. Pedro
suicida-se, e o velho Afonso, acabrunhado e triste, recolhe
definitivamente a Santa Olávia.

Comentário
Essencialmente para a compreensão do romance, este
capítulo (a historia de Pedro da Maia e de Maria Monforte)

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constitui em si uma unidade independente. Com ele se
poderia fazer um conto que poderia emparceirar, por
exemplo, com No Moinho, também da autoria de Eça de
Queirós. De resto, o conteúdo do conto condiz com o
subtítulo do romance: «Episódios da vida romântica». A
figura dominante do capítulo é Maria Monforte. Sem
explicitamente a descrever Eça deixa-nos dela, através dos
seus comportamentos, um perfil psicológico tão preciso
quanto piedoso. Note-se como estamos longe, em Maria
Monforte, dos personagens cor-de-rosa de Júlio Dinis.

Mulher Diabo

Capítulo III
Anos mais tarde, o procurador Vilaça, indo a Santa Olávia
pela Páscoa, encontra Afonso da Maia remoçado. O neto é
o responsável pelo reviver do ancião, que realiza naquele
descendente o modelo de educação que não pudera dar ao
filho: com um preceptor inglês, Carlos desdenha o
eruditismo dos clássicos e as patranhas da cartilha, mas faz

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cultura física e leva uma vida espartana. Bem fora dos
hábitos molengões dos portugueses, a sua educação à
inglesa contrasta com a deseducação de Eusebiozinho, um
rebento da família Silveira, que tem a sua idade, mas a
quem uma educação de ricaço provinciano faz embiocado,
flácido e doente.

É durante este encontro que Vilaça dá conta a Afonso da


Maia das notícias da Monforte que, de Paris, lhe trouxe o
Alencar. Afonso julga puder recuperar a neta -mas, com
base no relato de Alencar, acaba por concluir, e com ele o
procurador, que ela morrera. Como morre o velho Vilaça
que deixa ao filho a procuradoria da casa dos Maias. É este,
Manuel Vilaça, que está em Coimbra, acompanhando Carlos
e o avô, quando aquele entra na universidade após um
exame triunfal.

Comentário
O presente capítulo apresenta vários motivos de interesse:
antes de mais, temos nele a única incursão de Eça em Os
Maias pela vida da província: o serão em Santa Olávia é
quadro perfeito desse viver e dos seus tipos (abades,
delegados, manas Sequeira havia - e há - por toda a parte).
Depois, temos o tipo de educação que Afonso julga
perfeita, aplicando a Carlos, em contrate com aquela que
fora sujeito seu filho Pedro. Parece adivinhar-se que, se a
desgraça de Pedro se deveu àquele tipo de educação, o
futuro Carlos será forçosamente risonho. Eça não disfarça,
alias, as suas preferências. Veremos como, no fim, tudo sai
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ao contrário, e como a vida de Carlos só não parece vir dar
razão às abominadas ideias do abade, porque a
contraprova destas fora feita na experiencia de vida do
malogrado Pedro.

Finalmente, os dois mundos em confronto continuam


presentes: o progressivo em Afonso e o neto; o retrógrado
nos personagens restantes.

Dos personagens que aqui aparecem, só o Eusebiozinho


sobreviverá na história. Mas desde de já se chama a
atenção, por um lado para a precisão de Eça no desenho
dos carácteres (o abade e a viscondessa, por exemplo), e,
por outro, para o facto de, entre os personagens femininos,
não haver um que se aproveite. Mesmo quando marginais
(e à excepção da tia Fanny) as mulheres de Os Maias
revelam-se sempre desinteressantes, perniciosas ou mesmo
abomináveis.

Capítulo IV
Matriculado em Medicina, Carlos leva em Coimbra uma vida
de estudante rico, que o torna querido dos fidalgos, ao
mesmo tempo que alinha com as ideias mais avançadas de
então. Terminando o curso, Carlos faz uma longa viagem
pela Europa. Aproveita para comprar os livros e os
instrumentos que hão-de ajudar no exercício da medicina.
Mas tem também aventuras amorosas várias.

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Chega, finalmente, a Lisboa e instala-se no Ramalhete onde
o avô o espera. Traz grandes ideias de trabalho útil -mas
tem dificuldade em decidir o que, em concreto, irá fazer.
Acaba por instalar um laboratório para a investigação, e
montar um consultório para o exercício da clínica. Mas em
breve se apercebe de que é tempo perdido o que se passa
no consultório à espera de clientes que o não procuram. Ali
o vai encontrar João da Ega, um antigo colega dos tempos
de Coimbra, que o acompanhará até ao fim do romance.

Comentário
Aparecem os primeiros traços negativos no carácter do
protagonista. O seu defeito fundamental é o diletantismo
que, na perspectiva de Eça, era o grande mal de que
enfermava a sociedade portuguesa. Bem elucidativo, o
ambiente da casa de Carlos em Coimbra, onde «as próprias
certezas revolucionarias adquiriam um sabor mais
requintado com a presença do criado de farda
desarrolhando a cerveja, ou servindo croquetes»

Afloram as primeiras críticas explícitas ao país: «Aqui


importa-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos,
estéticas, ciências, estilos, indústrias, modas, maneiras,
pilhérias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete»

Toma-se contacto com alguns personagens que se vão


manter ao longo da história: tirando Afonso da Maia e
Carlos, os que apareceram nos capítulos anteriores ficaram
para trás, com a única excepção do Eusebiozinho. Os de

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agora vão permanecer, com destaque para João da Ega.
Note-se que não há entre eles um único que não seja
objecto de ironia de Eça.

Capítulo V
Carlos obtém o seu primeiro êxito clínico curando a mulher
do padeiro do bairro. O feito é badalado no círculo de
amigos que animam os serões do Ramalhete, divididos
entre o whist e o bilhar.

Também o laboratório fica pronto, mas Carlos não tem


tempo para se ocupar dele, enredado na sua existência de
homem de luxo e nos largos, variados e inconsistentes
projectos de diletante. A ideia de fundar uma revista, que
lhe fora sugerida pelo Ega, é agora postergada por este,
embevecido nas delícias de um adultério fino com a mulher
do banqueiro Cohen. É ainda Ega quem propõe a Carlos
travar conhecimentos com os Gouvarinhos, insinuando que
a condessa estaria muito interessada nele. Antevendo a
aventura, Carlos, a princípio displicente, interessa-se
mesmo. Acaba por conhecer, primeiro o conde, e depois a
condessa de Gouvarinho numa soirée em S.Carlos.

Comentário
O presente capítulo dá uma achega apreciável para o
conhecimento do ambiente doméstico de Carlos, através,
primeiro, da longa descrição do serão de Afonso com os

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amigos, e depois, da transcrição do diálogo de Carlos com
o seu criado de quarto, em que subtilmente se insinua o
interesse que nutre pela condessa de Gouvarinho.

Servindo para ir desenhando cada vez melhor a fisionomia


do protagonista, deste capítulo sai também uma achega
não despicienda para a caracterização de uma certa camada
social e da sociedade portuguesa em geral. Particularmente
interessante a entrada em cena do Gouvarinho como
personificação do politico imbecil que, do alto do seu
pedestal, enuncia como descobertas transcendentes as mais
vulgares trivialidades.

De notar que, pela primeira vez, neste capítulo se faz


menção de Dâmaso Salcede, um personagem que irá ter
considerável importância ao desenrolar da acção.

Capítulo VI
Após uma tentativa infrutífera, Carlos conhece finalmente a
Vila Balzac, onde Ega se instalara deixando o Hotel
Universal; pretende-se que a Vila Balzac, longe de Lisboa, na
Penha de França, está ligada a uma aventura amorosa do
Ega. Entretanto, pela mão deste, Carlos conhece o inglês
Craft e com ele participa num jantar que o Ega dá em honra
do Cohen no Hotel Central. É quando se encontra no
peristilo do hotel, antes do jantar, que vê chegar e passar
por ele uma soberba mulher que vivamente o impressiona.

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Durante o jantar, Carlos trava conhecimento com o poeta
Tomás de Alencar, um amigo íntimo de seu pai, que tem a
delicadeza de nunca lhe mencionar os tristes factos do
passado; que Carlos, de resto já conhecia. Mas o encontro
com Alencar trouxe-lhe à memória a tragédia da sua
ascendência, que o Ega, involuntariamente lhe revelara em
Coimbra, numa noite de bebedeira.

De qualquer modo, ao adormecer, não era nessas imagens


trágicas que o pensamento se lhe fixava, e sim na soberba
mulher que com ele se cruzara no peristilo do hotel.

Comentário
O presente capítulo é marcado pela entrada em cena de
vários personagens novos:

- Craft, o inglês, que parece ser, para Eça, o ideal do


cavalheiro;

- Alencar, o poeta, cujo aparecimento faz refluir o passado à


vida de Carlos;

- A Sr.ª Castro Gomes, ainda desconhecida como tal, que


virá a dividir com Carlos as honras de protagonizar a acção
fulcral do romance.

O autor misturou sabiamente o aparecimento da soberba


mulher do hotel com a entrada em cena do poeta Tomás de
Alencar - deixando adivinhar a ligação existente entre a
desconhecida de hoje e a tragédia de outrora. É aliás sobre
a insinuação de tal ligação que o capítulo se encerra.

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Quanto ao mais, registe-se a descrição do jantar no Hotel
Central (o ambiente e a ementa), e o primeiro grande
afrontamento (que a ironia queirosiana torna grotesco)
entre a literatura romântica e a realista, personificadas,
respectivamente, em Alencar e Ega.

A título de curiosidade, refira-se ser neste capítulo que, em


Os Maias, Eça utiliza pela primeira vez o termo «seca» e o
verbo seu derivado do sentido de «aborrecimento» e
«aborrecer-se».

Capítulo VII
A partir do jantar no central, Craft e Dâmaso ficam a fazer
parte dos frequentadores do Ramalhete, embora com
apreciações diferentes quanto às suas pessoas, pelo menos
por parte de Carlos. Craft era francamente simpático tanto a
ele como o avô. Já o Dâmaso, tipo presumido, metediço,
subserviente, vazio, mesquinho, em quem se adivinhava um
mau carácter, só a custo conquistou um lugar naquela casa:
obteve-o quando publicamente defendeu Carlos, num
gesto que não teve nada de heróico, porquanto o atacante
era inquilino seu, com a renda em atraso, e raquítico, para
rematar.

Ega aparece uma manhã em que Craft joga xadrez com


Afonso, e Dâmaso acompanha Carlo. Como de costume,
vem pedir dinheiro a Carlos; mas vem também anunciar o
baile de mascaras que se vai dar em cada dos Cohen e
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tentar garantir a presença do amigo, ao mesmo tempo que
insiste no interesse da condessa de Gouvarinho por Carlos.
Este, entretanto, não consegue esquecer a dama do Hotel
Central, e ronda o Aterro na esperança de a ver.

Recebe entretanto, no consultório, a visita da Gouvarinho,


que ali leva o filho a pretexto de sintomas de doença
inexistentes. A conclusão era óbvia, e a ambiguidade do
diálogo por parte de Carlos deixava perceber à condessa
que o seu interesse era correspondido.

Quem, entretanto, desaparece do convívio do Ramalhete é


o Dâmaso. E Carlos acaba por concluir que ele fora para
Sintra na companhia dos Castro Gomes. O que
imediatamente o leva a decidir uma intempestiva partida
para Sintra também, convidando o Cruges a acompanhá-lo.

Comentário
Grande parte deste capítulo (quase toda a primeira parte) é
dedicada a dissecar o carácter de Dâmaso e dá-nos um dos
mais impiedosos retratos saídos da pena de Eça. Ao
contrario do que acontece com quase todos os outros
personagens, cujo carácter vai emergindo da acção, o autor
não quis deixar de, logo de inicio, dar dó Dâmaso um
retrato completo, receando talvez que o desenvolvimento
ulterior o não retratasse com o asco desejável. Quanto ao
mais, o capítulo faz adivinhar um futuro romance de Carlos
com a Gouvarinho. Mas toda a circunstancia deixa antever
que, a haver romance, ele não passará de um devaneio. A

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sorte de Carlos, o autor vai deixando cada vez mais claro
que se encontra ligada à da mulher da vez mais claro que se
encontra ligada à da mulher do Hotel Central -e ainda se
não conheceram.

Capítulo VIII
Carlos parte para Sintra com o Cruges, como planeara. O
seu objectivo inconfessado é encontrar a misteriosa dama
do Hotel Central. Ia para se hospedar na Lawrence, onde
supunha que ela estivesse, mas, à ultima hora, num rebate
de brios, decide ir antes para o Nunes.

Ali encontra Eusebiozinho acompanhado por Palma (um


personagem desconhecido tanto de Cruges como de
Carlos), e que tinham vindo para Sintra com duas
espanholas. Os quatro acabavam o almoço, quando Carlos
e Cruges chegaram. A conversa que se trava denuncia mais
uma vez a hipocrisia triste do Eusebiozinho com cujas
palavras se sente ofendida a espanhola, sua companheira -o
que o obriga a ir ao quarto pedir-lhe desculpa.

Cruges viera a Sintra uma única vez, e deleita-se nas


maravilhas da paisagem. É no deambular de um passeio,
com Carlos sempre na mira de encontrar a mulher do
Central, que se cruzam com o Alencar. Este acompanha-os a
Seteais, e explica-lhes o sítio, que para ele não tem
segredos. Dá-lhes também algumas informações acerca do

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Palma, um homem dos jornais, com quem ele já se travara
de razões.

Os planos de passeio de Carlos vão-se ajustando às


suposições que faz sobre a localização da dama. Até que
finalmente, na Lawrence, sabe pelo criado que o casal
Castro Gomes partira para Mafra e iria dali para Lisboa. Da
conversa com o criado tira algumas informações sobre a
mulher, e os pequenos pormenores que consegue mais
acendem a sua paixão.

Agora que sabia não estar ali a deusa dos seus sonhos,
Sintra deixara de ter interesse para ele. E resolve regressar a
Lisboa, trazendo, além do Cruges, o Alencar.

Comentário
Quase se diria que este capítulo é apenas um pretexto para
celebrar as belezas se Sintra - o que Eça faz magistralmente,
revelando-se um magnífico pintor de palavra -e para indicar
o papel que a histórica vila tinha para a burguesia lisboeta
do século XIX. Sintra era o cenário de fugas campestres ao
cosmopolitismo de Lisboa, de aventuras da alta roda e de
esquálidas escapadas com meretrizes, alugadas ao dia. É
num episódio destes que se dão mais umas pinceladas no
retrato do Eusebiozinho, cuja mesquinhez ainda funciona
aqui como contraponto do cavalheirismo de Carlos. Outro
personagem, o Palma, aparecer, entretanto, em cena -e o
que o desvairado Alencar diz a seu respeito não é
tranquilizador.

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De notar que Eça tem neste capítulo algumas das suas
boutades de maior verve satírica. Um bom exemplo está no
episódio de Alencar apertando o atilho das ceroulas em
Seteais.

Capítulo IX
Dâmaso aparece no Ramalhete a chamar Carlos para assistir
a filha dos Castro Gomes, que adoecera enquanto os pais
partiram para Queluz.

Carlos toma contacto com a intimidade da mulher que ama,


ainda na sua ausência. A doença de Rosa era uma ninharia,
mas a pequena simpatizara com ele. Dâmaso, entretanto,
confia-lhe os seus planos de aventura com a Castro Gomes
logo que o marido se ausentasse para o Brasil. Carlos a
custo domina a cólera que o invade contra Dâmaso.

Chega, entretanto, o dia do baile de mascaras do Cohen em


que Ega tanto se afadigara. Mas Ega chega subitamente ao
Ramalhete ainda mascarado de demónio e fora de si: ao
chegar ao baile, o Cohen insulta-o, põe-no fora de casa e
ameaça corrê-lo a pontapés. Ega clama por vingança e quer
desafiar o Cohen para um duelo. Carlos tenta, em vão,
chamá-lo à razão: ofendido era o outro; afinal, era ele, Ega,
que andava a amar-lhe a mulher. Ega não se conforma; quer
a opinião do Craft. Partem ambos para os Olivais. Craft

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confirma o parecer de Carlos: a haver duelo, é o Cohen que
deve desafiar e a Ega resta deixar-se ferir ou morrer. Entre
os protestos do pobre Ega, Craft convida ambos a cear com
ele. Relutante a principio, Ega acaba por comer com apetite
e por se embriagar.

Dorme em casa do Craft, enquanto Carlos regressa a Lisboa.

No dia seguinte, os três amigos esperam na Vila Balzac e o


desafio (improvável) do Cohen. Quem chega é a criada
confidente de Raquel Cohen com a notícia: os Cohen
tinham feito as pazes e iam partir para Inglaterra, depois de,
na véspera, a seguir à festa, o senhor ter dado uma coça na
senhora.

Terminando o seu romance, cheio de dívidas, e com Lisboa


inteira a troçar dele, Ega parte para Celorico depois de, com
dois contos de rei emprestados por Carlos, se ter
desenvencilhado dos credores.

Carlos continua a pensar na misteriosa mulher cuja filha


visitara. Mas um estranho pudor inibe-o de pedir ao
Dâmaso que o apresente a Castro Gomes.

Começa, entretanto, a frequentar a casa dos Gouvarinho. E,


numa bela tarde, encontra-se a beijar a condessa.

Comentário
O presente capítulo é marcado por três eventos principais, a
saber:

- o contacto de Carlos com a família Castro Gomes;


Pág.22
- o termo abrupto do romance do Ega com a mulher de
Cohen;

- o inicio do romance de Carlos com a condessa de


Gouvarinho.

Compreende-se a importância do primeiro para o


desenrolar da acção. Num curioso efeito de suspense, Eça
vai preparando paulatinamente o encontro dos dois
personagens: Carlos e a mulher fatal. O episódio em que
Ega é corrido pelo Cohen e tudo o que se lhe segue
oferecem à Ega a oportunidade de exercitar com inigualável
mestria o seu humor -humor fresco e natural que parece
resultar das situações muito mais que da veia sarcástica do
autor. É, neste aspecto, uma das mais conseguidas
passagens de Eça de Queirós.

O romance com a Gouvarinho já se vinha adivinhando, e


sabemos de antemão que não vai ser nada de sério. Dá, no
entanto, a Eça a oportunidade de abordar mais uma vez o
mundo da classe política.

Capítulo X
Há três semanas que Carlos se encontra com a Gouvarinhoe
começa já a enjoar a nova relação. Até porque não lhe sai
do sentido a esplêndida mulher que em vão fora procurar a
Sintra. Durante um jantar no Ramalhete, em que o tema de
conversa eram as corridas de cavalos que se preparavam,

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concebe, para encontrar, um plano em que Dâmaso
convidaria o casal a visitar a quinta do Craft nos Olivais.
Dâmaso acede, mas chega o dia das corridas sem que ele
tenha trazido a resposta dos Castro Gomes.

De mau humor, Carlos vai às corridas no hipódromo de


Belém. Ai, vê-se confrontado com uma proposta da
Gouvarinho de passar com ela, que tem de se deslocar ao
porto, uma noite em Santarém. Entediado a principio, acaba
por aceitar. Por desfastio, joga tudo num cavalo contra o
campo e, contra todas as expectativas, ganha uma pequena
fortuna. Sabe finalmente, pelo Dâmaso, que o Castro
Gomes partira para o Brasil, deixando a mulher em Lisboa, e
que esta vive num andar arrendado da casa do Cruges.

Informado disto, Carlos resolve passar por casa do Cruges


no regresso, para, ao menos, subir as escadas que a mulher
dos seus sonhos pisava também. A casa pareceu-lhe fria,
silenciosa e impenetrável. Mas, ao chegar ao Ramalhete, é
agradavelmente surpreendido com um bilhete em que a
Sr.ª Castro Gomes lhe pede que vá, na manhã seguinte, ver
uma pessoa de família que se encontrava incomodada…

Comentário
As corridas de cavalos, a sua descrição, ocupam a parte de
leão neste capítulo, e merecem uma referência especial.

Na trama da acção, entramos na intimidade de uma


aventura adulterina de Carlos, em que é bem patente a
entrega apaixonada da mulher, contraposta ao diletantismo

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desprendido do protagonistas, para quem a relação com a
Gouvarinho se destinava apenas a pôr um luxo mais na sua
vida, sendo para tanto necessário que a não inflamassem
lampejos de paixão.

Paixão, nutre-a Carlos pela Castro Gomes, e bsca todos os


meios para conseguir uma aproximação, incluindo a infantil
visita a cada do Cruges, depois de saber que, debaixo
daquelas telhas, vivia a mulher que amava. Infantil é
também a sua reacção de alegria ao bilhete que o espera,
quando regressa a casa -só porque vinha dela. Eça sabia
que o amor nunca é razoável. Note-se, porem, que,
aplicando, como aplica, a verve do seu sarcasmo a quase
tudo, nem ao de leve belisca as manifestações de amor, por
mais absurdas.

Dissemos que as corridas de cavalos merecem uma


referência especial. De facto, elas adiantam muito pouco
para o desenvolvimento da acção: apenas a proposta da
Gouvarinho quanto à noite em Santarém, e a informação do
Dâmaso quanto à viagem de Castro Gomes. Fica-se, assim,
com a impressão de Eça as inclui no romance para ditar
sobre elas o veredicto da sua ironia -como o Cap. VIII nos
pareceu talhado para celebrar as belezas de Sintra. E o
retrato das corridas é tão impiedoso, como foi lisongeiro o
das belezas naturais de Sintra.

Pág.25
Capitulo XI
Carlos realiza, finalmente, o sonho de se encontrar com a
Sr.ª Castro Gomes, que vem a saber chamar-se Maria
Eduarda. A casa denuncia o bom gosto de quem a habita.

A doente é governanta inglesa, Miss Sara, que Carlos


observa e em quem diagnostica uma bronquite ligeira, que
exigirá, no entanto, pelo menos quinze dias de cama.

O passar da receita é um pretexto para Carlos e Maria


Eduarda terem uma primeira conversa em que aquele fica a
conhecer alguns pormenores da vida desta, sem, no
entanto, entrarem em intimidades.

A despedida dela é «até amanhã» -e assim se inicia entre


ambos a relação que constitui o cerne do romance. Os
deuses parecem favorecer Carlos: a presença do Gouvarinho
a acompanhar a mulher ao Porto liberta-o daquele
incómodo compromisso. Na estação, aliás, onde se
deslocou, encontra Dâmaso que sai, também ele, de Lisboa
para ir ao funeral de um tio em Penafiel. A condessa fica
entretanto retida no Porto a tratar do pai atingido por uma
apoplexia.

Assim, os encontros entre Carlos e Maria Eduarda sucedem-


se diariamente, e ele tem oportunidade de a conhecer
melhor. No entanto, entre ambos ficara tacitamente
estabelecido, quase desde o princípio, que aquela relação
não devia ultrapassar a pura estima.

Pág.26
Num desses encontros, o criado anuncia a chegada de
Dâmaso, que Maria Eduarda prontamente manda entrar.
Carlos apercebe-se da frieza com que Dâmaso é tratado por
Maria Eduarda, e que lhe confirma quando ela lhe dissera
sobre a relação daquele com o casal.

Dâmaso manifestará depois, no Ramalhete, o seu despeito


por aquilo que considera uma intromissão de Carlos em
propriedade própria. Mas o ambiente do Ramalhete vai
apaziguando o Dâmaso, e o capítulo fecha sobre a previsão
do escândalo que se adivinha no regresso do Ega a Lisboa,
onde já se encontram os Cohens…

Comentário
Se Eça tivesse dividido em partes o seu romance, este
capítulo encerraria seguramente uma delas. De facto, ele
culmina todo um longo processo em que, a pouco e pouco,
os acontecimentos se vão conjugando para aquilo que,
mais tarde ou mais cedo, fatalmente tinha de acontecer: o
encontro de Carlos com «aquela mulher».

O capítulo não é particularmente rico de acção: dir-se-ia


mesmo que tudo pára não distrair o leitor do grande
acontecimento que é o encontro dos personagens.

Para além de pormenores elucidativos sobre o Dâmaso e a


sua família (o negro do seu retrato vai-se adensado ainda
mais), há duas indicações de pormenor que o romancista dá
en passant: a similitude dos nomes (Carlos Eduardo e Maria
Eduarda) -e note-se que, da irmã de Carlos (supostamente

Pág.27
falecida) nunca se disse o nome, enquanto que o dele foi,
desde que nasceu, quase alardeado; e certas semelhanças
que, embevecidamente, Carlos encontra entre o carácter de
Maria Eduarda e o do avô, Afonso da Maia.

Capítulo XII
Ega regressa a Lisboa e fica instalado no Ramalhete. Tendo
viajado com os Gouvarinhos, quis saber do adivinhando
romance de Carlos com a condessa, e transmitir-lhe o
convite do casal para jantarem na segunda-feira.

Antes do jantar dos Gouvarinhos, Carlos teve com a


condessa um encontro pouco agradável entre beijos frios e
recriminações inúteis. Quando vai a caminho do jantar, Ega
pergunta-lhe que o romance é aquele com a brasileira. Ega
soubera pelo Dâmaso que dava uma versão notavelmente
distorcida. Carlos repõe a «sua» verdade, sem, no entanto,
se abrir com o amigo quanto aos sentimentos que o
animam. Mas fica inquieto com a badalação do Dâmaso,
tanto mais que, no jantar, também a Gouvarinho alude à
brasileira.

Carlos consegue despistar as suspeitas da Condessa, mas o


preço que isso lhe custa é uma manhã de forçado amor
com ela no dia seguinte.

Daí voa Carlos para casa de Maria Eduarda. Ela acabara de


regressar, e dá-lhe a entender que esperava mais cedo a

Pág.28
sua visita, o que provoca em Carlos a certeza de que os
sentimentos que nutre por Maria Eduarda são
correspondidos. A conversa é interrompida pelo criado que
anuncia a chegada do Sr. Dâmaso. Maria Eduarda recusa-se
simplesmente a recebê-lo.

A conversa deriva então para os inconvenientes daquela


casa, ali ao lado do Grémio e tão perto do Chiado, que
expõe os seus habitantes às arremetidas constantes dos
importunos. Era tão bom ter uma casa no campo, um
simples cottage com quintal, em que Rosa pudesse
brincar…

Carlos imediatamente concebe a ideia de comprar ao Craft


as suas colecções, e de lhe alugar a casa por um ano, e dá
conta a Maria desse projecto: ela iria passar o Verão numa
bela quinta dos Olivais. O movimento de gratidão que ela
esboça é o pretexto para Carlos lhe confessar o seu amor e
saber que ele é correspondido. Tão excitado fica que, por
três vezes, frusta Maria Eduarda na sua tentativa de lhe
dizer qualquer coisa que entende dever ele saber. Logo ali,
para Carlos, o destino daquele amor seria a fuga, para lhe
pôr o selo definitivo.

No dia seguinte, tudo fica arrumado com o Craft. O avô


aprova: são valores com que a casa dos Maias se enriquece.
E é com alvoroço que Carlos anuncia tudo a Rosa primeiro,
e a Maria Eduarda depois, e afasta, como descabida, a ideia
de ser ela a pagar o aluguer de casa.

Pág.29
De tudo isto, Ega conhece apenas o que é possível ver no
exterior: ate ai, Carlos, que sempre o tivera como confessor
para as suas aventuras, não lhe dissera uma palavra sobre o
assunto. Finalmente, naquela noite, foi a confidência. E Ega
apercebe-se de que aquele caso é em tudo e por tudo
diferente dos anteriores.

Comentário
Estamos perante um capítulo rico nos dois aspectos: do
desenvolvimento da acção como do tratamento dos
elementos envolventes.

Naquele, domina, evidentemente, o salto qualitativo que se


dá na relação entre Carlos e Maria Eduarda, de tal monta
que é, nas palavras de Eça, «como se se tivesse feito uma
grande alteração no Universo». Mas há também a
intromissão de Dâmaso, cuja mesquinhez não pressagia
nada de bom. E há um plano de vida de Carlos, que se
supõe estável ao lado de Maria Eduarda, mas que, atenção!,
não contempla qualquer aspecto de realização
profissional…

Quanto ao outro aspecto evocado, são particularmente


dignas de nota:

- a apologia que o Ega faz do naturalismo (com a


subjacente incongruência de não admitir como vicio e que
ele e os seus amigos faziam);

Pág.30
- a vacuidade destas existências que de todos os males
atribuem a culpa ao país -e a quem Afonso da Maia lança o
repto de fazerem alguma coisa;

- a atitude puramente romântica (e incongruentemente


romântica) de Carlos face a Maria Eduarda;

- o aparecimento (e a crítica) de uma nova casta -a do


burocrata, do funcionário publico, na pessoa de Sousa
Neto, tão presumido e cretino como todos os outros.

Será interessante comparar o jantar em casa dos


Gouvarinhos com aquele que Ega ofereceu ao Cohen no
Hotel Central. Como será bom verificar quanto Eça quis pôr
em contraste os carácteres de Maria Eduarda e da condessa
de Gouvarinho, comparando a descrição que fez da casa
daquela no capítulo anterior, com a que faz da desta no
presente.

Capítulo XIII
Carlos prepara-se para ir aos Olivais, à quinta que Maria
Eduarda visitará no dia seguinte, quando Ega lhe dá conta
da bisbilhotice do Dâmaso. Esta é lhe confirmada quando
regressa dos Olivais, pelo poeta Alencar. Dâmaso apregoava
a Lisboa inteira a história entre Carlos e a aventureira que
lhe preferira os braços aos que Dâmaso lhe oferecia, só
porque ele era mais rico.

Pág.31
Nem de propósito, do outro lado da rua passa o Dâmaso,
acompanhando o Gouvarinho e o Cohen, diante dos quais
Carlos o ameaça de lhe arrancar as orelhas caso ele persista
em continuar o falatório. Dâmaso tem, evidentemente, a
reacção de cobarde que era de esperar.

No dia seguinte, Carlos e Maria Eduarda encontram-se a sós


na quinta dos Olivais. Visitam demoradamente a casa, e ela
vai fazendo as suas críticas e sugestões, que Carlos toma
como ordens. A visita termina numa longa sesta dos dois:
para sossego dela, Carlos tapa com a coberta um quadro
onde se via a cabeça degolada de S. João Baptista e que
muito a impressionara…

O aniversario de Afonso da Maia reuniu no Ramalhete, no


dia a seguir áquele, o habitual grupo de amigos para o
jantar. Ao serão, Carlos é avisado de que á porta, numa
carruagem, alguém lhe quer falar. Era a Gouvarinho, que
vinha por uma explicação. Carlos, embaraçoso, tenta não a
magoar, e acobarda-se de lhe anunciar o rompimento. Mas
acabam por se despedir desabridamente. E há ameaças
veladas nas palavras dela.

Comentário
Do ponto de vista da acção, o capítulo tem três partes
capitais:

- o confronto entre Carlos e Dâmaso na sequência da


maledicência desde quando ao romance daquele;

Pág.32
- a passagem ao amor carnal da relação de Carlos com
Maria Eduarda, relação que até aí se mantivera no domínio
do puramento platónico;

- o rompimento com a Gouvarinho em circunstancias que


dão bem a medida da paixão da mulher e denunciam ao
mesmo tempo a cobardia de Carlos.

À margem, o episódio de Teles da Gama, enviado por


Dâmaso para saber se Carlos, ao ameaçar arrancar-lhe as
orelhas, tinha ou não intenção de o ofender, é uma
pequena maravilha de sarcasmo -e uma pincelada mais, e
bem cruel, no sóbrio retrato do carácter de Dâmaso.

De notar a minuciosa descrição que Eça faz da casa dos


Olivais -que está longe, no entanto, do realismo descritivo
de Júlio Dinis, por exemplo.

E atende-se, como um presságio de desgraça, na cabeça


degolada de S. João Baptista que, desde o princípio, tanto
apavora Maria Eduarda.

Capítulo XIV
No mesmo dia em que o avô parte para Santa Olávia, Carlos
instala Maria Eduarda na casa dos Olivais, e fica em Lisboa
só com o Ega, que depressa o abandona e se dirige a Sintra
onde os Cohens passam, o Verão.

Craft, entretanto, regressa de Santa Olávia e conta a Carlos


do grande desgosto do avô por ele não se ter dignado
aparecer. Com a aprovação de Maria , Carlos resolve dar um
Pág.33
pulo a Santa Olávia -afinal, deixar o avô para seguir Maria já
seria rude golpe no ancião. No dia da partida, e a pedido
dela, Carlos leva Maria a conhecer o Ramalhete e ali jantam
os dois. É lá que se dá o primeiro encontro de Maria
Eduarda com o Ega, que entretanto regressara a Sintra.

Poucos dias ficou Carlos em Santa Olávia. Mas, no próprio


dia em que regressa, recebe no Ramalhete a visita de Castro
Gomes. Recebera este uma carta anónima denunciando-lhe
a situação e vinha simplesmente dizer a Carlos que Maria
não é sua mulher, ele não é o pai de Rosa, Maria viera de
outros braços. Para a ter nos seus, emprestara-lhe o nome e
pagara-a. Na situação presente, limitava-se a tirar-lhe o
nome e a suspender-lhe a paga.

Carlos fica terrivelmente humilhado: afinal, a mulher por


quem se dispunha a tudo sacrificar não passava de uma
vulgar cocotte. Desabafa com Ega e concebe planos de
desforço: um cheque de pagamento, e breves linhas de
despedida frias como o gelo.

Acaba por resolver deslocar-se pessoalmente aos Olivais.


No caminho encontra Mélanie, a criadita de Maria, e por ela
sabe que Castro Gomes estivera nos Olivais e que a Senhora
ficara muito transtornada. De resto, Mélanie podia garantir
que, desde que viera para os Olivais, a senhora não gastara
um tostão do que Castro Gomes lhe mandava: a Senhora
vivia das suas jóias.

Pág.34
No encontro com Maria, esta é cruelmente recriminada por
Carlos. As suas lágrimas, as suas explicações e a dignidade
que assume acabam por o convencer de que ela não é a
mulher vulgar que vinha imaginando. A entrevista termina
com Carlos pedindo Maria Eduarda em casamento.

Comentário
O presente capítulo caracterizava-se por um inesperado
acelerar do desenvolvimento da acção, que até aqui se
vinha arrastando quase sonolenta. Eça esquece neste
capítulo praticamente tudo o que era moldura, e, tomado
de uma verdadeira febre narrativa, condesa nele a
instalação de Maria Eduarda nos Olivais, o relacionamento
inicial com Carlos, dois saltos qualitativos nesse
relacionamento com as pernoitas deste e o aluguer de uma
casa que as permitisse mais comodamente, a visita de Maria
Eduarda ao Ramalhete, o aparecimento de Castro Gomes, a
reacção de Carlos e a mudança nessa reacção.

Há, por outro lado, o acumular de pequenos sinais de


aparência insignificante, mas de que o autor se serve para
fazer adivinhar (ou pressagiar em alguns casos) eventos
futuros. Por exemplo, Dâmaso está presente neste capítulo
através das palavras de Taveira e das cartas do Ega; o
encontro de Carlos com Mélanie na Baixa explica que
realmente Maria vivia das suas jóias e não das mesadas de
Castro Gomes. No Ramalhete, Maria Eduarda, à vista do
retrato do pai de Carlos, confessa-lhe que, estranhamente,
acha Carlos parecido com a sua própria mãe. No que toca a
Pág.35
presságios, recordemos a trovoada que, com a lividez dos
seus relâmpagos, acompanhou a primeira noite que Carlos
passou com Maria.

Capítulo XV
No dia seguinte, após o almoço, Maria faz questão de
contar a Carlos toda a sua história. Nascera em Viena, mas
nada sabia do papá, a não ser que era nobre e belo. Tivera
uma irmã que morrera, e lembrava-se de, já mais crescida, a
mãe não tolerar que lhe fizessem perguntas sobre o
passado, e lembrava também o avô velhinho que lhe
contava histórias de navios.

Fora educada num colégio de freiras donde viera a sair para


acompanhar a mãe em andanças várias em que se
adivinhava uma vida pouco edificante com altos e baixos
conforme os acasos da fortuna. Fora numa dessas alturas
que se juntara a Mac Gren, um irlandês simpático, que
tencionava realmente casar com ela. Veio a morrer na
guerra. Maria e a mãe (Rosa agora também) conheceram as
agruras e a miséria do exílio em Londres, e fora depois do
regresso a Paris que conhecera Castro Gomes, a quem se
juntara numa situação de desespero. Mas, acentuou a
terminar, nas duas ligações anteriores, o seu coração, como
o seu corpo, permaneceram sempre frios.

Carlos dá, entretanto, conta a Ega de tudo o que se passou,


e faz notar que o que só lhe custa para realizar a sua
Pág.36
felicidade é o desgosto do avô irá ter. o bom velho não iria
perdoar a Maria o seu passado. Ega encontra a solução
luminosa de adiarem o casamento para depois da morte de
Afonso, sem embargo de se considerarem um ao outro
como marido e mulher.

Ega é o primeiro dos amigos de Carlos a ser admitido da


intimidade da Toca. Mas outros se seguiram, e aquele fim
de Verão foi verdadeira felicidade para Carlos.

Até ao dia em que na Corneta do Diabo, o jornal de Palma


Cavalão, um artigo reles apareceu a insultar Carlos e a sua
relação com Maria. Ega consegue suspender a tiragem e
avisar Carlos, a quem faz chegar um dos poucos exemplares
que saíram. Ega acha que a solução é comprar o Palma (o
mesmo que Carlos encontrara em Sintra com as
espanholas) e obrigá-lo a vomitar o nome do inspirador
daquele nojo. A troco de cem mil reis, Palma dá o nome
(Dâmaso Salcede) e fornece as provas. Carlos pensa que
chegou a altura de esmagar Dâmaso. Manda o Ega e o
Cruges desafiá-lo para um duelo, com a alternativa de
assinar uma carta a declarar-se um infante. Assustado,
Dâmaso assina mesmo a carta redigida pelo Ega, em que,
além de desdizer quanto dissera, se confessa um bêbado
incorrigível. Carlos está vingado e Ega também dos
suspeitados amores do Dâmaso com a sua Raquel Cohen.

Aliás, a vingança do Ega só fica completa quando consegue


a publicação da carta A Tarde. A Afonso da Maia, entretanto
regressado de Santa Olávia, contam o episodio, ocultando
Pág.37
os episódios comprometedores dos amores de Carlos. E,
para espanto deles, o velho, sensatamente, acha que foi
nobre a atitude do Dâmaso desagravando o amigo que
ofendera.

Comentário
Este capítulo é, de longe, o mais longo de todo o romance.
Para tanto, contribuía a narrativa completa da sua vida que
Maria faz a Carlos -e que o desenvolvimento da acção
plenamente justifica -mas também a demora com que o
autor distingue a ida do Ega à redacção de A Tarde para
conseguir a publicação da carta de Dâmaso, e que, do
escrito ponto de vista da arquitectura do romance, se pode
considerar exagerada. Diga-se, no entanto, que com ela Eça
nos introduz nos bastidores onde actuam os actores
secundários do grande palco política. De facto, depois de
nos mostrar um Gouvarinho já sobejamente nosso
conhecido, finalmente alcandorado à posição de ministro,
travamos conhecimento com o pequeno político de
província a quem a capital sempre deslumbra. E ficamos a
conhecer também alguma coisa do que era o mundo dos
jornais: primeiro pela intromissão do jornal do Palma na
vida de Carlos, depois pela intromissão do Ega na redacção
de A Tarde. Note-se, aliás, que é a primeira vez, desde as
corridas de cavalos, que o autor se permite um desvio
narrativo do tema central do romance, para voltar a focar
aspectos da sociedade portuguesa do último quartel do
século XIX. Como sempre, o retrato não é lisonjeiro.

Pág.38
Capítulo XVI
Com Maria já instalada na Rua de S. Francisco terminara aí o
jantar, e Ega insista com Carlos para irem ao sarau de
beneficência que se realizava na Trindade em favor das
vítimas das cheias.

Carlos, relutantemente a principio, rende-se à ideia de ir, já


que o Cruges era um dos actuantes. Juntamente com o Ega,
suporta estoicamente o discurso de um parlamentar
arrebatado, a actuação do Cruges, e assiste ao triunfo do
Alencar, que recita um poema seu, dedicado à Democracia,
tudo intercalado com idas ao botequim e conversas de
corredor com os conhecidos.

É no botequim que, pela mão do Alencar, o ega trava o


conhecimento com o Sr. Guimarães, o tio do Dâmaso, que
se sentira atingido pelas declarações do sobrinho na
célebre carta que o Ega redigira. O sobrinho alegara que a
assinara sob coacção. Mas, sabendo-o mentiroso, o Sr.
Guimarães (em Paris, no Rappel onde trabalhava, era
conhecido por M. Guimaran) apenas desejava que o Sr. Ega
declarasse que não o considerava um bêbado -coisa que o
Ega fez sem dificuldade, pois, além do mais, simpatizara
com aquele patriarca anarquista e republicano.

Carlos, tendo apercebido o Eusebiozinho a sair do sarau,


foi-lhe no encalço e cobrou-lhe uma tareia a intervenção
que tivera no caso da Corneta. Mas, quando se tratou de
Pág.39
regressarem a casa, os dois amigos Carlos e Ega,
desencontraram-se, e Ega caminhava com o Cruges pela
Rua Nova da Trindade, quando se ouviu chamado pelo Sr.
Guimarães.

O caso é que o Sr. Guimarães sabia o Sr. Ega íntimo do Sr.


Carlos da Maia. E ele, Sr. Guimarães, fora muito amigo, em
Paris, da mãe de Carlos, que lhe confiara, antes de morrer,
um cofre onde estariam, segundo ele, papéis importantes.
Como estava de partida, pedia ao Sr. Ega que entregasse o
cofre ou Sr. Carlos ou a irmã. E, perante a estupefacção do
Ega, o Sr. Guimarães revela candidamente ao Ega que Maria
Eduarda era irmã de Carlos -aliás, o Sr. Ega devia estar ao
corrente… Ega não estava ao corrente, mas, sem se dar por
achado, arranca do Sr. Guimarães a história que, em tudo e
por tudo, condiz com a Maria Eduarda contara a Carlos. E,
de posse do cofre, correndo para o Ramalhete, Ega realiza,
atordoado, a enormidade da situação: Carlos amante da sua
irmã! Que fazer? Indeciso primeiro, toma depois a resolução
de não pactuar com essa situação hedionda e de contar
tudo ao Vilaça, o procurador dos Maias, para que seja este a
dar a notícia a Carlos.

Comentário
Eça prossegue o seu trabalho demolidor da crítica da
sociedade portuguesa. Neste capítulo -quiçá o mais denso
e dramático no contexto da acção -a maior parte do tempo
passa-a ele a descrever com toda a minúcia um sarau de
beneficência, acrescentando mais um quadro à galeria de
Pág.40
instantâneos que alinhou em Os Maias sobre o nosso viver
colectivo.

Como se disse, este capítulo alberga o dado-chave de todo


o romance: o facto de Maria ser irmã de Carlos. É o tema do
incesto, que exerceu sobre Eça um fascínio muito especial.
Notem-se dois pormenores:

- a revelação, feita embora à margem do Dâmaso, é


ocasionada por ele: o Sr. Guimarães só vem à fala com o
Ega por causa da célebre carta do Dâmaso;

- é o Ega que recebe, em primeira mão, a revelação, feita


com absoluta inocência pelo Guimarães, do parentesco de
Carlos com Maria Eduarda.

A primeira destas circunstâncias é tristemente irónica:


Dâmaso tinha nas mãos, sem o saber, a arma com que
poderia ter aniquilado Carlos na sua paixão. De qualquer
modo, este remate ainda ligado (e o autor sublinha-o) à sua
pessoa, justifica o negrume das tintas com que sempre foi
descrito. A segunda faz indiscutivelmente do Ega a figura
central do presente capítulo, e confirma-o em posição de
privilégio, que já se vem adivinhando de há muito drama de
Carlos.

Capitulo XVII
O criado acordou Ega à hora pedida por este. Mas, passada
a noite, o caso pareceu a Ega não revestir a urgência com
Pág.41
que se lhe apresentara na véspera. Foi a casa do Vilaça e
não o encontrou, o que lhe deu pretexto para adiar. Só
depois de almoço consegui enfim conversar com o
procurador a quem contou tudo e entregou a caixa. O
procurador via as coisas mais pelo lado prático do dinheiro
e farejava golpe para se apoderarem da avultada herança
dos Maias. Rendeu-se finalmente: a caixa continha, entre
outras coisas, uma declaração solene em que Maria
Monforte da Maia (assim assinava) declarava que Maria
Eduarda era filha de Pedro da Maia.

Nessa mesma noite o Vilaça tentou falar com Carlos: em


vão. Só no dia seguinte isso foi possível: o Ega chegou a
tempo de confirmar as palavras do procurador.

Carlos fica compreensivelmente transtornado e, vendo o


avô entrar no quarto, põe-no ao corrente do que se passa,
tentando encontrar no velho o alívio de um desmentido.
Mas o avô nada sabia: sempre pensara que a neta morrera.
Viu-se, porém, que ficou visivelmente abalado -o que não
seria natural, se apenas visse no evento o aparecimento da
neta… E confidenciou ao Ega que estava a par de tudo:
sabia da mancebia de Carlos com a irmã.

Punha-se agora o problema de esclarecer a situação com


Maria. Ega entendia que Carlos devia partir para Santa
Olávia, e, de lá, escrever a contar tudo.

O jantar foi triste, apesra da presença dos amigos habituais.


Carlos resolve, entretanto, dirige-se à Rua S. Francisco e

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engendra um plano de revelação gradual da brutal verdade
a Maria Eduarda. Uma vez, porém, em casa desta, a paixão
domina-o e possui-a, uma primeira vez, já consciente do
parentesco.

De resto, a viagem para Santa Olávia sugerida pelo Ega ia


sendo adiada, e Carlos continuou a passar as noites
dormindo com a irmã. Perante este comportamento, Ega
resolve ser ele a partir: não podia assistir impávido à
incestuosa relação de Carlos com a irmã. As súplicas de
Carlos demovem-no, porém, deste projecto.

Carlos, aliás, que por momentos sentira a tentação de deitar


ao diabo todas as convenções e de fugir tomando como
mulher a que sabia ser sua irmã, começa agora a sentir por
ela, no amor, uma certa repugnância física.

Uma noite, ao regressar ao Ramalhete, vindo dos braços de


Maria, Carlos cruzou-se com o avô que o varou com os
olhos sem nada dizer. No dia seguinte, de manhã, o velho
morria fulminado no banco do jardim.

Carlos toma morte do avô como um castigo. Prepara-lhe o


funeral e pede ao Ega que avise Maria do acontecido. Parte
depois para Santa Olávia e deixa ao Ega o encargo de
revelar a Maria a terrível verdade, e de lhe pedir que parta
para Paris, dando-lhe desde logo mais que suficiente para
ela poder viver.

Ega procura Maria Eduarda, que se admira mansamente do


facto de Carlos ter partido sem uma palavra para ela. Ega

Pág.43
revela-lhe parte da verdade, pede-lhe que parta para Paris,
entrega-lhe o dinheiro e a carta onde se revelava o terrível
segredo, pedindo-lhe, no entanto, que o dispense de
assistir a essa leitura.

Maria parte para Paris num vagão que Vilaça reservara para
ela. Ega espera-a em Santa Apolónia e pode testemunhar a
dignidade com que assume a tragédia que a atingiu. Ega
segue no mesmo comboio para o norte. Despedem-se no
Entroncamento, onde Ega a vê pela ultima vez.

Comentário
O presente capítulo, em nossa opinião o mais dramático de
todo o romance, é indubitavelmente um dos mais densos
de acção. Pode dizer-se que esta atingiu o clímax no
capítulo anterior, quando se torna clara a enormidade da
situação vivida entre Carlos e Maria Eduarda. Era a
dimensão ontológica do facto -que só adquire o estatuto
de tragédia ao alcançar a dimensão psicológica mediante a
tomada de conhecimento pelos interessados: a essa dá-se
neste capítulo.

O romancista equilibrou bem a narrativa, limitando à de


Carlos a exteriorização das reacções dos protagonistas: o
artifício para não se deter nas de Maria Eduarda é
engenhoso e feliz. De resto, Maria Eduarda é quem sai
dignificada de todo este transe.

Pág.44
O romance podia perfeitamente acabar aqui, e essa teria
sido, em nossa opinião, a solução estética mais perfeita. De
facto, e como se verá, o capítulo final soa bastante a
«moralidade» (o epimythion das fábulas gregas) - uma
moralidade queirosiana, de uma fábula queirosiana no
Portugal do século XIX.

Capítulo XVIII
Carlos parte com Ega para uma longa viagem através do
mundo. Ega regressa a Lisboa, e Carlos fica a viver em Paris
a vida de um príncipe da Renascença, regressando a
Portugal e só por duas semanas, apenas ao fim de dez anos
de ausência. É o reencontro de Carlos com todos os velhos
conhecidos e a verificação dos caminhos que cada uma fora
percorrendo. A visita ao Ramalhete é lúgubre e, durante ela,
o Ega comente com Carlos a grande noticia que este
trouxera: Maria Eduarda ia casar com um fidalgo francês,
um vizinho, membro provavelmente da nobreza rural. Esse
casamento era para Carlos o enterro definitivo daquela
atribuída fase da sua vida. Ambos concordam então em que
lhe falharam na vida. Ambos dizem que nada os faria
apressar o passo.

Iam já na rua quando Carlos se apercebe de que estão


atrasados para o jantar, e desatam a correr para apanhar o
«americano» que, entretanto, enxergaram ao longe.

Pág.45
Comentário
Estamos claramente no epílogo. Da acção, nada que
interesse, a não ser o desfecho para as vidas de Carlos e
Maria Eduarda -que ainda desta vez sai favorecida.

Quanto ao mais:

- os últimos retoques na imagem soturna da sociedade


portuguesa, em contraste com a beleza da terra;

- o diagnóstico dos males de Portugal: não ter criado um


figurino próprio e ter adoptado, exagerando tudo, os
figurinos alheios;

- a confissão do fracasso rotundo de uma geração


personificada em Carlos e Ega: «Não sabe a gente para
onde se há-de voltar… E se nos voltamos para nós, ainda
pior.»

Note-se, por último, a ironia final de Carlos e Ega, correndo


atrás do «americano», enquanto convictamente proclamam
que nada na vida os faria apressar o passo.

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