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UMA HISTÓRIA DA INFÂNCIA: tífera a busca de diferentes concepções sobre


DA IDADE MÉDIA À ÉPOCA a infância em diferentes tempos e lugares.
CONTEMPORÂNEA NO OCIDENTE. O autor identifica várias “descobertas”
Colin Heywood da infância: nos séculos VI a VII, nos séculos
Porto Alegre: Artmed, 2004, 284p. XII a XIV, nos séculos XVI e XVII, no século
XVIII e início do XIX, e no final do XIX e iní-
Passaram-se mais de 25 anos ao longo cio do XX. A história da infância move-se por
dos quais a obra de Philippe Ariès, História “linhas sinuosas”, de modo que a criança pode
social da infância e da família, foi traduzida no ter sido considerada impura no início do sé-
Brasil e reinou quase solitária como referên- culo XX, como o fora na Alta Idade Média.
cia para a história da infância ocidental. A pu- Se há uma mudança de longo prazo em que
blicação do livro de Colin Heywood permite a progressiva aceitação da necessidade de
aos leitores brasileiros o acesso a uma com- uma educação escolar prolonga a infância e a
petente síntese do avanço dos estudos sobre adolescência, se há um interesse crescente e
o tema em alguns países europeus e nos EUA. uma imagem cada vez mais positiva da infân-
Heywood faz um rastreamento de pes- cia, os debates assumem uma forma cíclica e
quisas produzidas no Reino Unido, na Fran- não linear. A ambigüidade, nos diferentes
ça, nos EUA, bem como na Itália, na Rússia e momentos, polariza a criança entre a impu-
nos países escandinavos, entre outros. Isso reza e a inocência, entre as características ina-
surpreende, pois não é comum encontrar- tas e as adquiridas, entre a independência e
mos obras de autores estrangeiros que reú- a dependência, entre meninos e meninas.
nam como referências a bibliografia em língua As relações das crianças com seus pais
francesa e em língua inglesa. Os estudos so- e pares é discutida sob vários aspectos: o
bre a história da infância em nosso país têm desejo ou não de se ter filhos, o parto, o
se ocupado de algumas dessas pesquisas eu- batismo, a apresentação das crianças à co-
ropéias e norte-americanas e das críticas às munidade e a morte de mães e crianças.
teses de Ariès, mas as trataram em análises Heywood constata que até o impacto da
mais pontuais, referidas a um ou outro aspec- medicina moderna, no final do século XIX,
to do tema. ter filhos era um empreendimento arrisca-
O livro organiza-se em três partes. A do, mas isso não impedia a expectativa de
primeira, ocupa-se das mudanças nas concep- procriação entre aqueles que se casavam.
ções de infância a partir da Idade Média. A A seguir, discute a questão das amas-
segunda, trata da relação das crianças com de-leite, a alimentação, o vestuário, a higie-
seus pais e com seus pares ao longo das eta- ne, o infanticídio, o abandono. Considera
pas do seu processo de crescimento. A ter- que a natureza dramática de algumas dessas
ceira parte dedica-se às crianças no mundo questões, assim como a ampla documenta-
mais amplo, envolvendo o trabalho, a saúde ção oriunda de instituições de atendimento
e a educação. Mesmo com a grande abran- e do judiciário, entre outras, favorece a ên-
gência de fontes bibliográficas, a linguagem é fase da historiografia nesses aspectos. Entre-
acessível a um amplo público leitor. tanto, pondera que a maioria das crianças
O livro parte da compreensão de que terá sido poupada desses traumas, vivendo
seria simplista considerar a ausência ou a pre- histórias mais banais.
sença do sentimento da infância em um ou Quanto à segunda fase da infância, do
outro período da história. Considera mais fru- desmame aos sete anos, identifica contrastan-

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tes formas de atitude dos pais: o tipo indife- crianças e se isso levou à discussão e formu-
rente; o tipo “invasivo” ou “evangélico”, que lação de leis, a legislação não chegou a proi-
vê a criança como pecadora inata; o seu opos- bir, mas a regulamentar o trabalho infantil e
to, que a toma como naturalmente inocente; seus efeitos são passíveis de discussão. A
e o tipo moderado. O autor cita pesquisas condenação e eliminação de boa parte do
que indicam diferentes modos de comporta- trabalho infantil, a construção de uma con-
mento materno e paterno, tanto entre per- cepção moderna da infância, que destaca a
sonagens da nobreza e da burguesia como sua vulnerabilidade e que põe a escola como
entre trabalhadores, camponeses e escravos local privilegiado para a infância, foi fruto de
norte-americanos. um longo processo.
A seguir, trata dos aprendizados e da Quanto à saúde, antes da medicina
educação das crianças: o controle dos esfínc- moderna, as crianças eram muito mais vul-
teres, o caminhar, a fala, os brinquedos e neráveis a inúmeros problemas, embora as
brincadeiras, os livros infantis. Amedrontar, evidências sobre as dificuldades por que pas-
ironizar, castigar física e moralmente são for- saram não sejam muitas. A melhoria dessa
mas de tratamento que ocorreram em dife- condição, com o passar do tempo, pode ser
rentes momentos, embora também se pu- observada, por exemplo, pelos dados dos
desse identificar o combate a essas práticas, registros militares, relacionados à altura dos
como no século XI, quando Santo Anselmo jovens: adolescentes da classe trabalhadora,
apontava as vantagens da gentileza e dos nascidos no final da década de 1950, tinham
bons exemplos. 30 centímetros acima dos nascidos em me-
Aos sete anos marcava-se uma trans- ados do século XVIII, na Inglaterra. Mas há
formação na vida das crianças. Mudavam-se também estudos que mostram um declínio
os trajes, diferenciavam-se os gêneros, atri- da estatura, em certos períodos, como en-
buíam-se responsabilidades. Ampliavam-se tre 1760 e 1800, em Viena, provavelmente
as relações sociais, seja pela entrada no mun- relacionado à deterioração dos padrões de
do do trabalho ou do estudo, muitas vezes vida e suas conseqüências para a nutrição.
com a saída de casa, seja pelo maior conví- Outro indicador importante refere-se à mor-
vio com os grupos de pares, que irão rivali- talidade, que começa a diminuir, aos poucos,
zar com a família nas influências sobre a so- a partir do final do século XVIII, e mais efe-
cialização das crianças. tivamente a partir do final do século XIX. En-
A última parte do livro trata da presen- tretanto, o autor afirma que a melhoria nos
ça das crianças no mundo do trabalho e da dados estatísticos pode encobrir a persistên-
sua saúde e educação. O autor considera cia das desigualdades sociais: no século XIX,
que, apesar dos exemplos cruéis de explo- as crianças pobres e trabalhadoras eram mais
ração do trabalho infantil, grande parte do baixas e morriam em maior número do que
trabalho feito pelas crianças no passado se- as de classe alta.
ria casual e de pouco esforço, relacionado a A substituição do trabalho pela escola,
tarefas de ajudar os adultos nos seus afaze- como principal ocupação da criança, fica mais
res. Há exemplos de ambas as formas de tra- caracterizada no final do século XIX e início
tamento, das suaves às extenuantes, no cam- do século XX. É uma longa história, que se
po e na cidade, antes e após a industrialização. inicia nos países protestantes do norte euro-
As fábricas intensificaram os abusos sobre as peu, no século XVII. No século XVIII, refor-

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madores começam a pensar em termos de para castigar uma criança em uma oficina,
um sistema nacional de educação. Heywood alguém tenha “martelado um prego em seu
chama a atenção para as pesquisas que se ouvido”.
ocupam das experiências educacionais ante- Quanto ao texto e à amplitude do pe-
riores, no âmbito do aprendizado dos ofíci- ríodo estudado, em alguns momentos, pa-
os, no período medieval. Considera ainda, rece que se transita com uma certa ligeire-
que o acesso à educação também se fez mar- za do período medieval aos séculos XVIII e
car pelas desigualdades econômicas e de gê- XIX, sem considerar as diferentes condições
nero e raça. dos diferentes momentos históricos. Apoia-
Nas conclusões, o autor reafirma a do nas pesquisas realizadas em diversos paí-
recorrência de vários temas nessa longa tra- ses, o livro pouco pode falar, ainda, da vida
jetória, da Alta Idade Média ao século XX. das crianças nos ambientes rurais. Entretan-
Indica melhorias significativas para sua saúde, to, o esforço “olímpico” de síntese, como
educação e bem-estar, assim como o final da considera o autor, torna essas simplificações
crença na impureza da infância. Considera, quase que inevitáveis.
por fim, que as crianças não teriam sido víti- É louvável a preocupação que acompa-
mas passivas, possuindo alguma capacidade nha todo o texto, de evitar uma compreensão
de resistência e de escolha. da história como seqüência linear e evoluti-
Algumas críticas e considerações po- va, assim como, por conseqüência, o en-
dem ser apresentadas à obra. Inicialmente, tendimento de que, em cada momento ha-
à edição brasileira. O cuidado com a revi- veria uma única infância, o que representa
são poderia ter evitado as várias falhas de um grande avanço em relação às teses de
digitação. O mesmo quanto à tradução, que Ariès. Mas ainda persiste, em vários momen-
incorre em alguns problemas. No subtítu- tos, uma certa compreensão hierarquizada
lo da obra, entende-se “tempos modernos” das formas de sentimento e de relação en-
( modern times , no original) como “época tre adultos e crianças, como se os sentimen-
contemporânea”. Embora o autor, no último tos mais positivos brotassem das classes su-
capítulo e em alguns poucos momentos do periores, irradiando-se para as inferiores.
livro, refira-se aos tempos atuais, o seu es- Em outros momentos, a ponderação
tudo estende-se de fato ao início do século das ambigüidades pode levar a uma minimi-
XX, sem ocupar-se das questões ocorridas zação das situações de exploração infantil,
ao longo do século passado. Em outro mo- como na página 179, em que o autor afirma
mento, para se referir ao controle dos es- que “de forma nenhuma estas eram vítimas
fíncteres, afirma-se que uma das primeiras passivas da exploração” e que, de algum
tarefas propostas por pais e amas “era o en- modo, “as crianças conseguiam transformar
sinamento de como utilizar o banheiro”. o chão de fábrica em um lugar de diversão
Parece haver um receio no uso de expres- para si próprias, subvertendo a atenção dos
sões como defecar e urinar e aí não se pode adultos ao seu redor”. É necessário, de fato,
dizer se o problema é da tradução ou do metodologicamente, evitar as interpretações
texto original. Uma das falhas mais gritantes generalizadas, que acabam por ajuizar que
ocorre na página 178, quando ear deveria tais ou quais crianças tiveram ou não tiveram
ser traduzido por “orelha” e não “ouvido”, infância. Por isso, é importante buscar as evi-
pois não é factível que, na situação descrita, dências de como a condição infantil se ma-

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nifesta, mesmo nas condições mais adversas. etc., para uma compreensão mais consisten-
Mas também é preciso estar atento para não te da História, caberia referir-se à história da
se cair no pólo oposto e considerar que es- humanidade.
sas crianças seriam felizes e independentes É claro que isso parece pedir demais,
diante de uma relação de forças tão desigual o que é fácil de se fazer em uma ligeira apre-
como as que têm com os adultos. ciação. Mas não custa indicar caminhos de
Finalmente, cabe uma consideração do reflexão para as nossas análises e pesquisas,
lado de cá, do hemisfério sul. A história oci- sem deixar de considerar a importância do
dental ainda é contada no livro, como se não trabalho do autor, que avança muito mais do
existíssemos, como se a colonização, o ouro, que outros, que generalizam para todo o
a prata, a batata e tantas outras coisas não fi- mundo a partir de um único país ou região,
zessem parte da história do ocidente. Isso ou de uma única referência lingüística.
também remete à expressão “ocidental”, Recomenda-se a leitura do livro a to-
que retira explicitamente da análise os aspec- dos os que tenham interesse na temática.
tos das relações com as sociedades e cultu-
ras orientais, que têm suas implicações na Moysés Kuhmann Jr.
nossa história da infância. Para ser mais co- Departamemto de Pesquisas Educacionais da
erente com a preocupação em se conside- Fundação Carlos Chagas
rar as diferentes condições sociais, culturais mkj@fcc.org.br

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