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[ARTITEXTOSO3. DEZEMBRO 06 179 Lugares e Nao-lugares em Marc Augé Teresa S& Socidloga, Assistente convidada do FA.U.TL. teresasa@'o.ull.pt Resumo Este artigo pretende mostrar a importéncia des conceitos lugares ¢ ndo-lugares, para 6 compreenséo da cidode/sociedade contemporénea. Tem como tema principal @ anélise dos diversas abordagens que Marc Augé faz dos termos ao longo da sua obra. No final, opresenta-se uma leitura possivel dos lugares-ndo-lugares, considerando-os ideal-tipos no sentido weberiano, ou seja, enquanto insirumentos de anélise para @ compreenséo da diferengo e da mudanca na sociedade contemporénea. Palavras-chave: Lugares, ndo-lugares, modernidade, sobremodernidade. Introdugao Quando © conceito de “paradigma” se tornou objecto das otencdes da comunidade cientfica com Thomas Khun, lembro-me de ter lido num texto de Eduardo Prado Coelho, que esta nocéo de “paradigma” era extremamente interessante devide 4 sua ambiguidade. E 0 que se passa em relacio 4 nogéo. de ndo-lugares. Como diz MA! em Le sens des autres, “ofirmar que alguém ou alguma coisa ndo é nem boa nem mé, ov que uma proposicéo néo é verdodeira nem falsa, é partir do terreno da ambiguidade. Implica postular a necessidade de um terceiro termo: sugerir por exemplo que Ulisses néo oma nem a guerra nem ‘sua mulher, mas a viagem que Ihe permite passor de uma a outra”. Talver seja por isso que MA vai ao longo da sua obra repensar esta dicotomia, como que procurando um terceiro elemento que dé conta e razio da relagdo entre 0 espaco ec sociedade na actualidede. Pora além da sua ambiguidade, estes conceitos significam algo sobre o qual nés €@ portida {6 sabemos qualquer coisa - eles #ém a ver com a reolidade que nos rodeia, com 0 espaco construido, com a relacdo das pessoas nele: & por isso que. 1 More Avgs MA) Conseguimos perceber o seu sentido, a sua definicio. 180 lugares @ Ndo-Lugares em Marc Augé Os nGo-lugares ao longo da obra de Marc Augé MA escreve em 1994 0 livro Néo-lugares?, onde opresenta este conceito, que vai (des}constrvindo e (re}construindo co longo da sua obra. Vamos, neste artigo, percorrer as vérios formas @ os novas questdes que 0 autor coloca ao longo do tempo, procurando relacionar o seu pensamento com o de outros autores que directa ou indirectamente pensom e discutem esta ideia de ndo-lugares. Comecemos entéo pela primeira definicéo a partir do livro referido. Os néo-lugares oparecem como © oposto, 0 inverso, dos lugares antropolégicos. Estes correspondem a uma relacéo forte entre o espaco e o social, que caracteriza as sociedades orcoicas, e sto portadores de trés dimensdes: 560 identitérios, historicos e relacionais. Estes lugares acompanham a modernidade, mas com as recentes transformagées do sociedade eles véo-se perdendo, desaporecendo, e sendo subsftuidos por outros @ que MA vai chamar néo-lugares. Para os definir, autor vai nalisar os principais transformagées que se verficarom nos sociedades ocidentois criondo um nove conceito, 0 de sobremodemidade, que seré coracterizada por trés excessos: excesso de tempo, de espaco, e da figura do individuo. Estamos numa sociedade da velocidade e do consumo, que se materializa no espaco através dos auto-estradas, grandes supermercados, centros comerciais, ‘ceroportos, etc. Séo estes os ndo-lugares, que correspondem a um espaco fisico, mas também & forma como os aciores socicis of se relacionam, correspondem 12 uma légica funcional cuja preocupagéo € tornar cada vez mois répida a movimentacéo na sociedode e o satisfagio das necessidades. © que acontece, é que na sobremodernidade os vivncias pressupéem uma relagéo meio/fim, pressupdem a consecucéo de objectives, ideia que se conjuga perfeitamente com a xaccéo-racional em relagéo a um objectivo» weberiana, onde © que esté em causa ndo é © espago “entre”, mas o “fim” a atingir. Esta forma de viver implico que © presente apenas tenha sentido por ser pensado em relago «a.m objective futuro que se quer afingir. Kundera, Num dos seus romances, A Imortalidade (Lisboa, Publicagées Dom Quixote, 5° ed., 2004), exprime muito bem esta ideia quando distingue a “estrada” (ndo-lugar) em oposiggo oo “caminho" (lugar): “A estrada distingue-se do caminho no sb por ser percorrida de automével, mas tombém por ser uma simples linha ligando um ponto a outro. estrada néo tem em si prépria qualquer sentido; s6 18m sentido os dois pontos que ela liga. © caminho é uma homenagem oo espago. Cada trecho do caminho & em si proprio dotado de um sentido convida-nos a uma pausa. A estrada & ume desvalorizagéo triunfal do espago, que hoje jé ndo passa de um entrave aos ‘movimentos do homem, de uma perda de tempo (...) E fambém a sua vido, ele (5 ndo a vé como um caminho, mas como uma estrada: como uma linha conduzindo de uma etapa @ seguinte, do posto de capitéo 00 posto de general, do estatuto de cesposo ao estatuto de viéva. O tempo de viver reduziu-se a um simples obstéculo, que é preciso ultrepassar @ uma velocidade sempre crescente”. 2 Lo publicado em Fronga em 1992, radu pare porugués em 1994 pela Benrand,e acualmente com uma nova edie da edtora oo". 3 Fedomer for ume anelogio entre disd0 do rabalho social © deo de soidaredode mecénea € ‘rgénica em Durtheim, ARTITEXTOSO3, DEZEMBRO 06 Logo no inicio da apresentacéo destes dois elementos inseparéveis (nd podemos pensar ondo-lugarsem a ideia de lugar), o autor vai-nos mosirando a ambiguidade 0 complexidade de ombos: “o estatuto intelectual do lugar antropolégico & ‘ambiguo. Nao ¢ sendo ¢ ideia, parciolmente materializada, que aqueles que o habitam fazem do sua relagio com o territério, com os que Ihes s60 préximos e com 0 outros.” (2005, 49) Ora, esta ideia varia com o lugar e com 0 ponto de visto de cada um. Posso-se exaclamente © mesmo com os néo-lugares, onde temos, por um lado, © espace construide para diversos fins: transporte, trénsito, comércio, laze’), e por outro, a relacéo que os individuos estabelecem com esses, espacos. Esta questio que possa pela diferenca entre 0 espago fisico as relagoes, que os actores sociais af estabelecem, seré retomada, por Marc Augé, em todas 1s obras posteriores. Mas, para além destes aspectos subjectivos e imprevistos resultantes da produgdo do espaco, que aparecem também muito explicitamente tratados no pensamento de Michel de Certeau, o que se passa é que, tal como 8 lugares antropolégicos so produtores de um conjunto de relacées sociais, os ndo-lugares criam oo nivel das relacdes sociais uma “contratvalidade solitéria”®. Estes novos espacos caracteristicos da sobremodernidade impéem aos individuos experiéncias e proves de solidéo muito novas. O que liga os individuos cos espacos dos néo-lugares sdo as polavras, as imagens, a publicidade, que cria “novos mundos” ou “outros mundos”. MA diz que se “verifica uma evaséo do espace através do texto”, na qual o que prevalece 0 texto, a informagéo, 0 publicidade, significando que © nosso quotidiano passa cada vex mais por actos mecénicos, pré-determinados, através de uma “representagio” igual para todos. © autor exempliica dizendo-nos 0 que se passa quando chegamos a um grande supermercado: “as grandes superficies nos quais © cliente circula silenciosamente, consulta as etiquetas, pesa os legumes ou a fruta numa méquina que Ihe indica, juntamente com 0 seu peso, © seu preco, depois estende o cartéo de crédito a uma mulher jovem também ela silenciose, ou pouco faladora, que submete cada artigo 00 registo de uma maquina descodificadore, antes de verificar 0 bom funcionamento do cartéo de crédito.” (2005, 84) E também no prélogo ao mesmo livro que MA nos conta a viagem de trabalho de Pierre Dupont, norrando todos os gestos que acompanharam Dupont desde que soiv de casa até o ovido ter descolado (entrar no automével, levantar dinheiro no mulfibonco, © trojecto e © pagamento da portagem com o carlo de crédito, 0 chec in, passar pelo dutuy-free shop, ver as montras luxuosas e parar na livraria, 0 embarque, a leitura dos jornais e revistas, 0 avido descolar e a inscrigéo “feasten seat belt” que se apaga — nessa altura Dupont coloca os auscultadores ¢ ouve o Concerto n° em dé maior de Joseph Hayden, “estaria enfim 56"). Quer na “ide 0 supermercado”, quer “na viagem de avido” estamos sempre s6s sem disso termos consciéncia, porque hé um conjunto de actos mecénicos que “temos que cumprir” e hé um conjunto de pessoas que nos rodeiam. Esses actos pdem-nos em contacto com os outros, sem de facto estarmos com ninguém. 181 182 Lugores e Néo-Lugores em Mare Augé Agimos todos da mesma maneira’, somos todos igualmente «solitérios», sem nunca estarmos sés: “O espaco da sobremodemidade, esse, & trabalhado pela seguinte contradigéo: 86 conhece individuos (clientes, possageiros, utentes, ouvintes), mas estes néo sdo identificados, socializados e locolizados (nome, profisséo, local de rnascimento, local de residéncia) sendo & entrada e & saida.” (2005, 93) Em Pour une anthropologie des mondes coniemporoins, MA referetrés aspectos que tém vindo a ser (te]pensados pelas ciéncios sociais e que permitem ir conhecendo o sentido da contemporaneidade: 0 individvo, os fendmenos religiosos e o espago urbane. E ao analisar « cidade que 0 autor vai retomar as nogdes de lugar/néo-lugar, Essa onélise assenta agora em trés dimensdes: o simbolizagéo do espaco, a definicdo de néo-lugor, @ as “ameagas” que tanto 0 “lugar” como o “ndo-lugar” representam pare o individuo contempordneo. ‘A simbolizac&o do espago um dos temas fundamentais do antropologia, onde o espaco sempre investido por grupos humanos, é sempre um espaco simbolizado, “Esta simbolizagéo, que existe em todas as sociedades humonas, permite tornar legivel a todos aqueles que frequentam um mesmo espaco um certo nimero de esquemas organizadores, de marcos ideclégicas e intelectuais que ordenam o social. Estes tr8s temos principais s80 0 identidade, @ relagdo e, precisamente a historia.” (1994, 14). Ora, & a partir destes trés elementos que MA vai definir o lugar antropolégico. Este é triplamente simbélico, porque simboliza a relacéo de ‘cada um dos seus ocupantes consigo proprio (identidade), com os outros ocupantes (relacional) e com a histéria comum (1994, 156). © néo-lugar caracteriza-se exactamente pela auséncia destes simbolos, visto que & a negacéo do lugar. Em relacdo & definic&o do néo-lugar, MA mostra os diversos sentidos que aquele pode ter, co caracterizé-lo como um espaco empitico, que corresponde a zonas de circulagéo (auto-estrados, vias aéreas...; de consumo (grandes supericies, grandes cadeias de hotéis...; de comunicagio (telefones, fax, televisdio). Ou seja, ‘© ndo-lugor remete para “espacos onde coexistimos ou coabitamos sem vivermos juntos, onde 0 estatuto de consumidor ou de passageiro solitério possa por uma relacéo contratual com o sociedade. Estes ndo-lugares empiricos (e as atitudes de espirito, as relagées com © mundo que suscitam) so caracteristicos do estado de sobremodemidade definide por oposicdo & modemidade.” (1994, 157); Nos termos da representacéo que os individuos fozem desse espaco, 0 autor dé ‘© exemplo do aeroporto que ndo tem o mesmo estatuto para o passageiro que 0 otravessa, ou para quem Id trabalho todos os dias. Para Ié deste desdobramento dos néo-lugares em qualquer coisa de objectivo: «@ auto-estrada, e qualquer coisa de profundamente subjectivo: a vivéncia dos pessoas nesses sitios® — 0 autor termina © livro chamando o atengéo para a ‘ameaca inerente aos lugares, que no permitem, por exemplo, uma vide urbana caracterizada pela possibilidade do anonimato (0 passeante de Certeau pressupde a liberdade de néo ser reconhecido); eo ameaca que ronda com os néo-lugares, 4 Aug rfere comma exemglo 0 ‘nogdo de homem médio de Marcel Now. 5 Exe tome & postesormente ‘pofundodo em Le temas en rine, 2003). Num outro aigo ‘rocutoremos analsar mais, ‘ncetomante ae rlagbes entre ‘sociedade, 0s nao-lugores, 0: peas sociale a orquteciure {6 Raymond Led voi refs orb ‘ssa homogeneizacéo do odade ‘elendendo que o produgbo do lojamente, dos caro, ovto- ‘esrodoe, ondem @ st muto semalhntes, Vem surgi coda vee ‘mais © mundo do onorimato do impessoal. 7 Encontromes era temic do “estranger” no texto cossico de ‘Simm, © Esrongeio. 8 Lembremos aqui a nose de paisagem de George Simal em “Philosophie dy Popoge” {9 Numa abordagem dierent, podemos evocar aqui Viner Coulee #0 0 lvoe Lute des plces. [ARTITEXTOSO3. DEZEMBRO 06 que permitem exactamente 0 contrério, 0 excesso de uma liberdade tomada vazia ou insignificante, que pode desencadear « loucure de solidéo. E a partir destes “perigos” que MA vai pensar a cidade hoje, chamando a atengéo para o risco do uniformidade®. A uniformidade enquadra-se na nogo de ndo- lugar Tem a ver com a construgéo em qualquer porte do mundo de espacos semelhantes e despersonalizados: aeroportos, grandes cadeias de hotéis, grandes supermercados, grandes centros comerciais, so espagos onde 0 estrangeiro no se sente deslocado, exactamente porque os reconhece, porque © espaco lhe & familiar, Sao espacos onde ndo se esté em casa, nem num local estranho, nem com 08 outros. A ideia do estrangeiro” & repetidamenie lembrada por Augé e significa exactamente o impossibilidade de se reconhecer totalmente no outro, porque entre 05 dois, hé uma diferenco intransponivel. Quando todo o espago se assemelha, somos de certo modo todos estrangeiros porque jé nada nos identifica. A uniformidade da cidade verifica-se também nos espacos construidos & volta dos pequenes cidades: as zonas indusiriais e comerciais correspondem a grandes superficies e parques de estacionamento, que marcam a paisagem de uma grande monetonia, transformando-e num territério que néo é nem rural nem urbane? (1994, 165) EmLes sens des autres, MA compararé as novas formas do espago com a dissolucéio dos lacos sociois. Os néo-lugares enquanto materializagae da dissolugéo dos lagos socicis aparecem relacionados com duas imagens: sociedade enquanto, especticulo e © surgimento dos espacos residuais. A primeira imagem corresponde a um tema trabalhado por uma série de pensadores € cientistos socicis (Lefebvre, Debord, Baudrillard, Certeau enire outros), que MA vai fazer coresponder a um espaco: “O néo-lugar, 0 espaco dos outros sem a presenga dos outros, © espaco constituido em especticulo, o proprio espectéculo tomado nas palavras & nos estereétipos que o comentam em avango na linguager propria do folclore, do pitoresco ou da erudigéo.” (1994%, 167). A «sociedade especticulon é representada pare MA através da metéforo do viagem, que combina ‘© movimento com © olhar, que montém uma relagéo abstracta com 0 outro, na medida em que 0 outro faz parte do espectéculo, da representagio, que esté a ser observada. Esta posigéo em espectéculo pode dar-se no sentido estrito (quando ‘olhames os monuments iluminados,...); no sentido meditico (através de todas os mensagens e imagens de televiséo, radio, publicidade,...); através da disténcia (os respondedores, os ecrés e monitores,...). Todos estes mecanismos s60 dispositivos que nao permitem o diélogo ou © encontro entre os individues. ‘Asegunda imagem tem a ver com a situagao em que os individuos “perdem” o seu lugar no espaco e na sociedade?. Ao contrério da metéfora da viagem, onde cado um se tora “observador do outro”, mas mantém 0 seu lugar social, aqui cade um, deixa de pertencer a um espace fisico e a um espaco social. Trato-se dos campos de refugiodes, dos campos de trénsito, onde se encontram os sem-abrigo, os 183 184 Lugares e Néo-Lugares em Mare Augé desempregados, 0s refugiades das guerras, elc. Séo os compos onde se instalam os abandonados do planeta, os que néo tém lugar. MA diz que todos estas situagées, embora sejam muito diferentes, correspondem & perda de um lugar social e de um lugar geogrdfico. (1994%, 169) No final do texto, © autor volta @ chamar-nos a tengo pora o facto de as nogées de lugor e néo-lugar serem evidentemente nocées limites. Hé ndo-lugares em todos 0s lugares e em todos os ndo-lugares os lugares podem recompor-se: “lugares e ndo-lugares correspondem @ espacos muito concretos mas também atitudes, a posturas, & relagée que os individuos mantém com os espagos onde vive ou que eles percorrem. (194°, 167) Em Fictions fin de siécle, Augé voi andlisar a relagéo entre 0 local/nacional/ intemacional através dos néo-lugares. Estes s6o exemplares em termos de informacéo, ou seja & possivel af saber © que acontece a0 nivel local, nacional e internacional Essa é exactamente uma das coracteristicas dos néo-lugares, que tem a ver com a super-abundéncia de imagens'®: “O local adauire valor de ilustracdo, de citagéo. ‘Assim cobrimos de ardésia os albergues e boutiques dos estagies de servicos das auto-estradas do Oeste de Franca, para mostrar 0 seu carécler bretéo, enquanto na Provenca é @ telha que é utlizeda. Da arquitecura antiga extraem-se signos ue funcionam como painéis indicadores. Para que ninguém se engane, para que soibamos onde estamos e saibamos ver (a0 passar) o que hé para ver, as inscricdes ) precisam: «Paisagens de Cézanne» ou «ignoble du Beavjolsisy.” (2000, 161). Podemos ver que 0 lugar esté “sobre-exposio” nos néo-lugares, estamos num mundo carregado de imagens e de informagSes. Este fenémeno tem como resultado (des)realizar 0 mundo exterior (que se tome cada vez mais préximo das i ros apresentam, e de certo modo substtu-lo pelas imagens a ele associadas. jagens que Numa cltima abordagem deste livro, em relagéo cos ndo-lugares, MA oo considerd-los 0s espagos da sobremodernidade, considera-os também como os grandes espacos do Design, definindo-os como plurifuncionais: os grandes aeroporios so também hipermercados; os hipermercados contém agéncias de viagem; 0 avido também é uma sala de espectaculos onde passam os filmes e os discos mais recentes; os automéveis também se transformam em salas de concerto privadas (163). Esto situagéo causa problemas co designer que dificlmente consegue “exprimir ao mesmo tempo a liberdade e a identidade, o multiplicidade dos possiveis e o necessidade de existr” (2000, 164), Em Pour quoi vivons-nous? O autor volta a analisar estes conceitos a partir da simbolizagéo do espaco. Sustenta mais uma vez que ndo hé espacos inocentes, ‘ou seja, que ndo hé espacos desconectados do social, e que o espaco é sempre muito mais constrangedor do que parece & primeira vista. Esta idea ¢ relativamente fécil de aceitar num etnélogo, que estuda as sociedades arcaicos. No estudo que MA realizou nas aldeias moritimas dos Alladien da Costa do Marfim, refere que as relagées entre filiago, alianga e residéncia sdo facilmente legiveis no espaco, 10 Esto tema 6 dscudo na Guerra or Sonher, cacretamente no ‘opi Alea, que vamos reerir porenormente 11 Sobre @ nogbe de esporo piblico no queria debar de char @ tengo pare o excelent coptlo “Condigbo pica» socal do dade" do bro de Vior Mtior, Ferreira, Forcno da Code, 12 Segundo MA, nd se pode foxe um paraleo entre o espace-piblico/ ‘ipage peivodo # kgor/ndo-lugor porque © espaco publi fem ura ‘defigio posta eo nGo-lgor nt. €0 pat do lager que ce ena nde-hgar ‘ARTITEXTOSO3. DEZEMBRO 06 "De facto, a situagéo de cada um no espace da aldeia indicava teoricamente toda «@.s00 situacéo social” (2003, 45). A forma como MA vai procurar compreender a “urbonizagéo do mundo” tem a ver com esse pressuposio da inexisténcia de espacos desconectados do social. Posigéio que se aproxima da de Lefebvre, quando este autor discute a concepgdo do espaco que parte da semiologia, ao dizer que © que se passa em relacée oo espaco é a existéncia de uma proibigdo que ndo a mesma coisa que um signo: “O que se passa é que o espago ordena porque implica uma ordem, e portanto uma desordem. O espago comanda os corpos: prescreve 08 gestos, 0$ trajectos, os percurses... rata-se de uma obediéncia cega, esponténea, vivido.” (167/168). Segundo MA, « teoria do espaco ¢ totslizadora [porque nao hé espace neutro), mas parcial (porque s6 funciona em relacéo com «5 outras teorias: @ da pessoa, do acontecimento e da mediaséio) (2003, 55). © autor retoma as duos clossificagées de lugar/ndo-lugar «partir da forma construida (que permite classficar os espacos fisicos em duas cotegorias), ¢ da forma vivida, onde o que esté em causa é a forma como os individuos os vivem segundo um conjunto de préticos sociais ~ nesta situagGo sdo as praticas sociais que permitem classificé-lo como lugar ou néo-lugar. O que Marc Augé quer acentuar agora, é que para Ié das vivéncias que possam ocorrer no espaco e que contém sempre uma ceria imprevisiblidade, 0 espaco contém em si um poder coercivo muito forte. Isto significa que os ndo-lugares, que caracterizam a sobremoderidade e que esto directamente relacionados com os dimensées da circulagéo, consumo e comunicagao (em contraste com os dimensdes identitérias, histéricos e relacionais que caracterizam os lugares), véo “obrigar” «2 determinadas praticos sociais que surgem como “independentes da nossa vontade”: “Mos na medida em que o néo-lugar é o negative do lugar, pedemos odmitir que o desenvolvimento dos espacos de circulacéo, da comunicagéo e do ‘consumo séo um traco empirico perfinente da nossa contemporaneidade, e que esses espacos so menos simbélicos que codificados, qualquer sinalética é€ um conjunto de mensagens especificas (através de monitores, de vozes sintéticas) que af asseguram a circulacéo das passagens e dos passageiros.” (2003, 138). MA\ai analisar uma nogéo fundamental para o pensamento da cidade, o espaco piblico!', comporando-o com © Néo-lugar'?. O que se passa € que ambos os conceitos se misturam com os seus opostos (espaco privado e lugar), consoante nossa andlise ossenta num espago geogréfico ou num espaco de relagées. Um grande centro comercial enquanto espaco , em principio, um ndo-lugar, mas cof pode surgir um espaco de relacées que corresponde 0 lugar; assim como ‘© espaco da familio, @ cosa, pode também corresponder a um espaso piblico, quando se torna um espaco de formagao da opiniéo péblica. © autor procura clarificar os conceitos apresentando uma definigéo mais figorosa: vai distinguir entre «espao piblicon, que corresponde & prética de um debate piblico, e pode ter formas diversas @ até néo empiricamente espociais (por exemple: o televise); e espacos do publico», onde efeciivamente os actores 185 186 Lugores ¢ Néo-Lugares em Mare Augé sociais se cruzam, se encontram, eventualmente debatem, © que pressupe a existéncia de um supore fisico. Distingue também entre «espaco privado», que corresponde aos assuntos privados, e eespago do privadon, no sentido estritamente espacial de residéncia privada (140). Em relagéo ao espago-piblice a distingdo que MA faz permite separar os locais onde a informagéo corre mas néo se verificam inleraccdes entre os individuos, ue correspondem exactamente cos néo-lugares; e os locais onde é através do processo relacional entre os individuos, que se constréi o espago piblico, “A ‘oposigéo mais explicita seré entdo entre a dgora, enquanto espace piblico & ‘espaco do piblico, e @ aulcestrada ou © supermercado enquonto néo-lugares .” (2003, 141). A posicéo de MA 6 que ndo é possivel encontrar nos «ndo-lugares» um «espaco do piblico», porque moterializados de errdncia singular e consumis eles pressupéem uma auséncia do individvo ao nivel da decisdo. A televiséo néo pode corresponder & nova dgora, porque nela a opiniéo publica néo nasce da discusso mas sim da informacéo. O piblico frente ao ect, corresponde a ideia de publico enquanto assisténcia passive de alguma coisa. Do mesmo modo, MA chamaré «lugar objective» a0 espaco onde se inscrever as marcas objectivas da identidede, do relagéo © de histéria (monumentos, igrejas, lugores piblices, escolos, etc); e lugar simbélico» 20 espaco definido pelos modos de relacéo com os outros que neles prevalecem (residéncia, trocas, lingvagem); «ndo-lugares objectives» aos espacos de circulagdo, de comunicacéo e de consumo, ‘e «ndo-lugares subjectivos» aos espacos definides pelos modos de relagéo com 0 ‘exterior predominantes: passagens, mensagens, cartazes, cédigos. (141) Nestas definigées de lugar e ndo-lugar oparece claramente a diferenga e co mesmo tempo a relago, entre o materializagée do préprio espaco (o espaco construido) e os préticas sociais que ai se estabelecem (0 espaco vivido). Uma leitura possivel Podemos considerar estes conceitos enquanto ideal-tipos"* no sentido weberiano, ‘0u seja como instrumentos de andlise para a compreenséo da diferenca e da mudango no s jade contemporénes. Enquanto ideal-tipos, nem os lugares nem os ndo-lugares existem na realidade correspondendo apenas @ formas “tipicas” dessa mesma realidade. Isto significa que podemos encontrar na sociedade espagos que se oproximam/afastam dos lugares-néo-lugares'*, mas nunca um espago empirico com as caracteristicas de lugar ov de néo-lugor Em relacéo a0 estudo da “diferenca”, problemética antropolégica por exceléncia, ‘Augé num pequeno texto, Alerfal'® chama-nos a atencdo sob a forma de uma 13.0 concede de idea po no comesponde aos corectores Cprerenta po todos os indidvos Includes na edensdo do concato, rom pelo caacteres midios dos ‘ndviuos considered, mos sim ‘rot-se de procurarotipco, 0 ‘creencl que coroceran este grupo e indie (ron, 496) Ness perspective, 0 erica de Carmen Bolo in. Ferric) que elende que ¢ fel acer que oF ‘a lugares no retenhom nenhume pare importante do experéncio {oc daar de forer sonido, 15 In. A quer dos sonhos. 16 Em rlogto & memo, Halbwochs rere que cade memo Individual € um ponto de vita do rmemésia coca, © que a sucesso de ecordacées, mesmo os mais pessoas, se explca sempre pelos ‘mudngas dos relogbes com os vers meios colectvos 17 Estamos flor do Pos do ‘once 194061944, 18 Recordo @ erica de Vior Matis Ferreira onde © autor arguments que ‘or ndo-lugores ofrecem Uma vis00 dicotémica do esposo enquento um ‘onde stm (enerplfica com 0 ‘ndlse morfolégica de Maint permite datecar um "sistema urban ‘compexo conetiuido ceromente de lugores e espacos, nos esretamente ‘icuoder com oveidade cetyl” (166) ARTITEXTOSO3. DEZEMBRO 06 parébolo para 0 que se esté o pasar hoje na sociedade, sem que disso tenhamos 1a moior parte das vezes consciéncia. O autor comeca por nos contar uma série ‘americana, Les Envahisseurs (os Invasores) dos anos da guerra fria, de grande sucesso. Tratava-se de invasores cujo objectivo era conquistor © nosso planeta, substituindo-se aos habitantes humanos que faziam desaparecer. Os invasores pareciom-se em tudo conosco, apresentando apenas uma pequena diferenga muito dificil de detectar: o dedo mais pequeno do mao esquerda era muito rigido. Havia um heréi, David Vincent, que conhecia o seu segredo e cujo objective era exoctamente destruir esses invasores. A torefa era dificil, porque por um lado, era muito complicado convencer os humanos que os outros nao eram humanos, & por outro lado, por vezes © heréi finha divides, em distinguir quem era invasor ov quem era humano. A histéria funcione come uma meidfora da invosdo dos imagens, essa sim, coracteristica do sociedade actual, comegando nés “a sentir os efeitos sem entendermos muito bem os causos” (1998, 2). Os néo-lugores que permite © “excesso de tempo”, o “excesso de espace” e 0 “excesso de individuo” vo criando novas formas de interacgGo social e originando novos “modes de vide” Sobre a “mudanga’, problemética sociolégica por exceléncia, Augé procura perceber como muda a cidade/sociedade, tendo como objeco central a transformagéo do espaco, a sua percepgdo e a meméria que guardamos desse espaco'*. Em Le temps en ruines, ao falar de Paris, ¢ da sua meméria da cidade, o autor evoca a cidade dos tempos de sua inféncia”, referindo-se a uma zona “que desenha 0 quadrilétero aproximative no interior do qual me tonei parisiense @ fora do qual me sinto sempre um pouco estrangeiro; ndo exilado (a polavra seria abusiva}, mas em visite, em viagem, na expectativa de um regresso a néo sei I muito bem que origem” (2003°,121). Quando MA observa a construgio dos novos edificios ou novos bairros em Paris, mantém de certo modo uma ofitude expectante, afirmando que ajuizar dessas novas construgées ¢ dificil: so “os cominhontes de amonha que poderdo dizer se Paris continua a ser Paris co fransformar-se.” (2003°,127) Nesta citagdo percebemos o entrelacar entre o espaco construido e 0 espago vivido. E este parece-me ser um dos pontos fundamentais do pensamento de Marc Augé. © que esté em causa néo & uma relagéo dicotémica entre lugares/ndo-lugares, criticade aliés por Matias Ferreira'®, mas antes a tentative de analisar a relagéo que se estabelece entre 0 cespaco construidor e 0 «espago vivid. Como vimos, Mare Augé vai relacionar os néo-lugares com uma diversidade de fenémenos: 0 espace construido e a relagéo des individues com o espaso; 0 risco do “uniformidade” ao nivel do espaco construido e 0 risco da “solidéo” ao nivel dos lagos sociais; © espago constituide em especticulo, utilizando « metéifora da viagem; 0 surgimento de uma nova relacéo espaco/tempo a partirda possibilidade de se “ultrapassar” 0 tempo; a importéncia do peso constrangedor do espago. 187 Lugares # Nite-Logares em Mame Assgh Esta diversidede de fandmencs conduz 0 quesiie: centrals para 0 compreensio do sodedode. A ideic de nio-luger remete-nos para qualquer cola que est6 a tronslormor ca “modes de vido" que coroclefzarom 6 modemidade, permitinds-nos pensar 0 diferengo entre © que nds somes ¢ @ que nds /8 estamos a ser, Come ofirma Raymond Bron, “Todo @ sociologio & ume reconstnugée tendendo porn a inteligibilidade de vexistincias humonos, confuscs e obscumas camo todas os exatlincias humanas, (..) Os socidlogos iém por objective tomar infeligivel até, no limite, aquilo que o no foi, fazer surgir © sentids do que foi vivide sem que esse sentide tenha sido claro poro cs que o vivarar,” (496) Terminomos este artigo recordande os irés categorios do sobremodemidode: © exesso de tempo, excesso de espace @ excesso de individu - o partir das quois MA porte para o construgdo dos néo-lugores, paro, através deles, pensar @ sociedode hoje. “Estas figueos da sobremodemidads implicam um parsdoxo © uma contradigéo: por um lado elas abrem code individue 4 presenga dos outros; alos corespondem uma circulagSo mais fécil dos individuos das colar ¢ das imogens. Mas nouire sentido elas suprimem o individuo sobre si préprio, tomando-o num testemunho mois do qua num actor da vide contempordnea. Esto contradigée exprime-se exemplormente nos #spacos que me propus chamar ndo- lugares.” (1994°, 166). Cam efeito, exprime-se oqui bem a riqueza 0 a importiineis da proposta implicada pelos conceitor aqui porter em jogo, quando queremes descrever, perceber, compreender © mundo em que vivemos - ou tentar saber melhor - de acordo com @ titulo j6 citado de um des ensoics de Marc Augé - pora que vivemos? Bibliografia ARON, Roymond, 4& Elopos do Pensamento sociolégico, lisboa, Bom Guixote, 1991. AUGE, Marc, Néo-Lugares, 90°, Lisboa, 2005 (1992). AUGE, Mare, Pour une anthropologie des mondes contemporcines, Chomps Flammarion, Paris, Aubiee, 1974. AUGE, Mare, Le sens: des autres, Paris, Foyard, 1994°. AUGE, Mare, A Guerra dos Sonhos, Osiros, Celta, 1998 (1997), AUGE, Mare, Fictions fin de sitcle, Paris, Foyard, 2000. AUGE, Marc, Pour quoi vivens-nous?, Poris, Fayord, 2003. AUGE, Mare, Le temps en ruines, Poris, Galilée, 2003°. CERTEAU, Michel de, L*iewention du quotidien 1. 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