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Boltzmann e os primórdios da física teórica

A Universidade de Viena, à época em que inicialmente Boltzmann se


estabelece, tinha linha de pesquisa do instituto de Física concentrada na tentativa de
explicar movimentos complexos aos quais seriam aplicadas leis da mecânica, esse
fato terá influência sobre sua produção ao longo da carreira acadêmica, também
corrobora para verificarmos essa influência o interesse do mesmo em produzir uma
teoria mecânica do calor.

Em finais do século 19 Boltzmann desenvolve trabalhos em física experimental


nas universidades de Graz e Viena, paralelamente produz trabalhos em física teórica
(à época em sua gênese), a exemplo da sua interpretação estatística da atualmente
referida segunda lei da termodinâmica. Dessa mesma época, baseadas em novos
experimentos e observações, datam as primeiras objeções à concepção que toda
teoria física seria fundamentada na mecânica clássica, o que produziu debates que
logo se estenderam sobre aspectos filosóficos, metodológicos, epistemológicos entre
outros.

Dentre as questões que inicialmente permeavam o debate em física teórica,


estavam; a preocupação sobre qual seriam os objetivos e a abrangência de uma teoria
física, ou seja, se essa seria um modelo que descreve ou explica a natureza. Quanto
ao método, as discussões sobre física teórica à época questionavam se a construção
de uma teoria física é feita exclusivamente a partir de dados empíricos. Já em relação
ao processo de validação, perguntou-se de que forma pode-se recorrer à física
experimental como forma de validação. Muitos físicos contemporâneos Boltzmann
debateram essas questões, entre eles; Helmholtz, Hertz, Mach, Ostwald, Duhem,
contudo esses debates não chegaram a uma conclusão final que levasse a um único
modelo de física teórica. Boltzmann considerava relevantes questões como as
levantadas acima, isso pode ser observado com base na intensa e contínua
participação do físico austríaco nos debates que as envolviam, também produzindo
artigos que explicitavam suas posições e as de seus pares.

Epistemologicamente, Boltzmann acreditava que a total exclusão de uma teoria


cientifica, mesmo que divergente, se apresentava como um desserviço ao progresso
do empreendimento científico. Acreditava, fazendo uma analogia com a teoria da
evolução de Darwin, ser necessário haver uma competição entre diferentes teorias
para que assim os cientistas tivessem a possibilidade de construir representações
mais adequadas que as anteriores. Ou seja, mesmo advogando a favor de teorias
mecânico-atomísticas o fazia de forma prudente, o que permitia lugar a outras teorias.
Acreditava ainda, ser uma teoria científica uma representação da natureza:

Uma teoria científica, como Boltzmann sempre afirmou, não possui nenhum valor
ontológico; ela não pode ascender ao nível das essências, ultrapassando o plano
determinado pelos fenômenos fenomenal. O valor de verdade de uma teoria não é
determinado em função da capacidade de especificar aquilo que está por detrás do
nível fenomênico. Uma teoria é “verdadeira” se, por meio das suas implicações
(previsões, por exemplo), ela conduz a resultados que correspondem à experiência.
(VIDEIRA,2006, pág. 5).

Nesse sentido, podemos colocar Boltzmann em oposição, em relação à sua


visão epistemológica, à Mach e Ostwald que tinham uma visão fenomenista, que
considera às leis físicas o papel de descrição do universo observável. Para Boltzmann
toda teoria é pura imagem interna ou mental [fazer apud] e essas teorias teriam o
objetivo de construir imagens internas da realidade observável, esse processo de
construção de imagens internas é inerente ao instinto humano existente desde o seu
primórdio não sendo uma capacidade presente apenas nos cientistas. Ainda em
relação à sua linha metodológica, segundo o mesmo, não deve haver hierarquia
intrínseca entre diferentes teorias ou metodologias científicas, contudo existem teorias
mais ou menos adequadas a representar o mundo exterior. A origem dessas
representações seriam as leis do pensamento, portanto, estando o cérebro humano
sujeito à evolução e modificações em sua estrutura, é incorreto inferir que essas leis
são garantidoras da infalibilidade do conhecimento humano, podendo esse último ser
questionado, modificado, corrigido assim como as leis que trazem existência esses
conhecimentos.

Como já mencionado acima, Mach acreditava que uma teoria de forma ideal
tinha o papel de descrever a totalidade dos fatos mesmo que isso se manifestasse
através de uma tendência assintótica, esse ideal seria o objetivo a ser alcançado
gradualmente por qualquer teoria. Ainda, não seria aconselhável o uso de elementos
externos ao conjunto dos fatos que uma teoria pretendia descrever exceto em casos
de teorias científicas ainda incompletas ou seja não possuía o inventário completo de
todos os fatos que que constituem seu domínio.

No ponto acima exposto, Boltzmann divergia completamente de Mach, pois


para ele seria impossível a não introdução numa teoria de elementos externos
produzidos pelos próprios cientistas, sendo preciso que os mesmos fizessem
hipóteses que fossem além do que pudesse diretamente observado nos fenômenos,
pois assim seria possível aos pesquisadores fazer a descoberta de novos fenômenos
o que implicaria no enriquecimento do conhecimento experimental disponível,
ademais, esse argumento embasava uma das críticas que Boltzmann fazia à visão
epistemológica de Mach pois seguindo a rigor o que esse último defendia para uma
teoria científica, chegaríamos à impossibilidade da teoria fazer de predição de novos
fatos.

Esse trabalho de representação deveria ser feito com a devida cautela pois
quanto mais além da observação fiel dos fatos se está, maior é a chance de se incorrer
em erros, porém esse seria um risco necessário. De forma a reduzir esses erros, seria
papel do cientista fazer a comparação entre a representação por ele produzida e à
experiência.

Por se tratarem de representações, as teorias científicas não se encerram em


si de forma a se tornarem verdades definitivas, sendo então abertas e em processo
de construção ou evolução (mais uma vez recorrendo à uma analogia feita com a
célebre teoria darwiniana):

Disso [do fato de que a teoria está em relação com a natureza, da mesma maneira que o
signo com o significado] segue-se que o nosso objetivo não pode ser o de encontrar uma
teoria absolutamente correta mas, sim, o de encontrar uma imagem, a mais simples possível,
capaz de representar o fenômeno. Pode-se mesmo pensar que existam duas teorias
científicas diferentes e que, todas as duas, igualmente estejam de acordo com os fenômenos.
Apesar de serem totalmente diferentes, são ambas igualmente corretas. A afirmação - existe
uma única teoria que pode ser a única correta - somente pode ser a expressão de nossa
crença subjetiva acerca [do fato] que não pode existir mais do que uma imagem capaz de
estar de acordo [fazer apud].

Para Pierre Duhem (1861-1916), uma explicação consiste num processo de


determinação da essência que constitui a realidade, assim, uma explicação possui
valor ontológico. Ainda para Duhem, a observação não seria suficiente para que
tivéssemos acesso ao que constitui a realidade das aparências (explicar tem função
de desnudar a realidade das aparências).

Boltzmann coloca o conceito de explicação em uma perspectiva diferente de


Duhem, redefinindo-o da seguinte forma;

Explicar, em Física, significa que a representação da experiência exige a elaboração


de modelos, baseados em hipóteses, capazes de sugerir qual é a função de um objeto
físico em uma teoria. Em outras palavras, o esforço do físico teórico é compreender,
qualitativa e quantitativamente, os fenômenos, sem que se seja obrigado a conhecer a
essência da realidade.(VIDEIRA,2006, pág. 5).

Indo além na busca de compreender melhor o conceito de explicação em


Boltzmann, tentaremos entender o que ele denominava “realidade das entidades
físicas”. Boltzmann assume que quando uma teoria alcança grande aceitação o que
leva a um estado de imersão no mundo das teorias, pode-se incorrer no erro de pôr
as imagens no lugar da realidade. Para evitar isso deveríamos mais uma vez submeter
essas imagens às experiências. A realidade das representações físicas (leis e teorias)
não é de natureza sensorial; elas são construções, portanto, eles são abstrações
[fazer apud].

Assumindo vanguarda em relação à outras universidades da região como as já


acima mencionadas, o instituto de Física da Universidade de Munique estabelece
cátedra em física teórica com Boltzmann assumindo o posto de catedrático,
posteriormente retorna à Áustria especificamente a Viena onde assume o posto de
diretor do recém-criado instituto de física teórica da Universidade de Viena, após breve
passagem por Leipzig e já com quadro avançado de debilidade física e mental, retorna
definitivamente a Viena posteriormente se suicidando em 1906.

A equação do transporte de Boltzmann e o teorema H

No contexto do estabelecimento da segunda lei da termodinâmica cientistas


como Rudolf Clausius (1822- 1888) e James Maxwell (1831-1879) buscaram sustentá-
la com uma base em um modelo cinético-molecular fundamentado na mecânica
clássica em sua formulação newtoniana (BRUSH, 1986 apud GATTI). A essa altura,
variáveis como temperatura, pressão e a própria primeira lei da termodinâmica, já
tinham demonstradas a sua equivalência às leis mecânicas.

Em um artigo datado do ano de 1857 e com o seguinte título “Sobre a natureza


do movimento que chamamos de calor”, Clausius sugere que a energia de um gás era
advinda não somente do movimento de translação das moléculas, mas também do
movimento de rotação e vibração (CLAUSIUS,1867 apud GATTI) propondo então, um
modelo cinético-molecular para a propagação do calor.

Trabalhos fundamentados em ideias como as acima expostas (definir a


termodinâmica em função de uma mecânica do movimento molecular) sofreram
grandes objeções da comunidade de físicos à época. Mach, Helm, Ostwald podem
ser destacados. Haviam críticas de positivistas, que refutavam a ideia de entidades
não observáveis e de energicistas, esses últimos defendiam a primazia do conceito
de energia sobre o conceito de matéria.

Uma interessante questão que ilustra parte dos debates sobre termodinâmica
em finais do século 19, foi formulada por Christoph Buys-Ballot e inquiria Clausius e
Maxwell sobre a aparente discrepância entre a velocidade observada na difusão de
um gás (ao abrirmos um perfume em um canto de uma sala demoramos a perceber o
seu cheiro no outro) e a predição teórica baseada na teoria cinética dos gases.

Para responder à questão, Clausius lança mão do conceito de livre percurso


médio, no qual justificava que o tempo observado na difusão de um gás se deve ao
choque das moléculas do mesmo com outras do ambiente, o que justificaria por
exemplo o tempo necessário para sentirmos o cheiro do perfume no outro canto da
sala.

James Maxwell a partir do ano de 1860 fez contribuições relevantes para a


Teoria Cinética, sua formulação inicialmente previa fundamentos estritamente
mecânicos para analisar a natureza das colisões moleculares construindo um modelo
composto por um número muito grande de esferas rígidas e elásticas. Contudo, em
razão do grande número de colisões entre as partículas Maxwell julga necessário
lançar mão do uso de argumentos estatísticos (VOLCHAN e VIDEIRA, 2001).

Diferente de Clausius, Maxwell não acreditava que todas as moléculas de um


gás tivessem a mesma velocidade, isso pode ser observado em:
Assim, após um certo tempo, a vis viva [energia cinética] estará dividida entre as
partículas de acordo com alguma lei regular, o número médio de partículas cujas
velocidades estejam entre certos limites sendo determinável, embora a velocidade de
cada partícula mude a cada colisão (Maxwell, 1860, p. 360 apud GATTI).

Maxwell então supõe que no equilíbrio todas as moléculas estão postas de


maneira uniforme no espaço e que as velocidades de cada uma delas nos eixos X, Y
e Z são independentes.

Postulando haver uma função g que obedecesse

𝑓(𝑣) = 𝑔(𝑣𝑥 ) · 𝑔(𝑣𝑦 ). 𝑔(𝑣𝑧 )

Na teoria de probabilidades, dois eventos A e B independentes são expressos


pela expressão abaixo:

𝑃(𝐴 ∩ 𝐵) = 𝑃(𝐴) · 𝑃(𝐵)

Assim, a probabilidade dos eventos A e B ocorrerem (interseção dos conjuntos


A e B) é determinada pelo produto da probabilidade de A pela probabilidade de B.
Disso concluímos que as velocidades das moléculas são probabilisticamente
independentes, mostrando também a influência da teoria de probabilidades no
trabalho de Maxwell (SKLAR, 1993, pp.30-31 apud GATTI).

Postulando também a isotropia do espaço, ou seja, não há direção privilegiada


podendo então se desconsiderar o sentido e a direção das velocidades o que implica:

𝑓(𝑣) = 𝑓(|𝑣|)

Ainda levando em conta a isotropia da distribuição das velocidades moleculares


(NUSSENZVEIG, ver ano p. 244) temos:

1 2
⟨𝜈𝑥2· ⟩ = ⟨𝑣𝑦2 ⟩ = ⟨𝑣𝑧2 ⟩ = ⟨𝑣 ⟩
3

Maxwell então percebe que se a função de distribuição tivesse forma


exponencial satisfaria as hipóteses acima expostas então:
2
𝑓(𝑣 2 ) = 𝑒 −𝑎𝑣

·
2 2 2
𝑓(𝑣 2 ) = 𝑒 −𝑎(𝑣𝑥 +𝑣𝑥 +𝑣𝑧 )
Só muito tempo depois, em 1955, a função de distribuição de velocidades pode
ser demonstrada experimentalmente. Essa (lei) ainda teve importante aplicação na
explicação da predição da independência entre viscosidade e densidade em um
momento que alguns trabalhos experimentais sugeriam o contrário. Em 1867 Maxwell
faz importante revisão do seu trabalho, agora considerando a independência entre os
movimentos resultantes das colisões que as moléculas sofrem, e não apenas uma
independência entre os eixos ortogonais.

Posteriormente em 1868, Boltzmann considerando moléculas poliatômicas


interagentes e também levando em conta a influência de forças externas na
distribuição das velocidades, produz um trabalho que generaliza a função de
distribuição de Maxwell (PRETENDO MOSTRAR ESSE TRABALHO ANTES DE
SEGUIR NA DEMONSTRAÇÃO DA FUNÇÃO DISTRIBUIÇÃO FORA DO
EQUILÍBRIO).

Podemos dizer que as leis que fundamentam a mecânica clássica são


reversíveis, num sentido que uma evolução que parte de um estado inicial para um
determinado estado final, é correspondente a uma outra progressão que parte desse
estado final e retorna àquele inicial.

A ideia de morte térmica do universo levantada incialmente por William


Thomson (futuramente nomeado Lord Kelvin) baseava-se na concepção de
fenômenos irreversíveis. Assim, como existe a tendência do calor se propagar dos
corpos mais quentes para os mais frios, o universo estaria caminhando para um
estado de equalização das diferenças de temperatura.

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