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Alceu Amoroso Lima disse ao Pasquim: “O Marcuse é justamente um filosofo que erigiu o

erotismo como a filosofia da vida”. Admiro Alceu Amoroso Lima por vários motivos e
principalmente pela sua capacidade de mudar de opinião de maneira sincera e inteligente – a
coerência perfeita quase sempre se ancora na mediocridade intelectual – mas Marcuse nunca
fez essa “ereção”. O pós-marcusiano, Norman O. Brown, sim, mas ainda nele o termo erotismo
tem um sentido amplo e abrangente de toda a energia humana, expressando um extremo
materialismo, enquanto o erotismo condenado por Alceu – e, depois da entrevista, pelo Papa –
é o do Playboy, subúrbios e adjacências.

As coisas que Marcuse não disse e que dizem que ele disse, já dariam para preencher uma
obra apócrifa de razoáveis dimensões. É impossível entendê-lo sem um conhecimento básico
das formulações culturais de Freud, as quais Marcuse submete à sociologia moderna. Revistas
populares do tipo Time afirmam a decadência freudiana no mundo inteiro, baseando-se nas
legiões de revisionistas da psicanálise, que puseram antolhos na visão serena e trágica de
Freud da existência, convertendo a terapêutica psíquica numa espécie de “aquele abraço” para
todas as dificuldades, excetuando-se, naturalmente, aquelas que provoquem o não pagamento
das consultas. Marcuse desanca essa gente de forma definitiva no epílogo de Eros e
Civilização (Zahar Editores, Rio). Perde tempo, a meu ver. Como o álcool, drogas e mulher do
próximo, a micro-psicanalise tem os seus usos. Sem resolver nada, consola. Não é essa uma
boa metáfora dos prazeres de nossa civilização?

Se Freud parece severo e antiquado aos ideólogos da sociedade de consumo, sua


“reabilitação” junto aos pensadores modernos ganhou força meteórica. Era anátema para
marxistas-stalinistas. Hoje, Lacan e Althusser o colocam entre os raros cérebros
revolucionários de nossa era. Marcuse, sem inibições comunistas, foi quem desbravou essa
interpretação de Freud às últimas conseqüências culturais em Eros e Civilização. O que fascina
a todos é a dialética de instinto e cultura – esse, por falar nisso, o tema de Eros e Civilização e
de Life Against Death, de Norman O. Brown, e não o erotismo, no sentido usual. Segundo
Freud, o homem tem um cerne biológico, “animal”, se preferirem, irremovível pelas influencias
externas, pelo desenvolvimento social e cultural. Ele aí entra na análise do famoso Complexo
de Édipo, como ponto de partida da História humana. Deixemo-lo de lado, entretanto, para
horror certo de freudianos ortodoxos. Não porque seja inverdadeiro, mas, sim porque
desnecessário à aceitação universal da hipótese freudiana. O homem, continua Freud, vem
entretanto, evoluindo culturalmente, sem parar. Mais e mais domina a natureza e a põe a seu
serviço, etc. Esse processo só se concretiza, porém, a custa da repressão cada vez maior do já
referido cerne biológico. De Platão a nossas dias, poderíamos dizer que nos espiritualizamos
na medida que nos desanimalizamos. A fera aspira à condição de anjo.

Mas a fera sobrevive e reage, e daí o nosso sofrimento, culminando na consciência


onipresente da morte. Apesar disso, Freud via na repressão das exigências instintivas do
Complexo de Édipo o primeiro e decisivo ato de autocontrole do homem, da espécie. Mas,
repito, ninguém precisa acompanhá-lo nessa conclusão para depreender a relevância de sua
tese.

Os marxistas da escola Althusser não tiveram dificuldades de substituir “instinto” por “proletário
alienado”, e “cultura” pelo “sistema capitalista”. Transferiram o conceito freudiano de pressão
do indivíduo para a classe operária. Também, o que jamais confessam, sentem-se estimulados
a imitar o “psicologismo” de Freud, ao analisarem fenômenos como o nazismo.

A origem de classe do nazismo engasgou diversos marxistas geralmente loquazes. Até Brecht
teve a audácia de dizer que a perseguição aos judeus era um “disfarce” dos objetivos
anticomunistas de Hitler. Trotsky, ao menos, chegou perto da verdade, ao definir o nazismo
como “a pequena burguesia ensandecida”. O fanatismo idólatra dos trabalhadores alemães
pelo führer pedia um Freud, pois se os operários do III Reich agiram contrariando seus
interesses sociais, segundo a fórmula marxista, imaginem o que teriam feito ao mundo se
fossem amigos de Hitler. Freud, de saída, definiu os eventos na Alemanha, a partir de 1933,
como a eclosão homicida de profundas frustrações. Sartre também tem algumas coisas
interessantes a dizer sobre o assunto, em “A Crítica da Razão Dialética”, mas Freud o
precedeu de muitos anos.

Marcuse vai muito além de Althusser ou de Lacan. É mais fiel Freud, mantendo o papel de
destaque do sexo descoberto pelo último. Com uma diferença fundamental: Freud achava
indispensável a submissão dos instintos à criatividade cultural do homem. Marcuse acredita
que o sexo – a energia instintiva em todos nós – pode ser uma força libertadora da repressão
cultural. Virou Freud de cabeça para baixo.

Marcuse não foi tão longe como Norman O. Brown, que dá uma cambalhota tripla em Freud.
Para Brown, à maneira do Juquinha, tudo é sexo. Ele é mais extremado do que outro discípulo
dissidente de Freud, Wilhelm Reich (A Revolução Sexual já existe em português, Zahar
Editores, Rio). Reich estendeu-se sobre as repercussões e possibilidades do ato sexual, em si,
o que para Brown consiste numa limitação inaceitável. Brown pretende um corpo pleno e
absoluto. Uma totalidade sensual permanente. Alega que o homem é o único animal a morrer a
contragosto em virtude de não ter essa consciência corpórea. Na literatura, encontramos
alguns ecos de Brown em D.H. Lawrence (mais de Reich do que de Brown) e, principalmente,
no Norman Mailer de “The White Negro”, assim como em aspectos da subcultura hippie.

Marcuse e Brown, amigos, brigaram por causa disso. A polêmica está no livro do primeiro,
Negations.

O objetivo deste artigo é chamar o leitor para o interesse e a importância de Freud, fora dos
esquemas popularizados pelo Reader’s Digest e nossas amigas neuróticas. Freud tem outra
vantagem: escreve com admirável clareza e simplicidade (formal), ao contrario de Marcuse ou
Brown, sujeitos a buracos e pedregulhos estilísticos.

O problema de repressão e sublimação (a saída para as realizações culturais) está sempre


conosco, desde que nascemos, quando mamães e babás nos impedem de fazer as coisas
quando e onde queremos. Quem brinca, não trabalha, etc. É de uma simplicidade tão grande
que só um gênio seria capaz de descobri-la. Particularmente, prefiro a versão de Marcuse à do
próprio Freud e a de Brown. Sexo, neste sentido, do uso pleno da nossa vitalidade física em
busca do autoconhecimento, da formação de comunidades de seres humanos afins, parece um
antídoto ao totalitarismo cultural da época. O excesso de Brown me parece inviável nessa fase
da civilização. Talvez as gerações futuras o confirmem.

Vivemos ainda, porém, no mundo descrito por Freud. A repressão a que ele refere está longe
de ser apenas autoinfligida ou de qualquer resultados sempre benéficos. Há de tudo.

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Sobre esta nota introdutória a Freud recebi de Alceu Amoroso Lima uma carta que
público, por permissão do autor, como um adendo valioso ao tema:

Rio, outubro de 1969

Meu caro Paulo Francis,

Não costumo explicar o que escrevo. Mas admiro tanto o que você escreve, mesmo sem
partilhar de suas convicções profundas, que me deu vontade de dizer duas palavras sobre seu
comentário, tão simpático, no último número do Pasquim, à minha entrevista.

A palavra Erotismo é ambígua por natureza. Qual a que não é? Quando a empreguei, em
relação a Macurse, foi exatamente no sentido mais amplo, admitindo inúmeros entretons. Mas
como um ponto extremo e antitético à concepção cristã do Amor. Tanto a filosofia cristã da
vida, substancialmente antimaterialista, mas incluindo de tal modo a matéria em suas linhas
mestras, que Teilhard de Chardin pôde escrever em seu admirável “Hino à Matéria” – como o
materialismo integral, no sentido “browniano” (tão diverso do materialismo vulgar) – fazem do
Amor o eixo da vida da verdade. Há pois entre essa dupla integralização – a Espiritualista e a
Materialista – digamos assim um eixo comum. Apenas se colocam na ponta extrema, oposta
desse eixo. E por isso podemos falar de Eros, o ponto extremo do eixo, segundo, os
materialistas, tipo Freud, Marcuse ou Brown, e de Agape, o extremo oposto, em que o amor
assume a sua translucidez absoluta em Deus, que “é Amor”. “Deus charitas est”, segundo a
definição joanina. Foi o que tentei fazer num artigo “Eros e Agape” (Jornal do Brasil, 19 setº
69).

Ora, quando disse, de passagem na minha entrevista, que o erotismo era para Marcuse uma
filosofia de vida, entendia genitalismo para distinguir de sexualismo, mas no sentido filosófico.
É provável que Marcuse, como você tão bem o desenvolveu, não tenha chegado a uma
concepção total do erotismo, como Freud ou Brown ou Reich, mas tampouco o entendeu no
sentido vulgar da expressão, tipo Playboy. Eleva-o a uma concepção filosófica da vida, de tipo
muito mais profundo que o simples erotismo burguês que assola o mundo moderno e é sinal
patente, como o nudismo, de uma civilização decadente e que se despe para morrer. Marcuse
não é um Ovídio do século XX.

Se não aceito a filosofia erótica da vida, tanto no sentido ovidiano como no sentido marcusiano,
não a confundo com o erotismo do Reader’s Digest ou do Time, muito menos do Playboy. É
que aceito o agapismo (se assim posso dizer) que se coloca no extremo oposto, embora
situado no mesmo eixo da verdade, em que o Amor é supremo. Agape não é uma negação de
Eros. É a sua espiritualização, imamente e mesmo transcedente, na mesma linha em que
gênios poéticos opostos se encontram: Baudelaire (voltado para Eros) e Claudel (voltado para
Agape).

São esses, em resumo, os comentários que seu excelente artigo me despertou e que me
valem a oportunidade de dizer-lhe o prazer que tenho de o ler, mesmo quando discordo e
quanto o admiro.

Do confrade amigo e admirador

Alceu Amoroso Lima.

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