Bauleo)
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Por último, diremos que estabelecer pré-tarefa, tarefa e projeto consiste na busca
de noções que, partindo da suposição do homem-em-situação (Lagache), permitam
estabelecer melhor a relação entre os dois limites dessa suposição, de modo a poder
operar no campo prático.
Práxis e psiquiatria1
1) Á práxis da higiene mental, tarefa essencialmente social, nutre-se das
principais teorias provenientes de diferentes posturas ideológicas. Segundo seu esquema
referencial, qual é a contribuição desse mesmo esquema para a higiene mental?
Chama a minha atenção o uso de uma linguagem que entra em flagrante
contradição com o aspecto da semântica e da tarefa. Ao perguntar se a práxis da higiene
mental, tarefa essencialmente social, nutre-se das principais teorias provenientes de
diferentes posturas ideológicas, poderíamos responder dizendo que não existe uma
práxis da higiene mental. Talvez exista uma confusão entre métodos de higiene mental.
De qualquer maneira, ainda que o problema formal esteja repleto de mal-entendidos, a
“tarefa essencialmente social” centra o problema não sobre os métodos da HM, mas
sobre os métodos ou estratégias de como mudar a estrutura socioeconômica da qual
emerge um doente mental. Há mais de vinte anos venho sustentando que o doente
mental é o porta-voz da ansiedade e dos conflitos do grupo imediato, ou seja, do grupo
familiar. E essas ansiedades e conflitos que são assumidos pelo doente são de ordem
econômica e acabam acarretando um sentimento crônico de insegurança, um índice de
ambigüidade considerável e, principalmente, um índice de incerteza também crônico,
submetido a ziguezagues, de acordo com a situação histórica de cada momento. O
paciente, se for analisado detidamente, está denunciando: ele é o “alcagüete” da
subestrutura da qual ele se tornou responsável e que traz como conseqüência o emprego
de técnicas de marginalidade ou segregação (internamento em hospital psiquiátrico), em
que em um interjogo implícito, mas certamente não explícito, o psiquiatra assume o
papel de resistência à mudança, ou seja, de mantenedor da cronicidade do paciente. Ele
está inexoravelmente comprometido com a situação e, dessa maneira, é leal à sua classe
social. Poderíamos chegar a uma interpretação mais profunda, com o risco de atrair a
repulsa dos psiquiatras como comunidade, se empregarmos a palavra símbolo, já que
alguns acreditam que ela foi uma invenção de Freud. O doente mental, então, é o
símbolo e depositário do aqui e agora de sua estrutura social. Curá-lo é transformá-lo ou
adjudicar-lhe um novo papel, o de “agente de mudança social”. Assim, estamos em
plena militância, todo o mundo está comprometido através de uma ideologia com
revestimentos científicos. Quanto às principais teorias provenientes de diferentes
“posturas”, são simplesmente ideologias. A psicoterapia tem como finalidade essencial a
transformação de uma situação frontal em uma situação dialética, que percorre um
trajeto com a forma de uma espiral permanente, através de uma tarefa determinada. Ali
sim, encontramos o verdadeiro sentido da práxis, no qual teoria e prática realimentam-se
mutuamente através dessa sucessão, resultando na criação de um instrumento
operacional que configura uma situação que poderíamos denominar “operação-
esclarecimento” o que chamamos ECRO, esquema conceptual, referencial e operativo, é
o produto da síntese de correntes aparentemente antagônicas, mas principalmente
ignoradas, situação que cria, por exemplo, pelo desconhecimento da psicanálise, um
clima sonolento e de bizantinismo. Finalizando essa resposta, direi que o psiquiatra, em
geral, tem todas as características de uma personalidade autoritária etnocêntrica, que
pensa sempre em termos absolutos e não dialéticos; e naqueles que aparentemente
pensam dessa forma dialética, suas proposições chegam a estereotipar-se de tal modo,
“como se as tivessem estudado de memória”, transformando-se paradoxalmente em
pessoas que, devendo ter adquirido flexibilidade e personalidade democrática,
comportam-se da mesma maneira que os primeiros, de forma autoritária, absoluta, sem
aberturas, chegando alguns deles a situar-se na mais covarde das posições, que é difícil
de pronunciar, e que se intitula ecleticismo.
2) Complementam-se essas idéias com as provenientes de outras escolas?
Se considerarmos o homem como um ser total e totalizante em pleno
desenvolvimento dialético, as idéias com as quais se propõe atuar sobre ele são
emergentes das próprias contradições do paciente e absorvidas pelo terapeuta,
configurando- se uma situação alienada e realimentada por ambos os personagens. Toda
compreensão do paciente mental deve partir da compreensão vulgar, ou seja, de uma
psiquiatria da vida cotidiana. O grau de profundidade a que se pode chegar dependerá
do instrumental operacional e situacional empregado por cada psiquiatra, já que no final
das contas não existem prognósticos em relação às enfermidades, mas sim prognósticos
em relação
3) Considera possível o trabalho em comum de investigadores de diferentes
ideologias científicas no campo da saúde a cada terapeuta. mental?
Sou um veterano da investigação grupal, sempre que o grupo seja manejado com
técnicas operativas centradas na tarefa (a doença mental), e não se gaste o tempo da
tarefa no pingue-pongue da pré-tarefa, nas discussões intermináveis sobre ideologias
científicas. A tarefa deve estar centrada no como obter uma maior saúde mental em uma
comunidade específica, situada no tempo e no espaço.
4) No campo concreto da práxis, e de acordo com seus princípios teóricos e com
suas experiências, que medidas práticas considera oportunas para uma educação
sanitária em higiene mental?
Primeiramente, faria com que o aprendiz de psiquiatria entendesse o sentido real
da práxis e não o dissociasse em campos concretos e princípios teóricos. O melhor meio
didático para formar psiquiatras é fazer com que a tarefa esteja centrada não na doença
mental, mas na saúde mental. O termo higiene está viciado por um materialismo
ingênuo, e os grupos de trabalho, repetimos, devem estar centrados nos fatores que
condicionam um certo modo de saúde mental (não na forma absoluta de saúde mental
como valor máximo e absoluto). Trata-se de quantidades de saúde mental que, através
de saltos dialéticos, transformam a quantidade em qualidade, já que a saúde mental é
medida principalmente em termos de qualidade de comportamento social e suas causas
de manutenção ou deterioração estão relacionadas com situações sociais como os
fatores socioeconômicos, estrutura de família em estado de mudança e principalmente
nesse índice de incerteza que se torna persecutório e que perturba o comportamento
social, já que o que se quer obter é uma adaptação ativa à realidade, na qual o sujeito, na
medida em que muda, muda a sociedade, que, por sua vez, atua sobre ele no interjogo
dialético em forma de espiral, em que, na medida em que se realimenta em cada
passagem, realimenta também a sociedade à qual pertence. Aqui está o erro mais
freqüente: o de considerar um paciente “curado” quando é capaz apenas de cuidar de
seu asseio pessoal, adotar boas maneiras e, principalmente, não demonstrar rebeldia.
Este último sujeito, desde já, com sua conduta passiva e parasitária, continua filiado à
alienação.