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Quando o Mocinho é um Bandido:

Análise da Inversão das Esferas dos Personagens


nas Produções Audiovisuais
Universidade Tuiuti do Paraná

Angela Helena Zatti

Índice ao final, a condecoração, o casamento e a


ascensão ao trono, assim propostos para o
1 Introdução 1 herói, segundo Vladimir Propp (1928) e que,
2 Cada um na sua Esfera 2 apesar dessa inversão, tais narrativas fazem
3 Dissolvendo um Paradoxo 4 sucesso. Como isso é possível? Estamos
4 Entre tantos Paradoxos, uma Aliança 6 diante de um paradoxo: se o vilão é para
5 Conclusão 7 ser detido, odiado, punido, por que é defen-
6 Bibliografia 8 dido, protegido e admirado? Como sabemos,
identificar-se com um assassino é algo eti-
Resumo camente danoso, não fomos educados assim.
Será mesmo? Talvez essa identificação seja
Análise do personagem vilão que ocupa a justamente a atitude mais ética dentro desse
esfera do herói em narrativas audiovisuais. contexto audiovisual. O estudo do paradoxo
Fundamenta-se em Vladimir Propp (1928) e da simpatia e apreciação de tipos malévolos
Joseph Campbell (1949) a fim de determinar não é exclusivo desse trabalho e vem intrig-
as esferas dos personagens. Utiliza a teoria ando pesquisadores de nacionalidades diver-
de Nöel Carroll (2004) para analisar o para- sas. Assim, esse artigo propõe, como obje-
doxo do vilão aprovado, em sua proposta de tivo, uma análise da inversão das esferas dos
uma aliança entre personagem e espectador. personagens, em que o bandido troca seu pa-
Palavras-chave: Esfera dos personagens. pel e torna-se mocinho, em produções audio-
Produção audiovisual. Vilão aprovado. visuais.
Fundamentado pelos conceitos introduzi-
1 Introdução dos por Propp para a morfologia do conto, e
de Joseph Campbell (1949) para o arquétipo
Não é raro depararmo-nos com produções do herói, essa pesquisa se utiliza, princi-
audiovisuais que apresentam um bandido palmente, das proposições de Nöel Carroll
simpático que angaria nosso apreço. São (2004) para analisar o paradoxo do vilão
narrativas que trazem um vilão recebendo, aprovado. A metodologia escolhida é do
2 Angela Helena Zatti

tipo analítica comparativa. Esse artigo foi Vladimir Propp em sua obra Morfologia do
elaborado a partir de uma pesquisa realizada Conto, de 1928, estabeleceu os elementos
com o intuito de entender o paradoxo do narrativos básicos que ele havia identificado
“vilão aprovado”, que está em desenvolvi- nos contos folclóricos russos: identificou
mento para ser apresentada na forma de dis- sete classes de personagens ("agentes"),
sertação para defesa de mestrado na linha de seis estágios de evolução da narrativa e
estudos de cinema. Diante disso, esse artigo trinta e uma funções narrativas das situações
configura-se como um resultado parcial de dramáticas (op. cit.).
pesquisa. As 07 classes de personagens – ou sete
dramatis personae – de acordo com sua es-
fera de ação propostas por Propp (PEÑA
2 Cada um na sua Esfera
TIMÓN, 1994: 91; PRINCE, 1983, apud
“Era uma vez, um lobo muito fedorento que SILVA, 2009) são:
pegou uma criancinha para fazer seu jantar.
Mas, um corajoso caçador entrou na toca do 1. Esfera do Agressor (ou Vilão) – o que
lobo, deu uma tremenda surra no bichano faz mal;
malvado e salvou a criancinha. E viveram
felizes para sempre”. 2. Esfera do Doador (ou Provedor) – o que
dá o objeto mágico ao herói;
Esse é o padrão de fábulas que nos foi ap-
resentado desde a nossa primeira noite de 3. Esfera do Auxiliar (ou Ajudante) – que
insônia, reiterado infinitas vezes, até que, ajuda o herói no seu percurso;
sem estudarmos nada de teorias da narrativa,
sem sabermos da existência da Narratologia, 4. Esfera da Princesa (objeto da busca) e o
identificamos com precisão quem é o herói, Pai – não tem de ser obrigatoriamente o
quem é a vítima, quem é o vilão e o que vai Rei;
acontecer com cada um deles.
Narratologia é a ciência que se ocupa do 5. Esfera do Mandador (ou Mensageiro) –
estudo da estrutura e dos elementos da nar- aquele que manda;
rativa. Segundo Prince (1983, apud SILVA, 6. Esfera do Herói – perseguidor ou ví-
2009), o termo “narratologia” foi traduzido tima;
do francês “narratologie” e introduzido por
Todorov na sua obra Grammaire du Dé- 7. Esfera do Falso Herói.
caméron, em 1969. Narratologia, assim ex-
plicado por Rudrum (2002), é o nome dado Mais tarde, o teórico Greimas, em Semân-
ao estudo teórico e crítico das inúmeras for- tica Estrutural (1966), aprofunda este con-
mas de discurso narrativo, especialmente nos ceito até a existência de uma gramática
estudos literários e de cinema. universal da narrativa na tentativa de uma
Embora a narratologia como escola análise semântica da estrutura da frase. Em
teórica tenha surgido inicialmente na França, vez das “funções” da narrativa, ele propõe
explica Rudrum (2002), suas origens se en- o “actante”. Conforme explica Peña Timón
contram antes ainda, no formalismo russo. (1994: 63), no campo semiótico, em especial

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na semiótica literária, Greimas aponta que que atender ao chamado da aventura. Muitas
o termo “actante” tem uma extensão maior vezes ele recusa este chamado, mas tem um
que o termo “personagem”, ou que o termo auxílio sobrenatural que o ajuda a ultrapas-
dramatis personae, introduzido por Propp. sar o primeiro limiar e seguir seu caminho
Serve para denominar o participante, seja em direção ao cumprimento da tarefa. Este
pessoa, animal ou coisa, em um ato (fato é um caminho de provas onde o herói é um
que dá lugar ou possibilita que alguma coisa aprendiz sujeito a falhas e a figura da mul-
seja ou aconteça), tanto se o executa como her pode surgir em sua trajetória como uma
se sofre passivamente suas consequências. deusa ou como fonte de tentação. Superadas
(PEÑA TIMÓN, 1994: p. 64). as tentações e outros percalços da jornada,
As classes de personagens são de acordo uma bênção final lhe é concedida antes de
com sua esfera de ação, assim propostas por cumprir sua missão. Conquistada a tarefa,
Propp, como já explicado. A fim de que es- seja ela a salvação de uma princesa, ou a der-
tas ações aconteçam, também é necessário rota de muitos inimigos, este mesmo herói
um roteiro padrão de encadeamento dessas tem que empreender uma viagem de retorno
ações, ou situações dramáticas recorrentes (op. cit., cap. I – II).
para que esses personagens possam existir. Sua jornada apenas se completa quando
Tem-se, então, as 31 funções da narrativa das ele volta para o centro de seu mundo com
ações dramáticas, propostas por Propp, que o prêmio conquistado. Só ao chegar ao seu
apresentam o roteiro de acontecimentos da ponto de partida é que ele completa sua mis-
fábula. são (op. cit., cap. III). Mas, paradoxal-
Fica claro, nas proposições de Propp, que mente, certas histórias apresentam todo esse
a história gira em torno do herói, e que todos percurso do arquétipo de herói proposto para
os demais personagens estão para se rela- um vilão, com uma inversão de papéis, em
cionarem com este, que ocupa o centro da que o bandido assume a posição de mocinho
trama. Para o herói está reservado o sucesso da história.
– mesmo que haja provações e dificuldades A dicotomia do bem e do mal se apresenta
– enquanto que para o vilão está reservado o recorrentemente na crença do povo brasileiro
fracasso: a punição. Assim tem sido tradi- – tomando-se em consideração as bases pro-
cionalmente. As estórias que se enquadram postas pela fé cristã, visto que a população
nesse perfil são apreciadas e, portanto, pas- brasileira é majoritariamente cristã. Pinheiro
sadas de geração em geração, re-existindo (2008: 04) explica que
através dos tempos.
Mais tarde, em 1949, Joseph Campbell a cultura ocidental não aceita a idéia da
lança a primeira edição de “O Herói de morte. [...] Talvez por isso, os pro-
Mil Faces”, trazendo sua teoria sobre o ar- dutos culturais deste lado do planeta se-
quétipo do herói: para o autor, o herói – jam, na sua maior parte, criados para en-
para assim ser considerado – deve passar treter, oferecendo quase sempre a possi-
por uma jornada que pressupõe, portanto, bilidade do final feliz como regra abso-
o cumprimento de diversas etapas (CAMP- luta, e estabelecendo o triunfo do bem
BELL, 2007). Em primeiro lugar ele tem sobre o mal. [...] Mesmo nas situações

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mais inverossímeis, é preciso que o herói, Apesar disso, não raramente nos de-
o legítimo representante do bem, leve a paramos com filmes, telenovelas, quadrin-
melhor sobre o vilão, o famigerado rep- hos, seriados, comerciais, ou outras formas
resentante do mal, seguindo a dicotomia de comunicação social, cuja narrativa nos faz
conceitual iniciada há mil e setecentos ficar a favor do personagem vilão, e este,
anos [o Maniqueísmo, que teve elemen- nessas narrativas, ocupa a esfera do herói.
tos do Cristianismo na sua constituição, Por que isso acontece? O que, em uma
ainda segundo Pinheiro, (op.cit.: 03) obra ficcional, persuade e seduz os especta-
dores, levando-os a simpatizar e a concordar
Torna-se curioso que, apesar dessa dico- com um criminoso, contrariando aquilo que
tomia recorrente nas narrativas mais básicas é massivamente difundido como correto, le-
da fé cristã, como aquela do anjo antagonista gal e justo? O que faz com que um bandido,
Lúcifer, ou do irmão antagonista Caim, e us- um fora-da-lei, receba o mérito de protag-
ada para ensinar que há o mal em constante onista, despertando a simpatia do público?
disputa com o bem, mas que este sempre Estamos diante de um paradoxo: o caso de
vencerá aquele, como é possível essa inver- um vilão aprovado.
são de valores que leva o bandido ao status
de mocinho?
Se, como afirma Pinheiro (op. cit.: 06),
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um bandido cruel será sempre execrado e Para tentar explicar o sucesso dessas nar-
deve ser punido no fim, seja com a morte, rativas, em que milhares de espectadores
seja com a prisão, que narrativas são essas identificam-se com um bandido, Nöel Car-
que trazem um vilão recebendo, ao final, a roll (2004, p. 122) introduz a sua pesquisa
condecoração, o casamento e a ascensão ao através desse questionamento sobre o para-
trono, assim propostos para o herói, segundo doxo de um vilão aprovado – referindo-se ao
Propp e que, apesar dessa inversão, tais nar- personagem “Tony Soprano”, da série Os So-
rativas fazem sucesso? pranos. Como um espectador pode ser sim-
Pinheiro explica que o senso comum ful- patizante de um personagem de ficção cujo
mina, inclusive, a tentativa do equilíbrio ou correlativo no mundo real seria totalmente
da compreensão de uma figura histórica. O abominado por esse mesmo espectador?
cinema ocidental não gosta de releituras que O autor coloca que uma resposta inicial
fujam do lugar comum maniqueísta estabele- a esse paradoxo aparente seria que nós não
cido nos anos 30 do século passado, quando temos uma pró-atitude para com Tony So-
a cultura do happy end – marco estabele- prano e, admitindo que sentimos algo por
cido pelo pensador francês Edgar Morin a Tony, esse algo não é simpatia, mas sim,
partir da década de 30 do século passado fascinação. Isso porque Tony é uma amál-
– estimula a identificação do espectador ou gama do ordinário – o habitual, o costumeiro
leitor como herói e a ideia de felicidade se – com o exótico. Esta desconexão en-
torna núcleo afetivo do novo imaginário so- tre sua vida familiar corriqueira e sua vida
cial, através do cinema. profissional excepcional é impressionante:
sua vida familiar parece absolutamente con-

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temporânea e convencional, ao passo que ficcionalmente, o tipo de descontrole, de in-


sua vida profissional parece ser tanto um diferença que queremos para nós mesmos –
retrocesso a uma era passada quanto ex- a capacidade de realizar nossos desejos en-
traordinária em suas transgressões – seus rustidos, reprimidos, presos, e sem punição.
crimes. Esses dois mundos opostos entram Contudo, aponta Carroll, esta é uma estraté-
em choque, explica Carroll (op. cit.: 123). gia nada promissora para explicar nossa pró-
O próprio Tony Soprano é um oximoro, atitude para com Tony Soprano, haja vista
afirma o autor: um impiedoso chefão da a mesma razão da hipótese da fascinação:
Máfia com um lugar compassível em seu há muitos outros personagens no mundo dos
coração para os patinhos (op. cit.: 124). Sopranos que agem licenciadamente como o
É um personagem fascinante, daqueles que Tony, mas, nós não os prezamos, não os val-
nos surpreendem frequentemente com uma orizamos da forma que fazemos com o Tony
justaposição de elementos. (CARROLL, 2004: 126).
Porém, intervém Carroll, carinho e Sem dúvida, a noção de que Tony pode
fascínio não se somam a uma pró-atitude, funcionar como uma satisfação dos dese-
uma vez que esta pode ser paralisada por jos e fantasias traz à mente a ideia correla-
aquilo que achamos desprezível. Fascínio e cionada de que temos uma pró-atitude para
carinho são distintos. Mesmo se nós somos com ele porque nos identificamos com esse
fascinados por Tony Soprano, isso não im- personagem. Assim, Carroll propõe a iden-
pede que também tenhamos uma pró-atitude tificação como uma terceira tentativa de re-
para com ele. Reconhecendo o quão emo- sposta desse paradoxo. O autor explica que,
cionante para nós ele é, não faz o fato de que à medida que Tony é uma figura do que o
nós também nos importemos com o seu de- indivíduo deseja tornar-se, esse indivíduo,
saparecer, uma vez que existem anomalias por definição, ainda não é idêntico ao Tony.
igualmente instigantes povoando o mundo Ele deve ser diferente de nós a fim de satis-
dos Sopranos para os quais não temos nen- fazer nossos desejos. Entretanto, sugere-se
huma simpatia: há um número de person- que nosso elo com o Tony não está baseado
agens oximoros na série Os Sopranos que naquilo que queremos ser, mas naquilo que
também usam “cartadas” e, portanto, são já somos (op. cit.: 126).
fascinantes por essas razões, mas que não Especialmente em termos do lado cotid-
nos mobilizam em pró-atitudes ao seus fa- iano da existência do personagem, muitos
vores como Tony faz (CARROLL, 2004: de nós reconhecemos nossas vidas na vida
125). dele: o aquecedor de água estragado, ten-
Outra resposta na tentativa de explicar sões conjugais, parentes chatos, filhos mal-
o porquê temos uma pró-atitude para com comportados, dentre outros. Muitas das
Tony Soprano é argumentar que ele preenche reclamações de Tony são as nossas recla-
nossos desejos sombrios: a representação mações, como as das escolas das crianças.
simbólica das nossas mais profundas fan- Com base nesses e em outros pontos de
tasias reprimidas, especialmente para o tangência entre nós e o personagem, pode ser
público masculino. Temos uma pró-atitude argumentado que nós nos identificamos com
para com Tony porque ele realiza, embora ele e, às vezes, identicamente, afirma Car-

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roll. E, se nós nos identificamos com ele, vilão, e lança duas questões que, segundo
continua o autor, então, poderia ser obser- ele, se forem respondidas, consegue-se ex-
vado que nossa pró-atitude para com esse plicar o porquê dessa pró-atitude para com o
personagem seguiria diretamente da nossa personagem: Por que consideraríamos Tony
própria parcialidade para nós mesmos (op. Soprano um aliado apropriado? Por que for-
cit.: 126-127) maríamos uma aliança com ele?
Entendido isso, a sugestão de identifi- Primeiramente, a aliança não é com um
cação é escancaradamente absurda, coloca Tony Soprano do mundo real, mas, sim, com
Carroll: independentemente de quantas sim- o Tony Soprano da ficção, de um mundo
ilaridades há entre o personagem que an- fictício particular. Além disso, quando se
garia a simpatia e os membros da audiên- olha para a estrutura moral desse mundo de
cia, ninguém é literalmente idêntico a ele e ficção, parece que Tony é o melhor candidato
nem – e isso seja, talvez, o mais importante para uma aliança, dada toda a lista de per-
– ninguém se conduz a ser estritamente idên- sonagens disponíveis, da forma que estão re-
tico a ele. Além disso, usando Os Sopramos tratados na série. Não que Tony seja moral,
como exemplo, supor que alguém seja idên- mas, dentro da estrutura relacional do mundo
tico ao Tony seria um paradoxo: se um in- fictício dos Sopranos, ele tem um apelo à
divíduo se achasse Tony Soprano, isso im- moralidade igualmente forte ou mais do que
plicaria que esse indivíduo poderia encon- qualquer dos outros personagens relevantes
trar consigo mesmo, o que é logicamente im- que nos são extensivamente expostos: com-
possível. Para complementar seu argumento, parado com os outros mafiosos, Tony parece
Carroll afirma que a identificação não pode relativamente menos sádico, mais sensato
ser a explicação para a nossa pró-atitude e pró-social, isto é, o gangster mais justo
para com Tony porque identificação estrita (não absolutamente justo, mas, relativamente
parece um estado mental inadmissível: não justo) e com capacidade para a compaixão.
nos identificamos com os personagens estri- Também, argumenta Carroll, a lei não
tamente, de todas as formas, mas, sim, de al- está representada como um contrapeso moral
gumas formas (op. cit.: 127). positivo: são policiais corruptos, os quais
Então, se não é a fascinação pelo person- não são vistos protegendo os fracos e in-
agem, não é o preenchimento dos desejos ocentes. Se não são ilegais, coloca o autor,
sombrios do espectador e não é a identifi- então, são intuitivamente imorais e, talvez,
cação pessoal com o personagem, o que leva beirando o abuso de poder. Ainda, os padres
o espectador a ter uma pró-atitude para com católicos com quem o público se depara
o vilão? são hipócritas, alimentando a Máfia de bom
grado. E, no que tange à estrutura familiar,
Tony tem uma mãe manipulativa e venenosa,
4 Entre tantos Paradoxos, uma
bem como uma irmã que herdou todo esse
Aliança teor maléfico da mãe e que só não causa
Para resolver a questão, Carroll (op. cit.: tantos crimes e danos como Tony pelo fato
129) propõe que o espectador se “alia” ao de suas operações serem menores. Assim,

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esse personagem é uma vítima, coloca Car- ainda dizemos que certas atitudes ou pensa-
roll (op. cit.: 131). mentos desse ser nos repele, o que torna lim-
Além disso, na avaliação dos contrapesos itada a nossa capacidade de simpatizar com
da moral dos personagens mais relevantes, esse vilão, segundo o autor (op. cit.: 134).
Carroll chama a atenção para o fato de que
Tony Soprano tem algumas características
5 Conclusão
morais positivas, como a lealdade aos ami-
gos e à família, a tentativa de ser um bom Para voltar ao problema de pesquisa inicial-
pai, com planos para uma vida melhor para mente proposto, fica claro que o paradoxo
seus filhos, tem senso de justiça e segue do vilão aprovado funciona: não apenas o
certas regras – mesmo que sejam as regras Tony Soprano, mas há muitos outros vilões
dos gangsters. Assim, afirma Carroll, no dessa estirpe que garantem o consumo das
mundo dos Sopranos, Tony está longe de ser mídias audiovisuais. Essas produções são
o pior personagem. Isso não é negar que tidas como um meio de comunicação majori-
Tony seja moralmente deficiente, mas, sug- tariamente ligado ao consumo, cujo sucesso
erir que, dentre uma lista de personagens eti- pode ser medido pelos sucessos de bilhete-
camente questionados, ele é um dos menos ria: atraem espectadores para as salas de cin-
deploráveis. (op. cit.: 132). ema e, posteriormente, para as locadoras, ou
O autor coloca que, na maioria das situ- ainda, rendem pontos de audiência quando
ações, é pragmaticamente urgente que nos televisionados.
aliemos às pessoas mais morais, por um sim- Mas, esse apreço por um vilão que ocupa
ples fator: prudência. Essas pessoas que a esfera do herói – nessa inversão de esferas
nós estimamos como as mais morais são dos personagens – dependerá da caracteriza-
aquelas mais seguras para interagir, as mais ção do vilão e dos personagens secundários,
fidedignas e as mais confiáveis, afirma Car- a fim de cumprir a fórmula do “melhor dos
roll. A aliança com os agentes mais morais piores”, indicada por Carroll.
disponíveis é uma espécie de apólice de se- Para a conclusão desse raciocínio, coloca-
guros. São nossa melhor aposta para inter- se que a representação do vilão na narra-
relações e tratamento justo. Assim, nossa tiva audiovisual aqui analisada é feita de tal
pró-atitude para com o personagem vem do forma que este vilão seja o menos pior, ou, o
fato de que nos aliamos a ele, seja o Tony So- melhor dos piores. No conjunto de caracteri-
prano, ou qualquer outro vilão de narrativa zações, a direção e a produção cinematográ-
fílmica congênere. E fazemos isso porque, ficas constroem personagens secundários e
no mundo ficcional desse personagem, as antagonistas que sejam iguais ou inferiores
outras possíveis alianças seriam moralmente ao protagonista, e salientam para o especta-
piores ou irrelevantes, aponta Carroll (op. dor as qualidades – mesmo que sejam raras
cit.: 133). – do protagonista, o que desencadeia o senti-
Porém, isso não que dizer que sejamos a mento de simpatia pelo vilão, ou, como sug-
favor das características imorais e criminosas erido inicialmente, a aprovação do vilão.
desse personagem. Portanto, complementa Como resultado parcial de pesquisa, o es-
o autor, nossa aliança não é incondicional: tudo segue na investigação dos elementos

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8 Angela Helena Zatti

cinematográficos responsáveis por essas car-


acterizações dos personagens, tanto dos prin-
cipais como dos secundários, a fim de iden-
tificar que elementos contribuem para a cri-
ação de um vilão aprovado.

6 Bibliografia
CAMPBELL, J. (2007), O Herói de Mil
Faces, São Paulo: Pensamento.
CARROLL, N. (2004) , Sympathy for the
Devil, IN: GREENE, R.; VERNEZZE,
P., I Kill Therefore I Am, The Sopranos
and Philosophy, Chicago & La Salle,
Illinois: Open Court, 121-136.
PEÑA TIMÓN, V. (1994), El Programa
Narrativo como Expresión del Valor
Constitutivo del Relato en el Spot
Publicitario Audiovisual, 337 f. Tese
(Doutorado) - Univesidad Complutense
de Madrid, Madrid, disponível em:
d<http://eprints.ucm.es/tesis/19911996/S/3/S3006101.pdf.
[consultado a 17 de setembro de 2009].
PINHEIRO, F. (2008), Luzes e Sombras -
Projeções do Bem e do Mal na Tela
do Cinema, Intercom, XXXI Congresso
Brasileiro de Ciências da Comunicação,
Natal/RN, 2 a 6 de setembro de 2008, 1
CD-ROM.
RUDRUM, D. (2002), Narratology, The
Literary Encyclopedia, disponível em:
http://www.litencyc.com/php/stopics.php?rec=true&UID=1252>.
[consultado a 06 de setembro de 2009].
SILVA, J. (2009), Narratolo-
gia, Scribd, disponível em:
http://www.scribd.com/doc/19242793/NARRATOLOGIA.
[consultado a 01 de setembro de 2009].

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