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eS ied Ro SECERR ey aaa ero vor Pg a —— rake wd an be £23 eG LE BON | ~ Com intervallos regulares, uma porta se abria, dando passagem a longas theorias dé homens hir- sutos, cobertos de suor, de semblante fatigado e olhar sombrio. Filhos de antepassados, dominados pelos deuses e pelos reis, sé tinham mudado de senhor para tornar-se servidores do ferro. E era, de facto, dois mundos, duas civilisagdes em presenga uma da outra, obedecendo a moveis differentes, animadas por outras esperancas. De» * um lado, um passado j4 morto, mas a cujas vonta- des ainda obedecemos. Do outro lado, um _pre- sente carregado de mysterios, trazendo nos flancos um futuro desconhecido. Existiram sempre esses dois mundos, e constan- as OBJECTIVO E METHODO mente hostis, porém sentimentos semelhantes, uma fé commum, preenchia muitas vezes o abysmo Ue os separava. Hoje, fé e sentimentos desappare- 6 permanece a atavica hostilidade do pobre ‘a o rico. Gradualmente libertados das crencas os élos sociaes do passado, os trabalhadores dernos se revelam cada vez mais aggressivos e pressivos, ameacando as civilisagdes de tyrannias lectivas, que serio mais terriveis, talvez, do que a dos peiores despotas. Fallam como dominadores a homens da lei, que os lisonjeam servilmente e suppor- im todos os seus caprichos. O peso do numero ocura cada mais substituir o peso da intelligencia. TA vida politica 6 uma adaptagao dos sentimentos do homem ao meio que o cerca. Esses sentimentos variam pouco, pois a natureza humana se transforma mui lentamente, ao passo que o meio moderno eyolue com rapidez, em consequencia dos progressos continuos da sciencia e da industria, Quando o mbiente exterior se modifica com demasiada celeri- lade, a adaptacao se torna difficil, e d’ahi resulta o al-estar geral observado hoje. Adaptar a natureza lo homem 4s necessidades de toda a especie que o gem, e das quaes elle nao é senhor, constitue um oblema que incessantemente renasce, cada vez Mnais arduo. _ 0 mundo antigo e o mundo moderno differem ofundamente pelos seus pensamentos e seus Modos de existencia. Os novos elementos que nos 18 A PSYCHOLOGIA POLITICA conduzem, nao se derivam de raciocinios abstractos e nao oscillam, absolutamente, ao capricho das nossas esperangas ou das nossas concepgdes logicas. Siio os resultados de necessidades que temos e nao creams. * A éra actual nio differe absolutamente daquellas que as precederam, pelas rivalidades e as luctas, porquanto estas ultimas se originam de paixdes nunca variam. A differenga real se observa, prin palmente, na dissemelhanga dos factores que fazem hoje evoluir os povos. E’ esse ponto essencial que vou agora indicar. Os verdadeiros caracteristicos d’este seculo so: primeiramente, a substituigao do poder dos reis e das leis pela forga dos factores economicos; em segundo logar, o emmaranhamento dos interesses entre povos outr’ora separados, que nenhuma troca mutua pédem effectuar. Este ultimo phenomeno, de origem relativamente e recente, tem consideravel importancia. Os povos ja nao estio, como outr’ora, isolados e quasi destituidos de relacdes commerciaes. Vivem todos uns dos outros e nfo poderiam subsistir sem reciproco auxilio. A Inglaterra se veria rapidamente reduzida 4 fome, se nao estivesse contornada por uma muralha que impedisse o recebimento das materias primas que ella vae buscar fora e remunera mediante outras mercadorias. Essas novas condigdes de existencia permittem presentir que, em todos os grandes movimentos industriaes e commerciaes que transformam a vida das nagées, creando a riqueza n’um ponto, a pobreza ~ em outros, a influencia dos governos, tao consideravel OBJECTIVO E METHODO 19 » outr’ora, cada dia se torna mais fraca. Convencidos da sua fraqueza, elles obedecem aos movimentos e nao os dirigem. As forgas economicas sao os verda- : deiros factores, que dictam as vontades populares, Was quaes nao se resiste, Ha sessenta annos, um soberano era ainda bas- ~ tante poderoso para decretar o livre cambio no Seu paiz. Ninguem ousaria mesmo tental-o hoje. Importa pouco que a proteccao, condemnada pela maioria (7 Os: €conomistas, seja boa ou nociva. Ella satisfaz 4s vontades populares do momento actual, que encerra necessidades demasiado intensas Para que os estadistas pensem muito no futuro. Elle tém, alias, frequentes illusdes no tocante 4s ' consequencias da sua intervengio. Esses chefes doceis de exercitos muito indoceis obedecem sempre e j4 nado commandam, N’uma sessio de 11 de Margo de 1910, o sr. Méline assegurava ao Senado que o livre cambio havia arruinado a agricultura ingleza, cuja produccao de trigo baixdra de mais de metade em meio seculo, ao Passo que, sob o regimen da proteccaio, a Franca 3 | - que, em 1892, apresentava um deficit alimentar de bs 695 milhdes, o viu desapparecer, substituido por um excedente de 5 milhdes, o que lhe permittiu _ €Xportar trigo, em vez de importal-o. O celebre - economista attribue, naturalmente, ao regimen da Proteccao, de que foi apostolo, os 700 milhées que os agricultores retiram actualmente do sélo, Péde-se, | entretanto, aflirmar, sem receio de erro, que, desde _ 4 origem do mundo, nenhuma lei teve tal poder creador. A nova producgao agricola resulta, de facto, __ unicamente dos inmensos Progressos scientificos reali- 20 A PSYCHOLOGIA POLITICA sados por uma agricultura que se via muito ameagada. E se os inglezes néo conseguiram os mesmos progressos, nao foi absolutamente porque o livre cambio impedisse que luctassem contra a concorrencia estrangeira, mas simplesmente porque acharam muito mais remunerador fabricarem productos indus- triaes, de cuja vehda obtém mais dinheiro do que lhes 6 preciso para a compra de todo o trigo necessario. Nao se trata alids de saber aqui se o regimen proteccionista é util ou nocivo. Na politica actual — e é precisamente 0 que eu queria mostrar — nao se procura 0 melhor, porém unicamente o acces- sivel. Nos nossos dias, nenhum despota seria bastante forte, repito, para impér o livre cambio ou a proteccdio a um paiz que nao 0 quizesse. Quando os povos se enganam, tanto peior para elles. A expe- riencia Ihes demonstra que se illudiram. Alguns homens de genio, auxiliados pelas circumstancias, chegam, por vezes, a contrariar a corrente, mas 0 seu numero é sempre muito raro. O que precede, indica claramente a que ponto os factores do momento actual differem dos factores do passado, e permitte presentir a diminuta influen- cia das theorias politicas na evolugio dos povos. Com os progressos da sciencia, da industria e das relagdes internacionaes, nasceram invisiveis mas omnipotentes senhores, aos quaes OS povos € Os seu proprios soberanos devem obedecer. * ee * Os elementos economicos da vida dos povos constituem, pois, necessidades 4s quaes sao forgados ———-2, OBJECTIVO E METHODO 21 a adaptar-se, porquanto n&o se pédem subtrahir a ellas. A essas necessidades naturaes juntam-se outras, muito artificiaes, que os theoricos da poli- tica e os governos que os seguem, tentam crear. Estudemos o seu papel. Nao obstante todos os recursos dos seus labora- torios, os biologistas jamais conseguiram transformar uma sé especie viva. As pequenas modificacées exteriores que a arte do criador poude criar, sao destituidas de duracSo e de forca. E’ mais facil transformar um organismo social do que um ser vivo? A resposta affirmativa a essa pergunta tem dirigido todo a nossa politica ha mais de um seculo e ainda a dirige. A possibilidade de refazer as sociedades por meio de instituigdes novas pareceu sempre evidente aos revolucionarios de todos os tempos, sobretudo aos da nossa grande Revolucao. Ella se afigura tambem certa aos socialistas. Todos aspiram a reedificar as sociedades sobre planos dictados pela razio pura. Mas, 4 medida que ella progride, a sciencia cada vez contradiz mais essa doutrina. Apoiada na biolo- gia, na psychologia e na historia, ella mostra que os nossos limites de influencia n’uma sociedade sio muito restrictos; que as transformagées profundas nunca se realisam sem a acco do tempo; que as instituigdes sdo o envolucro exterior de uma alma interior. Estas ultimas constituem uma especie de vestuario susceptivel de adaptar-se a uma forma interior, mas incapaz de creal-a; e é por isso que instituigdes excellentes para um povo pédem ser detestaveis para outro. Longe de ser o ponto de 22 partida de uma evolucao politica, uma instituigio é simplesmente o seu termo. O papel das instituigdes e dos homens nos aconte- cimentos nfo é, certamente, nullo. A historia o revela a cada pagina, mas exaggera o seu poder e nao percebe que elles saio, as mais das vezes, o fructo de um longo passado. Se nao chegam no momento preciso, a sua acco se torna méramente destruidora, como a.dos conquistadores. Crer que se modifica a alma de um povo pela mudanga das suas instituigdes e das suas leis 6 um dogma que teremos frequentemente de combater n’esta obra e de que um dia se vera o formal desmen- tido. Os povos latinos ainda acreditam n’elle, e essa é a razio da sua fraqueza. As suas illusdes no tocante 4 forca das instituigdes custou-nos a mais sangui- nolenta revolugéo que a Historia tem conhecido, a morte violenta de muitos milhdes de homens, a deca- dencia profunda de todas as nossas colonias e os ameacadores progressos do socialismo. Nada poude abalar esse terrivel dogma, e nés nao cessamos de applical-o rigorosamente cada dia aos desventurados indigenas que cahiram nas nossas mios e que conduzimos assim ao odio e 4 revolta. Os jornaes forneceram recentemente um novo exemplo d’essa cegueira geral, com a reproducgio de alguns extractos de uma circular do governador da Costa de Marfim aos seus administradores. O seu resultado final foi a sublevacdo do paiz, o massacre de muitos officiaes e a mui custosa necessidade de enviar, da metropole, numerosas tropas destinadas ao restabelecimento da ordem. Se os inglezes ou A PSYCHOLOGIA POLITICA OBJECTIVO E METHODO os hollandezes governassem as suas colonias com taes principios, ha muito tempo que ellas estariam per- didas. Esse documento, de que vou dar as passagens principaes, illustra nitidamente a nossa irreductivel incapacidade de comprehender que a alma de um povo nao se transforma com decretos e que insti- tuigdes excellentes para um povo pdédem ser muito mas para outro e, em todo o caso, sempre inappli- caveis. : « Cumprird, escreve esse governador, que os nossos subditos progridam, a despeilo da sua vontade... Cabera 4 auctoridade obter 0 que seria recusado A persuasao... Cumprird modificar inteiramente a men- talidade negra para nos tornar comprehendidos.., O que nao quero, é que fagamos ostentacado de uma sensibilidade sem resultado. Mesmo que simulas- semos, desde 0 comego, nao levar em conta os desejos do indigena, ¢ preciso que sigatnos sem fraqueza a “unica via susceptivel de conduzir-nos ao nosso obje- ctivo... Nao creio absolutamente que se devam temer as consequencias da nossa accdo, mesmo quando esta nao respeitar usos dos quaes 0 melhor que se possa dizer, 6 que sao oppostos a todo o progresso. » Nao é a mentalidade preta que seria urgente modi- ficar — se a circumstancia dependesse da nossa von- tade — mas as dos administradores capazes de assi- gnar as linhas precedentes. Quanto 4 illusio do honesto governador « que nado teme absolutamente as consequencias da sua intervencaio », os acontecimentos lhe deram uma ligdo rude que, infelizmente, nao serd proveitosa A essencia de uma crenca foi sempre a de nao se A PSYCHOLOGIA POLITICA poder modificar pela observagao, pelo raciocinio ou pela experiencia. As crengas politicas tem a mesma tenacidade que os dogmas religiosos, comquanto nao possuam sempre a sua duragao. Esse dogma da transformacio da alma dos povos sob a influencia das instituicdes é, alids, indiscutido em Franca por todos os partidos, comprehendidos os mais conservadores. Os progressos da psychologia moderna permittem explicar 0 papel desempenhado pela razio na orga- nisacdo das sociedades, as suas crengas e a sua con- ducta. E’ muito fraco, embora todos os governos pretendam apoiar-se n’ella. Mostrei em outra obra (1) que, contrariamente aos ensinamentos da philosophia,classica, existem formas de logica muito distinctas da logica racional : a logica mystica e a logica affectiva, notavelmente Ellas estao de tal modo separadas que nfo se pode jamais passar de uma 4 outra e, por conseguinte, exprimir uma na linguagem da outra. Sobre a logica racional edificam-se todas as for- mas do conhecimento, principalmente as sciencias exactas. Com as logicas affectiva e mystica cons- tréem-se as nossas crengas, isto é, os factores da con- ducta dos individuos e dos povos. A logica racional rege o dominio do consciente, em que se fabricam as interpretagdes dos nossos actos. E’ no dominio do subconsciente, governado por (1) As Opinises as Crencas, genesis, evolugdo. Um vol. in-18,

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