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A criança é o pai do homem:

DEBATE DEBATE
novos desafios para a área de saúde da criança

Child is the father of man: new challenges for child health

Maria Elisabeth Lopes Moreira 1


Marcelo Zubaran Goldani 2

Abstract This paper offers an analysis of current Resumo Este artigo traz uma análise do atual
demographic and epidemiological context in which contexto epidemiológico e demográfico onde a
the child falls and addresses the need to the refor- criança se insere e trata da necessidade de refor-
mulation of the health services intended for child mulação dos serviços de saúde destinados ao cui-
care, pointing also to the question of the need to dado a criança, apontando também para a ques-
produce new knowledge that help them in a new tão de que é necessária a produção de novos co-
pediatrics care. The knowledge that child care needs nhecimentos que dêem conta de uma nova pedia-
to be expanded to take into account acute prob- tria. O conhecimento de que o cuidado aplicado à
lems and disease prevention in the long run, even criança precisa ser ampliado de forma a contem-
in adulthood, introduces a new field for pediatrics plar problemas agudos e prevenção de doenças a
that also demands the formation of new research- longo prazo, inclusive na vida adulta, introduz
ers who can give the children opportunities to be um novo campo de ação para a pediatria, exigin-
included in research on drugs and other thera- do também a formação de novos pesquisadores
peutic proposals addressed to them. In conclusion, que dêem às crianças oportunidades de serem in-
health care strategies concentrated particularly on cluídas em pesquisas com medicamentos e outras
children with all their specificity, a growing and propostas terapêuticas a elas endereçadas. Con-
developing human being, need to be implemented cluindo, novas estratégias relacionadas ao cuida-
in the health services so that they can grow well do à criança e à formação de novos pediatras e
and become healthy adults. pesquisadores, que dêem conta do cuidado de um
Key words Pediatrics, Child care, Demography, ser humano em crescimento e desenvolvimento,
Research com todas as suas especificidades, precisam ser
implementadas nos serviços de saúde e no campo
da produção de conhecimentos, para que estas
possam crescer e se tornar adultos saudáveis.
Palavras-chave Pediatria, Cuidado da criança,
Demografia, Pesquisa

1
Instituto Fernandes
Figueira, Fiocruz.
bebeth@iff.fiocruz.br
2
Universidade Federal do
Rio Grande do Sul.
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Moreira MEL, Goldani MZ

Introdução drão nutricional da população humana, direta-


mente associada às modificações na quantidade
Nos últimos anos, o perfil das taxas de mortalida- e qualidade da dieta, relacionando-se com mu-
de infantil tem mudado substancialmente. As po- danças econômicas, demográficas, ambientais e
líticas públicas de saúde, endereçadas ao tratamen- culturais ocorridas nas sociedades nos últimos
to precoce das pneumonias e diarréias, associadas quarenta anos3,4 . No Brasil, a elevação do nível
a um grande esforço na prevenção das doenças de escolaridade materna, aumento do poder de
infecciosas por meio das vacinações, contribuí- compra das famílias e ampliação do acesso aos
ram significativamente para a redução da morta- cuidados de saúde foram determinantes para essa
lidade entre os dois meses e cinco anos de vida, mudança5.
propondo novos desafios a serem enfrentados Todavia, seria importante salientar que essa
através da produção de novos conhecimentos. série de fenômenos ocorridos nas últimas déca-
O novo cenário estabelecido no campo da saú- das no mundo foi permeada por características
de da criança e do adolescente provocou o surgi- sociais peculiares a cada país. No caso do Brasil,
mento de um campo específico da pesquisa bio- esse processo sofreu a influência do alto grau de
médica, consequência de um processo de transi- desigualdades em saúde, produzindo um vasto
ção epidemiológica e demográfica, ocorrido ao número de diferenças no desenvolvimento desse
longo do último século. Inicialmente, nos países fenômeno. Assim sendo, diferenças geográficas,
desenvolvidos, a melhoria das condições sociais, em relação ao gênero e às gerações acentuam uma
levando ao arrefecimento das taxas de mortali- grande diversidade de aspectos desse processo
dade infantil, redução das taxas de fertilidade e o de transição. Mulheres teriam a propensão de
envelhecimento das populações, determinou um serem menos obesas, as classes mais privilegia-
novo padrão de saúde doença, no qual as taxas das apresentariam maior chance de obesidade, a
de enfermidade agudas e infecciosas foram su- redução de mortalidade infantil e a fertilidade
plantadas em termos de prevalência por molésti- ocorreriam preferencialmente em localidades e
as crônicas e degenerativas1. Neste sentido, os in- locais mais desenvolvidos. Enfim, longe de se
divíduos passaram a viver por mais tempo, po- apresentar como um processo homogêneo, a
rém, em contrapartida, passaram a ficar mais tem- transição demográfica epidemiológica determi-
po doentes. Na esteira desse intenso processo de nou, em alguns casos, um aumento das diferen-
transição demográfica e epidemiológica, a elabo- ças e desigualdades em relação a alguns desfe-
ração de novas linhas de causalidade foi necessá- chos. Em outros, inversamente, produz similari-
ria para tentar esclarecer as novas associações dades, em consequência da utilização indiscrimi-
entre eventos precoces e desfechos muito tardios. nada de novas tecnologias versus a escassez de
No Brasil, esse mesmo processo de transição acesso às mesmas6.
desenrolou-se timidamente até a metade do sé-
culo passado, apresentando um revés significati-
vo ao longo do período da ditadura militar, em A criança
consequência da redução dos investimentos so- no contexto da transição epidemiológica
ciais e da renda média familiar. A partir de mea-
dos da década de setenta, com a melhora paula- Em relação à criança, tornaram-se necessárias,
tina das condições sociais do país e a redução do também, mudanças nos modelos de atenção à
preço de alimentos, notou-se uma retomada da saúde. Modelos hospitalocêntricos não são mais
queda da mortalidade infantil, principalmente na suficientes para dar conta da “nova pediatria”
última década do século passado2 . Ao mesmo que as demandas e os conhecimentos atuais vêm
tempo, ocorreu uma elevação da expectativa de impondo. Desafios relacionados a tratamento e
vida, seguindo uma tendência há muito identifi- prevenção de doenças impõem-se como fortes
cada nos países industrializados. demandas para a criação de um novo modelo de
Nota-se também nesse período o início da cuidado para garantir a saúde de um indivíduo
redução significativa das taxas de desnutrição, em crescimento e desenvolvimento. Neste senti-
gradativamente substituída por um aumento nas do, a integração dos novos conhecimentos pro-
taxas de sobrepeso e obesidade em todos os es- duzidos com os avanços tecnológicos e a nova
tratos etários3,4 . Esse fenômeno, adjacente ao demografia que se apresenta aponta para um
processo de transição epidemiológica e demo- modelo de cuidado ampliado, visando à preven-
gráfica, denominado como transição nutricio- ção das doenças infantis e, também agora, das
nal, caracteriza-se pela rápida mudança do pa- doenças do adulto.
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Os resultados da Pesquisa Nacional de De- Atualmente, nos países desenvolvidos, 90%
mografia e Saúde da Criança e da Mulher de das crianças nascidas com doenças crônicas al-
2006 demonstram uma diminuição, em núme- cançam a idade adulta. O aumento significativo
ros absolutos e relativos, de crianças nas faixas de crianças com necessidades especiais em saúde
etárias de 0 a 4 e 5 a 9 anos, bem como uma (CNES), que demandam um alto grau de cuida-
redução da taxa de fecundidade para níveis em dos ao longo da vida, produziu pelo menos dois
torno de 1,8 filhos/mulher associado a um au- fenômenos importantes na área da assistência à
mento da expectativa de vida da população bra- saúde e de administração de recursos9. Em pri-
sileira7. Estes indicadores apontam para a neces- meiro lugar, o diagnóstico precoce de doenças
sidade de reorganização dos serviços de saúde, potencialmente crônicas ou a sobrevivência de
organizados atualmente em torno do cuidado crianças com sequelas permanentes determina-
agudo ao adulto, com baixo investimento para a ram uma especificidade de assistência à saúde
prevenção precoce das doenças crônico-degene- dedicada a prestar cuidados por longos perío-
rativas ainda na infância. A Tabela 1 apresenta as dos, muitas vezes durante todo o ciclo vital do
diferenças entre os indicadores de saúde em dez indivíduo, em um modelo que deve ser necessa-
anos apontados pelos resultados da Pesquisa riamente clínico-desenvolvimentista. Em segun-
Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da do lugar, mudanças epidemiológicas e demo-
Mulher (PNDS), 1996 e 20067,8. gráficas suscitam questões relacionadas à admi-
O fato é que há uma nova realidade relacio- nistração de recursos humanos e financeiros,
nada à saúde da criança no mundo inteiro, com promovendo a necessidade de implantação de
boas e más novidades. A mortalidade infantil caiu, novas estratégias de assistência e aperfeiçoamen-
as taxas de aleitamento materno aumentaram, o tos do sistema de saúde.
acesso às vacinas aumentou, assim como o aces-
so ao pré-natal. Por outro lado, o número de
partos prematuros aumentou e também a inci- As peculiaridades da infância
dência de obesidade. Outra questão que se apre- que impactam na atenção à saúde
senta é o aumento do número de crianças com
doenças crônicas. O acesso às tecnologias mo- A infância é um período único na vida e este pe-
dernas e sofisticadas permitiu o aumento da so- ríodo tem fortes influências na vida adulta. For-
brevida de crianças que antes não sobreviveriam rest et al.10, em um artigo publicado no JAMA em
– pré-termos extremos, portadores de malfor- 1997 para explicar por que a infância é um perío-
mações congênitas e doenças crônicas –, criando do fundamental da vida humana, descrevem
uma nova clientela que precisa ser atendida nos quatro características que a distinguem (4 Ds):
serviços de saúde e que demanda um alto nível 1) desenvolvimento (a criança é um ser em de-
de cuidado da sociedade: a criança dependente senvolvimento e sua saúde depende do seu pa-
de tecnologia. drão de crescimento e desenvolvimento em geral

Tabela 1. Diferenças entre os indicadores de saúde em dez anos.

1996 2006
Taxa de fecundidade % 2,5 1,8
Taxa de fecundidade entre 15-19 anos % 17 23
Pré-natal com sete ou mais consultas 47 61
Mulheres que receberam vacina contra tétano na gravidez % 64 70
Taxa de cesárea % 36 44
Prevalência de desnutrição na infância % 13,5 6,8
Obesidade na infância % 4,9 7
Aleitamento materno exclusivo entre 1-3 meses % 40 45
Mortalidade infantil 39/1000 22/1000
Duração mediana para aleitamento materno 1 mês 2,2 meses
Fonte : PNDS 1996 e 2006 7,8
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e em especial do desenvolvimento cognitivo e A criança é o pai do homem:


emocional); 2) dependência (as crianças depen- desafios e oportunidades
dem de um cuidador para que tenham acesso
aos cuidados à saúde e em especial à prevenção A criança é o pai do homem e não importa que
às doenças); 3) diferenças (crianças apresentam tenha sido Wordsworth ou Freud o autor da fra-
um aspecto epidemiológico diferente em relação se. As condições de saúde no início da vida são
à presença da doença e aos riscos de sequelas, ou fortes determinantes da saúde do adulto e isto
seja, são muito mais vulneráveis aos insultos); não tem merecido atenção suficiente ainda nos
4) demografia (o perfil demográfico das crian- dias de hoje. Entretanto, os novos conceitos tra-
ças também é diferente; as mais vulneráveis vi- zidos pela epigenética sobre como as interações
vem em condições de maior pobreza, com me- entre genes e ambiente podem modificar um tra-
nos acesso aos serviços de saúde, o que poderia ço ou uma predisposição genética sem alterar o
dar origem a um quinto D: 5) desigualdade. genoma têm merecido atenção e devem modifi-
O cuidado às crianças necessariamente en- car o olhar sobre a criança. Epigenética é um
volve características de seu desenvolvimento, que campo da biologia que estuda as interações cau-
se não forem abordadas afetarão sua saúde e sais entre genes e seus produtos que são respon-
desempenho na vida adulta e, portanto, a socie- sáveis pela produção do fenótipo. Assim sendo,
dade em que vivem. Vigilância relacionada a ques- a história de vida dos sujeitos, começando na
tões anteriormente pouco valorizadas nos servi- infância com o padrão nutricional, de crescimento
ços de saúde, como oportunidades de aprendi- e hábitos de vida, pode influenciar o fenótipo do
zagem, monitoramento de alterações de compor- individuo e, consequentemente, sua qualidade de
tamento, prevenção de acidentes, identificação de vida futura e isto pode mudar o olhar sobre a
violência familiar e abusos domésticos, é funda- saúde da criança14.
mental para a promoção da saúde e parte im- Nesse cenário, a teoria da origem desenvolvi-
portante do adulto que no qual a criança se trans- mentista da saúde e da doenças (DOHaD, do in-
formará. A criança é um ser em crescimento, em glês developmental origins of health and disease),
direção a uma vida adulta saudável e, por isto, sustentada inicialmente por uma série de axio-
alterações no seu processo de crescimento/desen- mas e após por demonstrações empíricas e expe-
volvimento vêm sendo utilizadas ao longo do rimentais, surge como uma área de pesquisa de-
tempo no diagnóstico das condições de saúde de dicada a esclarecer as relações entre eventos ocor-
uma dada população. Este conceito já é utilizado ridos em fases precoces do desenvolvimento e
desde a vida fetal, na medida em que os obstetras determinados padrões de doença e saúde ao lon-
se utilizam da avaliação do crescimento intra- go da vida. A construção de novos conhecimen-
uterino como indicador de bem-estar fetal. Além tos advindos dessa área foram oferecidos para
disto, a média da estatura final das populações demarcar mudanças tanto de ordem financeira
ou subpopulações é usada como proxy das con- organizacional como também em termos de po-
dições socioeconômicas de regiões e países em líticas públicas na área da saúde e do bem-estar
diferentes épocas da história. São bem conheci- social15-17.
dos no meio acadêmico e pediátrico os estudos O conceito de DOHaD surgiu da idéia origi-
de Engels sobre o déficit de crescimento das cri- nal desenvolvida por Barker e denominada ori-
anças inglesas que trabalhavam em fábricas na gem fetal da doença do adulto (FOAD, do inglês
época da revolução industrial e os de Stern, com- fetal origins of adult disease)17. Contudo, resulta-
provando o impacto do racionamento alimen- dos de vários estudos evidenciaram que o risco
tar por ocasião da segunda guerra nas condições para o desenvolvimento de doenças crônicas na
de saúde a longo prazo na coorte da Holanda11 . fase adulta da vida advinha não apenas de even-
Outros estudos mais atuais demonstram o tos precoces da vida fetal, porém também de todo
impacto da restrição do crescimento intra-uteri- o período de desenvolvimento e ao longo da in-
no no desenvolvimento da síndrome metabólica fância e adolescência. De outro modo, a inclusão
do adulto (hipercolesterolemia, diabetes, hiper- do termo “saúde” refere-se ao compromisso des-
tensão e obesidade)12 e a hipótese de que insultos sa área com o desenvolvimento de estratégias
que levam à alteração do crescimento em fases objetivando à prevenção de moléstias crônicas.
precoces da vida (programming) podem resultar Mais recentemente, outra área de pesquisa
em déficit permanente ou a longo prazo na es- adjacente, a “biologia evolucionária desenvolvi-
trutura ou função do organismo vem sendo in- mentista” (evo-devo, do inglês evolutionary de-
vestigada por vários pesquisadores13. velopmental biology), contribuiu para alargar o
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conceito DOHaD por meio de novos conheci- grande número de crianças. Aproximadamente
mentos. Essa área oferece a demonstração da dois terços das medicações usadas na prática clí-
presença de fatores preconcepcionais capazes in- nica pediátrica não possuem evidências suficien-
fluenciar o padrão de saúde e doença, adquiri- tes sobre dosagens, segurança e eficácia para cada
dos pela adoção de estratégias adaptativas, de- período do desenvolvimento21,22.
senvolvidas por meio de um processo evolucio- O número de estudos clínicos randomizados
nário. Esses fatores determinariam o grau da em crianças é reconhecidamente pequeno quan-
capacidade biológica do ser adequar-se ao am- do comparado ao número de estudos em adultos
biente existente ou a mudanças ocorridas nele. e algumas hipóteses têm sido propostas para ex-
Como exemplo, atrasos de crescimento somáti- plicar este fenômeno. Os pesquisadores e os co-
cos e recuperação posterior podem ser conside- mitês de ética estão expostos a um duplo desafio:
radas respostas adaptativas a eventos de crises o de assegurar à criança o direito de ter acesso aos
de energia. Nesse caso, a capacidade desenvolvi- estudos randomizados e, ao mesmo tempo, ga-
da ao longo de gerações para mediar o dispêndio rantir que os riscos das pesquisas nelas realizadas
e o armazenamento de energia de acordo com a sejam minimizados. Uma outra questão é a difi-
afluência de recursos possibilitou a superação de culdade no recrutamento de crianças para parti-
tempos de escassez. Contudo, em momentos de cipação em estudos clínicos, algumas vezes pela
pletora, poderia conferir efeitos adversos, tais relutância dos pais e outras pela baixa prevalência
como a obesidade18. de uma determinada condição clínica em uma
Outro mecanismo crucial envolvido dentro dada idade. Além destas razões, a escassez de in-
do conceito DOHaD é o efeito epigenético deter- vestimentos na área dificulta a realização de estu-
minado por influências ambientais, promoven- dos nesta faixa etária, o que também prejudica a
do o controle do processo de transcrição dos formação de novos pesquisadores e o suporte téc-
genes de modo seletivo. Esse mecanismo faz par- nico necessário para os atuais22.
te do cabedal de ferramentas adaptativas neces- Na área da pesquisa pediátrica, estamos vi-
sário para suplantar eventos adversos. Porém, vendo atualmente com uma dramática escassez
uma vez que esse mecanismo seja alterado, esta de recursos. Sabemos, por exemplo, que somen-
mudança pode induzir o surgimento de doenças te 4,4 % do orçamento do National Institutes of
epigenéticas, tais como tumores raros em hu- Health foi destinado ao National Institute of Child
manos19. Health and Human Development20. No Brasil, este
fato não é diferente e embora não tenhamos da-
dos específicos em relação ao montante dos fi-
O investimento na atenção à criança nanciamentos das agências de fomento dirigidos
e na produção de novos conhecimentos à pesquisa na área da saúde da criança, sabemos
que em geral estes são escassos.
Pouco se tem investido, no mundo inteiro, na A visibilidade global desta escassez de investi-
produção de novos conhecimentos na área da mento ainda é modesta, bem como o entendi-
saúde da criança, apesar do fato conhecido de mento de que este investimento pode significar a
que o investimento na saúde da criança pode preservação da saúde a longo prazo. Para dar
proporcionar melhores condições de saúde para um exemplo, sabemos que a prevalência de obe-
o adulto20. sidade na infância vem aumentando e em alguns
O uso de medicações “off-label” ainda é uma locais já chega a cerca de 30% 23. Se não houver
questão importante e indesejável na área da saú- um investimento maciço para o entendimento
de da criança e são várias as razões para exclusão deste problema e em ações que possam reverter
das crianças no campo do desenvolvimento de este quadro, esta geração de crianças será a pri-
novas drogas: questões éticas, dificuldades técni- meira em dois séculos que terá uma expectativa
cas e logísticas ligadas à farmacodinâmica/far- de vida menor do que a de seus pais20.
macocinética e biodisponiblidade das drogas que
são idade-dependentes e questões econômicas.
Nos últimos anos, a criança tem sido considera- Considerações finais
da como órfã terapêutica e, em geral, os trata-
mentos a ela dispensados são baseados em expe- Os novos indicadores apontados pelo último
riências pessoais, relatos de casos, recomenda- PNDS em 2006 têm mobilizado os gestores em
ções de especialistas ou ensaios clínicos peque- saúde para uma necessária reorganização de ser-
nos que não podem ser generalizados para um viços que dêem conta do envelhecimento da po-
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pulação nesta nova demografia que se apresenta. Não se pode também fechar os olhos para os
Entretanto, o olhar não pode se desviar da crian- acontecimentos perinatais da atualidade. As cri-
ça para o idoso simplesmente. Existe também anças estão diminuindo porque os índices de fer-
neste novo modelo que se apresenta indicativos tilidade estão diminuindo, mas também porque
fortes de que é na infância que se previne à maio- uma grande parte delas ainda morre na primeira
ria das doenças crônico-degenerativas que vão da semana de vida. Além disto, as crianças doentes
hipertensão e diabetes ao câncer na adultice. A continuam a ser submetidas ao arsenal terapêu-
criança precisa se tornar visível, nas questões que tico desenvolvido para adultos, sem que nenhum
vão do cuidado à sua saúde, considerando suas estudo de eficácia ou segurança seja realizado. O
especificidades, mas também ao se considerar que contingente dos chamados órfãos terapêuticos,
é na infância que se constrói um adulto saudável. portanto, é grande, e uma droga mal usada na
Oportunidades perdidas na infância são oportu- infância pode comprometer, por exemplo, a fun-
nidades não retornáveis. A apoptose ou morte ção renal para sempre, predispondo a doenças
programada das células é uma realidade. Após a renais precoces na vida adulta que vão deman-
infância, a maioria dos órgãos não vai formar dar um alto custo dos serviços de saúde. O que
novas células e, portanto, se na infância não se fazer? Precisamos tornar a criança e suas poten-
cuidou da criança de forma adequada, ela já co- cialidades visíveis e prevenir na infância as doen-
meçará a vida adulta com um número menor de ças crônico-degenerativas, para que não preci-
células em diversos órgãos. Estas células serão mais semos lidar com altos custos de saúde no futuro,
rapidamente destruídas, alterando a função dos o que poderia inviabilizar o sistema de saúde no
órgãos precocemente, levando a doenças crôni- qual o acesso é um direito de todos.
cas indivíduos cada vez mais jovens.

Colaboradores

MEL Moreira e MZ Goldani participaram da


concepção, elaboração do artigo e da revisão fi-
nal do documento.
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