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Saúde integral
para todos
03 Odapapel da Pastoral
Saúde na Igreja
Pe. Christian de Barchifontaine
21 Ovidasentido da psicologia para a
consagrada: considerações
Ênio Brito Pinto
11 A espiritualidade como
um dos referenciais 29 Resiliência e espiritualidade:
padre Tiago Alberione, um
da bioética? profeta resiliente
Leo Pessini Francisco Galvão
William Saad Hossne
37 Roteiros homiléticos
Pe. Johan Konings
pó
Paulo A stolo Jesus Mestre
s Apóstolos
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O papel da Pastoral
da Saúde na Igreja
Pe. Christian de Barchifontaine*
“Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância.” (Jo 10,10)
“Eu sou o caminho, a verdade e a vida.” (Jo 14,6)
P
Enfermagem pela Universidade Católica
Portuguesa (UCP). Docente no mestrado e
ara a Organização Mundial da Saúde
doutorado em Bioética do Centro Universitário São (OMS), “a saúde é o completo bem-estar fí-
nº- 310
3
1986, a saúde foi definida como “a resultante ção dos bens públicos (onda de privatiza-
das condições de alimentação, habitação, ções), entre os quais os ambientais.
educação, renda, meio ambiente, trabalho, 2. Causas ligadas aos determinantes es-
transporte, lazer, liberdade, acesso e posse da truturais (sociopolíticos e econômicos) da
terra e acesso aos serviços de saúde”. produção de bens materiais (a comida, a
Segundo a OMS, “a saúde pública é a ci- mercadoria, o dinheiro). A selvageria do
ência e a arte de prevenir as en- sistema reside no grau da ex-
fermidades, melhorar a quali- “Quando se fala ploração da força do trabalho.
dade, a esperança de vida, e Os baixíssimos salários pagos
contribuir para o bem-estar físi- de qualidade de aos trabalhadores exigem, para
co, mental, social e ecológico da vida, o primeiro garantia de sobrevivência, o
sociedade. Isso se alcança me- prolongamento da jornada de
diante o esforço concentrado da
requisito enunciado trabalho e a aceitação de condi-
comunidade que permita o sa é a proteção do meio ções laborais perigosas e insalu-
neamento e a preservação do bres, bem como a entrada pre-
ambiente.”
meio ambiente, assim como o coce das crianças em atividades
controle das enfermidades. produtivas.
3. Causas ligadas às condições sociais de
vida (moradia, higiene, vestuário e, princi-
II. Nossa realidade: Por que o povo
palmente, alimentação).
não tem saúde?
4. Causas ligadas a outras condições de
Numa sociedade que tem como valores a vida diretamente associadas aos recursos e
produção, o lucro, a concorrência desleal, a serviços de cura (atendimento médico e aces-
concentração e a dependência, não há lugar so a medicamentos). A medicalização da vida
para uma prática social fraterna e solidária; efetiva-se cada vez mais no hospital, do parto
só existe a exploração como forma de acu- aos últimos instantes na UTI, sem que haja
mulação. Todo esse contexto favorece uma reflexão suficiente sobre as causas e implica-
injustiça social alarmante, tendo como con- ções desse fenômeno que desestruturou o re-
sequência a deterioração da saúde, principal- lacionamento tradicional do doente no seu
mente entre os pobres, que são duas vezes meio familiar. A organização do sistema de
desgraçados: além de morrer das doenças saúde em nosso país não revela preocupação
dos pobres (fome, desnutrição, verminose, em ajudar o povo, mas sim aqueles que vi-
diarreia...), morrem das doenças dos ricos vem às custas do sistema: indústrias de equi-
(cardiovasculares, estresse, câncer...). Para pamento, hospitais particulares, empresas
entender melhor, podemos reunir em quatro farmacêuticas e de seguro médico, empresá-
grupos as causas que fazem com que o povo rios médicos... A preocupação é o lucro.
brasileiro esteja sem saúde (PESSINI; BAR- Perante essa realidade, é de suma impor-
CHIFONTAINE, 2014, p. 72): tância a presença da Pastoral da Saúde em
1. Causas ligadas às condições naturais todas as suas dimensões.
nº- 310
4
promover, preservar, defender, cuidar e cele-
brar a vida, tornando presente no mundo de
hoje a ação libertadora de Cristo na área da Guia de gerenciamento
saúde. Tem como objetivo “evangelizar com e administração paroquial
renovado ardor missionário o mundo da saú- José Carlos Pereira
de, à luz da opção preferencial pelos pobres e
enfermos, participando da construção de uma
sociedade justa e solidária a serviço da vida”
(GPS, 2010, n. 89). É uma ação solidária que
ultrapassa os limites pessoais e familiares, pois
deve se estender para a ação comunitária.
Deve atingir a luta pelos direitos fundamen-
tais no campo da saúde. Deve trabalhar a saú-
de integral e integrada. A tarefa da Pastoral da
Saúde é promover, cuidar, defender e celebrar
a vida, tornando presente na história o dom
libertador e salvífico de Jesus, sendo humani-
176 págs.
zadora e evangelizadora, e deve “tornar pre-
sente os gestos e as palavras de Jesus miseri-
cordioso, e que infunde consolo e esperança Guia de gerenciamento e adminis-
tração paroquial reúne, de forma
aos que sofrem” (GPS, 2010, p. 16). Anuncia
didática, um conjunto de operações
o Deus da vida e promove a justiça e a defesa em torno das quais se estruturam
dos direitos dos mais fracos e dos doentes. e se desenvolvem as atividades
Quando Jesus enviou os apóstolos, mandou paroquiais. Ao mesmo tempo, é um
que curassem os doentes como sinal inequí- texto voltado para os cuidados com
voco da presença do Reino, conforme o Evan- arquivos e documentos que as paró-
quias, enquanto empresas perante
gelho de Marcos (10,1). Em sua missão de
o governo, recebem como cobran-
pregar o Reino e curar os doentes, Jesus rein- ças de diferentes naturezas, de res-
tegrava as pessoas à sociedade. ponsabilidades fiscais a encargos
sociais. É um livro imprescindível
As dimensões da Pastoral da Saúde para quem é pároco ou administra-
(GPS 91 a 93) dor paroquial, pois indica caminhos
Imagens meramente ilustrativas.
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ano 57
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zar o conhecimento, a sabedoria e a religiosi- mesmo tempo saúde e salvação: implica uma
dade popular em relação à saúde. realidade abrangente de liberdade, justiça, fra-
Político-institucional – atuação junto aos ternidade e paz. É um bem relacionado ao au-
órgãos e instituições públicas e privadas que tor da vida. A saúde, portanto, é concebida
prestam serviços e formam profissionais na área como dom divino.
da saúde. Participação nas conferências, nos con- Doença – a doença é vista como castigo
selhos municipais, estaduais e nacional de saúde de Deus pelo pecado e pela transgressão da
e nas assembleias, buscando a humanização do aliança (Dt 28,15-46).
sistema de saúde, a fiscalização e a denúncia Cura – a cura é vista de uma maneira
quando isso não for possível. Zela simplória: rezar, observar a Lei
para que haja reflexão bioética, “A Bíblia é como de Deus, usar remédios (medici-
formação ética e uma política de um espelho que na popular), ter moderação e
saúde sadia. bom senso (Ecl 31,19-24; 37,27-
toma a luz de 31). Sendo a saúde concebida
IV. Saúde e Bíblia Deus e a projeta como bênção divina, é natural
que o primeiro recurso para a
Tomando uma reflexão de sobre a realidade cura de uma doença seja a ora-
Carlos Mesters (1986), vejamos do povo.” ção. “Filho, não te revoltes na
como é tratada a saúde na Bíblia. tua doença, mas reza ao Senhor e
O importante não é a Bíblia nem o que ele te curará” (Eclo 38,9).
ela fala sobre saúde. O importante é a vida do Médico – aparece pouco (Ecl 38,1-15;
povo, nosso povo doente que pede cura; a Bí- 2Cr 16,12). Não era bem visto, uma vez que
blia está a serviço deles. O apelo de Deus não a convicção predominante é que a cura pro-
vem da Bíblia nem da situação do povo con- vém unicamente de Deus.
creto, mas da realidade iluminada pela Bíblia. Medicina – a medicina é pouco desen-
A Bíblia é como um espelho que toma a luz volvida, menos que no Egito e na Mesopotâ-
de Deus e a projeta sobre a realidade do povo. mia, porque o povo da Bíblia era escravo e
(A luz não vem do espelho, e sim do sol.) A porque a medicina era envolvida pela fé e
Bíblia é uma gramática, ajuda a ler os sinais pela magia. Certos tabus impediram avanços
de Deus presentes na vida do povo: “Eu vim na área, por exemplo: não tocar nos cadáve-
para que todos tenham vida...”. A Bíblia é re- res, aversão pelo sangue.
lativa, o importante é a vida.
Semelhanças dentro das diferenças
Diferenças na maneira de encarar a Dentro das diferenças, na maneira de
saúde na Bíblia encarar a saúde na Bíblia, há semelhanças
Não basta relacionar a Bíblia com a reali- para nós hoje. Os conselhos sobre saúde es-
dade. Não podemos comparar o texto bíblico tão na linha preventiva. A saúde é a melhor
com a realidade de hoje. Primeiro é preciso riqueza; alegria é vida (Eclo 30,14-25; 31).
ver as diferenças para depois perceber as se- A doença é vista também na perspectiva da
nº- 310
Saúde – na Bíblia, a palavra hebraica que ticas (por exemplo: Jo 24,1-12). A saúde
melhor expressa o sentido de “saúde” é sha- está ligada à observância da Lei de Deus.
lom, que remete ao pleno bem-estar do ser hu-
•
6
com os pobres, órfãos, viúvas, estrangeiros,
categorias mais desprotegidas.
Leigos e leigas
Ação dos profetas e saúde do povo Força e esperança da Igreja no mundo
O profeta está preocupado com a saúde Cesar Kuzma
do povo. Quando percebe “cacos” de vidro,
ele sente a quebra da aliança e grita. Só grita
quando o equilíbrio foi rompido. A ação do
profeta toca no problema da saúde enquanto
ligado ao equilíbrio da justiça, fraternidade e
partilha exigido pela aliança. A ação deles,
exigindo a observância da aliança e das leis,
situa-se na linha preventiva.
Para anunciar ou denunciar, o profeta
tem um critério concreto e, de certo modo,
duplo: experiência profunda de Javé, Deus
do povo, e experiência profunda da realidade
168 págs.
do povo de Deus. O profeta sente isso como
um impulso. Jeremias diz: “é como um fogo
dentro de mim”; “estou bêbado não de vinho, Quem são os leigos e as leigas de
hoje? Seria lícito caracterizá-los,
mas da Palavra de Deus. Devo anunciar”. É
apenas de maneira geral e por
um Deus concreto: Deus dos pais, Javé liber- vezes pejorativa, como leigos?
tador, Memória do Povo. A experiência se faz Por certo que não. Estes leigos,
misturada com a história pessoal de cada um. homens e mulheres, constituem
Deus não é um produto de massa, é um Deus parcela importante da Igreja e pos-
pessoal. Deus é como o amor: dá-se todo a suem rostos próprios. Logo, suas
interrogações devem ser ouvidas e
todos e a cada um. O profeta capta o grito
aproveitadas, porque eles trazem
calado do povo, é microfone, amplificador. para dentro da Igreja o olhar ínte-
Trabalho de saúde é trabalho profético, que gro da sociedade. Ouvi-los é ouvir
denuncia o pecado – ruptura com Deus que a sociedade; inseri-los e formá-los
faz a desorganização de tudo. O profeta tem na comunidade eclesial é preocu-
a experiência do empobrecimento do povo e par-se com o futuro dela e também
Imagens meramente ilustrativas.
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ano 57
7
- Mística – não neutralizar o grito do po- Consciência – Mística: “Não pôde fazer
bre. O profeta é peregrino. Ajudar o pobre e milagres por falta de fé” (Mc 6,5). É importan-
o doente a recuperar sua consciência. te que o doente também descubra sua missão
Os três caminhos estão ligados entre si, e e a tremenda força libertadora do sofrimento.
um não é completo sem o outro, embora cada Jesus veio trazer a vida plena e feliz; de outro
um ressalte um aspecto particular. Vejamos: lado, manda carregar a cruz cada dia. Isso tem
- Justiça sem solidariedade e sem mística a ver com a renovação da consciência do pró-
desumaniza o trabalho de evangelização (sin- prio doente. A mística do servo sofredor: Mt
dicalismo). 12,15-21; Mt 8,1; Jo 1,29. Os doentes devem
- Solidariedade sem justiça e mística é as- ser portadores de nova consciência e não ape-
sistencialismo. nas receptores de uma cura. “Eu
- Mística sem solidariedade e “A solidariedade vim para que todos tenham vida”
sem justiça ofende o povo, reve- de Jesus não era (Jo 10,10).
la um Deus que não se importa
com seu povo. É alienação.
só dó, mas apelo Assim, os agentes de Pastoral
de conversão da Saúde são chamados a ser profe-
A ação de Jesus e a saúde tas: apelo à mudança (conversão);
da própria
do povo não se conformar (Deus não quer!);
Perdura ainda no povo a comunidade.” ter indignação ética. As Campa-
mentalidade do Antigo Testa- nhas da Fraternidade específicas
mento: doença como castigo de Deus, mé- sobre a saúde – ao lado de todas as outras, já que
dicos desacreditados. todas têm um referencial na saúde, entendida de
Os doentes, os marginalizados aparecem à maneira ampla – devem ajudar os agentes de
luz do dia por causa da ação de Jesus. O povo Pastoral da Saúde nos desafios para que o povo
procura Jesus para ser curado. Os doentes estão tenha saúde!
no centro da atividade profética de Jesus. Os do-
entes agora são os “cacos” da humanidade, que
V. Campanha da Fraternidade
mostram que a vidraça da aliança se quebrou.
A Campanha da Fraternidade é realizada
Estrutura – Justiça: Jesus encarava a Es- anualmente pela Igreja Católica Apostólica Ro-
trutura como a doença de seu povo. A falta de mana no Brasil, sempre no período da Quares-
saúde e o pecado não tinham ligação individu- ma. Seu objetivo é despertar a solidariedade
alista e moralista. A estrutura é pecaminosa. dos fiéis e da sociedade em relação a um pro-
blema concreto que envolve a sociedade brasi-
Comunidade – Solidariedade: “ao ver a leira, buscando caminhos de solução. A cada
viúva, ficou com dó”. Jesus era a bondade ano é escolhido um tema, que define a realida-
ambulante. A solidariedade de Jesus não era de concreta a ser transformada, e um lema, que
só dó, mas apelo à conversão da própria co- explicita em que direção se busca a transfor-
munidade. Jesus defende os doentes, a ove- mação. A campanha é coordenada pela Confe-
nº- 310
lha encurvada, o paralítico, a hemorroíssa... rência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
O ato mais solidário de Jesus é morrer na Educar para a vida em fraternidade, com
•
ano 57
cruz, como pobre, doente, abandonado. base na justiça e no amor, exigências centrais
Morre como o povo pobre e grita: “Meu do Evangelho.
Deus, por que me abandonaste?”. O Pai aten- Renovar a consciência da responsabilida-
•
Vida Pastoral
de o grito do pobre, Deus vai escutá-lo. de de todos pela ação da Igreja Católica na
8
evangelização e na promoção humana, tendo
em vista uma sociedade justa e solidária. Por uma Igreja do reino
A título de exemplo, na área da saúde, pode- Novas práticas para reconduzir o
cristianismo ao essencial
mos destacar três Campanhas da Fraternidade
Adriano Sella
com a participação da Pastoral da Saúde: Cam-
panha da Fraternidade de 1981: saúde e frater-
nidade; Campanha da Fraternidade de 2008:
fraternidade e defesa da vida; Campanha da Fra-
ternidade de 2012: fraternidade e saúde pública.
As Campanhas da Fraternidade nos convidam a
refletir sobre o exercício da cidadania num tra-
balho integrado entre Igreja e sociedade.
240 págs.
mentos importantes para entender a cidada-
nia. Cidadania diz respeito à autonomia de
uma sociedade para traçar suas políticas. De-
“Menos mestres, mais
mocracia, sob o viés político, é a capacidade testemunhas; menos livros
das pessoas de se organizarem e participarem religiosos, mais Bíblia.” Eis
ativamente. Sob o viés sociopolítico-econômi- algumas pistas que o autor deste
co, é a consagração dos direitos mínimos do livro sugere, com a preocupação
ser humano: educação, saúde, habitação, se- de promover no interior da Igreja
a renovação que muitos invocam.
gurança, alimentação, trabalho. Sob o viés so-
Das reflexões aqui presentes
ciocultural, cidadania é a educação que propi- nasceu um percurso em que o
cia ao povo definir seus próprios valores. leitor, passo a passo, é colocado
Sem democracia, a cidadania fica compro- diante da realidade eclesial
metida, não encontrando espaço para existir de hoje, sentindo-se estimulado
em uma sociedade cuja participação nas estru- a dar sua contribuição para a
renovação da mensagem.
turas políticas, econômicas, sociais e culturais é
permitida apenas a uma minoria da população,
Imagens meramente ilustrativas.
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ano 57
Saúde é um cidadão!
9
O cidadão deve ser um agente de transfor- No âmbito da Igreja, há um despertar
mação na sociedade no resgate da dignidade de iniciativas e trabalhos organizados para
da pessoa e da qualidade de vida. É tendo a promover a humanização dos serviços de
responsabilidade de agir, de dar razões da ação saúde, das estruturas e das instituições
e de arcar com as consequências que se apren- hospitalares e educativas, fomentando a
de a viver junto. formação, a capacitação e a atualização dos
profissionais da saúde em nível humano,
ético e bioético.
VII. Sinais de esperança
Também nos deixa plenos de esperança
A reflexão e o enfoque integral que vêm o surgimento de grupos de pastoral da saú-
sendo dados à saúde como qualidade de vida, de, de associações de enfermos, de organiza-
bem-estar integral e direito fundamental de ções populares de saúde comunitária que
toda pessoa evidenciam as condições essenciais formulam propostas no âmbito das políticas
para o desenvolvimento pessoal e comunitário. públicas de saúde como condição indispen-
O surgimento de numerosas organiza- sável para melhorar as condições de vida dos
ções populares que trabalham com o cuida- cidadãos.
do, a defesa e a promoção da vida em áreas A presença evangelizadora da Igreja por
rurais e urbanas. meio de numerosos leigos comprometidos, pro-
A presença cada vez mais significativa de fissionais de saúde, sacerdotes, religiosos (as),
mulheres que assumem compromissos em que promovem, animam e apoiam essas inicia-
favor das comunidades. tivas (cf. Documento de Aparecida, n. 419).
A medicina popular e alternativa que vai Numerosas conferências episcopais valo-
sendo desenvolvida com todo o seu valor e rizam a Pastoral da Saúde e estão comprome-
que leva em conta o contexto global da saúde tidas em organizá-la e estruturá-la no âmbito
e da doença. de uma pastoral orgânica.
Bibliografia
NIERO, E. M.; LORASCHI, C. “Bíblia e saúde pública: a vida com dignidade”. Vida Pastoral, São
Paulo: Paulus, mar./abr. 2014.
•
OLIVEIRA, I. F.; SOUZA, W. “A pastoral da saúde da Arquidiocese de Curitiba e seus desafios”. In:
ano 57
PESSINI, L.; BARCHIFONTAINE, C. P. Problemas atuais de bioética. São Paulo: Loyola: Centro Univer-
Vida Pastoral
10
A espiritualidade como
um dos referenciais
da bioética?
Leo Pessini*
William Saad Hossne**
11
“sobrevivência humana”, advertia-nos Potter muito bem elaborado que aborda diversos
no início de suas intuições bioéticas. aspectos de religião, religiosidade e psicopa-
A trajetória reflexiva deste texto conta tologia e apresenta mais de 500 referências
com os seguintes momentos: associação en- bibliográficas.
tre espiritualidade e saúde – bioética clínica; Na introdução, o autor assinala que “a
a espiritualidade na visão de alguns teólogos religiosidade é uma das dimensões mais
e bioeticistas; a espiritualidade como referen- marcantes e significativas (assim como do-
cial da bioética: considerações finais. adora de significados) da experiência hu-
mana cotidiana, da subjetividade”. O autor
Associação entre enfatiza que há “consenso en-
espiritualidade e saúde “A religiosidade é tre cientistas sociais, filósofos e
A quais questões estão hoje psicólogos sociais de que a re-
se associando a espiritualidade uma das dimensões ligião é uma importante ins-
e a religiosidade? A associação mais marcantes tância de significação e ordena-
maior é com saúde, sobretudo ção da vida, de seus reveses e
e significativas
saúde mental, e, dentro da área sofrimentos”.
de saúde, com cuidados palia- da experiência O autor também faz uma
tivos e terminalidade da vida. humana.” análise da religiosidade no Bra-
Fazendo uso de índices biblio- sil que merece destaque. Quan-
métricos, verificamos, em três to à importância da espirituali-
bases de dados, que, do total de publicações dade e, sobretudo, da religiosidade e das
cujo título contém o vocábulo “espirituali- religiões na esfera da saúde, e particular-
dade” (2.347), em 12% (284) o termo “es- mente na saúde mental, o livro não deixa
piritualidade” está frequentemente associa- brechas nem dá margem a dúvidas. Tendo
do a saúde. Na base Medline, isso ocorre em em vista o presente artigo, vale lembrar tam-
14% das publicações; no Lilacs, em 25%; e bém os aspectos “negativos”, por assim di-
no Philosopher’s Index, 2%. Dos artigos em zer, presentes tanto na esfera da psicopato-
cujos títulos aparecem os dois vocábulos logia como da religiosidade e das religiões.
(“espiritualidade” e “saúde”), 19% se refe- Nesse sentido, vale ressaltar que, nas con-
rem a saúde mental (no caso do Medline, clusões, Dalgalarrondo apresenta um qua-
essa taxa é maior: 20%). dro demonstrativo das associações entre re-
Por outro lado, ao se analisarem os títulos ligião e religiosidade e a saúde mental, im-
das publicações sobre espiritualidade, verifi- portantes para a reflexão bioética. De um
ca-se uma tendência crescente, sobretudo no lado, elenca e sintetiza os possíveis “fatores
Lilacs, de unir os dois vocábulos, espirituali- positivos” e, de outro, os “fatores negativos”
dade e religiosidade, com traço (ou barra) de nessas associações.
união, o que evidencia fusão (ou equivalên- Do conjunto apresentado por Dalgalar-
cia) dos termos, os quais, a nosso ver, se inter- rondo, destacamos alguns dos “fatores positi-
-relacionam, mas não se equivalem. vos” e dos “fatores negativos”. Fatores ou
nº- 310
Ressalte-se a riqueza dos artigos que tra- efeitos positivos: fornecer um conjunto de
tam da associação da espiritualidade e da re- sentidos e significados possíveis para a exis-
•
ano 57
ligiosidade e também das religiões com a saú- tência, para o sofrimento e para a morte; pra-
de mental. Pela qualidade, especial menção ticar rituais que podem fornecer a sensação
de pertença a um grupo; difundir a ideia de
•
12
lores e comportamentos relacionados à acei-
tação, tolerância, ajuda e apoio a outras pes-
Uma nova evangelização
soas e grupos. Aparentados ao sentido de Pastoral de conjunto
solidariedade, estariam a piedade, a caridade, e pastorais orgânicas
o amor ao próximo e à natureza etc. João Bosco Oliveira
Aparecida de Fátima Fonseca Oliveira
Fatores ou efeitos negativos: diminuir a
liberdade individual por meio de cobranças
exigentes do grupo sociorreligioso; estabele-
cer padrões de conduta moral de difícil al-
cance, produzindo uma sensação constante
de culpa, insuficiência e baixa autoestima;
praticar rituais emocionalmente intensos
pode desencadear episódios psicóticos ou
outros transtornos mentais.
Ainda na esfera da espiritualidade e reli-
giosidade, de um lado, e saúde mental, de
outro, encontram-se importantes subsídios
296 págs.
na edição da Revista de Psiquiatria Clínica
(2007, v. 34, supl. 1) inteiramente dedicada
ao tema. São apresentados dados de revisão O escopo desta obra contempla
um grande desafio: alcançar a
da literatura que abrangem amplo leque de
unidade e a integração das pas-
itens. Entre outros, destacamos consumo de torais, movimentos, associações e
drogas, cuidados paliativos, saúde física, serviços eclesiais em um trabalho
transtornos psicóticos, qualidade de vida, ex- articulado com a diocese ou a
periências de quase morte, enfrentamento paróquia, onde a ideia de com-
religioso/espiritual e psicoterapia. plementaridade possibilite uma
evangelização eficaz e produtiva.
A revisão, aliada à ótima análise crítica dos
Nesta dinâmica de uma profícua
respectivos autores dos artigos, deixa clara a evangelização, os autores colo-
importância da espiritualidade e religiosidade cam, além de um embasamento
na saúde mental, justificando, ao menos, a ne- teórico, atividades e iniciativas
cessidade de considerar a espiritualidade na para ajudar a compenetração
reflexão bioética. Nessa direção, o editorial das ações evangelizadoras, com
Imagens meramente ilustrativas.
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nalar a presença de forte associação com a ritualidade”, no próprio título do artigo publi-
espiritualidade na história e evolução dos cado. Isso significa que religião e religiosidade
cuidados paliativos. são temas básicos da publicação, inseridos,
Já em 1967, Cicely Saunders, ao fundar o porém, no contexto da espiritualidade. Nota-
St. Christopher’s Hospice, em Londres, elabo- -se, também, a associação entre espiritualida-
rou o conceito de dor total, englobando a di- de e saúde, além de saúde mental e dos cuida-
mensão espiritual do sofrimento. Ela mesma dos paliativos, que acabamos de abordar.
era uma pessoa de profunda espiritualidade Na literatura, constata-se a ampla e
cristã. Não é à toa que, no centro abrangente associação entre reli-
de sua instituição de cuidados “As publicações giosidade e saúde física, religio-
paliativos, a capela ocupava um sidade e personalidade, espiritu-
lugar estratégico. A Organização
evidenciam o interesse alidade e oncologia, espirituali-
Mundial de Saúde (OMS), em tanto do paciente dade e envelhecimento, espiritu-
três momentos, ao definir e alidade e consumo de álcool, es-
como do profissional
aprofundar o conceito de cuida- piritualidade e anorexia nervosa,
dos paliativos, incluiu a dimen- de saúde, bem como religiosidade e HIV, espirituali-
são “espiritual do ser humano”. a falta de formação dade e epilepsia, espiritualidade
Em 1990, ao definir cuidados e dor, espiritualidade e qualida-
paliativos, inseriu a frase: “con- na área para o de de vida, religiosidade e ma-
trole da dor e de outros sintomas enfrentamento da ternidade prematura, religiosi-
e problemas de ordem psicológi- dade e sentido da vida (logotera-
ca, social e espiritual são prioritá-
matéria.” pia de V. Frankl), espiritualidade
rios” (grifo nosso). Em 1998, ao e transtorno bipolar e espiritua-
procurar aprimorar a definição de cuidados lidade e terminalidade na deontologia.
paliativos, estipulou “cuidado ativo total para Vale assinalar a crescente atenção da enfer-
o corpo, mente e espírito” (grifo nosso). Em magem, na América Latina e no Brasil, pelo
2002, ao se referir a cuidados paliativos, afir- tema da espiritualidade. No campo da “relação
ma que eles abrangem “tratamento da dor e profissional da saúde e cliente”, nota-se tal en-
outros problemas de ordem física, psicossocial foque, sobretudo, nas profissões da área de
e espiritual” (grifo nosso). enfermagem, assinalando a necessidade do
Verifica-se, pois, forte vinculação entre preparo do profissional perante o interesse do
cuidados paliativos e a espiritualidade, estan- paciente por questões de espiritualidade. As
do tal associação presente na própria defini- publicações evidenciam o interesse tanto do
ção de cuidados paliativos. Nessa tendência paciente como do profissional de saúde, bem
de vincular a espiritualidade na definição de como a falta de formação na área para o en-
conceitos, vale assinalar, mesmo que de pas- frentamento da matéria. Embora de modo su-
sagem, que as diretrizes bioéticas para a pes- mário, fica caracterizada a importância e o en-
quisa em seres humanos no Brasil (Resolução volvimento da espiritualidade, incluídas aí a
196/96 – CNS 1996) incluíam, na definição religiosidade e a religião enquanto manifesta-
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partir do ano 2000, veio crescendo o número Além dessas situações, cabe citar que
de publicações referentes à espiritualidade. questões de espiritualidade (sobretudo reli-
•
de” e “religião” vêm associados ao termo “espi- cionadas em códigos de ética e em leis. É o
14
caso, por exemplo, do problema de transfu-
são de sangue em testemunhas de Jeová. O
Paróquia e iniciação cristã
tema tem sido e continua a ser discutido no A interdependência entre renovação
campo das implicações bioéticas. No Brasil, paroquial e mistagogia catecumenal
houve uma definição deontológica, prevale- João Fernandes Reinert
cendo a autonomia (do paciente, respeitada a
do médico) e a beneficência (proposta pelo
médico) em várias situações clínicas, exceto
quando houver risco de morte do paciente
(art. 22 do Código de Ética Médica, de 2009).
Em suma, são levantadas questões de or-
dem jurídica, religiosa, social, legal, médica,
médico-legal, ética e bioética. O leitor tem a
oportunidade de refletir sobre o tema com
base na opinião de intelectuais especialistas
nesta área do conhecimento humano, mas fal-
ta ainda uma visão de estudiosos e teólogos.
260 págs.
A espiritualidade na visão de alguns
teólogos e bioeticistas A transmissão da fé e sua conse-
quente vivência eclesial comunitária
Potter publicou na revista The Scientist in-
são dois desafiospastorais da
teressante artigo, com o sugestivo título “A atualidade. É um desafioo iniciar
ciência e a religião devem partilhar da mesma na fé, quando já não é mais natural
busca em relação à sobrevivência global”. Diz ser cristão; é exigente perseverar
ele (1994, p. 12): na vivência eclesial, quando cresce
o assim chamado processo de
Durante séculos, a questão dos valo- desinstitucionalização religiosa ou
res humanos foi considerada apenas para a crença sem pertença. Repensar
além do campo científico, propriedade os caminhos da iniciação cristã e a
exclusiva dos teólogos e filósofos secula- reconfiguração eclesial é, portanto,
uma tarefa urgente. A metodologia
res. Hoje, devemos sublinhar que os
catecumenal, caminho antigo e
cientistas não somente têm valores trans- sempre novo para se iniciar na fé,
Imagens meramente ilustrativas.
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a responsabilidade global da sobrevivência pessoa vivencie um sentido transcendente na
humana e seu apelo pelo respeito mútuo, ne- vida. Trata-se de construção que envolve “fé”
cessário para uma ética mundial comum. e “sentido”. A fé é a crença numa força trans-
Potter continua: cendental superior, não necessariamente
identificada com Deus ou vinculada à partici-
Estamos conscientes de que as religi-
pação nos rituais de uma religião específica.
ões não podem resolver os problemas
Essa fé pode identificar tal força como exter-
econômicos, políticos e sociais da Terra.
na à psique humana ou internalizada. O sen-
Contudo, elas podem prover o que não
tido, por sua vez, envolve a convicção de que
conseguimos com planos econômicos,
se está realizando um papel e um
programas políticos e regu-
propósito inalienáveis na vida,
lamentações legais. As reli- “As religiões são
que é considerada um dom.
giões podem causar mu-
propostas de felicidade Adela Cortina, doutora em fi-
danças na orientação inte-
losofia, bioeticista espanhola mui-
rior, na mentalidade, nos e seria muito bom se
to conhecida na América Latina e
corações das pessoas e levá- recuperassem a ideia
particularmente no Brasil, ao ser
-las para uma conversão de
um falso caminho para uma originária de fazer perguntada a respeito do papel da
religião nas sociedades pluralistas,
nova orientação de vida. As propostas de vida distingue éticas dos máximos
religiões, contudo, são capa-
zes de dar às pessoas um hori-
plena.” (proposta pelas religiões) e a ética
dos mínimos. O pluralismo mo-
zonte de sentido para suas vi-
ral consiste em saber articular as distintas éti-
das e um lar espiritual. Certamente, as re-
cas de máximos segundo uma ética cívica mí-
ligiões podem agir com credibilidade so-
nima compartilhada. A ética cívica mínima
mente quando eliminarem os conflitos
não é rebaixar a ética ao mínimo, e sim resga-
que surgem entre si e desmantelarem
tar os valores em comum, como justiça, igual-
imagens hostis e preconceitos e descon-
dade, solidariedade.
fianças mútuas (grifo nosso).
Para Adela Cortina, as religiões são pro-
Leonardo Boff define espiritualidade postas de vida feliz e seria muito bom se recu-
como a dimensão em nós que responde pelas perassem a ideia originária de fazer propostas
derradeiras questões que sempre acompa- de felicidade, de vida plena, autorrealizada.
nham nossas indagações: de onde viemos; Numa sociedade em que ninguém faz projetos
para onde vamos; qual o sentido do univer- de felicidade, as exigências de justiça são muito
so; que podemos esperar para além desta menores. Quando o que buscamos é ser feliz
vida. As religiões costumam responder a tais no sentido pleno da palavra, a justiça importa
indagações, mas não detêm o monopólio da muito. As religiões seguem tendo essa tarefa de
espiritualidade. Esse é um dado antropológi- fazer propostas de felicidade e têm de recupe-
co de base, como são a vontade, o poder e a rá-la. É a ideia do Evangelho, já uma boa notí-
libido. A espiritualidade emerge quando nos cia. A boa notícia é que a felicidade é possível
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sentimos parte de um todo maior. É mais que para todos os seres humanos. Estamos muito
a razão, é um sentimento oceânico de que carentes de propostas de felicidade. As religi-
•
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uma energia amorosa origina e sustenta o ões têm ido muito pelo Direito Canônico e se
universo e cada um de nós. esqueceram dos projetos de felicidade.
•
dade” como aquilo que permite que uma gue sendo o amor. O amor é o nível maior do
16
que se pode exigir da justiça. Existe um lugar
importantíssimo que não é o dos deveres e di-
Construção da cidadania
reitos nem o da justiça. Adela Cortina fala de
e gestão eclesial
obrigações. A palavra obrigação vem de liga- Relato de uma experiência
ção, de vínculo. Quando descobrimos que te- que deu certo
mos vínculos com os outros, sentimo-nos Adailton Altoé
obrigados, embora ninguém nos obrigue. Não
é um dever que nos impõem nem algo que
nos dizem, e sim nós é que notamos esse vín-
culo e nos sentimos “obrigados”. Todos neces-
sitam de consolo, esperança, sentido, ilusão, e
nenhum governo tem o dever de dar essas coi-
sas. Esse é o papel das religiões. Elas devem
dar consolo em tempos de cansaço, ajuda em
tempos de vulnerabilidade, sentido quando as
pessoas se perguntam se as coisas valem a
pena, sonhos, projetos. Esse é o seu grande
papel. Elas devem plenificar o coração e fazer
72 págs.
com que existam coisas a serem compartilha-
das pela abundância do coração.
Diante do nível alarmante de
Diego Gracia, ilustre catedrático da Univer- corrupção presente em nossas
sidade Complutense de Madri, bioeticista co- instituições públicas, muitos
nhecido em terras latino-americanas e especial- cristãos têm se mobilizado pela
mente no Brasil por sua frequente participação causa da ética na política.
em congressos, cursos de bioética e obras pu- A verdadeira força da Igreja
na política não está no fato
blicadas, apresenta a questão numa perspectiva
de participar das instâncias
histórica, afirmando que, a partir do século de poder político, nem em
XVIII, a civilização ocidental optou preferen- fazer discurso panfletário no
cialmente pelos fatos, sobretudo os científicos, altar, mas numa experiência
embora essa predileção fosse acompanhada pe- eclesial significativa, que
los chamados valores instrumentais, que ti- transforme a mentalidade e a
prática das pessoas, gerando
nham importância por serem meios a serviço
Imagens meramente ilustrativas.
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como o desfrutar de bens materiais e, acima cuidados paliativos, que procuram ajudar
de tudo, do dinheiro. em situações críticas, inicialmente aborda-
Contudo, o conceito que hoje temos da es- rão o bom manejo dos valores instrumentais
piritualidade refere-se, necessariamente, ao cul- (analgésicos e outros produtos que permi-
tivo dos valores intrínsecos e não dos valores tam controlar os sintomas) e, no campo dos
instrumentais. Do conjunto dos valores intrín- valores intrínsecos, o que se revela menos
secos se destacam os valores espirituais, entre os conflituoso, o bem-estar. Porém, o cuidado
quais estão os valores jurídicos (justo ou injus- total do paciente exige também a gestão cor-
to), sociais (solidário ou egoísta), lógicos (verda- reta dos valores espirituais.
deiro ou falso), morais (bom ou Francis S. Collins, cientista
mau), religiosos (santo ou profa- “O conceito que do Projeto Genoma Humano, em
no) etc. Esses valores constituem sua obra A linguagem de Deus: um
a vida do espírito e são os que,
hoje temos da cientista apresenta evidências de
hoje em dia, podem dotar de con- espiritualidade refere- que ele existe, assume que a ciên-
teúdo o termo espiritualidade. cia é a única forma confiável para
se ao cultivo dos
Ao aplicar essa conceituação entender o mundo da natureza, e
à área da terminalidade da vida, valores intrínsecos as ferramentas científicas, quan-
Gracia afirma que aí os valores e não dos valores do utilizadas de maneira adequa-
instrumentais deixam de ser im- da, podem gerar profundos dis-
portantes e, ao mesmo tempo, instrumentais.” cernimentos na existência mate-
existe especial sensibilidade pelos rial. A ciência, entretanto, é inca-
valores intrínsecos, especialmente os espiritu- paz de responder a questões como: por que o
ais. Então tomamos consciência de entrar numa universo existe? Qual o sentido da existência
dimensão mais profunda do ser humano, ao es- humana? O que acontece após a morte? Uma
tarmos, segundo Karl Jaspers, numa situação- das necessidades mais fortes da humanidade é
-limite, nas cercanias da morte. encontrar respostas para as questões mais pro-
Assim, como os valores espirituais pas- fundas, e temos de apanhar todo o poder de
sam ao primeiro plano, os cuidados paliati- ambas as perspectivas, a científica e a religiosa,
vos não podem se limitar a promover o máxi- para buscar a compreensão tanto daquilo que
mo bem-estar material e vital do paciente, vemos como do que não vemos (p. 14-15).
controlar a dor e proporcionar apoio emocio- Segundo o filósofo Hardwig, a palavra es-
nal. O cuidado total de Cicely Saunders tam- piritual é complexa:
bém exige levar em conta as necessidades
(...) refere-se às preocupações sobre o
espirituais. Entre todos esses valores espiritu-
significado fundamental e os valores fun-
ais, destaca-se a religião, que se vincula a
damentais da vida. Espiritual não implica
uma atitude de agradecimento que se pode
qualquer crença em um ser supremo ou
ter e cultivar até mesmo sem crer na existên-
numa vida depois dessa. Os ateístas têm
cia de um ser pessoal a que chamamos Deus.
preocupações espirituais como qualquer
Portanto, a religiosidade não é exclusiva de
nº- 310
outra pessoa.
pessoas que creem em Deus ou pertencem a
uma Igreja institucional. Os cuidados paliati- Esse autor questiona o silêncio dos bioe-
•
ano 57
Diego Gracia conclui dizendo que os vida pelo colorido de um pluralismo de ritos
18
e com “múltiplas visões”. Está-se diante de Fica claro que o ficcionista, ao falar em
um pluralismo de convicções e opções, algo “espírito religioso” e enumerar os seus sinais,
que é necessário respeitar. Não se pode mais está se referindo à espiritualidade, mais do
absolutizar um conhecimento em detrimento que à religiosidade ou religião, mas já situan-
de outro. Nenhum conhecimento em si esgo- do a religiosidade como manifestação da espi-
ta a realidade da vida e da natureza de uma ritualidade. Com efeito, verificamos nos dicio-
pessoa como um todo. Certamente o conhe- nários que espiritualidade se refere à “qualida-
cimento da racionalidade científica é impor- de do que é espiritual” e que espiritual é algo
tante, assim como outros, tais como a músi- “concernente ao espírito”. E espírito diz res-
ca, a arte, a literatura, a cultura e as religiões. peito à “parte imaterial do ser humano; alma”.
Querer captar todo o “mistério do transcen- Vale sempre relembrar que a bioética é
dente” nas simples malhas da razão humana necessária e obrigatoriamente uma área do
não deixa de ser um ato de orgulho louco. conhecimento de natureza pluralista, multi
Como vemos, as perspectivas aqui ex- e interdisciplinar, dela devendo participar
postas nos falam das espiritualidades das re- todos os protagonistas que possam intervir
ligiões, enquanto núcleo fundador de signifi- em sua discussão. Para nós, até um dogma
cados e transcendência. Circunscrevemos de uma religião não pode ser rejeitado in li-
nossa reflexão à espiritualidade no coração mine numa avaliação de natureza bioética,
das religiões tão somente. Discorrer sobre a mas nunca como dogma, e sim, eventual-
relação entre ciência e religião, entre religião mente, como já foi referido, como linha de
e bioética seria assunto para outra reflexão. pensamento (via final) ou como subsídio
inicial para insight.
Considerações finais Tal como entendida e demonstrada pela
Por tudo até aqui discutido, conclui-se gama crescente de publicações, a espirituali-
que a espiritualidade é importante como refe- dade guarda relação direta com um dos aspec-
rencial, como espaço próprio, mas também se tos sobre os quais a bioética se debruça: o sen-
articula com outros referenciais, tais como al- tido da vida, considerado, aliás, como um dos
teridade, altruísmo, prudência, equidade, au- pontos convergentes das várias religiões. Tra-
tonomia, beneficência, solidariedade. Em ta-se de questão que surgiu com o homem ra-
suma, no círculo aberto dos referenciais, deve- cional e se estendeu a todos os que professam
-se incluir a espiritualidade, tal como aqui dis- qualquer uma das religiões, mas também está
cutida, com base nas seguintes considerações, presente entre os ateus e agnósticos. As consi-
sumariamente elencadas: a) clássica e tradicio- derações a respeito da definição de Homem,
nalmente, tem-se afirmado que o ser humano de Vercors, fundamentam a afirmação.
é um ser racional e um ser espiritual; b) racio- A espiritualidade vem sendo cada vez mais
nalidade e espiritualidade seriam característi- invocada na área da bioética em situação clíni-
cas distintivas do ser humano em relação a ca (bioética clínica) e no campo da saúde em
outros animais; c) mesmo na ficção (Vercors), diversas áreas (saúde mental, cuidados paliati-
a definição de ser humano se alicerça no fato vos, qualidade de vida, terminalidade de vida).
nº- 310
de distinguir-se do animal por seu espírito re- Também tem sido enfocada como necessária
ligioso: “E os principais sinais do espírito reli- para que o profissional da saúde se capacite
•
ano 57
gioso são, na ordem decrescente: a fé em Deus, para melhor atuar junto ao doente. A área de
a ciência, a arte e todas as suas manifestações; enfermagem vem se preocupando com a for-
o fetichismo, os totens e os tabus, a magia, a mação de alunos pós-graduandos e profissio-
•
Vida Pastoral
19
questão da espiritualidade na relação com o piritualidade, indagávamos se a espirituali-
paciente. Nessa formação, os dados da literatu- dade não deveria ser um dos referenciais da
ra já apontam para a importância de encarar a bioética. Com o presente artigo, argumenta-
espiritualidade do próprio profissional da saú- mos que a espiritualidade, na perspectiva
de, de um lado, e a espiritualidade do paciente, aqui adotada, deve, sim, ser um dos referen-
de outro. Como se deve proceder? Qual deve ciais da bioética. Como ocorre com outros
preponderar? Aqui, como no caso da autono- referenciais – por exemplo, vulnerabilidade,
mia, “as duas espiritualidades” devem procurar autonomia, alteridade –, a espiritualidade
a harmonia, tendo como objetivo respeitar a ganha o devido espaço não só em decorrên-
autonomia de um e de outro e voltar-se para os cia de outros referenciais, sobretudo o res-
melhores interesses do sujeito, o ser humano. peito pela autonomia e alteridade, mas tam-
Ao advogarmos a necessidade de diálo- bém por causa de si mesma, como persona-
go entre bioética e religião, na perspectiva lidade referencial.
de que no coração de toda religião está a es-
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•
ano 57
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•
VERCORS. Nos confins do homem (os animais desnaturados). São Paulo: Difusão Europeia do Livro,
Vida Pastoral
1956. p. 23.
20
O sentido da psicologia para a
vida consagrada: considerações
Ênio Brito Pinto*
Quero refletir aqui sobre o que leva as pessoas de vida consagrada a procurar
auxílio psicoterapêutico. Quero, neste artigo, mais do que fazer essas
reflexões, ajudar na compreensão do papel da psicoterapia e, de maneira
especial, ajudar as pessoas de vida consagrada católica a compreender melhor
os possíveis alcances e os limites de um processo psicoterapêutico para que se
torne efetivamente propiciador de atualizações, crescimentos e
autodescobertas, seu fim último.
eniobritopinto@uol.com.br
ano 57
21
proposição suficientemente abrangente do um pouco pior, é a obediência cega, ou seja,
que seja uma existência saudável. É com a pessoa que procura a terapia porque uma
base nesses critérios que o terapeuta vai cui- autoridade (um médico, um bispo, um pro-
dar da própria vida e ajudar seu cliente a cui- vincial, um professor) recomendou ou orde-
dar da vida dele. Esses dados também forne- nou que assim se fizesse. Quando a pessoa
cerão o reconhecimento acadêmico para a obedece cegamente por temer punições, po-
abordagem escolhida pelo terapeuta, fator derá desenvolver basicamente três atitudes
imprescindível para a confiabilidade do tra- que praticamente inviabilizam a utilidade
balho executado. de qualquer processo psicotera-
Vamos agora olhar para o
“Uma das coisas
pêutico: o cálculo de riscos, a
cliente: o que leva uma pessoa que levam pessoas a resignação passiva ou a amplia-
a procurar psicoterapia? Não é
procurar psicoterapia ção da má vontade. O terceiro
o fato de ter problemas, uma motivo surge quando a pessoa
vez que a vida é cheia deles e as é a sensação de que aproveita a recomendação (ou,
pessoas acabam dando conta não se está vivendo em alguns casos, especialmente
das dificuldades que o existir na vida consagrada atual, a obri-
lhes impõe. Uma das coisas com a plenitude que gatoriedade) para transformar a
que levam pessoas a procurar se poderia.” obediência em oportunidade de
psicoterapia, talvez a mais co- atualização e crescimento.
mum e importante, é a sensação – geral- No caso das pessoas que procuram auxí-
mente muito íntima – de que não se está lio psicoterapêutico por perceberem a ne-
vivendo com a plenitude que se poderia, ou cessidade desse recurso e por confiarem que
seja, uma intuição de que o sofrimento per- ele lhes poderá ser útil, temos um prognós-
turbador atual pode ser um trampolim para tico bom para o início do trabalho – o dese-
um crescimento pessoal. Nem sempre isso é jo e a necessidade de mudanças estão mais
percebido conscientemente, de modo que o próximos da consciência e são importantes
comum é a pessoa procurar terapia para motivadores para a aventura de autoconhe-
tentar acabar com o sofrimento, aliviar-se cimento e de retomada do crescimento que
dessa suposta incompetência, suprimir o constitui, em última análise, o processo psi-
sintoma. Em outros termos, podemos dizer coterapêutico (ou analítico – a nomenclatu-
que, embora a maioria das pessoas não per- ra depende da abordagem do terapeuta). No
ceba, o que leva à procura de um suporte caso das pessoas que procuram a terapia por
psicoterápico é a necessidade inalienável obediência, como vimos, temos duas possi-
que todos temos de crescer, desenvolver- bilidades de prognóstico inicial, a depender
-nos, alcançar a melhor configuração possí- de como a pessoa significa a entrada no pro-
vel para cada situação. Ainda em outros ter- cesso psicoterapêutico.
mos, e tentando ser mais sintético e prático, Lembro-me de duas situações que vivi
há três motivos básicos que levam pessoas a em terapia que ilustram estes segundo e ter-
procurar psicoterapia. O primeiro, e mais ceiro caminhos. Certa vez me procurou um
nº- 310
comum, é uma dor existencial que aponta diácono dizendo que precisava fazer terapia
para a necessidade de mudanças difíceis, porque seu bispo lhe dissera que só o orde-
•
ano 57
para que o desenvolvimento pessoal não fi- naria se ele fizesse um acompanhamento te-
que estagnado; dor à qual se associa a cons- rapêutico; esse homem compareceu às ses-
ciência de que é preciso alguma ajuda espe- sões por alguns poucos meses, praticamente
•
Vida Pastoral
22
expôs ou se dispôs a se conhecer mais e me-
lhor, apesar de meus esforços. Para o bispo,
Paróquia missionária
ele estava fazendo terapia e, portanto, podia Projeto de evangelização e missão
ser ordenado. Uma semana antes da ordena- paroquial na cidade
ção, esse cliente me avisou que não voltaria Padre Humberto Robson de Carvalho
mais, uma vez que seu objetivo já tinha sido
alcançado, ou seja, seria ordenado padre.
Aparentemente, fez terapia; na prática, só
gastou seu tempo, meu tempo e o dinheiro
da Igreja. Caso bem diferente aconteceu
com uma religiosa que me procurou certa
feita. Ela estava muito brava porque, tendo
sido obrigada pela superiora a fazer terapia,
achava que não precisava desse recurso na-
quele momento. Fizemos uma primeira ses-
são, e, já de início, ela me disse: “Ênio, mi-
nha questão é a seguinte: estou aqui porque
80 págs.
minha superiora me obrigou a fazer terapia,
mesmo contra a minha vontade neste mo-
mento. Como tenho que obedecer, então A Igreja Católica, por escolha
de Jesus, nasceu missionária
quero aproveitar essa oportunidade para
e desenvolveu-se no vigor
compreender algumas coisas da minha vida da missão. Os apóstolos
e ver se, assim, me sinto ainda melhor sendo compreenderam essa escolha
eu mesma”. Trabalhamos por alguns poucos de Jesus e saíram em missão.
meses, até que ela foi transferida para um O Papa Francisco sonha que
local muito distante de São Paulo, inviabili- o vigor da missão retorne, ou
seja, que todos os agentes de
zando os encontros semanais. Foi muito bo-
pastoral tenham uma atitude
nito ver como ela aproveitou os encontros constante de “saída”, para que
terapêuticos para se atualizar e crescer, am- as pessoas, até o momento
pliando ainda mais seu autoconhecimento e distantes da comunidade, tenham
sua autonomia. a oportunidade de compartilhar
O que diferencia esses dois casos? Basi- da amizade com Jesus.
Imagens meramente ilustrativas.
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a esperança de que ela gerasse crescimento e tras posturas e outras formas de intervenção
melhor posicionamento ante a vida e ante a do psicólogo.
vida religiosa. Não há como alguém ter esse Quando tratamos de saúde em seu sen-
tipo de controle. Não é eficaz a terapia como tido mais lato, há, fundamentalmente, duas
método corretivo, ou de ensino, ou mesmo maneiras de promovê-la – por meio de in-
de punição. A psicoterapia não é lugar em tervenções preventivas e de intervenções
que se vá aprender sobre si, mas lugar em curativas. A psicologia tem recursos para
que se vai descobrir sobre si, e descobrir-se os dois caminhos, embora poucas pessoas
exige coragem ou dor, não obediência. A te- estejam atentas para essa diferenciação. A
rapia não pode ser um dever, psicoterapia propriamente dita
fruto de uma obediência cega; “O terapeuta ético é uma intervenção mais curati-
precisa ser uma escolha. Para va, na qual o aspecto preventi-
tanto, o esclarecimento e a pa- não é um vendedor vo vem a posteriori, como con-
ciência são caminhos muito de seu trabalho, sequência do incremento da
mais produtivos que a imposi- saúde emocional alcançado no
mas um profissional
ção quando se quer que al- tratamento. Com base na vi-
guém procure e faça mesmo que conhece as vência de muitos processos psi-
uma psicoterapia. possibilidades e coterapêuticos curativos, pode-
Corolário disso, é impor- mos hoje delinear, com boa
tante que fique claro que não é limitações de seu dose de acerto, aspectos que,
papel – nem sequer é possibili- instrumento.” se tratados de forma preventi-
dade! – do terapeuta conven- va, reduziriam a necessidade
cer seu cliente ou futuro cliente da necessi- de trabalhos curativos. Esse é o principal
dade e da utilidade de uma terapia. O limi- veio a ser explorado pelos psicólogos que
te ético de um psicoterapeuta é discutir prestam assessorias a seminários, casas de
com seu potencial cliente os possíveis be- formação de religiosas e paróquias.
nefícios e as prováveis dificuldades de um Embora ainda haja restrições em setores
processo psicoterapêutico naquele momen- mais tradicionalistas, já vai longe o tempo em
to, de modo que a pessoa possa decidir da que psicólogos e outros profissionais de saú-
forma mais autônoma possível se quer ou de não eram bem recebidos em seminários,
não fazer terapia. O terapeuta ético não é casas de formação, congregações e dioceses.
um vendedor de seu trabalho, mas um pro- Hoje já há um espaço aberto para que esses
fissional que conhece as possibilidades e profissionais possam atuar como auxiliares
limitações de seu instrumento e confia em na formação pessoal dos presbíteros e das de-
sua utilidade nas situações em que ele é es- mais pessoas de vida consagrada, numa pers-
colha pertinente. pectiva de promoção preventiva da saúde
Além disso, é preciso que se conheçam e como um todo e da saúde emocional em es-
se discutam com maior cuidado as indica- pecial. Ainda não temos conhecimento e diá-
ções e os limites dos processos psicoterápi- logo suficientes para delinear, com a necessá-
nº- 310
cos. E é preciso também diferenciar a psico- ria segurança, o papel e a forma de atuação
terapia dos trabalhos preventivos que pos- dos psicólogos ante os religiosos nesse aspec-
•
ano 57
sam ser feitos como forma de dar suporte à to preventivo, mas já há muita vivência – al-
saúde emocional das pessoas de vida consa- gumas com sucesso e outras com erros que
grada, trabalhos que, embora terapêuticos,
•
não são psicoterapia e, portanto, exigem ou- compartilhada para que se delineiem, com
24
maior clareza, as melhores maneiras de atua-
ção do profissional psicólogo ante as pessoas
Nunca pare de sonhar
de vida consagrada. A produção acadêmica O presbítero que ama Jesus
sobre esse campo ainda é menor do que o e sua Igreja
desejável, mas tem crescido significativamen- Jésus Benedito dos Santos
te e com qualidade.
Em artigo publicado recentemente
(PINTO, 2013), mostrei alguns aspectos do
olhar gestáltico para a questão da saúde
emocional entre as pessoas de vida consa-
grada, dentre os quais destaquei cinco como
os mais importantes do ponto de vista psi-
coterapêutico: como a pessoa lida com as
relações; com a temporalidade (o tempo vi-
vido); com a corporeidade (o corpo vivido)
e com a espacialidade (espaço vivido); como
lida com a conscientização e a valoração;
256 págs.
com a vida afetiva e a sexualidade. Em mi-
nha prática clínica, estes são pontos que
percebo como mais comumente presentes João XXIII pedia pelo surgimento
de homens sábios, que fossem
nas queixas que trazem para a terapia as
capazes de iluminar, com a luz de
pessoas de vida consagrada. Por questão de Cristo, as descobertas do mundo
espaço, vou comentar sucintamente três de- moderno. Este livro é um convite
les, na esperança de que estas reflexões pro- a todo cristão católico a continuar
voquem atuações terapêuticas preventivas sonhando o sonho do Concílio
de colegas e de pessoas de vida religiosa, Vaticano II, em um trabalho para
colocar o mundo moderno diante
além de incentivar aqueles que necessitam a
do Evangelho de Cristo. No
procurar uma psicoterapia. O que diz res- espírito do Concílio Vaticano II, o
peito à conscientização e à valoração ficará presbítero deve ser, no meio da
para um artigo exclusivo sobre esse tema. As humanidade, uma centelha de
questões ligadas à sexualidade em terapia, já luz a direcionar o caminho para
comentei em outros artigos nesta mesma re- Deus. Para isso, não basta gostar
Imagens meramente ilustrativas.
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ano 57
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fundamentais: o lado da instituição e o lado passamos pelo tempo. Por fim, no que diz
da pessoa que sofre. Do lado da instituição, respeito tanto à instituição quanto à pessoa
a mais importante dessas atitudes, à qual já que vive nela, conflitos são inevitáveis quan-
me referi em artigo anterior (PINTO, 2009), do pessoas se juntam – e até desejáveis quan-
diz respeito ao fato de que não se deve tratar do há um clima de respeito (verdadeiro) e a
de modo igual os desiguais – máxima do di- possibilidade de convivência com divergên-
reito que cabe perfeitamente em todas as cias, além da sabedoria de não tomar a parte
áreas da vida. Grande parte dos sofrimentos pelo todo, ou seja, de não rejeitar o outro
causados pela tentativa de tratar os desi- quando se quer rejeitar alguma ideia dele.
guais de modo igual, tão co- Adendo importante: essas difi-
mum à vida consagrada, deve- “É preciso não nos culdades de relacionamento
-se a uma falta de atenção àqui- acontecem entre pessoas de vida
lo que os moralistas chamam esquecer de que o consagrada, e também entre elas
de epiqueia, a capacidade de amadurecimento não e leigos com quem convivem;
cumprir o sentido da lei sem por exemplo, numa paróquia.
se dá apenas pela
necessariamente cumprir sua Como ilustração para esse
letra. Pressionadas entre o de- passagem pelo tempo, tópico das relações, lembro-me
sejo de participação e de perti- mas depende de de um trabalho muito breve que
nência na vida religiosa e a im- fiz com um padre que me procu-
possibilidade de compreender como passamos rou porque sofria e se sentia an-
o que lhes é exigido, muitas pelo tempo.” gustiado com o fato de acreditar
pessoas entram em atroz sofri- que os confrades não compreen-
mento por tentarem ser o que diam nem aceitavam seu desejo
não são. Seguramente, se fossem escutadas de se tornar diocesano. Ele vivia um impasse
com maior empatia e calma, com maior importante; era muito forte o impulso para
companheirismo e humildade, com mais mudar, a ponto de ser vivido mesmo como
ouvidos que boca, enfim, com maior com- importante projeto existencial. Ao mesmo
paixão, essas pessoas mais sensíveis pode- tempo, era igualmente forte o desejo de ser
riam compreender melhor os limites e as leal aos confrades da congregação. Depois de
necessidades da vida religiosa. Ao lado dis- algumas poucas sessões, ele conseguiu de-
so, o encobrimento dissimulado que se cos- senvolver uma atitude menos belicosa para
tuma fazer das competitividades presentes com seus confrades e encontrou a coragem
entre muitas pessoas de vida religiosa tam- para falar direta e explicitamente sobre seu
bém é outro aspecto danoso provocado pela sonho com os que lhe eram mais significati-
instituição nas convivências. vos. Acabou por descobrir que o que ele via
Do lado da pessoa religiosa – e talvez esta como oposição era cuidado: os mais próxi-
seja uma das melhores finalidades do traba- mos não se opunham a que ele deixasse a
lho preventivo dos psicólogos nas casas de congregação, mas temiam que ainda não ti-
formação –, a busca do desenvolvimento da vesse avaliado bem a situação. Depois de
nº- 310
curiosidade (o desejo de saber) e a busca da boas conversas com esses confrades, ele dei-
congruência e da coerência poderiam facilitar xou a terapia, pois se sentia bem e com con-
•
ano 57
a lida não patológica com as dificuldades re- fiança para tomar em breve a melhor decisão
lacionais. É preciso não nos esquecer de que acerca de como continuar sua vida sacerdo-
•
passagem pelo tempo, mas depende de como congregação ou migrou para a diocese.
26
Na questão da temporalidade, há algo
que observo em meu consultório que é muito
peculiar às pessoas de vida consagrada: difi- Como fazer um planejamento
cilmente se atrasam; pelo contrário, é muito pastoral, paroquial e diocesano
mais comum chegarem antes da hora apraza- José Carlos Pereira
da, não raro muito antes. Esse é um dos mui-
tos indicativos de que há, entre as pessoas de
vida religiosa que conheci, um diapasão
maior de ansiedade que entre as pessoas lei-
gas. Não custa lembrar que, como bem disse
Fritz Perls (1979, p. 153), a ansiedade é uma
“tensão entre o agora e o depois”, uma tensão
bastante comum entre as pessoas de vida re-
ligiosa. Será mesmo possível generalizar essa
minha observação, isto é, será que há mesmo
esse diapasão maior de ansiedade de maneira
geral na vida consagrada? Se sim, por que
104 págs.
ocorre isso? O que haverá na formação das
pessoas de vida consagrada católica que põe
tantas delas em permanente alerta, tão aten- A grande demanda da Igreja hoje
é para a renovação das estruturas
tas ao depois, que muitas vezes perdem o
de nossas paróquias, de modo a
presente? Talvez esse seja um dos pontos da passar de uma pastoral de mera
saúde emocional que mais precisam de aten- conservação para uma pastoral
ção dos profissionais da área “psi”, por ser decididamente missionária, mais
ainda tão pouco explorado. acolhedora e fraterna, formando
No que diz respeito à corporeidade, é verdadeiras comunidades, resultado
de conversão e de bom planeja-
visível e maior que o desejável, entre muitas
mento pastoral. No entanto, muitos
pessoas religiosas, certa falta de atenção e de padres e bispos esbarram na dificul-
cuidado para com o corpo. Vou comentar dade de fazer tal planejamento em
com dois aspectos que mais aparecem em suas dioceses e paróquias, por falta
psicoterapia. O primeiro e mais importante, de indicações precisas, pontuais e
a questão do ritmo: saúde é ritmo, movi- atuais para esse empreendimento
Imagens meramente ilustrativas.
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respirar sem sofreguidão; falar em harmonia imperdoável pecado. Sempre me impressio-
com a respiração; sentir a pele como órgão nou como tantas pessoas religiosas católicas
por excelência de contato, que se delicia trabalham insanamente! Não é à toa que
com a temperatura agradável e temos cada vez mais trabalhos
pede agasalho com o frio; ou- “Um bom ritmo entre teóricos sobre a síndrome de
vir até as entrelinhas; saborear trabalho e descanso burnout voltados para essa po-
lentamente cada tempero da pulação. Uma das descobertas
torna o trabalho mais
comida; olhar para ver; permi- mais transformadoras que te-
tir os gestos graciosos, espe- útil, eficaz e belo.” nho testemunhado em terapia é
cialmente os amorosos; ocupar óbvia: um bom ritmo entre tra-
o espaço devido, seja com os gestos, seja balho e descanso torna o trabalho mais útil,
com a voz; sentir o coração pulsar com o eficaz e belo. Ou, em outros termos, é me-
ritmo do momento, ora vibrante e forte, ora lhor fazer o possível (ainda que difícil), e
em confortável embalo. sorrir de satisfação depois, do que tentar o
O oposto disso, a forma mais patológica impossível e ter interminável em si o senti-
de vivenciar o próprio corpo, é a sujeição mento de frustração.
dele à vontade. Na vida religiosa isso apare- Então, é hora de, com ritmo e graça, fe-
ce especialmente (mas não somente) por char por ora este diálogo e repousar o texto
meio de um ritmo insano de trabalho, qua- em algum lugar para que ele reverbere e de-
se como se o descanso tivesse se tornado cante o que nele é útil.
Bibliografia
PERLS, F. S. Escarafunchando Fritz: Dentro e fora da lata de lixo. São Paulo: Summus, 1979.
PINTO, E. B. “Formação e Personalidade: Conceitos e orientações”. Espaços – Revista Semestral de Teo-
logia do ITESP. São Paulo, ano 17, v. 1, p. 61-76, 2009
_______ “Reflexões sobre a psicoterapia para pessoas de vida consagrada”. Revista Paróquias & Casas
Religiosas, Aparecida, ano 7, n. 40, p. 24-29, fev. 2013.
______ “A saúde existencial e a pessoa religiosa – algumas reflexões”. Revista Convergência-CRB, p.
292-312, maio 2014.
Conversão Pastoral
Reflexões sobre o Documento 100 da CNBB
em vista da renovação paroquial
José Carlos Pereira
Em 2014, a CNBB lançou o Documento 100, “Comunidade de comunidades:
uma nova paróquia”, que propõe uma conversão na Igreja, para que as
paróquias e dioceses concentrem-se na comunidade em torno delas. Este
livro mergulha no Documento 100, a fim de extrair dele os procedimentos
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PAULUS, 11 3789-4000 | 0800-164011
•
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Resiliência e espiritualidade:
padre Tiago Alberione, um
profeta resiliente
Francisco Galvão*
A Resiliência
Noviço paulino, é bacharel em Teologia pela Faculdade
•
descobertas, pela ação social da Paulus. E-mail: 1 Fundador da Congregação dos Paulinos
galvaoce@hotmail.com e da Família Paulina.
29
Contudo, enquanto realidade humana, é davia, escolheu continuar sua busca. Só
possível que seja tão antiga quanto a própria quem não caminha, dizia Alberione, não pre-
humanidade. É provável que o fenômeno da cisa perguntar a direção do caminho. Não
resiliência exista desde os primórdios da obstante os inúmeros desafios e os inevitáveis
existência do homem, ainda que não tivesse fracassos da caminhada, ele jamais recuou
sido denominada nos moldes como hoje a diante das dificuldades, pois soube em quem
conhecemos (VANISTENDAEL, 1999, p. 5). depositar sua confiança.
As primeiras publicações sobre o assunto Padre Alberione foi um grande comuni-
aparecem no final dos anos 1980, nos Esta- cador. Mas também foi um grande sofre-
dos Unidos e na Europa. No dor. Em certo sentido, foi um
Brasil, os estudos começaram “Só quem não sofredor silencioso. Nunca foi
no final dos anos 1990. A temá- caminha, não precisa de fazer alarde quanto às suas
tica foi ganhando progressivo dores e doenças. Recolhia-se,
des taque internacional, no perguntar a direção constantemente, em seu mun-
campo da observação e da pes- do caminho”. do interior, a fim de compreen-
quisa, e foi sendo cada vez mais der mais plenamente suas do-
investigada no âmbito das ciências da saúde res e a vontade do Mestre. O grande dever
e das ciências humanas, entre outras, o que da alma religiosa, diz Thomas Merton
favorece um olhar multidisciplinar. Contudo, (2003), é sofrer em silêncio, pois algumas
até o presente, há poucos trabalhos na área vezes não há explicação suficiente para jus-
da teologia (ROCCA, 2013, p. 19). tificar o sofrimento.
O termo resiliência tem sua origem no Padre Alberione exerceu o apostolado do
latim resiliens, resilientis, do verbo resílio-re- sofrimento, sem jamais se lamentar ou mur-
silire, que significa saltar para trás, ser im- murar. Ao contrário, soube transformar o
pelido, recuar, retornar a um estado ante- amargo fel do sofrimento em doçura e pro-
rior, ou ainda, a capacidade de se recobrar funda gratidão a Deus. Especialmente no fim
ou de se adaptar à má sorte, a mudanças. O da vida, sem poder mais trabalhar nem presi-
conceito vem sendo utilizado há bastante dir a eucaristia, diz-se que Alberione ficava
tempo pela física e pela engenharia para horas e horas ajoelhado ao pé da cama a rezar
classificar a elasticidade e o poder de resis- pela fecundidade do apostolado paulino.
tência dos materiais. “Quando um material Adolphe Tanquerey (2014), certamente um
resiste a um impacto, deformando-se pouco dos autores mais apreciados por padre Albe-
ou nada, ele é considerado rígido” (AMA- rione, dizia que o apostolado do sofrimento é,
RAL, 2002). Mais tarde, a psicologia passa a de todos, o mais fecundo.
utilizar o conceito de resiliência para refe- A infância sofrida e pobre de Alberione,
rir-se à capacidade que os seres humanos o contexto de guerras de sua época, as calú-
têm de superar traumas, perdas e grandes nias, perseguições, a morte posterior de sua
sofrimentos. querida mãe e de alguns colaboradores da
missão, os inúmeros sofrimentos físicos e
nº- 310
uma das primeiras perguntas que nos vêm é grande influência no desenvolvimento da
esta: como uma alma tão sofrida conseguiu pessoa que sofre. Perante tais acontecimen-
empreender projetos tão grandiosos? De fato, tos, a vítima é desafiada a ser forte e resilien-
•
Vida Pastoral
ele tinha tudo para desistir de seus ideais. To- te, adotando uma postura interior que a aju-
30
de não apenas a suportar o sofrimento, mas o acompanhavam ficavam admirados com
ressignificá-lo à luz de nova perspectiva de sua forte resistência à dor e ao sofrimento.
vida e de futuro. Em 1923 adoeceu gravemente de tuberculo-
se com abundantes hemoptises, mas, após
A fortaleza de Alberione perante um mês de descanso, pôde retomar seu tra-
a doença balho; o médico que o assistia disse que lhe
Alberione teve sempre uma saúde mui- havia dado seis meses de vida (Summ., p.
to frágil e inconstante, de modo que foi ba- 567, § 1007). Contrariando totalmente o
tizado logo no dia seguinte a seu nascimen- diagnóstico, Alberione viveria mais 48 anos.
to, pois os pais, percebendo sua fragilidade Em meados de 1949, padre Alberione
física, temiam não ver o filho por muito sofreu de varizes no esôfago com grandes
tempo. Da juventude à velhice, sofreu de hemorragias e, em consequência das trans-
terríveis dores. Depois de sua morte, con- fusões de sangue, sofreu por mais ou menos
forme descrito pelo quinto teólogo para a um ano de hepatite viral. Somente após
causa de beatificação (Relatio et Vota), as 1962, submetido a um exame da coluna
dores de Alberione puderam ser analisadas vertebral, descobriram nela escoliose e cifo-
com certa profundidade. Concluiu-se que a se (curvatura da coluna vertebral com cor-
história dos seus sofrimentos físicos era ter- cova) tão acentuadas a ponto de estremecer
rificante. Em 1914, manifestou-se pela pri- os radiologistas e ortopedistas, os quais não
meira vez forte dor na coluna vertebral. Ao conseguiam explicar como ele havia supor-
médico, disse mais tarde: “Este é um dom tado dor tão atroz. Os médicos explicavam
que o Senhor fez a mim com a fundação e que a dor da escoliose pode variar numa es-
o levarei até a morte” (Summ., p. 606, § cala que vai de 1 (sem dor) a 10 (dor grave-
1102). Tal afirmação deixa clara a relação mente incapacitante). No caso do padre Al-
“amorosa” que Alberione havia estabeleci- berione, que tinha a coluna em forma de
do com a dor, a ponto de classificá-la não “Z”, segundo os especialistas, a dor se en-
como um mal, mas como um dom especial quadrava no número 9 da escala, ou seja,
concedido por Deus, um caminho de asce- quase no limite de suas forças físicas.
se e santificação. Não obstante as doenças e incômodos,
Alberione seguia, alegre e serenamente, os
Às vezes, está nos desígnios de Deus
passos do Mestre. Parecia convicto das moti-
enviar-nos a doença. Esta, quando san-
vadoras e desconcertantes palavras do pró-
tamente vivida, oferece as mais precio-
prio Cristo: “Neste mundo vocês terão afli-
sas vantagens do ponto de vista sobre-
ções, mas tenham coragem; eu venci o mun-
natural. A doença é a pedra de toque
do” (Jo 16,33). Graças à sua profunda intimi-
que mostra o valor da virtude de uma
dade com o Mestre Divino, seu grau de acei-
alma; se o doente a suporta sem queixa,
tação da dor e do sofrimento era elevadíssi-
sem inquietude, inteiramente resignado
mo. Para seguir Jesus e amá-lo, afirma
à vontade de Deus, é um sinal de que
Tanquerey (2014), é preciso tomar a sua
nº- 310
Com o tempo, as fortes dores na coluna os reveses da sorte, numa palavra, todas as
só aumentavam, mas Alberione jamais se dei- cruzes providenciais que Deus nos envia para
xou vencer por elas. Rezava sempre com ele-
•
31
Alberione e a loucura da cruz A vida de Alberione, assim como a do
Como não seria honesto falar de Paulo Apóstolo, foi um constante sofrer com Cris-
Apóstolo sem levar em conta a experiência to pelas almas. Sua prece era uma só: “Mes-
da cruz, em Alberione acontece a mesma tre divino, associai-me à vossa Paixão. Mes-
coisa, pois, para ele, “sofrer pela cruz de tre divino, que com o sofrimento e a prece
Cristo é motivo de glória”. As cartas de Pau- eu socorra a todos os filhos espirituais.
lo foram, certamente, a grande fonte inspi- Mestre divino, que eu padeça quanto devo
radora de Alberione. Nessa fonte ele encon- para que cresça a semente espalhada”. Nes-
trou fundamento e consolo espiritual para se sentido, afirma Van Thuan (2000, p.
compreender e aceitar sua pesada cruz. Os 143): se você se unir à Paixão de Jesus, não
escritos de Alberione estão só encontrará ajuda para ser co-
“O modo como padre rajoso e paciente, mas o seu so-
cheios de referências ao Após-
tolo, sobretudo no que se refe- Alberione compreendia frimento terá um grande valor
re à dor e ao sofrimento. “Por- de redenção.
o tema da cruz Para o seguimento de Jesus, é
que, assim como os sofrimen-
tos de Cristo se manifestam em estava intimamente necessário, portanto, carregar a
cruz. “Se alguém quer me seguir,
grande medida a nosso favor, relacionado com
renuncie si mesmo, tome a sua
assim também a nossa consola-
o pensamento do cruz e me siga” (Mt 16,24). Para
ção transborda por meio de
Apóstolo Paulo.” padre Alberione, a cruz de Cristo
Cristo” (2Cor 1,5); somos “co-
foi como que um escudo de pro-
erdeiros com Cristo; se com ele
teção; e ele carregou a sua com
sofremos, com ele seremos glorificados”
heroica aceitação, serenidade e alegria. Ele
(Rm 8,17); “Porque para mim tenho por
acreditava que, “ao abraçarmos com alegria a
certo que os sofrimentos do tempo presente
cruz de Cristo, tornamo-nos protegidos con-
não podem ser comparados com a glória a
tra os inimigos. Quem não é forte a ponto de
ser revelada em nós” (Rm 8,18); “Agora eu suportar com paz e amor uma cruz, quem
me alegro de sofrer por vocês, pois vou não possui a força para vencer uma dificulda-
completando em minha carne o que falta de, quem não persevera e, caído, não volta à
nas tribulações de Cristo, a favor do seu cor- ação, não pode apropriar-se do céu, porque
po, que é a Igreja” (Cl 1,24). este é alto e, portanto, é necessário subir os
O modo como padre Alberione compre- montes da penitência, das cruzes do Calvário,
endia o tema da cruz estava intimamente re- para poder chegar lá”.
lacionado com o pensamento do Apóstolo,
que dizia com muita convicção: “Estou cruci- A autotranscendência e o sentido
ficado com Cristo” (Gl 2,19); “Mas longe es- do sofrimento
teja de mim gloriar-me, senão na cruz de Transcender a si próprio é a essência
nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mun- mesma do existir humano. Nesse sentido, Al-
do está crucificado para mim, e eu, para o berione soube realizar, com maestria, a expe-
nº- 310
mundo” (Gl 6,14). Alberione costumava re- riência da autotranscendência, ou seja, soube
petir em suas pregações que “Jesus remiu-nos dirigir sua vida para grandes ideais. Foi al-
•
ano 57
com a sua cruz; agora cabe a nós remir o guém profundamente sensível às mudanças
mundo com a nossa cruz. A cruz é a chave de internas e externas, sempre voltado à realida-
ouro que abre para nós o céu. Toda a virtude de transcendente, sem jamais perder o chão e
•
Vida Pastoral
32
de profundo desprendimento. Tais realidades gria” (TANQUEREY, 2014). Aqueles que o
fizeram dele um verdadeiro visionário, um conheceram testemunham que padre Albe-
sonhador incansável. rione tinha um olhar que sabia sorrir. Co-
As pessoas têm o suficiente com o que municava-se mais pelo silêncio que pelas
viver, afirma Frankl (2008), mas nada por palavras. Tinha um olhar tão profundo, que
que viver; têm os meios, mas não o sentido. cativava a todos. Sua alegria era incomum,
Olhando para a história de Alberione, é fácil isenta de qualquer barulho e euforia. Era
perceber o sentido que ele deu a cada expe- uma alegria serena, discreta e envolvente.
riência vivida, também ao sofrimento. Para Ele era um sofredor alegre. Tudo isso fruto
ele, sofrer é olhar sempre adiante, ir além da de seu contentamento interior. Somente al-
dificuldade presente. Seguir em frente com guém que se deixa afeiçoar pela cruz de
confiança e fé. É um exercício diário. “Saber Cristo e que faz as pazes com o próprio so-
sofrer é verdadeira arte, aliás, a arte mais frimento aprende a sorrir e a comunicar
importante da vida. É preciso aprendê-la e com os olhos.
praticá-la. Com efeito, essa arte se aperfei- Para Alberione, o real sentido da existên-
çoa praticando-a, do mesmo modo que as cia está em sofrer com Cristo pelas almas. O
outras artes, como a música, a pintura etc. amor a Cristo comporta, naturalmente, a
Temos de partir do mais fácil ao mais difícil; exigência do amor ao semelhante. “Penso em
do pequeno ao grande. Nisso consiste a uti- Jesus Cristo, amo em Jesus Cristo, quero em
lidade dos pequenos sofrimentos”. Padre Al- Jesus Cristo”, afirmava ele com muita con-
berione costumava dizer que, diante das vicção. Alberione ensinava que, para desco-
chuvas e tempestades, é preciso “passar en- brir o sentido profundo do sofrimento, se-
tre uma gota e outra sem se molhar”. Foi guindo a Palavra de Deus revelada, é preciso
exatamente o que ele fez durante toda a abrir-se amplamente ao sujeito humano com
vida. Assumiu suas dores como uma via, de as suas múltiplas potencialidades. “Sofrer
certo modo, necessária à própria santifica- em Cristo, para cumprir a paixão de Jesus
ção. Mas não só! Certamente, o seu heroís- Cristo; e na Igreja, para a salvação das almas,
mo apontou a muitas almas o caminho de de todas as almas”. Eis o sentido que Albe-
santidade devido a todo o povo de Deus (cf. rione encontrou para o sofrimento: o amor a
Lumen Gentium, n. 39). Deus, o amor aos irmãos. Para ele, “o após-
Os santos, de modo geral, foram pessoas tolo tem um coração aceso de amor a Deus e
que sofreram muito; não um sofrimento aos homens”. Foi esse amor que o fez ir além
egoísta com tendência ao masoquismo, mas do sofrimento e dos próprios limites. “O
um profundamente fecundo. Embora mui- amor é ainda a fonte mais plena para a res-
tos deles tivessem verdadeira veneração posta à pergunta acerca do sentido do sofri-
pelo sofrimento – como o próprio Alberione mento. Esta resposta foi dada por Deus ao
dizia, “as cruzes são mais valiosas se forem homem na cruz de Jesus Cristo” (Salvifici
mais pesadas” –, eles souberam dar sentido Doloris, n. 13).
a todas as provações e dificuldades da cami- Não obstante as doenças, dores e sofri-
nº- 310
nhada, sempre em vista de um ideal coletivo mentos, padre Alberione soube escolher a
capaz de transcender e ressignificar a pró- melhor parte: entregou tudo ao Mestre Jesus.
•
ano 57
pria existência. Os santos são, em realidade, Escolheu sofrer com aquele que, sendo “um
os sofredores mais alegres da face da terra. com o Pai” (cf. Jo 10,30), superou toda espé-
“Milhões de santos, caminhando nas pega- cie de sofrimento e venceu a própria morte,
•
Vida Pastoral
33
Mística e espiritualidade como pilares a vida mística que fez de Alberione verda-
de resiliência em Alberione deiro visionário no campo da comunicação,
Perante as adversidades e provações da um homem à frente do seu tempo. Confor-
vida, muitas pessoas – mesmo aquelas que se me afirma o Diretório de Comunicação da
dizem pessoas de fé – não sabem como agir Igreja no Brasil (n. 99), “comunicar, rezar e
ou o que fazer para sair delas revigoradas ou viver integram-se, formando um todo tanto
transformadas. Segundo Lacayo (2007), tal- no estilo e na elaboração da mensagem
vez as perdas, crises e desafios tenham como quanto na forma de comunicar. A mística do
propósito ajudar-nos a descobrir a verdadeira comunicador está relacionada com seu pro-
resiliência de nossa interioridade. cesso criativo, sua busca por informações,
Falar de sofrimento e resiliência em Al- seu modo de interpretar os fatos, de inovar
berione só é possível quando a linguagem e buscar outros es-
levamos em conta a totalidade “O amor é a fonte tilos de comunicar. O comuni-
de sua vida interior e, por que mais plena para a cador é um místico, e o místico
não dizer, a sua “mística do so- é um comunicador”.
frimento”. Em Alberione, uma resposta à pergunta Na perspectiva da resiliên-
coisa nos é apresentada com acerca do sentido do cia, podemos dizer que há, na
bastante clareza: sem Deus, ou história do padre Alberione, vá-
seja, sem a graça divina, ne-
sofrimento.”
rios fatos e acontecimentos que
nhum projeto humano pode atestam sua capacidade de res-
tornar-se fecundo. “Sem mim, nada podeis significação perante a dor e o sofrimento,
fazer” (Jo 15,5). Desse modo, podemos afir- entre os quais a sua suposta “demissão” do
mar que, se não fosse sua vida ascética e sua seminário. Entre os 7 e 8 anos de idade, ele
profunda intimidade com o Mestre, ele difi- já afirmava que queria ser padre. Quando
cilmente teria superado com tanto êxito os concluiu o ensino fundamental, ingressou,
sofrimentos que a vida lhe reservou. E fo- então, no seminário menor da cidade de
ram tantos! Bra, Itália, onde prosseguiu os estudos por
Sabemos que Alberione não deixou ne- alguns anos. Entretanto, sua caminhada foi
nhum tratado sobre mística ou vida inte- interrompida, não se sabe ao certo por que
rior; no entanto, seu maior legado espiritual razões. Spoletini diz que sua saída deveu-se
está impresso em sua própria história. E se- a uma profunda crise; outros, no entanto,
ria no mínimo insensato de nossa parte fa- afirmam que fora demitido do seminário de-
lar de seu sofrimento sem considerar a rea- vido a mau comportamento e más influên-
lidade misteriosa que o levou a transcendê- cias. “Em 1900, a 7 de abril, Tiago foi demi-
-lo. Uma coisa, portanto, parece-nos bas- tido do seminário. A diretoria alegou que ele
tante clara: se podemos falar de um Albe- não tinha vocação; Julgamento que a história
rione resiliente, temos de, primeiramente, comprovará bastante precipitado. Fato é que
ir em busca do Alberione místico. Como diz houve um rompimento inesperado e bastan-
Karl Rahner (apud TUOTI, 1998, p. 25), o te difícil para o jovem Tiago. Ante tal reali-
nº- 310
misticismo ocorre dentro da estrutura das dade, dois caminhos despontavam à sua
graças normais e, portanto, não se limita a frente: desistir de seu grande sonho ou reco-
•
ano 57
vida interior e vida prática. Foi, sobretudo, desafio de continuar sua busca.
34
Para a resiliência existem alguns fatores viver muito tempo. Que mistério é o cora-
de proteção que são indispensáveis nos mo- ção do homem!” Eis uma experiência clara
mentos de crise ou desespero; entre eles fi- de resiliência aliada à fé e à espiritualidade.
guram a aceitação incondicional e o apoio Esse “agora tenho vontade de viver” e “sou
social. Rocca (2013, p. 30) explica que os ainda forte para viver muito tempo” bro-
autores concordam em reconhecer a impor- tam de um coração que cruzou desilusões e
tância de que, na situação dolorosa, adversa abismos, angústia e solidão.
ou traumática, a pessoa (criança, jovem ou Alberione costumava dizer que “ninguém
adulto) possa se sentir acolhida e aceita in- sofrerá mais do que aquele que não quer so-
condicionalmente. frer”. Para ele, o sofrimento era uma realida-
Rolfo (1975) narra um fato bastante de inevitável, porém aquele que aprende a
curioso em relação à aceitação incondicio- sofrer com o Mestre jamais fugirá às suas lu-
nal por parte do irmão de Tiago. Certo dia, tas; ao contrário, transformará as adversida-
o jovem Tiago estava meio tristonho e pen- des em fonte de verdadeiro crescimento e
sativo, sentado na calçada de casa, quando maturidade. O segredo é não fugir à dor, mas
sua mãe, atribuindo tal atitude a pura pre- acolhê-la corajosamente. Afirma a encíclica
guiça, mandou que ele fosse com os outros Spe Salvi (n. 37), de Bento XVI: “não é evitar
trabalhar na lavoura ou se pusesse a estudar o sofrimento, a fuga diante da dor, que cura o
seriamente. João Luís, o irmão que tinha as- homem, mas a capacidade de aceitar a tribu-
sistido à cena, chamou-o a sós e lhe falou lação e nela amadurecer, de encontrar o seu
cordialmente: “Tiago, vá estudar e não se sentido por meio da união com Cristo, que
preocupe com os trabalhos no campo. Você sofreu com infinito amor.”
é muito fraco. Eu vou me esforçar mais e dar
um jeito para ninguém notar que você não Considerações finais
está trabalhando”. Atitudes como essa, se- Visitar a história do bem-aventurado
gundo estudiosos da resiliência, são basila- Tiago Alberione pela ótica da resiliência
res para que a pessoa “fragilizada” recobre a possibilitou-nos descobertas fascinantes,
autoestima e retome suas metas com maior sobretudo no que concerne à sua capacida-
fé e entusiasmo. Foi graças ao amor incon- de interior de dar sentido a todo sofrimento
dicional do Divino Mestre, ao apoio familiar vivido. Sua capacidade de resiliência, como
e também de “amigos” que o jovem Tiago dissemos, está profundamente ligada à mís-
conseguiu reunir força e ânimo para perse- tica do sofrimento. Foi graças à intensa vida
guir seus ideais. interior que Alberione descobriu o verda-
Após sua saída do seminário de Bra, deiro sentido de sua existência. Alberione
Tiago passou mais ou menos seis meses foi resiliente porque soube perscrutar a pró-
com os pais até ingressar em outro seminá- pria alma, como fez o apóstolo Paulo, a pon-
rio; segundo Rolfo, esse período foi para to de afirmar: “Já não sou eu que vivo, é
ele, com certeza, muito melancólico. Em Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). A inten-
seu diário juvenil, Tiago irá recordar suas ção profunda de toda religiosidade, afirma
nº- 310
vieram uma após a outra, um abismo após sentido, a resiliência é uma maneira de des-
o outro... mas a graça de Deus e Maria me cobrir o potencial espiritual que sempre
salvaram. E agora, agora tenho vontade de pode gerar reações favoráveis ao pensamen-
•
Vida Pastoral
35
A vida e a história do pa- “A pessoa espiritual de horizonte, reencontra a luz
dre Tiago Alberione (e de para seguir o seu caminho.
tantos outros “santos”) evi-
não somente resiste às Desse modo, a pessoa espiri-
denciam que espiritualidade adversidades da vida, mas tual não somente resiste às
e resiliência são realidades peripécias e adversidades da
aprende a resignificá-
intrínsecas a todo ser huma- vida, mas aprende a ressigni-
no e, por isso mesmo, não las por meio do amor ficá-las por meio do Amor
devem ser concebidas separa- transcendente.” transcendente. Resiliência e
damente. São duas faces de espiritualidade são, portanto,
uma mesma moeda. A ausên- a via mais segura de elevação
cia de uma enfraquece o poder da outra. É e superação do sofrimento humano, sem a
por meio da busca interior que o ser huma- qual o homem é incapaz de compreender o
no, perdido no abismo de sua dor e da falta real sentido de sua existência.
Bibliografia
THUAN, François X. N. Van. Testemunha da esperança. São Paulo: Cidade Nova, 2000.
TUOTI, F. Por que não ser místico? São Paulo: Paulus, 1998.
•
VANISTENDAEL, S. Resiliência: como crescer superando os percalços. São Paulo: Escritório Interna-
Vida Pastoral
36
homiléticos
Roteiros
Também na internet:
vidapastoral.com.br
Missão a todos,
na unidade
*Nascido na Bélgica, reside há I. Introdução geral
muitos anos no Brasil, onde
leciona desde 1972. É doutor em A festa que hoje celebramos é popularmente reconhecida
Teologia e licenciado em Filosofia como o dia do papa, sucessor de Pedro. Mas não podemos es-
e em Filologia Bíblica pela
Universidade Católica de quecer que, ao lado de Pedro, é celebrado também Paulo, o
Lovaina. Atualmente, é professor apóstolo, o missionário por excelência. A figura de Pedro é
de Exegese Bíblica na FAJE, em
destacada principalmente na primeira leitura e no evangelho;
nº- 310
formação dos fiéis – anos A-B-C; tos, pode-se combinar, nesta celebração, a ideia da pessoa de
• ano
37
Roteiros homiléticos
II. Comentário dos textos “sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e
bíblicos o poder (literalmente, ‘as portas’) do inferno
nunca poderá vencê-la” (Mt 16,18). Enfim,
1. I leitura: At 12,1-11 Jesus confia a Pedro o serviço de governar a
comunidade (as “chaves” e o poder de ligar e
A primeira leitura, tomada dos Atos dos desligar, ou seja, obrigar e deixar livre, poder
Apóstolos, narra o episódio da prisão e liber- de decisão), com ratificação divina (“será li-
tação de Pedro. Por volta de 43 d.C., o rei gado/desligado no céu”, Mt 16,19).
judeu, Herodes Agripa I, vassalo dos roma- Jesus dá a Simão o nome de Pedro, “Pe-
nos, mandou executar o apóstolo Tiago, filho dra”, que sugere solidez: Simão deve ser a
de Zebedeu. Depois mandou aprisionar Pe- “pedra” (rocha) que dará solidez à comunida-
dro. Mas o “anjo do Senhor” o libertou, como de de Jesus (cf. Lc 22,32). Isso não é um re-
libertou os israelitas do Egito. A comunidade conhecimento de suas qualidades naturais,
recorreu à arma da oração: é Deus quem age, embora possamos supor que Simão deva ter
ele é o libertador. Assim, Pedro é libertado da sido um bom empresário de pesca! Pelo con-
prisão pelo anjo do Senhor. Esse feito confir- trário, não se refere ao que Pedro foi, mas ao
ma sua missão especial na Igreja, ressaltada que será. Trata-se de uma vocação que o
no evangelho. O significado desse episódio transforma. Muitas vezes, na Bíblia, a imposi-
pode ser estendido à vida de Paulo, que, con- ção de um novo nome significa que a pessoa
forme At 16,16-40, viveu uma experiência recebe nova vocação e deverá transformar-se
semelhante, além de muitas outras situações para corresponder. Na Bíblia, ser “rocha” é,
de perigo e aperto (cf. 2Cor 11,16-33). antes de tudo, um atributo de Deus mesmo,
o “Rochedo de Israel” (cf. Dt 32,4 etc.). Jesus,
2. Evangelho: Mt 16,13-19
com certeza, não quer colocar Pedro no lugar
O evangelho apresenta Pedro como a pe- do “Rochedo de Israel”, mas o incumbe, por
dra ou rocha da Igreja. A situação é a seguin- assim dizer, de uma missão que tenha quali-
te: Jesus havia enviado os Doze em missão, e dade análoga. A firmeza e a proteção evoca-
eles tomaram conhecimento das reações do das pela imagem da rocha não são algo que
povo diante de Jesus, além do acontecido Simão Pedro tem em si mesmo (ele negará
com João Batista, decapitado por Herodes conhecer Jesus na hora em que deveria teste-
Agripa. Quando os discípulos voltam da mis- munhar), mas são a firmeza e a proteção de
são, Jesus lhes pergunta quem o povo e quem Deus das quais ele é constituído “ministro”, e
eles mesmos dizem que ele é. Pedro responde essa “nomeação” vai acompanhada de uma
pelos Doze e chama Jesus de Messias (em promessa: as “portas” (cidade fortificada, rei-
grego, Cristo: cf. Mc 8,29) e Filho de Deus no) do inferno não poderão nada contra a
(como diz Mt 16,16; cf. 14,33). Enquanto o Igreja. Esse ministério está a serviço do Reino
relato de Marcos (Mc 8,27-30) é mais sim- dos céus (maneira de Mateus dizer o Reino
ples, o de Mateus mostra que Jesus reage à de Deus). Assim como as chaves das portas
profissão de fé feita por Pedro em nome dos da cidade são entregues a seu prefeito (cf. Is
nº- 310
Doze com três observações. Primeiro, reco- 22,22), assim Pedro recebe o governo da co-
nhece nela uma inspiração divina: “não foi munidade que instaura o Reino de Deus no
•
ano 57
disso, muda o nome de Simão, chamando-o, tem uma responsabilidade específica, unifi-
Vida Pastoral
38
3. II leitura: 2Tm 4,6-8.17-18
A segunda leitura evoca Paulo. Ele, que O desgaste na vida sacerdotal
Prevenir e superar
sempre trabalhou com as próprias mãos, está a síndrome de burnout
agrilhoado; na defesa, ninguém o assistiu. Helena López de Mézerville
Contudo, fala cheio de gratidão e esperança.
“Guardou a fidelidade”: a sua e a dos fiéis.
Aguarda com confiança o encontro com o Se-
nhor. Ofereceu sua vida no amor, e o amor
não tem fim (cf. 1Cor 13,8). Seu último ato
religioso é a oblação da própria vida (cf. Rm
1,9; 12,1). Sua vida está nas mãos de Deus,
que o arrebata da boca das feras.
Sua vocação se deu por ocasião da apari-
ção de Cristo no caminho de Damasco: de
perseguidor, Paulo se transformou em após-
184 págs.
tolo e realizou, mais do que os outros apósto-
los, a missão de ser testemunha de Cristo até
os confins da terra (At 1,8). Apóstolo dos pa-
A necessidade que a Igreja tem
gãos, tornou realidade a universalidade da de entender, prevenir e superar
Igreja, da qual Pedro é o guardião. A segunda a “síndrome de burnout”, ou
leitura que hoje ouvimos é o resumo de sua desgaste na vida sacerdotal,
vida de plena dedicação à evangelização en- é algo primordial para o
sacerdócio do século XXI. Num
tre os pagãos, nas circunstâncias mais difí-
recente estudo feito pela doutora
ceis: a Palavra tinha de ser ouvida por todas Helena López de Mézerville,
as nações (2Tm 4,17). A ninguém podia fi- demonstrou-se que três em cada
car escondida a luz de Cristo! O mundo em cinco dos quase novecentos
que Paulo se movimentava estava dividido sacerdotes latino-americanos
entrevistados estavam mediana
entre a religiosidade rígida dos judeus fari-
ou gravemente esgotados. Esta
saicos e o mundo pagão, entre a dissolução obra se apresenta como o ápice
moral e o fanatismo religioso. Nesse contex- de um trabalho que procura
Imagens meramente ilustrativas.
paulus.com.br
ano 57
39
Roteiros homiléticos
titucional da Igreja, Paulo aparece mais na ção desavergonhada, que até se serve dos sím-
qualidade de fundador carismático. Transfor- bolos da nossa religião para fins lucrativos;
•
ano 57
mado por Cristo em mensageiro seu (“após- por outro, a tentação de largar tudo e dizer
tolo”), ele realiza, por excelência, a missão que a religião é um obstáculo à emancipação
•
dos apóstolos de serem testemunhas de Cris- humana. Nossa luta é, precisamente, assumir
Vida Pastoral
to “até os extremos da terra” (cf. At 1,8). As a libertação em nome de Jesus, sendo-lhe fiéis,
40
pois, na sua morte, ele realizou a solidariedade (Dt 6,4-5). Deve escutar sua voz e não se
mais radical que podemos imaginar. afastar de suas orientações; e, quando se afas-
ta, deve “voltar”, converter-se (30,10). E, se o
povo diz que a Lei é difícil, Deus responde
15º DOMINGO DO TEMPO COMUM
que não: não é coisa de outro mundo. Está
10 de julho perto, ao alcance de quem o ama (30,11-14;
O mandamento
cf. Jr 31,33; Br 3,15-29; Rm 10,6-8).
Hoje importa redescobrir que lei e man-
eterna
mos por lei (torah) deveria, na realidade, ser
traduzido como ensinamento, instrução. É
uma sabedoria (cf. Sl 19 e Sl 119). Ora, um
bom conselho vale mais do que ouro. Para os
I. Introdução geral teólogos que redigiram o livro do Deuteronô-
A liturgia deste domingo nos confronta mio (no século VIII-VI a.C.), a Lei de Moisés
com o ensinamento de Jesus sobre o amor era inigualável tesouro de sabedoria, um rumo
fraterno, supremo mandamento da vida cris- seguro para a vida, em todas as circunstâncias.
Para tê-la sempre diante dos olhos, deviam
tã. Trata-se do ponto fulcral da prática cristã.
colocá-la numa faixa amarrada na testa (Dt
As leituras apresentam dois aspectos princi-
6,8; cf. Ex 13,9 etc.). Os “deuteronomistas” en-
pais: o que é amar e a quem se dirige nosso
frentavam um tempo de afrouxamento em Isra-
amor? As duas perguntas fundem-se numa só
el, mais ou menos como nós, hoje. A quem
compreensão: quem ama descobre logo a
achava difíceis as orientações de Deus, respon-
quem amar. Como lema, que pode ser repeti-
diam: “Não é verdade. A Lei não é coisa do ou-
do na homilia e nos comentários, sugerimos:
tro mundo, ninguém a precisa procurar no céu
“Torne-se próximo de seu irmão necessita-
ou no inferno, ela está perto de ti”. Dificilmente
do”, ou a sabedoria popular: “A melhor ma-
poderia estar mais perto do que naquela faixa
neira de ter amigos é ser amigo”.
na testa. Mas não é só por meio dessa faixa que
ela pode estar perto. Ela é uma palavra viva,
II. Comentário dos textos lembrada continuamente pelos próprios profe-
bíblicos tas, que viviam no meio do povo. E em Cristo
ela se torna mais próxima do que nunca.
1. I leitura: Dt 30,10-14 2. Evangelho: Lc 10,25-37
A primeira leitura funciona como verda- No evangelho ouvimos o ensinamento
deira abertura solene para a liturgia da Pala- do grande mandamento do amor e a parábo-
vra. O livro mais imponente da Torá, o Deu- la do bom samaritano. O trecho faz parte de
teronômio, ensina-nos que o mandamento um conjunto do Evangelho de Lucas (Lc
nº- 310
de Deus não está fora de nosso alcance. Deus 10,26-11,13), que apresenta três exigências
fez de Israel seu povo não por este ser impor- fundamentais do ser cristão: 1) o “grande
•
ano 57
tante, mas por amor e fidelidade à sua pro- mandamento” do amor a Deus e ao próximo
messa (Dt 7,7-8). O amor de Deus por Israel (10,25-37); 2) o “único necessário” (10,38-
•
não tem explicação, mas consequências: Isra- 42); 3) a “oração por excelência” (11,1-13).
Vida Pastoral
el deve amar a Deus com todas as suas forças O “grande mandamento” responde à pergun-
41
Roteiros homiléticos
ta pelo caminho da vida eterna: amar a Deus com ele, a me tornar próximo dele. Ao analisar
e o próximo. Defrontamo-nos com um espe- o texto, aparecem detalhes mais significativos
cialista da Lei que procurava, em meio à mul- ainda. O samaritano “comiserou-se”, “aproxi-
tidão de prescrições, saber o que devia fazer mou-se”: uma linguagem que poderia ser apli-
para “herdar a vida eterna”, a vida da era vin- cada ao próprio Deus. Deus comiserou-se do
doura, do Reino que Deus estabeleceria no ser humano, tornou-se próximo dele e salvou-
mundo para sempre (pois era assim que se -o à sua própria custa: custou a vida de seu
concebia a vida eterna) (Lc 10,25-28; cf. Mt Filho. O próximo, “aquele que se comiserou
22,35-40; Mc 12,28-31). Jesus o remete à Lei do homem” (Lc 10,37), é Deus mesmo. “Vai e
ensinada por Moisés. Pergunta o que aí se então faze a mesma coisa”, e já não precisarás
encontra. O escriba responde: amar a Deus perguntar quem é teu próximo. E terás a vida
acima de tudo (cf. Dt 6,5) e ao próximo como eterna, porque desde já estarás vivendo a vida
a si mesmo (cf. Lv 19,18). “É isso mesmo que de Deus mesmo. Gostamos de escolher nossos
deves fazer”, responde Jesus. Novamente: próximos. Está errado. Somos próximos de
não é coisa de outro mundo! quem encontramos. Deus nos colocou perto
Depois, porém, o escriba pergunta quem é deles para os tratarmos com o mesmo amor
seu próximo. A resposta de Jesus revoluciona gratuito que ele nos dedica.
suas categorias: o próximo não é um arbitrário
3. II leitura: Cl 1,15-20
“objeto de caridade”; é todo homem, desde
que eu me torne próximo dele. Todos nós es- A segunda leitura apresenta o belo hino
tamos de acordo que devemos amar nosso cristológico da carta aos Colossenses. Essa carta
próximo. Mas quem é ele? Minha velha tia dá uma resposta à introdução de doutrinas fal-
rica, prestes a ceder sua herança, ou meu em- sas na comunidade. Alguns ensinam que, além
pregado, com cuja família nada tenho que de Cristo, devem-se venerar outros seres trans-
ver? Visto que argumentar não adianta, Jesus cendentes, “espíritos” etc. É difícil ser livre! Por
conta uma história. Um homem cai nas mãos isso, Paulo realça o lugar central exclusivo de
de ladrões. Passa um sacerdote, mas não tem Cristo. Ele nos redimiu, dando a sua vida até a
tempo para parar, pois deve celebrar um sacri- morte. Só compreenderemos bem isso quando
fício. Passa um especialista das leis de pureza formos conscientes de que Cristo é também o
(um levita): este tem medo de sujar as mãos criador, com o Pai. Ele assume nossa vida e
com o sangue do homem que ficou semimor- nosso mundo não por fora, mas por dentro. No
to na beira da estrada. Passa, depois, um ini- íntimo do ser homem, ele vive a plenitude de
migo, um samaritano, talvez um comerciante ser Deus. Quando todos chegarem a essa pleni-
concorrente do homem que foi assaltado. E tude, a criação estará completa.
esse samaritano, inimigo dos judeus, cuida do Esse hino é uma das obras-primas do
homem à sua própria custa. Nesse ponto da Novo Testamento. A ideia principal é a uni-
narrativa, Jesus pergunta não quem é o próxi- dade da ordem da criação e da redenção, em
mo a quem se devem fazer obras caritativas, Cristo. Ele é a cabeça da redenção, assumin-
mas quem é o próximo do homem que foi as- do a todos na sua glória, porque é também a
nº- 310
ponder que um vil samaritano é o próximo de de João (Jo 1,1-18) e os textos que falam da
um judeu assaltado. Para todos nós, isso signi- Sabedoria como hipóstase unida a Deus des-
•
fica: eu sou próximo de quem encontro no de antes da criação do mundo (Pr 8,22-36;
Vida Pastoral
meu caminho, sou chamado a ser solidário Eclo 24; Sb 7). O hino combina a figura da
42
Sabedoria que preside à criação, identificada Os judeus consideravam como “próxi-
a Cristo, com aquela outra imagem paulina mos”, isto é, como candidatos à sua solidarie-
de Cristo, cabeça da Igreja, que é seu corpo. dade, os membros da comunidade judaica e
No pensamento bíblico, todo o corpo partici- os estrangeiros residentes que viviam em seu
pa da realidade de seu princípio vital (no meio (e cooperavam com eles): a esses era
caso, a cabeça). No sacrifício e na glória de preciso “amar como a si mesmo” (Lv
Cristo, assume-se todo o universo na recon- 19,18.35). No caso dos inimigos, sobretudo
ciliação com Deus. A “plenitude” (termo he- dos samaritanos, a esses não se devia amar,
lenístico-gnóstico, indicando o “uno”, ou pelo contrário (cf. Mt 5,43). Ora, exatamente
seja, o ser perfeito) mora nele: a plenitude de um samaritano se torna solidário com um ju-
Deus, englobando todos os seus filhos. deu jogado à beira da estrada, depois que
Esse texto pode ser interpretado como dois ilustres “próximos” judeus, um sacerdo-
elo entre as duas outras leituras, neste senti- te e um levita, deram uma volta para não se
do: amor a Deus e a seu ensinamento (pri- incomodarem com o compatriota assaltado...
meira leitura) encontra sua plenitude na fé Jesus não respondeu diretamente à per-
que se concentra em Cristo e sua palavra, gunta do mestre da Lei: “Quem é o meu pró-
proclamada no evangelho. (Um texto que ximo?”. Ele respondeu por meio de uma pa-
melhor combinaria com o tema da primeira rábola, porque a questão não é descobrir, te-
leitura e do evangelho seria, por exemplo, Tg
oricamente, quem é e quem não é próximo.
1,21-25, sobre ouvir e praticar a palavra.)
A parábola insere o ouvinte em nova situação
prática, existencial. Coração generoso se tor-
III. Pistas para reflexão na próximo de qualquer um que precisa; a
melhor maneira de ter amigos é ser amigo; a
Amor ao próximo e solidariedade: os pro-
melhor maneira de encontrar o próximo é
fetas de Israel teceram os mais sublimes elo-
tornar-se próximo, aproximar-se. A questão
gios à Lei, ou melhor, ao ensinamento (torah)
não é teórica, mas prática. Ora, nós, na práti-
de Deus. Era um caminho de vida. Mesmo
assim, havia quem achasse a Lei complicada e ca, esquecemos a parábola de Jesus e fazemos
procurasse um resumo ou pelo menos um como o sacerdote e o levita: afastamo-nos do
mandamento-chave que, por assim dizer, a re- necessitado – mesmo se pertence à nossa co-
sumisse. Essa questão foi apresentada também munidade! – e não “nos aproximamos” dele.
a Jesus, e ele deu, sem hesitar, a resposta. Men- Tornar-se próximo é ser solidário. Será que
ciona o mandamento que todo judeu recita somos solidários com os que vivem à mar-
diariamente na oração do “Shemá Israel” (Dt gem da estrada de nossa sociedade? Mesmo
6,4-5) – “Amar a Deus com todas as forças” – e quando damos uma esmola a um coitado,
acrescenta: “e ao próximo como a si mesmo” não é para nos desviarmos dele?
(como está em Lv 19,18.35). Esses dois man- “Vai e faze a mesma coisa”, diz Jesus. Imi-
damentos são inseparáveis, pois o amor ao tar o samaritano exige solidariedade, assumir
próximo é o dever número um de quem ama a a vida do outro, não livrar-se dele. Torná-lo
nº- 310
Deus. Paulo (Gl 5,13) e Tiago (Tg 2,8) resu- um irmão, pois esse é o sentido verdadeiro da
mem toda a moral cristã nesse único manda- palavra “próximo”.
•
ano 57
mento. João nos diz ser impossível amar a Como fica essa solidariedade neste tempo
Deus sem amar o irmão (1Jo 4,21). Não se em que a doutrina da competição, do lucro e
•
pode amar o Pai sem amar os filhos. Mas o que do proveito ilimitado solapou o tecido social,
Vida Pastoral
43
Roteiros homiléticos
seus hóspedes. Agiu por bondade gratuita. ença que espreita a humanidade desde sem-
Com a mesma gratuidade, Deus lhe concede pre. Jesus aproveita as intensas ocupações da
•
ano 57
o que era estimado impossível: um filho de “dona Marta”, sua anfitriã, para falar desse as-
sua mulher Sara, já idosa. sunto. Marta dá muita importância aos pró-
•
A leitura mostra que, quando se está ofe- prios afazeres e pouca àquilo que recebe de
Vida Pastoral
recendo hospitalidade, na realidade se está Jesus. Ela deseja que Maria, imersa na escuta
44
das palavras do Mestre, interrompa sua escuta atividade, mas a pessoa humana que nos é
e a ajude a preparar a comida. Mas por que dada e que nós “recebemos” como um dom
preparar comida se não se sabe para quê? Se da parte de Deus.
alguém não se abre para receber a mensagem,
para que acolher o mensageiro? Um bom anfi- 3. II leitura: Cl 1,24-28
trião procura servir o melhor possível, mas, se A segunda leitura nos fala da manifestação
não escuta o que o visitante tem para dizer, do mistério de Cristo na missão do apóstolo.
fará uma monte de coisas, mas a finalidade Servir a Cristo é participar de seu sofrimento.
real da visita não se realizará. “Marta, Marta, tu No sofrimento próprio, Paulo vê confirmada
te ocupas com muitas coisas; uma só, porém, sua comunhão com Cristo, e isso é para ele
é realmente necessária...” Jesus não diz o que é uma alegria. Ele quer revelar o “mistério de
essa coisa necessária, mas a história nos faz en- Deus” – que é Cristo – por sua vida. Cristo é a
tender que é o que Maria estava fazendo: escu- “esperança da glória”. “Cristo no meio de nós”
tar Jesus. Maria escolheu a parte certa. Mais (1,27) não é um belo pensamento, mas força
fundamental do que a casa bem arrumada e a que nos impele ao encontro dos irmãos. Cristo
mesa bem provida com que Marta se preocupa é, em nós, a esperança, a impaciência do dia
é acolher Jesus, com suas palavras, no cora-
que há de manifestar, plenamente, o que ele é e
ção. Então a mesa bem preparada servirá para
o que nós seremos nele.
sua verdadeira finalidade.
Deus vem ao ser humano. Paulo sabe
O ativismo, mesmo a serviço dos outros,
dessa união de Deus e Cristo com o ser hu-
corre o perigo de ser um serviço a si mesmo:
mano, que lhes pertence. O apóstolo consi-
autoafirmação à custa de quem é o “objeto”
dera o seu sofrimento como a complementa-
de nossa caridade. A superação do ativismo
ção, no próprio corpo, do sofrimento de
consiste em ver o mistério de Deus nas pes-
Cristo. Não que faltasse algo ao sofrimento
soas, assim como Maria o enxergou em Jesus,
de Cristo por parte deste – faltava algo por
o porta-voz de Deus, o portador das “palavras
parte de Paulo; o sofrimento de Cristo preci-
de vida eterna” (cf. Jo 6,68).
O hóspede vem a nós com uma recomen- sava ser completado pela participação de Pau-
dação de Deus, e por isso lhe dedicamos lo. Isso, aliás, vale para todos nós. Só nos
atenção. Nossa preocupação não deve ser os apropriamos, por assim dizer, da paixão de
nossos próprios afazeres, mas a interpelação Cristo por nossa “com-paixão”.
que o rosto do outro nos dirige. Então não Paulo anuncia a palavra de Deus em sua
lhe imporemos uma hospitalidade que nós plenitude: o mistério escondido desde a
inventamos em proveito de nossa autoafir- eternidade, a realidade só conhecida por
mação, mas abriremos o coração àquilo que quem dela participa, a esperança da glória,
ele diz e é. É isso que Jesus lembra a Marta. “Cristo em vós”. Na comunidade dos fiéis,
A verdadeira contemplação não é uma da qual Paulo se tornou apóstolo, está pre-
fuga a pensamentos aéreos, mas aquele rea- sente aquele que assume todo o sentido de
lismo superior que nos leva a ver Deus no nossa vida e da criação toda (Cl 1,15-20, cf.
nº- 310
ser humano e o ser humano em Deus. Essa domingo passado). Para que fossem levados
contemplação é também o fundamento da à perfeição os que receberam sua pregação,
•
ano 57
verdadeira práxis da fé, que consiste, preci- Paulo oferece sua vida.
samente, em tratar o ser humano como filho (Querendo usar um texto mais afinado
•
e representante de Deus. Para isso, o centro com o tema do evangelho e da primeira leitu-
Vida Pastoral
de nossa preocupação não deve ser nossa ra, veja-se 1Pd 4,9-11: “Sede hospitaleiros”.)
45
Roteiros homiléticos
III. Pistas para reflexão com muito mais conteúdo e, sobretudo, com
um coração sensível e solidário.
O importante e o necessário: grande mal Importa acolher (a Deus, a Jesus, aos ou-
em nossa sociedade, e também na Igreja, é o tros) em primeiro lugar no coração. Só então
ativismo, a falta de disposição para aprofundar as demais atuações terão sentido. Isso vale na
o essencial, sob o pretexto de tarefas urgentes. vida pessoal e também na vida comunitária.
Na primeira leitura, vimos a virtude da Comunidades que giram exclusivamente em
hospitalidade na figura de Abraão. Deus, que torno de preocupações e reivindicações ma-
nos anjos se tornou seu hóspede, recompen- teriais acabam esvaziando-se, caem em brigas
sa-o com a promessa de um filho. Será que o geradas pelo personalismo e pela ambição.
evangelho não contradiz essa lição? Jesus dá Mas comunidades que primeiro acolhem
a impressão de valorizar mais a presença pas- com carinho a palavra de Jesus num coração
siva de Maria, que fica a escutá-lo, do que a disposto saberão desenvolver os projetos cer-
preocupação de Marta em bem recebê-lo. Ou tos para pôr essa palavra em prática.
será que o jeito certo de recebê-lo é o de Ma- “Buscai primeiro o Reino de Deus...”
ria: escutar sua palavra?
Jesus observa a Marta que ela anda ocu-
pada e preocupada com muitas coisas, en- 17º Domingo do Tempo Comum
quanto uma só é necessária. Essa observa- 24 de julho
ção não é uma crítica à hospitalidade, mas
indica uma escala de valores: a melhor parte A oração
do discípulo
é a que Maria escolheu! O que esta faz é fun-
damental e indispensável: escutar. O resto
(as correrias pastorais, as reuniões) é impor-
tante, mas deve ter fundamento no escutar.
Jesus censura Marta não porque ela cuida da I. Introdução geral
cozinha, mas porque quer tirar Maria do es- Pessoas muito racionalistas não raro expe-
cutar para fazê-la entrar no ritmo das suas rimentam dificuldade com a oração de súplica.
próprias ocupações. Marta não conhecia a Acham bom rezar para adorar ou agradecer,
escala de valores de Jesus. pois reconhecem que a vida é um dom e existe
Paulo, na segunda leitura, pode ser um um ser transcendente e perfeito chamado Deus.
exemplo. Ele passou pela “passividade” do so- Mas pedir que esse ser se ocupe com o dia a dia
frimento, assumindo no próprio corpo a sua de suas criaturas lhes parece metafisicamente
participação no sofrimento de Cristo. Dessa ingênuo e praticamente pouco atraente, pois
identificação profunda com Cristo ele tirou a torna Deus muito familiar. Preferem não de-
força para seu surpreendente apostolado. pender dele em seus negócios. Ora, aquele que
Gente ocupada é o que menos falta. Mas sabe- sustenta todo o ser também não sustenta nosso
mos muito bem que toda essa ocupação não dia a dia? Ou será que as poucas leis físicas,
gira, necessariamente, em torno do funda- psicológicas, econômicas e sociológicas que co-
nº- 310
mental. Dá até pena ver certas pessoas compli- nhecemos são realmente tão abrangentes que já
car a vida com mil coisas que, dizem, vão não sobra espaço para Deus? (Em vez de pensar
•
ano 57
simplificá-la. Por outro lado, encontramos que essas leis são uma parte do sustento que ele
também, especialmente entre os pobres “de nos fornece em cada momento.)
•
coração” (não aqueles com mania de rico), Seja como for, Jesus nos ensinou a pedir
Vida Pastoral
pessoas que levam uma vida simples, porém e suplicar, e até com insistência. Cita o
46
exemplo de alguém que, em plena noite, vai
acordar o vizinho e bate à sua porta até que
ele se levante para ver-se livre do incômodo Por uma paróquia missionária
(evangelho). Isso lembra a “pechincha de à luz de Aparecida
Abraão”, que, ao rezar por Sodoma e Go- Gelson Luiz Mikuszka
morra (primeira leitura), se atreve a lembrar
a Deus: “Não podes perder os justos com os
injustos, é uma questão de honra!”. E Deus
atende. A frase do salmo responsorial: “Cada
vez que te invoquei, me deste ouvido”, pode
ser repetida como lema durante os vários
momentos da celebração.
176 págs.
1. I leitura: Gn 18,20-32
A primeira leitura narra a oração de A paróquia é célula viva da Igreja
Abraão por Sodoma e Gomorra. O pecado de e lugar onde a maioria dos fiéis
Sodoma e Gomorra, sobretudo o abuso con- faz sua experiência eclesial com
tra a hospitalidade e contra o respeito sexual Cristo. Para que o papel evange-
lizador dessa grande e histórica
(cf. o episódio a seguir, Gn 19,1-11), clama
instituição alcance cada vez mais
ao céu. Diante da ameaça de Deus, Abraão êxito ao desempenhar seu papel
pede-lhe que não a execute, pois não deve evangelizador, foram reavivados,
condenar a cidade por causa dos muitos in- neste livro, alguns debates surgi-
justos, mas poupá-la por causa de poucos dos na Conferência de Aparecida,
que desafiou a Igreja na América
justos. É uma questão de honra para Deus,
Latina a fazer de cada comunida-
diz Abraão. Essa história contracena com o de eclesial “um poderoso centro
Novo Testamento. O Juiz do mundo (Gn irradiador da vida”. Para isso,
18,25) é também o amigo, o Pai (Lc 11,8, cada Igreja local foi chamada a
Imagens meramente ilustrativas.
paulus.com.br
ano 57
47
Roteiros homiléticos
ve que a de Mateus (Mt 6,9-13). Mateus tem res) e para ficarmos incólumes na tentação.
sete pedidos, Lucas, cinco, mas em ambos é Devemos rezar por isso, com insistência, não
central o pedido do pão de cada dia. Antes de tanto porque Deus não soubesse de que pre-
pedir o pão de cada dia, ora-se pela glorifica- cisamos, mas para nos abrirmos ao que ele
ção de Deus e pela vinda de seu Reino; de- nos quer dar. Pedindo, a gente se convence
pois, pelo perdão do pecado e pela proteção mais a si mesmo do que a Deus! Pedir é cul-
na tentação. Quem pode rezar assim, com tivar nossa fé, nossa confiança filial, é deixar
sinceridade, é discípulo de Jesus. “crescer Deus”, como nosso Pai, em nossa
Depois da instrução do Pai-nosso, Lucas consciência e em toda a nossa vida. É voltar-
acrescenta dois ensinamentos de Jesus sobre mos a ser crianças – condição para entrar no
a oração de pedido: a parábola do “vizinho Reino (cf. Lc 18,17). É por isso que os inte-
chato” (11,5-8) e as palavras sobre o dom do lectuais tão dificilmente pedem.
Pai (11,9-13). Com essas considerações, não queremos
A parábola do “vizinho chato” é provo- justificar a oração que reduz Deus a um “que-
cante. Alguém acorda seu vizinho em plena bra-galho” ou “tapa-buraco”, às vezes até para
noite para lhe pedir comida, porque chegou causas não condizentes com seu Reino (por
um hóspede imprevisto e a despensa está va- exemplo, para ter sucesso nos negócios, ainda
zia. O que bate à porta certamente está bem- que outras pessoas fiquem prejudicadas).
-intencionado, pois, no Oriente, a hospitali- Queremos é revalorizar a oração de petição,
dade é um dever muito importante. Mas o porque nela minha confiança filial em Deus
vizinho vê nisso um problema, porque deve- me leva a extravasar, diante dele, aquilo que
rá levantar-se e passar por cima de mulher e habita meu coração: minha própria miséria,
filhos, que estão dormindo, deitados no úni- além das necessidades de meu irmão, o próxi-
co quarto da casa simples. Mas o outro conti- mo a quem quero bem e vejo em dificuldades.
nua insistindo e, finalmente, o vizinho, para Assim como Abraão fez pelos habitantes de
se ver livre dele, concede-lhe o pedido. Sodoma. Isso não é absurdo. O mundo não é
A oração de Abraão como também a do feito somente com as leis (físicas, psicológicas
vizinho (e a da viúva insistente, Lc 18,3) nos e sociológicas) que conhecemos ou estão em
ensinam uma coisa importante: pedem coisas nossos manuais de escola, mas também com o
com que Deus se possa comprometer. Pedem mistério da vida. Por isso, não há dúvida de
a Deus o que, no fundo, Deus mesmo deseja. que a preocupação amorosa que extravasamos
Esse (além de nossa insistência) é o segredo da diante de Deus será operante, pela graça da-
oração eficaz. Saber pedir como convém (cf. quele mesmo que sustenta toda a vida.
Tg 4,3). Deus é nosso Pai. Ele deseja comuni-
3. II leitura: Cl 2,12-14
car suas dádivas, especialmente seu Espírito,
força e ânimo de nosso existir (Lc 11,9-13). O pensamento da segunda leitura pode
Por isso, no Pai-nosso, Jesus ensina seus ser sintetizado nesta frase: nossas dívidas são
discípulos, e a todos nós, a rezar primeiro saldadas por Cristo. O “sacramento” do Anti-
para que o nome de Deus seja santificado go Testamento era a circuncisão: constituía,
nº- 310
(isto é, para que Deus encontre reconheci- para Israel, sinal de pertença a Deus, a ponto
mento no mundo) e seu Reino venha (Lc 6,2; de Jesus lhe ter se submetido, como se subor-
•
ano 57
Mt 6,10 explicita: “Tua vontade seja feita”). dinou a toda a Lei (cf. Gl 4,4-5). Mas Jesus
Dentro desse quadro de referências, pode- assumiu também toda a condição humana e
•
mos e devemos rezar por nosso pão de cada a sepultou consigo em sua morte, para criar o
Vida Pastoral
dia, pelo perdão (pois somos eternos devedo- Homem Novo na ressurreição. O que aconte-
48
ce a Cristo acontece a nós: no batismo somos -nos suas dádivas boas, especialmente seu Es-
corressuscitados com Cristo. Corressuscita- pírito, pois mesmo nós – que somos ruins –
dos com ele (cf. Rm 6,4), somos agora livres, gostamos de dar coisas boas aos filhos.
livres de “culpa no cartório” (cf. Rm 8,34). A oração de petição não é uma forma de
“Ninguém salva ninguém”, dizem os “re- oração inferior, mais egoísta do que a medita-
alistas”. Será mesmo? Ninguém é salvo se não ção, a louvação, o agradecimento, a adora-
quer, mas em Cristo existe uma comunhão ção... Na verdade, agradecer é a outra face do
entre todos os que buscam a fonte da vida, pedir. Quem agradece, gostou. Por que não
Deus. Essa comunhão de vida, ensina a se- pedir então? É reconhecer a bondade do do-
gunda leitura, faz que Cristo nos redima. ador! Como aquele frei que, depois de lauto
Desde que participemos da vida que ele vi- almoço na casa de uma benfeitora, testemu-
veu (o que é expresso pelo batismo, imersão nhou sua gratidão com estas palavras: “Se-
na sua morte, para que ressuscitemos com nhora, não sei como agradecer... Será que
ele para uma vida nova), podemos dizer que poderia repetir aquela sobremesa gostosa?”.
a santidade de Cristo salda nossas dívidas, e Conforme o espírito do Pai-nosso, deve-
sua morte por amor supre nossa falta de amor mos pedir, antes de tudo, a realização daquilo
(com a condição de nos arrependermos). que Deus deseja: seu Reino, sua vontade. Ora,
Como nós mesmos perdoamos a outrem a uma vez assentada essa base, pode-se pedir –
pedido de uma pessoa amiga (pai, mãe, ir- com toda a simplicidade – o pão de cada dia,
mão...), assim nossa comunhão (amizade) saúde, vida e todos os demais dons que Deus
com Cristo vale para nos restabelecer na ami- nos prepara. Também o perdão de nossas fal-
zade de Deus. E também nossa oração de in- tas. Só não se deve pedir a Deus o que ele não
tervenção junto a Deus será eficaz. pode desejar: a satisfação de nosso egoísmo. E
(Um texto das cartas que melhor combi- sempre se deve lembrar que Deus sabe melhor
na com as duas outras leituras seria 1Jo 5,14- do que nós o que nos convém. Podemos insis-
16, sobre a confiança no pedir.) tir naquilo que achamos sinceramente nosso
bem... Mas Deus sabe melhor.
É importante pedirmos. Compromete!
III. Pistas para reflexão Depois de ter pedido, a gente já não pode di-
Orar e pedir: certos cristãos, julgando-se zer: “Não pedi!”. Comprometemo-nos com
esclarecidos, acham as orações de nosso povo Deus e com o que pedimos. Não é como no
muito egoístas, porque são quase sempre ora- supermercado, onde você entra, olha e sai
ções de pedido. Ora, as leituras de hoje subli- sem comprar. É, antes, como no armazém da
nham a importância da petição. Abraão, com esquina, onde você pede o que deseja e, caso
seus incansáveis pedidos, quase salvou as ci- houver, você compra. Assim, as preces dos
dades de Sodoma e Gomorra – que, infeliz- fiéis, na celebração da comunidade, devem
mente, eram ruins demais. Jesus, por seu lado, ter sentido de compromisso: devemos dese-
ensina aos discípulos o Pai-nosso, essencial- jar que elas se realizem e, ao mesmo tempo,
mente uma oração de petição: pede a princí- oferecer-nos a Deus para colaborar na reali-
nº- 310
pio que Deus reine, e, uma vez que rezamos zação daquilo que pedimos. Pedir é compro-
em harmonia com o desejo de Deus, podemos meter-se. Se pedimos a Deus saúde, não é
•
ano 57
pedir o que precisamos para a nossa vida. Na para gozar egoisticamente a vida, mas para
parábola do homem que incomoda seu vizi- servir melhor. Se pedimos paz, não é para
•
nho, Jesus parece ensinar-nos a vencer Deus sermos deixados em paz, mas para nos dedi-
Vida Pastoral
pelo cansaço! No fundo, Deus gosta de dar- car à comunhão fraterna. Se pedimos por
49
Roteiros homiléticos
nossos irmãos e irmãs mais pobres, é porque lhou a cultura grega por todo o Médio Oriente.
queremos ajudá-los efetivamente. Importa A literatura do Antigo Testamento geral-
saber como pedimos (cf. Tg 4,3). mente demonstra apreço e gratidão pela vida.
Prova disso é a primeira página da Bíblia, o
hino da criação (Gn 1). O Eclesiastes, porém,
18º Domingo do Tempo Comum
parece demonstrar certo ceticismo. Ataca o
31 de julho leitor com perguntas inoportunas: que é o
“Para que riqueza e saber?”, eis a pergunta na riqueza e no bem-estar materiais, Jesus, no
do Eclesiastes (Coélet), de autoria de um filó- evangelho, ensina-nos a nos tornar ricos aos
•
ano 57
sofo judeu versado também no pensamento do olhos de Deus. Lc 12,13-34 traz sentenças de
mundo grego, lá por volta do ano 300 a.C., Jesus sobre pobreza e riqueza. A vida não de-
•
quando a Palestina estava sendo absorvida pende do poder aquisitivo (12,15). A palavra
Vida Pastoral
pelo império de Alexandre Magno, que espa- de Jesus é boa-nova, antes de tudo, para quem
50
não depende da riqueza material: o pobre (cf.
Mt 5,3; Lc 6,20). Onde está o tesouro de al- Cultura juvenil
guém, aí está o seu coração (Lc 12,34). Heran- Perspectivas e desafios
ça, sucesso, safra... não livram o homem do para novos tempos
perigo maior: endurecer-se, romper a comu- Antonio Ramos do Prado
nhão com os irmãos e com Deus. Quem liga
para esses “tesouros” é um bobo (12,20). As-
sim é quem adora a sociedade do consumo.
Embora talvez frequente a Igreja, no fundo
não se importa com Deus (cf. Sl 14[13],1).
Possuído por suas posses (cf. Tg 4,13-15), o
ser humano já não percebe o que Deus lhe
quer mostrar. O contrário disso, porém, a do-
ação, a comunhão e tudo que daí procede nos
garantem um tesouro junto a Deus.
Basta uma boa crise financeira para a
gente se lembrar da precariedade dos tesou-
96 págs.
ros deste mundo, mas nem todos aprendem a
lição... A cena que o evangelho conta é bem
típica: uma briga de irmãos por causa da he- Este livro foi feito por várias mãos.
Todos os autores trabalham com
rança. Querem que Jesus resolva a questão a juventude, tanto na área da
(como os cristãos de família tradicional que evangelização como nas áreas
chamam o padre para resolver problemas fa- da educação e acompanhamento.
miliares). Jesus, porém, não mostra interesse Queremos dedicar este livro a
por isso, sua missão é outra. Que adiantaria, todas as pessoas que trabalham
para o Reino de Deus, impor a esses dois ir- com a juventude e especialmente
aos jovens. Os conceitos de
mãos uma solução que, provavelmente, não juventude estão sempre em
os reconciliaria? Para Jesus interessa que a mudança, pois os jovens vivem
pessoa se converta aos valores do Reino. Por numa sociedade que muda
isso, ele narra a parábola do rico insensato, o constantemente seus paradigmas.
qual, depois de uma boa safra, achou que po- Desejamos para os jovens que o
humanismo cristão seja fonte de
Imagens meramente ilustrativas.
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ano 57
51
Roteiros homiléticos
– a de Cristo ressuscitado e de todos os ver- fluas que enchem as prateleiras das lojas. Para
dadeiros batizados, sem distinção (Cl 3,11). vendê-las, criam e excitam nas pessoas a ne-
•
ano 57
Será que isso significa desprezo pelo cessidade de possuí-las, mediante a publicida-
mundo? Não. Nem teríamos o direito de des- de na rua, no jornal, na televisão. Quando en-
•
prezar o que Deus criou. É apenas uma ques- tão as pessoas não conseguem adquirir todas
Vida Pastoral
tão de realismo: importa saber onde está a essas coisas, ficam irrequietas; quando conse-
52
guem, ficam enjoadas; e nos dois casos surge volta de “seu senhor”, o qual, encontrando seus
mais uma necessidade: a psicoterapia... servos a vigiar, os fará sentar à mesa e os servirá.
A “sabedoria do lucro” é injusta e assassi- Pois já fez uma vez assim, na ceia que precedeu
na. Leva as pessoas a desconsiderar os fracos. o dom de sua vida (cf. Lc 22,27). Jesus é o Se-
Um presidente deste nosso país chegou a di- nhor servo. Convém, portanto, abrir os olhos
zer que “quem não pode competir não deve para a realidade que está ainda escondida por
consumir”... O sistema do lucro e do desejo trás do horizonte, mas é decisiva para a nossa
sempre mais acirrado precisa manter as desi- vida. Sintetizando o espírito da liturgia de hoje,
gualdades, pois parte do pressuposto de que poderíamos dizer: o mundo nos é confiado não
todos querem superar a todos. Tal sistema é como uma propriedade, e sim como um serviço
“intrinsecamente pecaminoso”, disseram os a um “Senhor” que está “escondido em Deus”,
papas Paulo VI e São João Paulo II. mas, na hora decisiva, se revelará ser nosso ami-
Ser rico não para si, mas para Deus. Não go e servo de tanto que nos ama, a nós e aos que
amontoar riquezas que, na hora do juízo, se- ele confiou à nossa solicitude vigilante. “Minha
rão as testemunhas de nossa avareza, injustiça vida não é propriedade a que me apegar, mas
e exploração (cf. Tg 5,1-6), mas riquezas que dom a serviço de todos” poderia ser um lema
constituam a alegria de Deus! adequado para esta celebração.
Não adianta muito discutir se a produção
tem de ser capitalista ou socialista, enquanto não
se tem claro que o ser humano não existe para a
II. Comentário dos textos
produção, mas a produção existe para o ser hu- bíblicos
mano. Que, se for sábio, tentará precisar dela o
menos possível. Usá-la-á para fazer amigos que o 1. I leitura: Sb 18,6-9
“recebam nas moradas eternas” (Lc 16,9). Segundo Ex 12,42, Deus passou a noite
em vigília para libertar Israel e por isso Isra-
19º Domingo do Tempo Comum el lhe dedica a vigília pascal. Na primeira
leitura de hoje, ouvimos a meditação do li-
7 de agosto
vro da Sabedoria sobre essa memória do
(primeira leitura). Segundo o evangelho, a vigi- lia de Israel no tema da vigilância escatológica.
Vida Pastoral
lância é também a atitude do cristão que espera a A comunidade cristã era uma minoria vulnerá-
53
Roteiros homiléticos
vel, um “pequeno rebanho” (12,32). Porém, a preparando sua eterna e feliz presença junto a
ela pertence o Reino, a comunhão com Deus. Cristo, que é, conforme Lc 13,37 e 22,27, “o
Nisso entram diversas considerações. Lembran- Senhor que serve” (o único que serve de verda-
do o ensino de Jesus sobre a riqueza (Lc 12,33- de). Cristo ama efusivamente a gente que ele
34; cf. domingo passado), o evangelho ensina confia à nossa responsabilidade. Não podemos
que o discípulo deve estar livre, procurando só decepcionar a esperança em nós depositada.
o que está guardado ou depositado (a tradução A visão da vigilância como responsabilidade
diz “tesouro”) junto a Deus. Os versículos se- mostra bem que a religião do evangelho não é
guintes, Lc 12,35-48, ensinam então a vigilân- ópio do povo, como Marx a chamou. A fé, vis-
cia (cf. primeira leitura): perceber o momento! ta na perspectiva do evangelho de hoje, impli-
Os servos devem estar prontos para a volta do ca até a conscientização política, quando, na
seu Senhor, pois essa volta será o juízo tanto solicitude pelo bem dos irmãos, se descobre
sobre os que estiverem atentos quanto sobre os que bem administrar a casa não é passar de vez
despreocupados. E essa vigilância consiste na em quando uma cera ou um verniz nos mó-
fidelidade no serviço confiado a cada um (cf. Mt veis, mas também, e sobretudo, mexer com as
24,43-51; 25,1-13; Mc 13,35). estruturas tomadas pelos cupins...
Lucas nos faz ver nossa vida em sua di- Tal vigilância escatológica não é uma atitude
mensão verdadeira. Vivendo no ambiente fácil. Exige que a gente enxergue mais longe que
mercantilista do Império Romano, o evange- o nariz. É bem mais fácil viver despreocupado,
lista vê constantemente o mal causado pelas aproveitar o momento... Pois, afinal, “quem sabe
falsas ilusões de riqueza e bem-estar, além do quando o patrão vai voltar?” (cf. Lc 12,45).
escândalo da fome (cf. 16,19-31). Se escre-
3. II leitura: Hb 11,1-2.8-19
vesse hoje, não precisaria mudar muito. En-
sina-nos a vigilância no meio das vãs ilusões. Para sustentar a atitude de ativa vigilância
A leitura continua com outras sentenças e e solicitude pela causa do Senhor, precisamos
parábolas referentes à parusia. Elas explicam, de muita fé. Nesse sentido, a segunda leitura
de maneira prática, o que a vigilância implica. vem sustentar a mensagem do evangelho. Traz
Com a imagem do administrador sensato e fiel a bela apologia da fé de Hb 11: A fé é a esperan-
(12,42), Lucas ensina a cuidar do bem de to- ça daquilo que não se vê. A fé é como que pos-
dos os que estão em casa. Pela pergunta intro- suir antecipadamente aquilo que se espera; é
dutória de Simão Pedro (12,41), parece que uma intuição daquilo que não se vê (11,1).
isso se dirige sobretudo aos líderes da comuni- Hb 11-12 é dedicado ao tema da fé. A fé
dade. A vigilância não significa ficar de braços olha para o futuro, como Abraão, como os is-
cruzados, esperando a parusia acontecer, mas raelitas no tempo do êxodo, como o discípu-
assumir o bem da comunidade (cf. 1Ts 5). Lu- lo que espera a vinda do Senhor; é esperança.
cas fala também da responsabilidade de cada Não deixa a pessoa instalar-se no presente.
um (12,47-48). Quem conhecia a vontade do Este mundo não é o termo do caminho do ser
Senhor e, contudo, não se preparou será casti- humano. Deus preparou-lhe uma pátria me-
gado severamente, e o que não conhecia essa lhor. O cristão é um estrangeiro neste mun-
nº- 310
vontade se salva pela ignorância; a quem mui- do. Decerto leva este mundo a sério, mas isso
to se deu, muito lhe será pedido; a quem pou- se exprime exatamente no fato de ficar livre
•
ano 57
co se deu, pouco lhe será pedido. diante dele (o que não exclui o compromisso
O importante dessa mensagem é que cada com os filhos de Deus neste mundo!).
•
um, ao assumir no dia a dia as tarefas e, sobre- Quando concebida como esperança vigilan-
Vida Pastoral
tudo, as pessoas que Deus lhe confiou, está te, percebe-se o teor escatológico da fé. Ela não
54
é, em primeira instância, a adesão da razão a ver-
dades inacessíveis, mas o engajamento da exis-
tência no que não é visível nem palpável, porém Encontro com Cristo
tão real que pode absorver o mais profundo de Vencer medos, viver de esperança
nosso ser. Hebreus cita toda uma lista de exem- Bruno Carneiro Lira
plos dessa fé, pessoas que se empenharam por
aquilo que não se enxergava. O caso mais mar-
cante é a obediência de Abraão e sua fé na pro-
messa de Deus (11,8-19; cf. Gn 15,6). O texto
continua: muitos deram a vida por essa fé, que
fez Israel peregrinar qual estrangeiro neste mun-
do (11,35b-38). Mas o grande exemplo fica re-
servado para o próximo domingo: Jesus mesmo.
Se se procura uma leitura mais afinada
com a primeira e o evangelho, pode-se consi-
derar Ef 6,13-18, sobre “a armadura da fé”.
144 págs.
III. Pistas para reflexão
Viver para aquilo que é definitivo: o fim A presente obra se destina a todos
os cristãos que desejam aprofundar
para o qual vivemos reflete-se em cada uma
sua espiritualidade na imitação
de nossas ações. A cada momento pode che- da pessoa de Jesus Cristo. Ele, o
gar o fim de nossa vida. Que esse fim seja nosso verdadeiro amor, é também
aquilo que vigilantes esperamos, como os he- fonte de esperança diante de tantos
breus vigiaram na noite da libertação, prepa- medos que se observam na contem-
rados para sair da escravidão; então não será poraneidade. O livro nos convida a
fazer um retiro espiritual no conhe-
uma noite de morte e condenação, como foi
cimento de Jesus Cristo, para que
para o empregado malandro, surpreendido nossa vida se assemelhe à dele e
pela volta inesperada de seu patrão. possamos testemunhá-lo com pala-
Preparemo-nos para o definitivo de nossa vras e atitudes. Em cada capítulo
vida, aquilo que permanece, mesmo depois é apresentada uma faceta da vida
do Senhor, sempre em relação com
Imagens meramente ilustrativas.
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55
Roteiros homiléticos
ção a que diariamente assistimos. Mas será de, pelos menos em porcentagem, seus adep-
que olhar para o céu não desvia nosso olhar tos, e os que ainda participam das celebrações
da terra? Não leva à negação da realidade his- têm as cabeças muito embranquecidas...
tórica, desta terra, da nova sociedade que Contudo, o mais importante não é ter muitas
construímos? Ou será, pelo contrário, uma pessoas na igreja, e sim que essas pessoas façam
valorização de tudo isso? Com efeito, mos- a opção por Jesus de Nazaré e pelos traços de
trando como são provisórias a vida e a histó- Deus que se manifestam nele. E não se pode ex-
ria, Jesus nos ensina a usá-las bem, para pro- cluir que, entre os que não “vão à igreja”, como
duzir o que ultrapassa a vida e a história: o se diz, também haja pessoas que, na prática, op-
amor, que nos torna semelhantes a Deus. tam por Cristo.
Esse é o tesouro do céu, mas ele precisa ser O evangelho fala da divisão que Jesus veio
granjeado aqui na terra. trazer ao mundo: a favor dele ou contra ele.
Tal visão cristã acompanha os que se Não uma divisão que se identifique com a di-
empenham na construção de um mundo visão entre pessoas religiosas e pessoas não re-
novo, solidário e igualitário, a fim de su- ligiosas, ou entre uma religião e outra. Mas
plantar a atual sociedade, baseada no lucro uma divisão que penetra nas famílias e, quem
individual. Contudo, não basta simples- sabe, no próprio coração da gente.
mente manter-se nesse nível material, por
mais que ele dê realismo ao empenho do
amor e da justiça. A visão cristã acredita que II. Comentário aos textos
a solidariedade exercida aqui e agora, na bíblicos
história, é confirmada para além dela. Ultra-
passa nosso alcance humano. É a causa de 1. Primeira leitura: Jr 38,4-6.8-10
Deus mesmo, confirmada por quem nos
chamou à vida e nos faz existir. À utopia A contradição de que Jesus é sinal, segundo
histórica, a visão cristã acrescenta a fé, “pro- o evangelho, prefigura-se na vida daquele, entre
va de realidades que não se veem”. A fé, ba- os profetas, que mais faz pensar em Jesus: Jere-
seada na realidade definitiva que se revelou mias. A missão de Jeremias era muito ingrata.
na ressurreição de Cristo, dá-nos a firmeza Estamos em 587 a.C. Dez anos antes, em 597
necessária para abandonar tudo em prol da a.C., o rei da Babilônia, Nabucodonosor, já ha-
realização última – a razão de nosso existir. via mostrado seu poder em Jerusalém e substi-
tuído o rei Joaquim (Jeconias) por Sedecias,
com a intenção de que este lhe fosse submisso.
20º Domingo da Tempo Comum
Porém, por alguma ilusão de grandeza nacional
14 de agosto ou por causa de seus amigos políticos, Sedecias
Opção por ou
preferiu optar pelos egípcios. Agora, Jeremias
enxergava, com lucidez profética, que a política
contra Cristo
do rei Sedecias, querendo aliar-se aos egípcios,
já em fase de declínio, era uma opção errada. O
nº- 310
I. Introdução geral
ano 57
das na pastoral andam com certo desespero a panela com a carne dentro, até a panela derre-
Vida Pastoral
porque a Igreja – também aqui no Brasil – per- ter (Ez 11,3; 24,3-5.10-11)!
56
Jeremias, na sua honestidade de porta-voz A palavra de Jesus supõe que o tomem
de Deus, com aquela voz que lhe queimava den- pelo Messias (em 9,18-20 Simão já havia de-
tro (Jr 20,9), não podia deixar de denunciar a clarado essa opinião). Mas não é um Messias
farsa do orgulho da elite de Judá, sob pena de ser como eles imaginam, alguém que produza pa-
tratado como um traidor da glória nacional. Por cificamente e quase que por milagre a paz.
isso, foi perseguido e jogado numa cisterna vazia Que a “paz” fosse o grande presente do Mes-
com o fundo cheio de lodo (Jr 38,4-6), até que sias era a expectativa corriqueira, e isso no
um funcionário negro, o eunuco etíope Ebed- sentido mais amplo que se possa imaginar,
-Melec, conseguiu a transferência dele para o pois na língua de Jesus paz significa a plenitu-
quartel da guarda (34,7-13). de, a satisfação de tudo o que o ser humano
Esse episódio foi escolhido para a primei- possa desejar honestamente diante de Deus. O
ra leitura de hoje porque prefigura em muitos problema é que a paz messiânica é fruto da
pontos a sorte de Jesus, “sinal de contradição” justiça (Is 32,17), supõe o agir justo dos “fi-
(cf. Lc 2,34-35). lhos da paz”. E é isso, exatamente, que vai di-
vidir as pessoas, de modo que o Messias, de
2. Evangelho: Lc 12,49-53 fato, traz uma divisão. E o critério dessa divi-
O evangelista Lucas elabora longamente a são é Jesus mesmo. O que combina com seu
subida de Jesus, da Galileia a Jerusalém, para a caminho, com seu modo de agir, garante o be-
Páscoa final (Lc 9,51-19,27). No percurso dessa neplácito de Deus; o contrário, não. É bom
“viagem”, Lucas insere diálogos e declarações lembrar o que já anunciou João Batista: o
de Jesus, muitas das quais se encontram tam- “mais forte” que viria depois dele batizaria
bém no Evangelho de Mateus, embora talvez com o Espírito Santo e com fogo (Lc 3,16).
em outro contexto. Trata-se de palavras de Jesus Pois bem, o fogo chegou (Lc 12,49).
tomadas da “Quelle”, a coleção de ditos com
3. Segunda leitura: Hb 12,1-4
que Mateus e Lucas enriqueceram, cada um a
seu jeito, o primitivo Evangelho de Marcos. Apesar de escolhida sem relação inten-
Com esses ditos, Lucas transforma o relato da cional com o evangelho e a primeira leitura,
viagem num ensinamento rico e, muitas vezes, mas em função da lectio continua da carta aos
radical. O de hoje, que se encontra também em Hebreus, a segunda leitura reforça a mensa-
Mt 10,34-36, é certamente radical. Lucas o in- gem principal da liturgia de hoje: a fidelida-
sere logo depois de uma exortação à prontidão de a Deus e a firmeza no testemunho. Esse
permanente em vista da volta do Senhor para é, de fato, o conteúdo dos maravilhosos ca-
pedir contas de nossa fidelidade e prática (Lc pítulos 11 e 12 da carta. O texto de hoje
10,35-48). Assim, essa perspectiva final marca evoca a imagem do cristão como estando no
as nossas opções do dia a dia. E essas opções estádio de esportes rodeado de testemunhas
podem opor-nos, na prática, às pessoas com as – em grego: mártires! – e com os olhos fixos
quais convivemos, nas nossas sinagogas ou igre- em Jesus Cristo. Jesus é chamado “aquele
jas e até nas nossas casas e famílias: “pai contra que conduz” (archegós) e “completa” (teleio-
filho e filho contra pai, mãe contra filha e filha tés) a nossa fé, linguagem militar, corres-
nº- 310
contra mãe, sogra contra nora e nora contra so- pondente ao estilo retórico daquele tempo,
gra” – como já dizia o profeta Miqueias (Mq mas suficientemente clara para entregar o
•
ano 57
7,3). Aliás, o fato de Jesus citar um profeta recado: do início até o fim, podemos seguir
acrescenta uma dimensão especial: o cumpri- confiantemente Jesus em nossa performance
•
mento das Escrituras. Aquilo de que falavam os no estádio da vida, completar nosso percur-
Vida Pastoral
profetas alcança sua plenitude agora. so, combater o bom combate, enfrentando
57
Roteiros homiléticos
Um operário tem quatro filhos para sus- Em 1950, o papa Pio XII proclamou o dog-
tentar. São inteligentes. Poderia encaminhá- ma da Assunção de Nossa Senhora ao céu. Um
•
ano 57
-los para o colégio militar. Mas ele é militante dogma é um marco referencial de nossa fé, do
do sindicato. Seus filhos só serão aceitos se qual ela não pode retroceder e sem o qual ela
•
ele desistir do engajamento sindical. Confli- não é completa. Proclamamos que Maria, no fim
Vida Pastoral
to. Tem de escolher entre estudo de graça de sua vida, foi acolhida por Deus no céu “com
58
corpo e alma”, ou seja, coroada, plena e definiti- a Mulher que gera o Messias; as doze estrelas
vamente, com a glória que Deus preparou para indicam quem ela é: o povo das doze tribos,
os seus santos. Assim como ela foi a primeira a Israel – não só o Israel antigo, do qual nasce
servir Cristo na fé, é a primeira a participar na Jesus, mas também o novo Israel, a Igreja, que,
plenitude de sua glória, a “perfeitissimamente no século I d.C., quando o livro foi escrito,
redimida”. Maria foi acolhida, completamente, precisava esconder-se da perseguição, até que,
de corpo e alma, no céu, porque ela acolheu o no fim glorioso, o Cristo se possa revelar em
céu nela – inseparavelmente. plenitude. Ao ouvir esse texto, a liturgia pensa
A presente festa é uma grande felicitação de em Maria. Maria assunta ao céu sintetiza em
Maria por parte dos fiéis, que nela veem, a um só si, por assim dizer, todas as qualidades desse
tempo, a glória da Igreja e a prefiguração da pró- povo prenhe de Deus, aguardando a revelação
pria glorificação. A festa tem uma dimensão de de sua glória.
solidariedade dos fiéis com aquela que é a primei-
ra a crer em Cristo e por isso, também, é a mãe de
2. II leitura: 1Cor 15,20-27a
todos os fiéis. Daí a facilidade com que se aplica No quadro da glória celestial, a segunda
a Maria o texto do Apocalipse, na primeira leitu- leitura evoca a visão da vitória de Cristo so-
ra, originariamente uma descrição do povo de bre a morte (presente também na liturgia da
Deus, que deu à luz o Salvador e depois se refu- festa de Cristo Rei no ano A). O sinal da vitó-
giou no deserto. Na segunda leitura, a assunção ria definitiva de Cristo é a ressurreição, seu
de Maria ao céu é considerada antecipação da triunfo sobre a morte. Essa vitória se realizou
ressurreição dos fiéis, que serão ressuscitados em na sua própria morte e se realizará também
Cristo. Observe-se, portanto, que a glória de Ma- na morte dos que o seguem. Maria já está as-
ria não a separa de nós, mas a torna unida a nós sociada a Jesus nessa vitória definitiva; nela, a
mais intimamente. humanidade redimida reconhece sua meta.
Merece consideração, sobretudo, o texto
do evangelho, o Magnificat, que hoje ganha 3. Evangelho: Lc 1,39-56
nova atualidade, por traduzir a pedagogia di- O evangelho de hoje é o Magnificat. O
vina: Deus recorre aos humildes para realizar quadro narrativo é significativo: Maria vai
suas grandes obras. Esse pensamento pode ser ajudar sua parenta Isabel, grávida, no sexto
o fio condutor da celebração. Na homilia, con- mês. Ao dar as boas-vindas à prima, Isabel
vém que se repita e se faça entrar no ouvido e interpreta a admiração dos fiéis diante daqui-
no coração esse pensamento ou uma frase do lo que Deus operou em Maria. Esta responde,
Magnificat que o exprima. revelando sua percepção do mistério do agir
divino: um agir de pura graça, que não se ba-
II. Comentário dos textos seia em poder humano; pelo contrário, en-
vergonha esse poder, ao elevar e engrandecer
bíblicos o pequeno e humilhado, porém dedicado ao
serviço de sua vontade amorosa. O amor de
nº- 310
1. I leitura: Ap 11,19a;
Deus se realiza por meio não da força, mas da
12,1.3-6a.10ab
humilde dedicação e doação. E nisso mani-
•
ano 57
ce o Messias: à Igreja do Novo Testamento, nas- por traduzir a pedagogia divina: Deus recorre
Vida Pastoral
cida dos que seguem o Messias. Aparece no céu aos humildes para realizar suas grandes obras.
59
Roteiros homiléticos
Ele escolhe o lado de quem, aos olhos do “exaltada” por Deus para ser mãe do Salvador e
mundo, é insignificante. Podemos ler no Mag- participar de sua glória, pois o amor verdadeiro
nificat a expressão da consciência de pessoas une para sempre. Sua grandeza não vem do va-
“humildes” no sentido bíblico: rebaixadas, hu- lor que a sociedade lhe confere, mas da maravi-
milhadas, oprimidas. A “humildade” não é lha que Deus nela opera. Aconteceu um diálogo
vista como virtude aplaudida, mas como bai- de amor entre Deus e a moça de Nazaré: ao convi-
xo estado social mesmo, como a “humilhação” te de Deus, responde o “sim” de Maria; e à doa-
de Maria, que nem tinha o status de casada, e ção dela na maternidade e no seguimento de
de toda a comunidade de humildes, o “peque- Jesus, responde o grande “sim” de Deus, com a
no rebanho” tão característico do Evangelho glorificação de sua serva. Em Maria, Deus tem
de Lucas (cf. 12,32, texto peculiar de Lc). Na espaço para operar maravilhas. Em compensa-
maravilha acontecida a Maria, a comunidade ção, os que estão cheios de si mesmos não o
dos humildes vê claramente que Deus não deixam agir e, por isso, são despedidos de mãos
obra por meio dos poderosos. É a antecipação vazias, pelo menos no que diz respeito às coisas
da realidade escatológica, na qual será grande de Deus. O filho de Maria coloca na sombra os
quem confiou em Deus e se tornou seu servo poderosos deste mundo, pois, enquanto estes
(sua serva), não quem quis ser grande pelas oprimem, ele salva de verdade.
próprias forças, pisando os outros. Assim, rea- Essa maravilha só é possível porque Maria
liza-se tudo o que Deus deixou entrever desde não está cheia de si mesma, como os que con-
o tempo dos patriarcas (as promessas). fiam no seu dinheiro e status, mas “cheia de
A glorificação de Maria no céu é a realiza- graça”. Ela é serva, está a serviço – também de
ção dessa perspectiva final e definitiva. Em sua prima, grávida como ela – e, por isso, sabe
Maria são coroadas a fé e a disponibilidade de colaborar com as maravilhas de Deus. Sabe
quem se torna servo da justiça e da bondade doar-se, entregar-se àquilo que é maior que
de Deus; impotente aos olhos do mundo, mas sua própria pessoa. A grandeza do pobre é que
grande na obra que Deus realiza. É a Igreja dos ele se dispõe para ser servo de Deus, superando
pobres de Deus que hoje é coroada. todas as servidões humanas. Ora, para que
A celebração litúrgica deverá, portanto, seu serviço seja grandeza, o fiel tem de saber
suscitar nos fiéis dois sentimentos dificil- decidir a quem serve: a Deus ou aos que se
mente conjugáveis: o triunfo e a humildade. arrogam injustamente o poder sobre seus se-
O único meio para unir esses dois momentos melhantes. Consciente de sua opção, quem é
é pôr tudo nas mãos de Deus, ou seja, esva- pobre segundo o Espírito de Deus realizará
ziar-se de toda glória pessoal, na fé em que coisas que os ricos e os poderosos, presos na
Deus já começou a realizar a plenitude das sua autossuficiência, não realizam: a radical
promessas. doação aos outros, a simplicidade, a generosi-
Em Maria vislumbramos a combinação dade sem cálculo, a solidariedade, a criação
ideal da glória e da humildade: ela deixou de um homem novo para um mundo novo,
Deus ser grande na sua vida. um mundo de Deus.
A vida de Maria, a “serva”, assemelha-se à
nº- 310
A Mãe gloriosa e a grandeza dos pobres: o fato, o amor torna as pessoas semelhantes entre
Magnificat de Maria é o resumo da obra de si. Também na glória. Em Maria realiza-se, des-
•
Deus com ela e em torno dela. Humilde serva de o fim de sua vida na terra, o que Paulo des-
Vida Pastoral
– faltava-lhe o status de mulher casada –, foi creve na segunda leitura: a entrada dos que per-
60
tencem a Cristo na vida gloriosa concedida pelo
Pai, uma vez que o Filho venceu a morte.
Congratulando Maria, congratulamo-nos Gestão eficaz
a nós mesmos, a Igreja. Pois, mãe de Cristo e Sugestões para a renovação paroquial
mãe da fé, Maria é também mãe da Igreja. Na José Carlos Pereira
“mulher vestida de sol” (primeira leitura) con-
fundem-se os traços de Maria com os da Igre-
ja. Sua glorificação são as primícias da glória
de seus filhos na fé.
No momento histórico que vivemos, a con-
templação da “serva gloriosa” pode trazer uma
luz preciosa. Quem seria a “humilde serva” no
século XXI, século da publicidade e do sensacio-
nalismo? Sua história é serviço humilde e glória
escondida em Deus. Não se assemelha a isso a
Igreja dos pobres? A exaltação de Maria é sinal
de esperança para os pobres. Sua história tam-
174 págs.
bém joga luz sobre o papel da mulher, especial-
mente da mulher pobre, “duplamente oprimi-
da”. Maria é “a mãe da libertação”. Uma gestão eficaz se faz com
alguns procedimentos essenciais
para todo gestor, de qualquer
22º Domingo do Tempo Comum setor, como planejamento,
trabalho em equipe, visão
28 de agosto de conjunto da realidade,
Modéstia
perspectivas e metas. Porém,
quando se trata de gestão de
paróquia, é preciso ter algumas
paulus.com.br
ano 57
61
frase da primeira leitura: “O poder de Deus cam reféns de seus anfitriões. Já o mostrou a
é exaltado pelos humildes”; ou, se o público Marta (cf. Lc 10,38-42, 16º domingo); mostra-
for de classe média calculista, a frase do -o também no evangelho de hoje. Olhemos o
evangelho: “Convida os pobres, porque não contexto da perícope. O anfitrião é um chefe
têm como te retribuir”. dos fariseus. A casa está cheia de seus correli-
gionários, não muito bem-intencionados
(14,2). Para começar, Jesus aborda o litigioso
II. Comentários de textos assunto do repouso sabático, defendendo uma
bíblicos opinião bastante liberal (14,3-6).
Depois (em 14,7, onde começa o texto de
1. I leitura: Eclo 3,19-21.30-31 hoje) critica, com uma parábola, a atitude dos
A verdadeira modéstia de vida, tema da fariseus, que prezam ser publicamente honra-
dos por sua virtude, também nos banquetes,
primeira leitura, não é a falsa modéstia de
onde gostam de ocupar os primeiros lugares
quem se gaba de ser humilde ou “se faz de
(cf. Lc 11,43). Alguém que ocupa logo o pri-
burro para comer milho”. Consiste na cons-
meiro lugar num banquete já não pode ser con-
ciência de que só Deus é poderoso e bom. O
vidado pelo anfitrião para subir a um lugar me-
ser humano deve sempre recorrer a ele. Daí a
lhor; só pode ser rebaixado se aparecer alguma
atitude do sábio: segurança ante os podero-
pessoa mais importante. É melhor ocupar o
sos, pois sua confiança está em Deus, e mag-
último lugar, para poder receber o convite de
nanimidade para com os fracos, pois pode
subir mais. Alguém pode achar que isso é es-
contar com Deus.
perteza. Mas o que Jesus quer dizer é que, no
2. Evangelho: Lc 14,1.7-14 Reino de Deus, a gente deve adotar uma posi-
ção de receptividade, não de autossuficiência.
O evangelho nos ensina a modéstia e a Segue-se outra lição, também relacionada
gratuidade na perspectiva do Reino de Deus. ao banquete, porém dirigida ao anfitrião (um
Lucas gosta de apresentar Jesus como viajan- fariseu: cf. 14,1). Não se devem convidar os
te e hóspede: a comunhão de mesa é o lugar que podem convidar de volta, mas os que não
da amizade, e Jesus quer ser amigo. Mas ami- têm condições para isso. Só assim nos mostra-
go de verdade não esconde a verdade. Na remos verdadeiros filhos do Pai, que nos deu
casa de um fariseu, de modo surpreendente tudo de graça. É claro que tal gratuidade pres-
e, segundo os nossos critérios, um tanto in- supõe a atitude recomendada na parábola ante-
delicado, Jesus ensina algumas regras: 1) aos rior: o saber receber.
convidados, ensina a não procurar o primei- Portanto, a mensagem do evangelho de hoje
ro lugar, para que o dono da casa possa apon- é: saber receber de graça (humildade) e saber
tar o lugar mais importante; 2) ao anfitrião, dar de graça (gratuidade). Isso ficou ilustrado na
ensina a não convidar as pessoas de bem, primeira leitura, que sublinha a necessidade da
mas os que não podem retribuir, pois só as- humildade, oposta à autossuficiência.
sim demonstramos gratuidade e magnanimi-
nº- 310
calculistas. O sentido profundo dessa lição se Cristo. A manifestação de Deus no Antigo Testa-
revelará na Última Ceia (22,24-27), em que o mento (no Sinai) era inacessível (12,18-21). No
•
anfitrião é o Servo, que dá até a própria vida. Novo Testamento, verifica-se o contrário (12,22-
Vida Pastoral
Jesus é um desses hóspedes que não fi- 24): agora vigora uma ordem melhor (9,10); a
62
manifestação de Deus (em Cristo) é agora aces-
sível, menos “terrível”, porém mais comprome- Expediente paroquial
tedora. Não é por ser mais humana que ela seria Guia prático para a formação
de secretárias(os) paroquiais
menos divina. Pelo contrário! No homem Jesus,
Deus se torna presente. Essa nova e escatológica José Carlos Pereira
presença de Deus em Cristo é chamada, no tex-
to, “monte Sião”, “cidade do Deus vivo”, “Jeru-
salém celeste”. E quem quiser ler alguns versí-
culos além da perícope de hoje encontrará a
conclusão prática: não recusar a palavra do
Cristo (12,25).
A segunda leitura não demonstra muito
parentesco temático com a primeira e o evan-
gelho. Contudo, complementa o tema da gra-
tuidade, mostrando como Deus se tornou,
gratuitamente, acessível a nós, em Jesus Cris-
to. O tom da leitura é de gratidão por esse
104 págs.
mistério.
(Desejando uma leitura das cartas que se
aproxime da primeira leitura e do evangelho, A secretaria paroquial é o
pode-se olhar para 1Pd 5,5b-7.10-11, sobre “coração” de uma paróquia. Por
humildade e grandeza.) isso, ter cuidado com esse espaço
e dar formação às pessoas que
nele atuam é fundamental para
III. Pistas para reflexão a vida missionária da paróquia.
Elaboramos este subsídio
Simplicidade e gratuidade: graça, gratidão exclusivamente para a formação
e gratuidade são os três momentos do mistério de secretários e secretárias
da benevolência que nos une com Deus. Rece- paroquiais, dando ênfase ao tema
bemos sua “graça”, sua amizade, seu benque- do atendimento, para que ele se
transforme em acolhimento. Atentos
rer. Por isso nos mostramos agradecidos, con-
à importância do bom atendimento
servando seu dom em íntima alegria, que abre pastoral, padres e secretárias(os)
ilustrativas.
meramente ilustrativas.
nosso coração. E desse coração aberto mana poderão contribuir para uma
generosa gratuidade, consciente de que “há paróquia em estado permanente
Imagens meramente
63
midade. Quem é humilde não tem medo de os que não podem retribuir, porque Deus
ser generoso, pois é capaz de receber. Gostará mesmo será, então, nossa recompensa. Esta-
de repartir, porque sabe receber; e de receber, remos bem com ele por termos feito o bem
para poder repartir. Repartirá, porém, não aos seus filhos mais necessitados.
para chamar a atenção para si, como o orgu- A gratuidade não é a indiferença do ho-
lhoso que distribui ricos presentes, e sim mem frio, que faz as coisas de graça porque
porque, agradecido, gosta de deixar seus ir- não se importa com nada, pois isso é orgu-
mãos participar dos dons que recebeu. lho! Devemos ser gratuitos simplesmente
Podemos também focalizar o tema de hoje porque os nossos “convidados” são pobres e
com uma lente sociológica. Torna-se relevan- sua indigência toca o nosso coração fraterno.
te, então, a exortação ao convite gratuito. Jesus O que lhes damos tem importância, tanto
manda convidar pessoas bem diferentes das para eles como para nós. Tem valor. Recebe-
que geralmente são convidadas: em vez de mo-lo de Deus, com muito prazer. E reparti-
amigos, irmãos, parentes e vizinhos ricos, mo-lo, porque o valorizamos. Dar o que não
convidem-se pobres, estropiados, coxos e ce- tem valor não é partilha: é liquidação. Mas
gos – ou seja, em vez do círculo costumeiro, os quando damos de graça aquilo que, com gra-
marginalizados. E na parábola seguinte no tidão, recebemos como dom de Deus, esta-
Evangelho de Lucas, a parábola do grande mos repartindo o seu amor.
banquete, o “senhor” convida exatamente es- Tal gratuidade é muito importante na trans-
sas quatro categorias mencionadas (Lc 14,21). formação de que a sociedade está necessitando.
O amor gratuito é imitação do amor de Não apenas “fazer o bem sem olhar para quem”
Deus. A autenticidade do amor gratuito se individualmente, mas também social e coletiva-
mede pela pouca importância dos benefi- mente: contribuir para as necessidades da co-
ciados: crianças, inimigos, marginalizados, munidade, sem desejar destaque ou reconheci-
enfermos (cf. também Mt 25,31-46). Jesus mento especial; trabalhar e lutar por estruturas
não nos proíbe de gostar de parentes e vizi- mais justas, independentemente do proveito
nhos; mas imitar realmente o amor gratuito pessoal que isso nos vai trazer; praticar a justiça
(a hésed de Deus), nós só o fazemos na “op- e o humanitarismo anônimos; ocupar-nos com
ção preferencial” pelos que são menos im- os insignificantes e inúteis.
portantes. Concluindo, a lição de hoje tem dois as-
A parábola daquele que ocupa o último pectos: para nós mesmos, procurar a modés-
lugar para ser convidado a subir mais faz tia, ser simplesmente o que somos, para que a
pensar em quem “se faz de burro para comer graça de Deus nos possa inundar e não encon-
milho”. Contudo, Jesus pensa em algo mais. tre obstáculo em nosso orgulho. E para os ou-
É por isso que ele acrescenta outra parábola, tros, sermos anfitriões generosos, que não es-
para nos ensinar a fazer as coisas não por in- peram compensação e, sem considerações de
teresse egoísta, mas guiados pela gratuidade. retorno em dinheiro ou fama, oferecem gene-
Seremos felizes – diz Jesus – se convidarmos rosamente suas dádivas a quem precisa.
nº- 310
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ano 57
•
Vida Pastoral
64
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sob uma perspectiva teológica, dando
Scivias é a obra mais importante de Hil- O livro aprofunda o tema da vida contem- voz à espiritualidade cristã e penetrando
degarda de Bingen. O livro, com relatos plativa de Thomas Merton. Merton reinau- nas discussões sobre Deus, a Igreja, as
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