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Idéias

Os assassinos
A curiosidade
sobre a vida
do estudante
estão entre nós
Francis Moraes de Almeida Contudo, as explicações do próprio tivo ainda mais obscuro do que o das
que matou recente massacre perpetrado Cho Seung-Hui não foram suficientes. O mortes causadas por Cho: o porquê do

O
na universidade de Virginia público queria mais detalhes sobre o au- interesse público em casos como este.
32 pessoas e se Tech fez que retornasse à to-
na uma série de debates re-
tor do massacre. Colegas, professores, fa-
miliares foram entrevistados e, a partir
Crimes sem razão
e psicopatas
suicidou cria um correntes em incidentes deste
gênero. Após ser divulgada a
das diversas declarações, constituiu-se
um conjunto de características da perso- A importância dos “motivos” do cri-
personagem notícia de que a contagem de corpos to-
talizava 33 mortos, as duas principais
nalidade do rapaz que pareciam, de algu-
ma forma, prenunciar os assassinatos.
me é um fenômeno historicamente re-
cente. Tanto na antigüidade quanto no
caricatural, perguntas levantadas na imprensa fo-
ram quem e por quê? Ambas as indaga-
Dentre todas as características, a mais
destacada nos relatos foi o silêncio do jo-
período medieval não há registros de
que a “razão” para o cometimento do
no qual o ções foram logo esclarecidas.
O atirador chamava-se Cho Seung-
vem. Talvez tenha sido essa mesma im-
pressão – de que “algo estava faltando”
crime fosse, de fato, algo relevante para
a punição do criminoso. Qualquer que
cidadão Hui, havia nascido na Coréia do Sul, foi
com os seus pais para os Estados Uni-
para explicar os assassinatos – o que
motivou numerosos intelectuais a escre-
fosse o crime cometido durante a Idade
Média, não importando o quão grave ou

‘normal’ não dos aos 8 anos de idade, contava


com 23 anos e cometeu sui-
ver sobre o assunto, para manifestar
franco repúdio, para oferecer
horrendo fosse, bastava supliciar o seu
autor de modo satisfatório, utilizando
cídio após matar 32 pes- diagnósticos que expliquem os numerosos e criativos instrumentos
se reconhece soas. O próprio Seung- o comportamento de Cho, de tortura da época para que o crime
Hui tratou de respon- para refletir sobre a atual fosse simbolicamente compensado e
der à segunda pergun- crise da sociedade moder- anulado perante o poder do rei, pessoal-
ta. Enviou para a im- na ocidental etc. mente responsável pelas penas durante
prensa aquilo que foi Passado o furor inicial o Absolutismo europeu.
imediatamente batiza- com o ocorrido, o momen- Após a publicação
do como “manifesto to é propício para se deba- de Dos Delitos e
multimídia”, no qual ele ter o acontecimento em um das Penas (1764),
apresenta os seus moti- âmbito um pouco mais ge- de Cesare Beccaria,
vos para a carnificina que ral e encontrar algumas foi adotada a
havia planejado. pistas sobre um mo- convenção:

No dia 16, quando


Cho Seung-Hui realizou
os dois ataques ao
campus de Virginia Tech,
a imprensa recebeu
fotos e arquivos em
vídeo com fotografias
violentas e mensagens
Historicamente, de ódio aos ricos. Enviado
por ele próprio,
a importância o material foi transmitido,
chocando familiares e
dada aos ‘motivos’ amigos das vítimas

do crime é um
fenômeno recente Leia mais
❚ A Enciclopédia de Serial Killers, de
Michael Newton (Madras, 2005)
❚ Mentes Criminosas e Crimes Assus-
tadores, de John DOUGLAS e Mark
Olshaker (Ediouro, 2002)

FOTOS REPRODUÇÃO
14 | 28 E 29 DE ABRIL DE 2007 MIX
“Não há crime nem pena sem lei”. Com isso, caso especialmente famoso não foram os ultrapassam em muito esta superficial Desde 1970, os registros de assassinatos
a função da pena deixou de ser o exercício cinco homicídios cometidos, nem os méto- identidade entre estes fenômenos. múltiplos em escolas têm aumentado
da vingança pessoal do rei contra o crimino- dos peculiares de “dissecação” das vítimas Ao contrário do que afirmaram muitos progressivamente, especialmente nos Es-
so para representar a reprovação pública ao empregados pelo assassino, mas sim estes jornais a respeito do massacre em Virginia tados Unidos, sendo considerados um fe-
ato criminoso. Com esta nova definição da elementos associados ao impacto exercido Tech, Cho Seung-Hui não pode ser consi- nômeno criminal à parte dos assassinatos
função da pena, o crime passou a ser visto pelas cartas enviadas à imprensa e publica- derado um assassino serial. Segundo a defi- em massa, denominado scholl shoting.
como uma ação racional, e a pena graduada das com a assinatura de “Jack, o Estripa- nição do Manual de Classificação de Cri- No caso destes três fenômenos, os princi-
de acordo com a gravidade da infração. Por dor”. Contudo, naquele momento, a qualifi- mes do FBI, um criminoso pode ser classifi- pais traços de personalidade identificados
meio de um cálculo de custo-benefício, a cação de assassino serial (serial killer) ainda cado com assassino serial quando mata três nos seus autores lembram muito a carac-
certeza da punição e o caráter da pena visa- não existia, Jack era um assassino peculiar, ou mais vítimas em locais diferentes e, ge- terização do psicopata elaborada por
vam desencorajar o potencial criminoso a mas apenas isto. ralmente, com um intervalo de tempo relati- Cleckley, normalmente associados à ten-
delinqüir. Contudo, desde o início do século Assassinos seriais e vamente longo (semanas ou meses) entre os dência à depressão e ao isolamento.
19, surgiram alguns casos que colocaram es- eventos. A definição está longe de ser perfei- Embora haja uma forte tendência a
ta lógica punitiva em jogo: eram os chama- assassinatos em massa ta, contudo, é adequada para classificar ca- compreender esses três graves fenômenos
dos “crimes sem razão”. Ao longo do século 20, a autoria de vá- sos como o de Jack e de Zodíaco, dentre vá- criminais a partir de uma compreensão
Há numerosos exemplos ao longo da rias mortes por um só indivíduo era co- rias outros. Já no caso de Virgínia, tem-se psicológica e individualizante, é mais pro-
história de casos como este. Geralmente mumente designada como assassinato um fenômeno criminal distinto, definido de vável que eles sejam produzidos social-
consistiam em assassinatos cometidos múltiplo. Apenas em meados da década acordo com o mesmo manual, como assassi- mente, mesmo que catalisados por esta-
por pessoas sem qualquer antecedente de 60, a categoria de assassino serial co- nato em massa, no qual tipicamente um in- dos de sofrimento psíquico. Não é casual
criminal, muitas vezes sem sinal aparente meçou a ser referida, ainda timidamente, divíduo mata um grande número de pes- que imensa maioria dos incidentes deste
de delírio (sinônimo de loucura até mea- na literatura criminológica. No mesmo soas em um curto período, encerrando o in- tipo ocorram nos Estados Unidos, bem
dos do século 19), desprovidos de motiva- período, iniciaram-se as atividades do as- cidente com suicídio. como o maior mercado de consumo de
ções racionais ou passionais explícitas. sassino que ficou conhecido como Zodía- Há outra singularidade no incidente em produtos culturais pela temática (espe-
Ante o silêncio quanto às motivações, co. Segundo os registros do FBI, ele ma- Virgínia Tech. Trata-se de um assassinato cialmente dos assassinos seriais) seja
há cerca de 200 anos a medicina mental tou pelo menos 37 pessoas nos anos se- em massa ocorrido em uma universidade, igualmente norte-americano.
tem sido requisitada pelos tribunais para guintes, enviou dezenas de cartas para a algo muito raro mesmo entre fenômenos Anualmente, são lançados numerosos li-
interpretar as causas não-racionais que imprensa, jamais foi identificado ou preso deste tipo. Contudo, esta especificidade re- vros descrevendo com narrativa romancea-
levam a tais crimes. Inicialmente, para re- e, possivelmente, é o mais conhecido as- veste-se de um sentido perturbador caso se da casos reais ou ficcionais, filmes retratan-
solver o problema jurídico dos “crimes sassino serial nos Estados Unidos. Neste atente ao “Manifesto Multimídia” do pró- do caçadas a assassinos seriais reais ou
sem razão”, os alienistas se viram obriga- sentido, pode-se identificar uma seme- prio Cho, no qual ele indica mirar-se no mesmo longas narrativas em torno de per-
dos a lançar mão da controversa catego- lhança marcante entre Jack, Zodíaco e exemplo dos autores da matança realizada sonagens absolutamente ficcionais, como o
ria, para os termos do alienismo da época, Cho Seung-Hui, o contato com a impren- em uma escola secundária de Columbine, conhecido Dr. Hannibal Lecter de O Silên-
de uma loucura na qual o delírio cogniti- sa e o explícito intento de tornar-se co- em 1999, na qual os dois atiradores, ambos cio dos Inocentes (1991) e dos filmes que
vo era parcial ou ausente. O alienista nhecido por meio dos assassinatos perpe- adolescentes e alunos na escola, mataram 13 vieram depois criando uma cinessérie do
francês Esquirol definiu, em 1838, a mo- trados, contudo, as diferenças entre eles pessoas, em seguida cometendo suicídio. personagem. Tudo isso torna verossímil a
nomania homicida, descrita por ele como idéia de que a própria sociedade norte-
uma forma de loucura que tinha como americana pode estar produzindo seus as-
único sintoma o crime cometido, motiva- sassinos célebres, como Oliver Stone suge-
do por um instinto irresistível que se re satiricamente em seu filme Assassinos
apossava do doente, tornando-o irrespon- por Natureza (1994).
sável penalmente por seus atos, mas, mes- Curiosidade
mo assim, muito perigoso.
Até o início do século 20, muitas outras mórbida?
categorias serviram para qualificar estes Desde o massacre, muito vem sendo es-
criminosos loucos, porém lúcidos: loucu- crito sobre o jovem autor. As entrevistas
ra moral (Prichard, 1835), degeneração com as pessoas que o conheciam ressal-
(Morel, 1857), criminalidade inata (Lom- tam características de seu comportamen-
broso, 1876), depravação moral (Krafft- to que o faziam destoar do grupo, traços
Ebing, 1904), personalidades psicopáticas de personalidade que poderiam estar pre-
(Kraepelin, 1915). Contudo, foi a partir do nunciando a tragédia. Investiga-se se hou-
livro A Máscara da Insanidade (1941), de ve negligência por parte da segurança, se o
Hervey Cleckley, que o diagnóstico de psi- exame psiquiátrico realizado com ele em
copata passou a se consolidar como o mais 2005 foi adequado, enfim, procura-se por
consistente no campo psiquiátrico para marcas, indícios que o tornem diferente
designar tais casos, mantendo-se uma re- dos demais seres humanos e que, preferi-
ferência constante nas décadas seguintes velmente, permitam identificar potenciais
e contemporaneamente. Para Cleckley, os novos assassinos deste gênero.
traços característicos da personalidade de Debate-se qual seria o diagnóstico mais
um psicopata são ausência de sentimento adequado para o seu estado psíquico. As
de culpa, incapacidade de amar, impulsi- hipóteses oscilam entre psicopatia e psi-
vidade, superficialidade emocional, char- cose, discussão inútil do ponto de vista
me social superficial e incapacidade de clínico, uma vez que o potencial paciente
aprender com a experiência. está morto. No limite, procura-se enten-
Embora a maior parte das pesquisas der o que rapaz tinha de “diferente”, como
realizadas com psicopatia desde então se ele fosse, de fato, e sempre tivesse sido
procurem construir modelos para identi- um “assassino por natureza”. A curiosida-
ficar psicopatas entre a população carce- de em torno da vida de autores de inci-
rária, o próprio Cleckley ressaltava que dentes como este parece ter como mote
apenas os psicopatas malsucedidos eram principal criar, a partir da personalidade
presos, pois falhavam em manter a sua do criminoso em questão, um personagem
“máscara de sanidade”. Os demais geral- algo caricatural, no qual o cidadão “nor-
mente eram muito bem-sucedidos, no mal” não se possa reconhecer. M
campo político, econômico etc.
Há muitas referências aos assassinatos Bacharel em Ciências
cometidos em 1888, em Londres, como sen- Sociais (UFSM), psicólogo (UFSM),
do a cena inaugural dos assassinatos seriais mestre em sociologia (UFRGS) e
em âmbito internacional. O que tornou este doutorando em sociologia (UFRGS)

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MIX 28 E 29 DE ABRIL DE 2007 | 15

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