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A LITERATURA EO DIREITO A MORTE Podemos certamente escrever sem nos indagar por que escreve~ ‘mos. Um escritor que olha sua pena tragar letras teria ¢direito de ergué-la para Ihe dizer: Pare! O que vocé sabe sobre si mesma? Em vista de que esta avangando? Por que néio vé que sua tinta nao deixa mareas, que voce vai livremente para afrente, mas no vazio, que, sendo estdencontrando obstdculo, é porque nuncadeixouseu ponto de partida? E, no entanto, vocé escreve: eszreve sem descanso, descobrindo-me o que eu Ihe dito e me revelando o que sei; 08 outros, ao ler, enriquecem-na do que the tomer e Ihe do gue vocé thes ensina, Agora, o que voce niio fez estd feito; 0 que néo escreveu esid escrito; vocé estd condenada ao indelével. Admitamos que a literatura comece no momento em que a Iiteraturase torna uma questéo. Essa questo ndo se cor finde com as diwvidas ou os esertipulos de escritor. Se acontece de este se interrogar ao escrever, isso the diz respeito; que ele esieja absor- vido pelo que escreve ¢ indiferente @ possibilidade de escrevé-lo, ‘mesmo que ndio pense em nada, 60 seu direito, sua felicidade. Mas resta o seguinte: wna vez a pagina escrita, estd presente nessa pagina a pergunta que, talvez sem que ele o saiba, 0 escritor niio ccessou de se fazer enquanto escrevia: e agora, no meio da obra, esperando aabordagem de wn leitor ~de qualquer leitor, profi do ou vao — repousa silenciosamente a mesma indagacéo, enderecada & linguagem, por trés do homem que escreve lé, pela Tinguagem que se tornou literatura, Podemos condenar como uma presuncéo esse cuidado que a literatura tem consigo mesma. Esse cuidado fala invilmente & literatura, do seunada, da sua poucaseriedade, de sua ma-fé; esse éjustamenteo abuso que the censuram. Elase décomo inportante, tomando-se por objeto de diivida. Confirma-se, depreciando-se. 292 MAURICE BLANCHOT Busca-se: émais doque deve. Pois ela talversejadessas coisas que ‘merecem ser encontradas, mas néio procuradas. A literaturando tem talvez odireito de se considerar ilegitima. Mas a questo que ela encerra niio concerne, propriamente dito, aseuvalor ou seu direito. Se é tao dificil descobrir o sentido dessa questo, é porque esta tende a se transformar em um proceso da arte, de seus poderes e de seus fins. A literatura se edifica sobre suas ruinas: esse paradoxo & para nés unt lugar-comum. Mas ainda deveriamos saber se esse questionamento sobre a arte, que representa a parte mais ilustre da arte nesses trinta anos, no ‘supe o deslizamento, o deslocamento de uma forca trabalhando no segredo das obras e recusando-se a vir & luz do dia, trabalho originariamente muito distinto de qualquer depreciagéo da ativi- dade ou da Coisa literéria. Observemos que a literatura, como negacto dela prépria, ‘munca significou a simples demincia da arte ou do artisia como mistificagdo engedo. Que a literatura seja ilegitima, que exista nela um findo de impostura, sim, certamente. Mas alguns desco- briram mais: a literatura ndo é apenas ilegitia, mas também mula, e essa mulidade constitut talvez wna forca extraordindria, maravithosa, a condigdo de ser isolada em estado puro. Fazercom quea literaturase rorne arevelagéiodessedentro vazio, queinteira se abra d sua parte de nada, que realize sua propria irrealidade, eis umadas tarefas desenvolvida pelo surrealismo, de tal maneira, que é exato reconhecer nele um poderoso movimento negativo; mas também é correto atribuir-the a maior ambigao criadora, ‘pois, assim que a literatura coincide por um instante com nada, imediatamente ela é tudo, 0 tudo comeca a existir: grande prodigio. ‘Nao se trata de maltratar a Iiteratura, mas de procurar compreendé-lae ver por que sé a compreendemos depreciando-a. Constatamos com surpresa que a pergunta: “O que é.a literatu- ra?” s6 recebeu respostas insignificantes. Mas existe algo mais estranho: na forma dessa pergunta, algo parece retirar-the toda a seriedade. Perguntar: O que é a poesia?, O que é a arte?, ow ‘mesmo: O que é 0 romance?, podemos fazé-lo e foi felio. Mas a literatura, que é poemae romance, parece ser elemento do vazio, presente ent odas essas coisas graves, e sobre que areflexdo, com sua prépria gravidade, no se pode voltar sem perder sua seriede- A PARTE DO FoGo. 293 de, Se areflextio imponente se aproxima da literatura, estase torna uma forca céustica, capaz de destruir 0 que nela e na reflexdo se poderia impor. Se a reflexdo se afasta, entéo a literatura volta a ser, comefeito, algo importante, essencial, mais importante do que a filosofta, a religiao ea vida do mundo que ela abarca Mas, se arreflexdo, surpresa com esse dominio, retorna a esse pedler e Ihe pergunta o que ela é, penetrada também por um elemento corro- sivo, volditil, ela sé pode desprezar uma Coisa tao va, téo vaga e também tao impura, e nesse desprezo e nessa vaidade se consumir por sua vez, como bem o mostrou a histéria de Monsiear Teste. Poderiamos nos enganar mastrando os poderosos movimen- 108 negativos contemporaneos responsdveis por esta forca volatilizante e voldtil no que parece ter-se tornado aliteratura. Ha cercade cento.e cingitenta anos, um homem (chamado Hegel) que tinha a mais alta idéia da arte que se possa ter ~ pois via como a arte pode se tornar religidi e a religidio se tornar arie—descreveu todos 0s movimentos pelos quais aquele que escothe ser umliterato se condenaapertencer ao “ reino animal do espirito”. Desde o sew primeiro paso, diz mais ou menos Hegel,! 0 individuo que quer escrever € impedido por uma contradicdo: para escrever, precisa de talento para escrever. Mas nele mesmo os dons ndo stio nada, Enquanto ndo se puser d mesa e escrever uma obra, 0 escritor nao éescritor endo sabe se tem capacidade para vir a ser um. Sé terdé talento apés ter escrito, mas dele necessita para escrever Essa dificuldade esclarece, desde 0 comeco, a anomalia que éaesséncia da atividade literdria e que o escritor deve endo deve superar. Oescritornéio éum sonhador idealista, n@o.se contempla na intimidade dasua bela alma, nao se enterra na certeza interior de seus talentos. Seus talentos, ele os poe na obra, isto é, necesita da obra que produz para se conscientizar deles ¢ de si mesmo. O escritor 56 se encontra, s6 se realiza em sua obra; antes de sua obra, néo apenas ignora o que é, mas também néio é nada, Ele sb existe a partir da obra; mas, entao, como pode a obra existir? “O * Hegel, nese desenvolvimento, considera a obra humana em geral.E claro que as ‘observagdes seguintes estlo lange do texto de 4 fenomanologia © ro buscar esclarcce-o, Podemos lelo na tadueao de 4 fencimenologia publica por Jean Hyppoiteesegu-locm seuimportantelivro: entseetsructre dele Phénamsnoiagie del esprit de Hegel 294 MAURICE BLANCHOT individuo", diz Hegel, “ndo pode saber 0 que é enquanto néo for levado, pela operacéo, até a realidade efetiva; parece entdo nao poder determiinar a meta de sua operagdo antes de ter operado; e todavia, ele deve, sendo consciéncia, ter antes, diantede si, aagdo como integralmente sua, isto &, como meta.” Ora, é 0 mesmo para cada nova obra, pois tudo recomega a partir do nada. E 0 mesmo ainda quando ele realiza a obra parte por parte: se ndotiverdiante desi sua obra como um projeto jé de todo formado, como pode ele aconsiderar como meta consciente de seusatos conscientes? Mas, se a obra ja estd inteiramente presente em seu espirito e se exsa presenca éo essencial da obra (as palavras aqui sendo considera- das acessérias), por que ele a reatizaria mais do que isso? Ow entdo, como projeto interior, ela é tudo 0 que serd, e 0 escritor, desde esse instante, sabe dela tudo 0 que dela pode aprender e a deixard, portanto, repousar em seu creptisculo, sem traduzi-la em palavras, sem escrevé-la; mas, entéo, ele ndo escreverd, néto sera escritor. Ou entdo, tomando consciéncia de que a obra no pode ser projetada, mas apenas realizada, que ela sb tem valor, de verdade e de realidade, pelas palavras que a desenvolvem no lempo ¢ a inscrevem no espaco, ele comegard a escrever, mas a partir do nada e em vista do nada ~ ¢, de acordo com uma expressiio de Hegel, como wm nada trabathando no nada. No fundo, esse problema nunca poderia ser superado, se 0 shomem que esereve esperasse de sua solitedo o direito de comegar aescrever. “Ejustamente por isso”, observa Hegel, “que este deve comegar imediatamente e passar imediatamente ao ato, néio in portam as circunstdncias, e sem pensar mais no inicio, no meio e xno fim.” Ele rompe assim o circulo, pois as eircunstancias nas quais ele comeca aescrever se tornam para ele amesma coisa que seu talento, ¢ 0 interesse que ele ali encontra, 0 movimento que 0 leva adiante, engajan-no no reconhecimento delas como suas, no ver nelas sua propria meta. Muitas vezes Valéry nos lembrou que suas melhores obras tinkam naseido de uma encomenda fortuita, endo de umaexigéncia pessoal. Mas oque nissoele viadenotdvel? Se comecasse a escrever Eupalinos por ele mesmo, té-lo-ia feito por que razbes? Por ter tido em suas mdos wm fragmento de concha? Ou porque, abrindo um diciondrio, certa manhd, leu na Grande Enciclopédiao nome de Eupalinas? Ouporque, desejando A PARTE DO Foca 295 tentar a forma do didlogo, por acaso dispés de wn popel que se prestava a essa forma? Podlemos supor, no ponto de partida da maior das obras, a circunsténcia mais fitil: essa futilidade nao compromete nada: 0 movimento pelo qual 0 autor cria uma circunstincia decisiva basta para incorporé-lo ao sex génio e a sua obra. Nesse sentido, a publicacdo Arquiteturas, que the cencomendou Eupalinos, é realmente a forma pela qual, original- mente, Valéry teve talento para escrevé-lo: essa encomenda foi o inicio desse talento, foi esse préprio talento, mas é preciso acres- centar também que aencomenda sé tomou forma real, 83 se tornou um projeto verdadeiro, pelaexisténcia, pelo talentode Valéry, por suas conversas no mundo ¢ pelo interesse que ele jé demonstrara por tal assunto. Qualquer obra é obra das circunstincias: isto quer dizer simplesmente que essa obra leve inicio, que comegou 1no tempo e que esse momento clo tempo faz parte da otra, ja que, sem ele, ela sé teria sido um problema insuperdivel, nada mais do que a impossibilidade de escrever. Suponhamos a obra escrita: com ela nasce o eseritor. Antes, nao hawia ninguém para escreve-la; a partir do livro, existe um autor que se confunde com sew livro. Quando Kafka escreve ao caso afrase: “Ele othava pelajanela”, esta, dizele, emtal estado de inspiracato, que essa frase jd esta perfeita. Eque ele seu autor —ou, mais exatamente, gracas a ela ele é autor: é dela que tira sua existéncia, ele afer e ela o faz, ela éele mesmo, ecle é inteiramente oque elaé. Dai suaalegria, alegria sem mistura, sem defeito. Nao importa 0 que ele escreva, “a frase jé estd perfeita’. Essa é a certeza profunda e esiranha da qual a arte fez a'sua meta. O que esté escrito nao é nem ben: nem mal escrito, nem importante nem vaio, nem memordvel nem digno de esquecimento: & 0 movimento perfeito pelo qual o que dentro néo era nada veio para. realidade ‘monumentalde foracomoalgonecessariamente verdadeiro, como uma traducdo necessariamente fiel, jd que aquele que ela traduz ‘86 existe por elae nela. Podemos dizer que essa certezit € como 0 paraiso interior do escritor e que a escrita automética foi apenas um meio para tornar real essa idade de ouro, 0 que Hegel chama @ pura ventura: passar da notte da possibilidade wo dia da presenca, ou, ainda, acerteza de que o que surge na lucéa mesma coisa gue dormia na noite. Mas qual & o resultado disso? Para 0 296 MAURICE BLANCHOT escritor, que inteiramente se encolhe ¢ se fecha na frase “Ele olhava pela janela”, aparentemente nenhuma justificativa pode ser exigida sobre essa frase, jé que para ele nada existe além dela. ‘Mas ela, pelo menos, existe, e, ¢ existe realmente, aponio de fazer daquele que a escreveu um escritor, é porque ndo é apenas a sua frase, mas a frase de outros homens capazes de 1é-la, uma frase universal. E entéio que comegauma experiéncia desconcertante. O autor vé os outros se interessarem por sua obra, mas esse interesse é diferente daquele que havia eitodelaa pura traducao dele mesmo, e esse outro interesse muda aobra, transforma-aem algo diferente ‘em que ele néio reconhece a perfeigio inicial. Para ele a obra desaparecen, ela se torna a obra dos outros, a obra em que eles esti e ele nao estd, um livro que toma seu valor de outros livros, que é original se ndio se parece com os outros, que éconipreendido porque é 0 reflexo dos outros. Ora, essa nova etapa néo deve ser negligenciada pelo escritor. Como vimos, ele $6 existe em sua obra, mas a obra sé existe quando se torna essa realidade pitblica, estrangeira, feita e desfeita pelo contrachoque das realidades. Assim, ele esté na obra, mas a prépria obra desaparece. Esse ‘momento da experiéncia é particularmente critico. Para superd- Jo, todas as espécies de interpretacdes entram em jogo. Por ‘exemplo, o escritor gostaria de proteger a perfeicao da Coisa escrita mantendo-a 0 mais afastada possivel da vida exterior. A obra é 0 que ele fez, ndo é esse livro comprado, lido, triturado, exaltado ou esmagado pela cotagao do mundo. Mas, entio, onde comega, onde termina a obra? Em que momento exisie? Por que torné-lapiiblica? Por qué, se é preciso preservar nelaoesplendor do puro eu, fazé-la passar ao exterior, realizd-la, em palavras que siio as de todo 0 mundo? Por que néio se retirar numa intimidade _fechada e secreta, sem produzir nada mais do que um objeto vazio e um eco agonizante? Outra solucdo: 0 escritor aceita suprimir- sse ele préprio: na obra somente conta aquele que a lé. O leitor faz aobra; lendo-a, ele a cria; é 0 seu verdadeiro autor, éaconscién- cia ea substdncia viva da coisa escrita; assim, o autor s6 tem uma ‘meta, escrever para leitor e se confundir com ele. Tentativasem esperanca. Pois 0 leitor ndo quer uma obra escrita por ele; quer justamente uma obra estrangeiraem que descubraalgo desconhe- A PARTE DO FOGO 297 cide, uma realidade diferente, un espirito separado que possa transformé-lo ¢ que ele possa transformar em si. O autor que escreve especialmente para um piiblico, na realidade, néo escre- ve: é esse piiblico que escreve, e, por essa razéo, esse piiblico néio pode mais ser leitor; a leitura o é apenas em aparéncia, no fundo € nula, Dai a insignificdneia das obras feitas para serem lidas ~ ninguém as 18. Dai o perigo de escrever para os outres, para despertar a palavrados outros edescobri-los aeles mesmos: é que 08 outros ndo querem ouvir suas préprias vozes, mas sina voz de tum outro, uma vor real, profiunda, que incomoda como a verdade. Oeescritor nao pode se retirar nele mesmo, ou deve renunciar aescrever. Nao pode, escrevendo, sacrificar a pura noite de suas préprias possibilidades, pois a obra sé ¢ viva se essa roile ~e nenhuma outra—tornar-se dia, se 0 que ele tem de mais singular ede maisafastado daexisténciajdreveladase revelanaexisténcia comumn. Na realidade, 0 escritor pode tentar se justificar dando- se por tarefa escrever: a simples operagiio de escrever, tornada consciente a ela propria, independentemente de seus resultados. Como vimos, esse & 0 meio de salvagiio de Valéry. Admitamo-lo. Admitamos queo escritorse interessa pela arte como por tena pura técnica, pela técnica unicamente como pesquisa de meios pelos quais escrito 0 que até entiio ndio estava escrito. Mas, se quer ser verdadeira, a experiéncia nao pode separar a operagiio dos seus resultados, eos resultados nuncasdioestaveis nemdefinitivos, mas infnitamenie variados e engrenados sobre um futuro impalpavel, Oeescritor que pretende se interessar apenas pela maneira como a obra é feita v8 seu imeresse afundar no mundo, perder-se na histéria inteira; pois a obrase faz também fora dele, e todo o rigor quedepositou na consciénciade suas operagbes meditadas, de sua retérica refletida, € logo absorvido no jogo de uma contingéncia viva que ele ndto & capaz de cominar ou mesmo perceber. Todavia, suaexperiénciando é nula: escrevendo, ele préprio se experimen- tou como um nada no trabatho e, depois de ter escrito, faz a experiéncia de sua obra como algo que desaparece. A obra desaparece, mas 0 fato de desaparecer-se mantém, aparece como essencial, como 0 movimento que permite & obra realizar-se entrando no curso da histéria, realizar-se desaparecende. Nessa experiéncia, areal meta do escritor niio é mais a obra efémera, 298 MAURICE BLANCHOT mas, além da obra, a verdade dessa obra, em que parecem se unir 0 individuo que escreve, poder de negacdo criador, ea obra em movimento, com a qual se afirma esse poder de negacdo e supe- raga. Essa nova nogao que Hegel chama de a prépriaCoisa tem um papel capital no empreendimento literdrio. Néo importa que ‘assuma as significagées mais variadas: é a arte que esté acima da obra, o ideal que esta busca representar, 0 Mundo tal como ali se esboca, os valores em jogo no esforgo da criacdo, a autenticidade desse esforco; é tudo 0 que, acimada obra, sempre em dissoluedo nas coisas, mantém o modelo, a esséncia e a verdade espiritual dessa obratal como aliberdade do escritor quis mostrar, podendo reconhecé-la como sua. A meta nao € 0 que o escritor faz, mas a verdade do que faz. Nisso, ele merece ser chamado consciéncia jonesta, desinteressada: 0 homem honest. Mas atengao: na literatura, assim que a probidade entra em jogo, a impostura jé esté ali. A méa-fé é agui verdade, e, quanto maior é a pretensdo a moral e aseriedade, mais certo ganham a mistificacdo e o engodo. Certamente, a literatura é 0 mundo dos valores, jé que acima da mediocridade das obras feitas semprese ergue, como sua verdade, tudoo que faltaaessas obras. Mas o que resultadisso? Um engano eterno, wna extraordindria brincadeira de esconde-esconde a que, como pretexto deo que ele tem em vista iio é a obra efémera, ‘mas o espirito dessa obra e de qualquer obra, ndo importa o que ‘faca, nao importa o que néio possa fazer, o escritor se resigna e de ‘sua honestaconsciencia tiraensinamento e gloria. Escutemos essa honesta consciéncia; nds aconhecenns, existe em cada umde nés. O trabalho foi um fracasso, ela niio se incomoda: ele estd plena~ mente realizado, pensa ela, pois 0 fracasso é sua esséncia, seu desaparecimento faz com que ele se realize, ¢ ela se alegra, 0 insucesso a satisjaz. Mas, se o livro nem chega a nascer, perma- nece um puro nada? Pois bem, ainda é melhor: 0 siléncio, o nada, isso é a esséncia da literatura, “a prépria Coisa”. E verdade, 0 escritor dé mais importdncia ao sentido que sua obra tem somente paraele. Portanto, nao importa que seja boa ou ruim, célebre ow esquecida, Se as circunstancias a negligenciam, ele se felicita, pois $6 a escreveu para negar as circumstdncias. Mas, que de um livro naseido poracaso, produto de wm momento de abandono e de A PARTE DO FOoO 299 fadiga, sem valor nem significagdo, os acontecimentos fagam subitamente uma obra-prima, que autor, no fundo do seu espirito, nao se atribuird essa gloria, nao verd nessa gloria 0 seu mérito, nesse dom da sorte sua prépria obra, o trabalho do sewespirito em acordo providencial com seu tempo? O escritor é seu primeiro enganado, e se engana ro exato ‘momento que engana os outros. Ougamo-to ainda: afirma agora que sua fungdo é escrever para os outros, que, escrevende, $6 tem ent vista 0 interesse do leitor. Afirma-o acredita. Mas néio é nada disso. Pois, se néo estivesse primeiro atento ao que faz, se néio se interessasse pela literatura como sua prépria operagio, nao ‘poderia nem escrever; ndo seria ele a escrever, mas ninguém. Por isso, apesar de tomar como garantia a seriedade de um ideal, apesar de se atribuir valores estaveis, essa seriedade néo é sua seriedade, ¢ ele nao pode nunca se ficar definitivamente onde pensa estar. Por exemplo: ele escreve romances, esses romances implicam certas aftrmagdes politicas, de maneira que ele parece tomar o partido dessa causa. Os outros, os que tomamdiretamente 0 partido dessa causa, siio tentados entéio a reconhecer ele um dos seus, averemsua obra aprovade que a causa € realmente sua causa, mas, assim que a reivindicam, assim que querem se meter nessa atividade e se apropriar dela, percebem que 0 escritor ndo toma partido de nada, que a partida € jogada com ele mesmo, que 0 que o interessa na causa é sua prépria operagao ~ ¢ ei-los mistificados. Compreendemos a desconfianca dos homens engajados num partido, tendo tomado partido, em relaciio aos escritores que compartitham suas opinides; pois esses também tomaram opartide da literatura, e aliteratura, por seumoximento, nega, no final das contas, a substdncia do que representa Essa é sua lei e sua verdade. Se renunciar a isso para se ligar definitiva- ‘mente a uma verdade exterior, cessa de ser literatura, ¢ 0 2scritor que ainda pretende sé-lo entra em outro aspecto da mé-fé. Seré entéo preciso renunciar a se interessar por alguma coisa ¢ se voltar para a parede? Mas, se o fizermos, o equivoco também serd grande. Primeivo, voltar-se paraaparedeé também voltar-se para o mundo. E fazer dele o mundo. Quando um escritor mergulha na intimidade pura de uma obra que s6 interessa a ele, pode dar a ipressdo aos outros~aos outros escritores eas homens de outra 300 MAURICE BLANCHOT atividade— que pelo menos ei-1os trangiailos em suiaCoisae em seus trabalhos. Mas nada disso. A obra criada pelo solitario e fechada nna soliddio traz em si wma visdo que interessa a todos, traz um julgamento implicito sobre as outras obras, sobre os problemas da época, faz-se ciimplice do que negligencia, inimigado que abando- na, e sua indiferenga se mistura hipocritamente d paixto de todos. Onotdvel éque naliteraturao enganoe amistificacdo sto nio apenas inevitéveis, mas também formam a honestidade do escri- tor, a parte de esperanca e de verdade que existe nele. Muitas vezes, atualnente, fala-se da doenca das palavras, até nos irrita- mos com aqueles que falam disso, suspeitando que as tornem doentes para delas poder falar. Talvez seja. Infelizmente, essa doenca é também a saiide das palavras. O equivoco as dilacera? Feliz equivoco, sem 0 qual ndo haveria didlogo. O mai-entendido cas desvirtua? Mas esse mal-entendido é a prépria possibilidade do ‘nosso entendimento. Ovazio as penetra? Esse vazio é seu préprio sentido. Naturalmente, um escritor sempre pode se dar como ideal chamar um gato de gato. Mas oque nao pode obter é crer-se entdo no caminko da cura e da sinceridade. Pelo contrario, € mais istificador do que nunca, pois um gato nao é um gato, ¢ aquele que 0 afirma néo tem mais nada em vista do que essa hipécrita violéncia: Rolet é um malandro. ‘A impostura tem varias causas. A primeira acabamos de ver: alliteratura éfeita de momentos diferentes, que se distinguem ese opdem. Esses momentos sGo separados pela honestidade, que é analitica porque quer ver claro. Diante do seu olhar, passam sucessivamente 0 autor, a obra, o leitor: sucessivamente aarte de escrever, acoisaescrita, averdade dessa coisaowaprépria Coisa: ainda sucessivamente, 0 escritor sem nome, pura auséncia dele mesmo, pura ociosidade, em seguida o escritor que é trabalho, movimento de uma realizacéo indiferente ao que realiza, a seguir 0 escritor que é 0 resultado desse trabalho e vale por esse resultado, ¢ nao pelo trabalho, real tanto quanto é real a coisa feita, depois 0 escritor, néto mais afirmado, mas negado por esse resultado e salvendo a obra efémera salvando dela o ideal, a verdade da obra ete. Oescritor nao éapenas um desses momentos, a exelusao dos outros, nem mesmo seu conjunto colocado em sua sucessiio indiferente, mas o movimento que os agrupae os unifica A PARTE DO FOGO 301 O resultado é que, quando a consciéncia honesta julga o escritor imobilizando-o numa dessas formas, quando pretende, per exem- plo, condenar aobra porque é um fracasso, a outra honestidade do escritor protesta em nome dos outros momentos, em none da purecada arte, que véno fracasso seu triunfo assim, cada vez que oescritor é posio em questéio sob um dos seus aspectos, elesé pode se reconhecer sempre outro e, interpelado como o autor de uma belaobra, renegar essa obrae, admirado como inspiracaoe génio, sé ver emsiexercicio-e trabalho e, lido por todos, dizer: quem pode ime ler? Nao escrevi nada, Esse deslize faz do escritor um eterno ausente e um irresponséivel sem consciéncia, mas esse deslize faz também a extensdo da sua presenca, de seus riscos e da sua responsabilidade. Adificuldade reside no fato deo escritorndoserapenas vérios num 36; cada momento dele mesmo nega todos os outros, exige tudo para si e néo suporta conciliagdo nem compronisso. O escritor deve ao mesmo tempo responder a vérias ordens absolu- tas e absolutamente diferentes, e sua moralidade é feita dochoque e da oposieao de regras implacavelmente hostis. Umathe diz: Vocé ndo escreverd, permanecerdnada, manteré o-siléncio, ignoraré as palavras. A outra: 56 conhega as palavras. — Bsereva para nao dizer nada. ~ Escreva para dizer alguma coisa. —Nada de obra, mas a experiéncia de vocé mesmo, conhe- cimento do que ihe é desconhecido, = Uma obra! Uma obra real, reconhecida pelos cutros importando aos outros. ~ Apague o leitor. — Apague-se diante do leitor. ~ Escreva para ser verdadeiro. ~ Escreva pela verdade ~ Enido, seja mentira, pois escrever em vista da verdade & escrever 0 que ainda nao é verdadeiro e talvez néo 0 seja nunca. Nao importa, escreva para agir. — Escreva, voce que tem medo de agin. ~ Deixe en voeé a liberdade falar. ~ Oh! em voc’, néto deixe a liberdade tornar 3 palavra, 302 MAURICE BLANCHOT Que lei seguir? Que voz ouvir? Mas ele deve segui-las a todas. Que confusdio, entéo; a clareza nao é sua lei? Sim, a clareca também. Portanto, ele deve se opor a si mesmo, negar-se afirman- do-se, encontrar na facilidade do dia aprofundidade da noite, nas Irevas que munca comegama luzcerta quendo pode terminar. Deve salvar 0 mundo ¢ ser 0 abismo, justificar a existéncia e dar a palavra ao que néo existe; deve estar no final dos tempos, na plenitude universal, e ser a origem, o nascimento do que acaba dle nascer. Serd ele tudo isso? A literatura é tudo isso nele. Mas nao seria o que ela gostariade ser, oque narealidade no é? Entéo ela doo & nada. Mas néio é nada? A literatura ndo é 0 nada. Os que adesprezam erram quando pensam condené-la considerando-a como nada. “Tudo isso é apenas literatura.” Assim, opiem a agdo, que é a intervened concreta no mundo, e a palavra escrita, que seria a manifestagao passiva na superficie do mundo, e aqueles que estéio do lado da ‘cdo rejeitam a literatura que ndo age, ¢ aqueles que buscam a paixdo se fazem escritores para néo agir. Mas isso é condenar e ‘amar por abuso. Se vemos no trabalho a forca da historia, a que transforma 0 homem transformando o mundo, devemos reconhe- cer na atividade do escritor a forma por exceléncia do trabalho. Que faz 0 homem que trabalha? Produz um objeto. Esse objeto 6 a realizagdo de um projeto até enti irreal; é.a afirmagéo de uma realidlade diferente dos elementos que a constituem eo futuro de novos objetos, na medida em que se tornard o instrumento capaz de fabricar outros objetos. Por exemplo, tenho o projeto de me aquecer. Enquanto esse projeto for un desejo, posso girdé-lo sob todas suas faces, ele niio me aquecerd. Mas eis que fabrico uma cestufa: a estufa transforma em verdade o ideal vazio que eraomeu desejo; elaafirmano mundo apresencade algo que nitoestavaali, 2.0 afirmanegando o que antes ali se encontrava; antes, eu tinka diante de mim pedras, metal; agora, nao hd mais pedras nem metal, mas 0 resultado desses elementos transformados, isto 6, negados e destrutdas pelo trabalho. Com esse objeto, eis o mundo iransformado. Mais transformado ainda porque essa estufa me permitird fabricar outros objetos, que, por sua vez, negario 0 estadlo passado do mundo e prepararao seu futuro. Esses objetos que produzi mudando 0 estado de coisas iréo, por sua vee, A PARTE DO Foo 303 transformar-me.A idéiado calor ndo é nada, maso calor real faré da minha exisiéncia outra existéncia, e tudo 0 que, doravante, -gracas a esse calor poderei fazer de novo fard ainda de mim um outro. Assim, dizem Hegel e Marx, forma-se a historia, pelo trabalho que realiza 0 ser, negando-o, ¢ 0 revela no termo da negaciio? ‘Mas que faz o escritor que escreve? Tudo o que faz um komem que trabatha, mas num grau eminente, Ele também produz algo: por exceléncia a obra. Essa obra, ele a produz modificando ealidades naturais e humanas. Escreveapartir de certo estedo da Tinguagem, de certa forma de cultura, de certos livros, a partir também de elementos objetivos, tinta, papel, impressora. Para escrever, devedestruiralinguagem alcomo éerealizd-lasob uma outra forma, negar os livros fazendo um livro com o que ndo séo, Esse novo livro é certamente uma realidiade: podemos vé-lo, tocd- 1, até mesmo lé-lo, De qualquer maneira, ndio é 0 nada. Antes de escrevé-lo, eu tinha uma idéia dele, pelo menos o projeto de es- crevé-lo, mas entre essa idéia e o volume em que se realiza acho a mesma diferenca que entre o desejo de calor e a estufa que me aquece. O volume escrito é para mim uma inovagéo extraordind- ria, imprevisivel e de tal forma que me é impossivel, sem escrevé- Jo, imaginar 0 que poderia ser. E por isso que me aparece como una experiéncia cujos efeitos, por maior que seja a consciéncia com que se produzem, me escapam e diante da qual ndo possome reencontrar 0 mesmo, por essa razdo: na presencade outracoisa eu me torno outro, mas por essa raziio mais decisiva aindar essa outra coisa ~ 0 livro =, da qual eu tinka apenas uma idéia e que ‘nada me permitia conhecer previamente, é justamente eu mesmo transformado em outro. Olivro, coisa eserita, entrano mundo, onde cumpre sua obra de transformagiio e negagao, Também é0 futuro de muitas cutras coisas, e nao apenas livros, mas, pelos projetos que podem dele nascer, pelos empreendimentos que favorece, 0 conjunto do mun- + Bass interpreta de Hegel esta exposta por Alexandre Kojéve em Introduction & la Tecture de Hegel (Lecons sur La Phenoménclople de I Esprit, reunidase publ por Raymond Quenea). 304 MAURICE BLANCHOT. dodo qual é 0 reflexo mudado, fonte infinita de novas realidades, a partir de que a existéncia serd 0 que nao era. Endo olivro néio é nada? Por que entao o ato de fabricar uma estufa pode ser considerado trabatho que forma e arrasta a historia, e por que 0 ato de escrever aparece como wma pura passividade que permanece &margem da histéria, eque ahistéria arrasta sem querer? A pergunta parece insensata €, no entanto, ipesa sobre o escritor com um peso esmagador. A primeira vista, ‘pensamos que o poder formador das obras escritas é incompard- vel; pensamos também que o escritor é wn honem com mais capacidade de agiio do que os outros, pois age sem medida, sem limites: sabemos (ou gostamos de acreditar) que uma nica obra pode mudar 0 curso do mundo. Mas é justamente isso que faz refletir. A influéncia dos autores é muito grande, ultrapassa infinitamemte seus atos, a tal ponto que o que existe de real nesse ‘ato ndo passa dessa influéncia e essa influéncia no encontra nessa poucarealidade averdadeira substancia que serianecessd- ria a sua extensao. O que pode um autor? Primeiro, tudo: ele esté agrilhoado, a escraviddo 0 pressiona, mas, se ele encontrar, para escrever, alguns momentos de liberdade, ei-lo livee paracriar um mundo sem escravo, wm mundo onde o escravo, agora senhor, instala anova let; assim, escrevendo, o homem acorrentadio obtém imediatamente a liberdade para ele e para 0 mundo; nega tudo 0 que ele é para se tornar tudo 0 que ele nao &. Nesse sentido, sua obra é um ato prodigioso, a maior e a mais importante que existe. Mas olhemos mais de perto, Se se der imediatamente a liberdade que néo tem, ele negligencia as verdadeiras condigées de sua alforvia, negligencia o que deve ser feito de real para que a idéia absivata de liberdade se realize. Sua negagao a ele é global. Ela indio nega apenas sua situagao de homem emparedado, mas tam- ‘bémpassaporcimado tempo que nessaparede deve abrir brechas, nega a negacéo do tempo, nega a negagio dos limites. Por essa razdo, em suma, n&o nega nada, e a obra em que se realiza néio é ela prépria wm ato realmente negativo, destruidor e transforma- dor, mas reatiza a impoténcia de negar, a recusa de intervir no ‘mundo, ¢ transforma a liberdade que seria preciso encarnar nas coisas segundo os caminhos do tempo mum ideal acima do tempo, vazio e inacessivel. A PARTE DO FOGO 305 A influéncia do escritor estd ligada a esse privilégio, o de ser senhor de tudo. Mas ele & senhor apenas de tudo, 86 possui 0 infimito,o finito lhe falta, o limite the escapa. Ora, no agimos no infinito, néio realizamos nada no ilimitado, de maneira que, se 0 escritor age bem realmente produzindo essa coisa real que se chama livro, desacredita também, com esse ato, qualquer ato, substituindo 0 mundo das coisas determinadas e do trabalho definido por um mundo onde tudo é agora dado, e nadaprecisa ser feito além de gozd-lo pela leitura. Em geral, o escritor aparece submetido & inagdo porque é senhor do imagindrio em que aqueles que entram airs dele pperdem de vista os problemas de suas vidas verdadewas. Mas 0 problema que ele representa é bem mais sério. A verdade é que ele arruinaa acéo, ndo porque disponhado irreal, mas porque coloca anossa disposigao toda a realidade. A irrealidade comega com 0 tudo. O imagindrio nao é uma estranka regitio situarla além do mundo: €.0 préprio mundo, mas mundo como conjunto, como 0 todo. Por isso ndo esté no mundo, pois é © mundo, tomado e realizado em seu conjunto pela negasdo global de todas as realidades particulares que nele se encontram, por sua colocasiio fora dojogo, suaauséncia, pelarealizagdo dessa mesma auséncia, ‘com a qual comega a criagdo literdria, que se dé.a ilusio, quando se volta para cada coisa e cada ser, de crié-los, porque agora os ve 05 nomeia a partir do todo, a partir da auséncia ce tudo, isto 6 de nada A literatura dita de pura imaginagdo tem certamente seus perigos. Primeiro, nao é pura imaginagdo. Pensa estar afastada das realidades cotidianas e dos acontecimentos atuais, mas justa- mente ela se afastou deles, ela & esse afastamento, esse recuo diante do cotidiano que necessariamente é afetado e 0 descreve como distanciamento, pura estranheza. Além disso, desse afasta- mento ela faz um valor absoluto, ¢ esse distanciamento parece entéo fonte de compreensiio geral, poder de tudo entender e tudo alcancar imediatamente, para os homens que sentemt 0 encanta- mento a ponto de sair de suas vidas, que sao apenas compreenstio limitada, e do tempo, que & apenas uma perspectiva esirangulada. Tudo isso € a mentira de uma ficgao. Mas, enfim, essa literatura 306 MAURICE BLANCHOT tema vantage de nao nos enganar: ela se dé por imagindria, 86 adormece aqueles que buscam 0 sono. ‘Muito mais mistificadora é literatura de acdo. Esta incita os homens a fazer alguma coisa. Mas, se quiser ser ainda literatura auténtica, ela thes representa esse algo a fazer, essa meta deter- minada e concreta, a partir de um mundo onde uma agao dessas remete d irrealidade de um valor abstrato e absoluto. O “algo a fazer”, tal como pode ser expresso numa obra da literatura, é ‘apenas um “tudo a fazer”, seja porque se afirma como esse tudo, isio é, valor absoluto, seja porque para se justificar'e se recomen- dar precise desse tudo no qual desaparece. A linguagem do eseritor, mesmo revoluciondria, néo é a linguagem do comando. Elendocomanda, ele apresenta, endo apresenta tornando presen- 1e 0 que mostra, mas mostrando-o atras de tudo, como 0 sentido e auséncia desse tudo. O resultado é que 0 apelo do autor ao leitor é apenas um apelo vazio, expressando somente 0 esforco de um homem, privado do mundo, para voltar ao mundo, mantendo-se discretamente na sua periferia; ou que 0 “algo a fazer”, $3 podendo ser retomado a partir de valores absolutos, aparece ao leitor precisamente como o que nao se pode fazer ou como o que para se fazer nao pede trabalho nem agéo. Sabemos que as principais tentagdes do escritor chamam-se estoicismo, ceticismo, conseiéncia infeliz. Sao atitudes e pensa- mentos que o escritor adota por razdes que cré refletidas, mas que somente a literatura reflete nele. Estéico: ele € 0 homem do universo, que s6 existe no papel e, prisioneiro ou miserdvel, suporta estoicamente sua condicao porque pode escrever, cujo ‘minuto de liberdade que tem para escrever basta para tornd-lo poderoso e livre, para the dar, ndo sua prépria liberdade, da qual nnd faz questi, mas a liberdade universal. Niiista, pois ndonega apenas isso ou aguilo pelo trabatho metédico que transforma lentamente cada coisa, mas também tudo, ao mesmo tempo, e ele 36 pode negar tudo tratando apenas de tudo. Consciéncia infeliz! E 0 que mais vemos, essa infelicidade é 0 seu mais profundo ialento, se ele é escritor apenas pela consciéncia desesperada de momentos inconeilidveis que se chaniam: inspiracdo— que nega 0 trabalho; trabalho que nega o nada do génio; obra efémera—em que ele se realiza negando-se; obra como todo — em que ele se A PARTE DO Foco 307 retira e retira dos outros tudo o que em aparéncia se dée thes dé. ‘Mas existe uma outra tentacao. Reconhecamos no escritor esse movimento que vai continua mente e quase sem intermedidrios do nada ao tudo. Vejamos nele essa négagdo que ndo se satisfaz com a irvealidade en que ela se move, pois Guer se realizar e s6 pode fazé-lo negando algo real, mais real do Gite as palavres, mais verdadeir® do que o individuo isolado de quem dispde: assim ela néo cessa de empurré-lo para avida do mundo e a existéicia piblica para levé-1o a conceber de gue modo, eserevendo, ele pode se tornar essa mesina existéncia, Eentdo que ele encontra na historia esses momentos decisivos em que tudo parece ser questionado, em que lei, fé, Estado, alto mundo, mando ae one. Tudo mergulha sem esforco ¢ sem trabalho no nada. O homem sabe que néo deixou a historia, mas a historia é agora o vazio, é 0 vazio que se realiza, a liberdade lita que se tornou acontecimenio. Bxsés pertodossao China revoluciondrios. Nesses momentos, a liberdade pretende se realizar na forma imedinta do tudo é possivel, tudo pede ser feito. Momento fabuloso para o qual aquele que 0 conheceu ndo pode inteiramente retornar, pois conheceu a histéria como a sua pré- ria histéria, e sua propria liberdade como a liberdace universal. ‘Momentos fabulosos, com efeito: neles fala a fébula, neles a palavra da fabula se faz acdo. Se tentam o escritor, nada mais justificado, A agéio revoluciondria &, em todos os ponuos, andiloga acd tal como é encarnada pela literatura: passagem do nada ao tudo, afirmagdo do absoluto como acontecimento e de cada acontecimento como absoluto. A acdo revoluciondriase desenica- deia coma mesma forca e a mesma facilidade que 0 eicritor, que, para mudar 0 mundo, s6 precisa alinhar algumas palavras. Ela rem também a mesma exigéncia de pureza e essa certeza de que tudo 0 que fez vale completamente, nito é uma agéio qualquer com relacdo a alguma meta desejdvel e estimavel, mas a meta tinica, 0 Ultimo Ato, Esse tiltimo ato éa liberdade, e sé existe excolha entre aliberdade eo nada. E por isso que, entéo, atinica frase suportavel 6: liberdade ou morte. Assim aparece o Terror. Cada homem cessa de Ser um individuo irabalhando numa tarefaeterminada, agindo aquie somente agora: ele éaliberdade universal, que no conhece allures nem amanhd, trabalho nem obra, Nesses momentos, 308 MAURICE BLANCHOT ninguém tem mais nada a fazer, pois tudo esté feito. Ninguém tem mais direito a uma vida privada, tudo é ptiblico, e 0 homem mais culpado ou suspeito é aquele que tem um segredo, que guarda somente para si um pensamento, uma intimidade, E, finalmente, ninguém tem mais direito dsua vida, aumaexisténcia efetivamente separada e fisicamente distinta. Esse é 0 sentido do Terror. Cada idadiio tem, por assim dizer, direito & morte: a morte ndio'€ Sita ondenagdo, éaesséncia do seu direito; ele ndo é suprimido conic culpado, mas necesita da morte para se afirmar cidadao, ¢ é no desaparecimento da morte que a liberdade o faz nascer. Nesse ponto, a Revolugdo Francesa tem uma significagao mais visivel do que as outras. A morte do Terror nao é apenas 0 castigo dos facciosos, mas, tornando-se prazo inelutdvel, como desejada, de todos, ela parece ser o préprio trabalho da liberdade nos homens livres. Quando a lamina cai sobre Saint-Just e sobre Robespierre, praticamente néo atinge ninguém. A virtule de Robespierre, 0 rrigor de Saint-Just so apenas suas existéncias jé suprimidas, a presénca antecipada dé stax mortes, a decisdo de deixar a liber dade afirmar-se completamente neles ¢ negar, por seu caréter imiversal, a propria realidade de suas vidas. Talves facam reinar 0 Terror. Mas o Terror que eles encarnam ndo vem da morte que do, mas da morte que se dao. Carregam os vestigios deta, pensam e decidem com a morte sobre seus ombros, e por isso seus pensamentos si frios, implacdveis, eles tém a liberdade de uma cabega cortada. Os terroristas sto agueles que, desejando a Tiberdade absoluta, sabem que querem assim sua morte, tém consciéneia dessa liberdade que afirmam como da morte que realizam e, por conseguinte, jé que estiio vives, agem néio como omens vivendo no meio de homens vivos, mas como seres priva- dos de ser, pensamentos universais, puras abstragbes julgando e decidindo, além da histéria, em nome da historia intetra. Opréprio acontecimento da morte ndio tem mais importancia, No Terror, os individuos morrem, e isso é insignificante. “E a morte maisfria", diz Hegel numa frase célebre, “amais plana, sem outrasignificacdo sendioade cortar unrepolho ouengotir um gole de dgua.” Por qué? A morte néioé a realizagdo da liberdade, sto 6,0 momento da mais rica significacdo? Mas é também apenas 0 ponto vazio dessa liberdade, a manifestagao do fato de que essa A PARTE DO FoGo 309 liberdade é ainda abstrata, ideal (literdria), indigéncia e platine. de, Cada qual morre, mas todo 0 mundo vive, e, na verdade, isso significa também: todo 0 mundo esté morto, Mas 0 “esté morto” 4 0 lado positivo da liberdade feita mundo: nele o ser se revela como absolut, Ao contriirio, "morrer” é pura insignificdncia, Jato sem realidade concreta e que perdeu todo o valor do drama ‘pessoal e interior, pois ndo existe mais interior. E20 momento em que “eu morro”, significa para mim que morro, wna banalidade gue nao tem importdncia: no mundo livre e nesses momentos em que a liberdade é aparigdo absoluta, morrer néio tem inportancia ea morte néio tem profundidade. Isto, 0 Terror ea Revolugdo—ndo a guerra ~ nos ensinaram. Oescritor se reconhece na Revolueao. Ela o atrai porque é 0 tempo emgue aliteraturase faz hist6ria, Flaé asua verdade. Todo escritor que, pelo préprio fato de escrever, ndo é levado a pensar: sowarevolugdo, somente aliberdade me fazescrever, narealidade nao escreve. Em 1793, existiu um homem que se identificou perfeitamente com a Revolucito eo Terror, Era um aristocrata retirado nas ameias do seu castelo medieval, homem tolerante, ‘mais para timido e de uma polidez obsequiosa: mas escrevia,-s6: fazia escrever, e apesar de aliberdade orecolocar na Bastilha, de ‘onde ela o havia retirade, era ele quem a compreendia melhor, compreendendo que ela era esse momento em que as paixdes mais aberrantes podem se transformar em realidade politica, tém direito & luz do dia, so a lei, Era também agquele para quem a morte era a maior paixio ¢ a tltima das platitudes, aquele que cortava cabecas como cabecas de repolho, com una indiferenca to grande que nada era mais irreal do que a morte que ele dava, 2, no entanto, ninguém sentiu mais vivamente que ele que a soberania estava na morte, que a liberdade era morte. Sade é 0 eserltor por exceléncia; ele reuniu todas as contradicdes do escritor. So: de todos as homens 0 mais s6 e, contudo, personagem ‘riblic¢o € homem politico importante, perpetuamente preso ¢ absolulamente livre, teérico e simbolo da liberdads absoluta. Escreveu uma obra imensa, ¢ essa obra ndo existe pa Desconhecido, mas 0 que ele representa fem para todos uma significacdo imediata. Nada mais que um escritor, ele representa avvida elevada até a paixao, a paixéio transformada em crueldade 310 MAURICE BLANCHOT e loucura, Do sentimento mais singular, mais oculto € mais privado do senso comum ele fez uma afirmagéo universal, a realidade de uma palavra piiblica que, entregue a historia, se torna uma explicagdo legitima da condigéo do homem em sew conjunto. Finalmente, ele é a préprianegacdo: sua obra é apenas o trabalho de negacdo, Sia experiéncia, 0 movimento de uma negacdo furiosa, sanguinolentae que nega 08 outros, nega a Deus, nega a natureza e, nesse circulo eternamente percorrido, goza de si mesnio Como da absoluta soberania, 4 literatura se vé na Revolugdo, nela se justifica ¢, se foi chamada de Terror, & porque tem realmente como ideal esse momento histérico em que “avidacarregaamorte e se mantém na prépria morte” para dela obter a passibilidade e a verdade da ppalavra, Essa éa “questo” que procura se realizar na literatura eque éoseuser. A literaturaestéligadaa linguagem. A linguagem a0 mesmo tempo trangtilizadora e inquietante. Quando falamos, tornamo-nos senkores das coisas com uma facitidade que nos satisfac. Eu digo: essa mulher, e imediatamente disponko dela, afasio-a, aproximo-a, ela € tudo 0 que desejo que seja, torna-se 0 lugar das transformagées e das acdes mais surpreendentes; a palavra é a facilidade e a seguranca da vida. De um objeto sem nome ndo sabemos 0 que fazer. O ser primitivo sabe que a posse das palavras the dé o dominio das coisas, mas entre as palavras 0 mundo as relacées séio para ele tao completas, que o manejo da Iinguagem permanece tdo dificil e arriscado quanto os contatos entre os seres; o nome néio saiu da coisa, ele 60 seu dentro, posto perigosamente as claras ¢, contudo, sendo ainda a intimidade aculta da coisa; portanto, esta ainda néio esté nomeada, Quanto maiso homem se torna homem de umacivilizagdo, mais ele maneja as palavras com inocéncia e sangue-frio, Seria porque as palavras perderam toda relaciio com o que designam? Mas essa auséncia de relagiio nao & um defeito, ¢, se € um defeito, somente dele a Tinguagem matemédtica, que é falada rigorosamente e ndo corresponde a nenhum ser. Digo: essa muther. Holderlin, Mallarmé e, em geral, todos aqueles cuja poesia tem como temaa esséncia da poesia viram no ato de nomear una maravitha inquietante. A palavra me dé 0 que ela significa, mas primeiro 0 suprime. Para que eu possa dizer: ‘A PARTE DO FOGO, su essamuther, épreciso quedeumamaneiraoude outraeu lhe retire sua realidade de carne e asso, que a torne ausente e aaniquile. A palavra me dé 0 ser, mas ele me chegard privado de ser. Ela é a ausénciadesse ser, seunada, oque resta dele quando perdewoser, isto é, 6 inico fato que ele nao é. Desse ponto de vista falar € wn direito estranho. Hegel, nesse pontoo.amigo e préximo de Hélderlin, mum texto anterior a A fenomenologia, esereveu: “Oprimeiroato, com 0 qual Adao se tornou senhor dos animais, foi thes impor um nome, isto 6, amiquild-los na existéncia (como existentes)." Hegel quer dizer que, apartir desse instante, o gato cessade ser um gato tmicamente real para se tornar também uma idéia. G sentido da palavraexige, portanto, como predmbuloaqualquer palavra, uma espécie de imensa hecatombe, um prévio dilivio, merguthando num mar conpleto toda acriagdo. Deus havia criado os seres, mas © homem teve de aniquild-los. Foi ento que ganharam sentido para ele, e ele os criou, por sua vez, « partir dessa morte em que tinha desaparecido; 6 que, em vez de seres e, como dlizemos, existentes, sé howve o ser, ¢ 0 homem foi condenado asd poder se aproximar e viver das coisas pelo sentido que thes dava. Ele se vit prisioneiro no dia, ¢ soube que esse dia ndo podia firdar, pois 0 proprio fim era luz, jé que era do fim dos seres que vinka sua significactio, que é ser Certamente, minha linguagem ndo mata ninguém. No entan- to: quando digo “essa muther”, a morte real €anuncicda ejéesté presente em minha linguagem; minha linguagem quer dizer que essa pessoa que estd ali agora pode ser separada dela mesma, subtraida & sua existéncia ed sua presencae subitamente mergu- thada num nada de existéncia e de presenga: minha linguagem significa essencialmente a possibilidade dessa destruistio; elaé, a todo momento, uma alusiio resoluta a esse acontecimento. Minha Tinguagem nao mata ninguém. Mas, se essa mulher néo fosse realmente capaz de morrer, se ela ndo estivesse a cada momento de sua vide ameagada de morte, ligada e unida a ela por um lago Ensaos reunidos sob 0 ula Sistema de 1803-1804, Em Jrroduetion@ la lecture de egel, A, Kojbve, intrpretando um personagem da 4 fenomenologia, esta Je ‘manera navel eomo, para Hegel, a compreensio equivale aum horace, MAURICE BLANCHOT. de esséncia, eu néio poderia cumprir essa negagéo ideal, esse assassinato diferido que é minha linguagem. Portanto, é precisamente dizer, quando falo: a morte fala em mim, Minha palavra é a adverténcia de que a morte estd, nesse exato momento, soltano mundo, que entre mim, quefalo, ea pessoa que interpelo aquela surgin subitamente: ela esté entre nds como adistancia que nos separa, mas essadisténcia é também oque nos impede de estar separados, pois neia reside a condicdo de todo entendimento. Somente a morte me permite agarrar 0 que quero alcangar; nas palavras, ela é a tinica possibilidade de seus sentidos. Sem a morte, tudo desmoronaria no absurdo e no nada. Dessasituagdo resultam varias conseqiiéncias. Esté claro que ‘em mim o poder de falar estd ligado também & minka auséncia de ser. Eume nomeio, é como se eu pronunciasse meu canto fionebre: eume separo de mim mesmo, nao sou mais a minka presenca nem minharealidade, mas uma presenga objetiva, impessoal, ado men nome, que me ultrapassa e cuja imobilidade peirificada faz para mim exatamente 0 efeito de uma Idpide, pesando sobre o vazio. Quando fato, nego a existéncia do que digo, mas nego também a existéncia daquele que diz: minha palavra, se revela o ser em sua inexisténcia, afirma, dessa revelagéio que elase faz apartir da ine- isténcia daquele que a fez, de seu poder de se afastar de si, ser outra que ndo 0 seu ser. Por essa rasdo, para que a linguagem verdadeira comece, é preciso que a vida, que levard essa tingua- gem, tenha feito aexperiénciado seunada, que ela tenha “tremido nas profidezas ¢ tudo que nela erafixo e estdvel tenha vacilado” Alinguagemsé comecacom ovacio; nenhuma plenitude, nenhuma certeza, fala; para quem se expressa falta algo essencial. A negagdio esté ligada é linguagem. No ponto de partida, eu nao falo para dizer algo: & um nada que pede para falar, nada fala, nada encontra seu ser na palavra, e 0 ser da palavra nao é nada. Essa formula explica por que 0 ideal da literatura pode ser este: nada dizer, falar para nada dizer. Esse ndo é 0 devaneio de niilismo de huxo. A linguagem percebe que deve seu sentido, nlioao que existe. mas ao seu recuo diante da existéncia, e sofre a tentagéo de se limitar aesse recuo, de querer alcancar a negagao nela prépria e de fazer do nada tuo. Se s6 falamos das coisas para dizer por que q A PARTE DO FoGo 33 ndio so nada, pois bem, nadadizer —eis a inicaesperancade dizer tudo delas. Esperanca naturalmente drdua. A linguagem correrte chama um gatode gato, como se o gato vivo e oseunome fossem ‘dénticos, ‘como se 0 fato de nomear néio consistisse em reter dele somente a causéncia, o que ele nao 6. Todavia, a linguagem corvente tem ‘momentaneamente razéonisto: a palavra, se excluiaexisténciado que designa, remete-se ainda a ela pela inexisténcia quese tornou aesséncia dessa coisa. Nomearo gato é, se o quisermos, fazer dele um ndo-gato, um gato que cessou de existir, de ser 0 gato vivo, mas indi por isso fazer dele um cdo, nem mesmo um ndo-ciic. Essa é a primeira diferenca entre linguagem comume linguagenliterdria. “A primeira admite que a néto-existéncia do gato, uma vee passada para a palavra, leva a que 0 préprio gato ressuscite plena e ‘certamente como sua idéia (seu ser) e como seu sentido: a palavra Ihe restitui, no plano de ser (da idéia), toda a certeza que ele tinka no plano da existéncia. E mesmo essa certeza é muite maior: a rigor, as coisas podem se transformar, ds vezes cessam de sero que sdo, permanecem hostis, inutilisiveis, inacessiveis; mas 0 ser dessas coisas, sua idéia, néio muda: a idéia é definitiva, segura, dizem mesmo eterna. Seguremos, portanto, as palavrassenretornar as coisas, néto as soltemos, ndo as tomemos como doentes. Ento, _ficaremos trangiaifos. A linguagem conum certamente tem razto, a trangitilidade tem esse preco. Mas a linguagem literdria é feita de inguietude, & {feitatambémde contradigies. Suaposigéo é pouco estdvele pouco ‘sélida, De um lado, numacoisa, s6se interessapor seu sentido, por ‘sua.auséncia, e essa auséncia ela desejariaalcancar absolutamen- te nela mesma e por ela mesma, querendo alcancar em seu conjunto 0 movimento indefinido da compreensdo. Além disso, observa que a palavra gato ndo é apenas a ndio-existéncia do gato, ‘mas a ndo-existéncia que se fornou palavra, isto é, uma realidade perfeitamente determinada e objetiva Vé ali uma dificuldade ¢ ‘mesmo ina mentira, Como pode ela esperar ter cumprido sua missiio.é porque transpés a irrealidade da coisa paracrealidade da linguagem? De que maneira a auséncia infinita da compreen- so poderia aceitar confundir-se com a presenca ifmitada e tacanha de uma palavra 36? E a linguagem didria, que quer nos 314 MAURICE BLANCHOT persuadir disso, néio estaria enganando-se? Com efeito, engana- se ¢ engana-nos. A palavra nao basta para a verdade que ela contém. Fagamos um esforgo para ouvir una palavra: nela onada Juta e trabalha, sem descanso cava, se esforga, procurando uma saida, tornando nulo 0 que o aprisiona, infinita inguietude, vigi- Lancia sem forma nem nome. O lacre que retinha esse nada nos limites da palavra e sob as espécies do seu sentido se partiu; eis aberto oacessoaoutros nomes, menos fixos, ainda indecisos, mais capazes de se reconciliar com a liberdade selvagem da esséncia negativa, dos conjuntos instdveis, niio mais dos termos, mas de seu movimento, deslizamento sem fim de “expressées” que no che- gam a lugar nenhum. Assim nasce a imagem que niio designa diretamente a coisa, mas 0 que a coisa néio é, que fala do céio em vez do gato. Assim comeca essa perseguicdo pela qual toda a linguagem, em movimento, échamada para responder aexigéncia inquieta de uma iimica coisa privada de ser, a qual, apés ter ascilado entre cada palavra, procura retomé-las todas, para negé-las todas ao mesmo tempo, a fim de que designem, nele submergindo, esse vazio que elas ndo podem preencher nem representar. Se a literatura se limitasse a isso, teriajé uma tarefaestranha ¢ incémoda. Mas ndo se limita a isso. Ela se lembra do primeiro nome que teria sida esse homicidio de que fala Hegel. “O existen- te”, pela palavra, foi chamado para fora da sua existéncia e se tornou ser. O Lazaro, veni foras fez sair a obscura realidade cadavérica do sew fundo original e, em troca, s6 the dew a vida do espirito. A linguagem sabe que seureino éodia, endo. intimidade do néio-revelado; sabe que, para que o dia comece, para que seja esse Oriente percebido por Hélderlin, ni a luz tornada repouso do meio-dia, mas a forga terrfvel pela qual os seres vém ao muncio e se ihuninam, algo deve ser excluido. A negagao sé pode se realizar a partirdarealidade lo que elanega; alinguagemtiraseu valor e sew orguiho de ser a realizagio dessa negagao; mas, no inicio, o que se perdeu? O tormento da linguagem € 0 que the falta pela necessidade que tem de ser o que falta. Ela nito pode nem ao ‘menos nomeé-to, Quem vé Deus, more. Na palavra, morre o que dé vida a palavra: a palavra é a vida dessa morte; & “a vida que carrega a A PARTE DO FOGO ais morte ¢ se mantém nela”. Admirdvel poder. Mas algo estava ali e ndo estit mais. Algo desapareceu. Como encontrd-lo. como me voltar para o que é antes, se todo 0 meu poder consiste em fazer 0 que é depois? A linguagem da literatura é a busca dess? momento que aprecede. Geralmente elaanomeiaexisténcia; elaquer 0 gato tal como existe, 0 pedregutho em seu parti pris de coisa, ndo 0 homem, maseste, eneste, oque ohomem rejeita para dizé-To, oque é fundamento da palavra e que a palavra exclui para falar, 0 abismo, 0 Lazaro do timo, ¢ ndo 0 Lazaro devolvido ao dia, aguele que jdtem maucheiro, que é 0 Mal, o Lazaro perdido, endo 0 Lézarosalvoe ressuscitado. Eu digouma flor! Mas, ia auséncia emque acito, pelo esquecimento aque relego aimagenique elame dé, no fundo dessa palavra pesada, surgindo ela mesmo como uma coisa desconhecida, convoco apaixonadamente a obscuridade dessa flor, esse perfume que me invade e que nao respiro, essa ‘poeiraque me impregna, mas que néo vejo, essacor que évestigio, ‘mas nto é luz. Onde reside entdio minha esperanca de alcancar 0 que rejeito? Na materialidade da linguagem, no fate de que as palavras também sao coisas, uma natureza, 0 que me é dado e me dé mais do que compreendo. Ainda hd pouco, a reelidade das palavras era um obstéculo, Agora ela é minha tinica chance. O nome deixa de ser a passagem efémera da ndo-existéncia para se tornar um bolo concreto, um macico de existéncia; a linguagem, deixando esse sentido que ela queria ser, unicamenie, procura se fazer insensata, Tudo 0 que é fisico tem o primeiro pagel: ritmo, ‘opeso, amassa, afigura, edepoiso papel sobre o qual escrevemos, ‘osracode tinta,o livro. Sim, felizmente, a linguagem éuma coisa: é a coisa escrita, um pedago de casca, uma lasca de roche, um fragmento de argila em que subsiste a realidade da terra A ‘palavra age, nao como uma forga ideal, mas come um poder ‘obscure, como um feitigo que obriga as coisas, tornando-as realmente presentes foradelas mesmas. Eumelementc, umaparte recém-destacadla do meio subterrdneo: ndo mais ummnome, mas um momentodo anonimato universal, una afirmagao bruta, 0 estupor do face-a-face no fundo da obscuridade. E, com isso, « linguagem exige jogar seujogo semohomem queaformou. Agoraaliteratura dispensao escritor: ela ndo é mais essa inspiragao que trabatha, essa negacdo que se afirma, esse ideal que se inscreve no mundo 316 MAURICE BLANCHOT como a perspectiva absoluta da totalidade do mundo. Nao esté além do mundo, mas também nao é 0 mundo: & a presenga das coisas, antes que o mundo oseja, aperseverancadas coisas depois que 0 mundo desapareceu, a teimosia que resta quando tudo desaparece ¢ o estupor do que aparece quando néo hé nada. Por isso ela ndo se confunde com a consciéncia que ilwnina e que decide; éaininha consciéneia sem mim, passividade radiante das substancias minerais, lucidez do fundo do torpor. Nao é.anoite; é sua obsessiio; ndo a noite, mas a consciéncia da noite que sem descanso vela para se surpreender e por causa disso, semrepouso, se dissipa. Nao € 0 dia, é 0 lado do dia que este rejeitou para se tornar luz. Tampouco é a morte, pois nela se mostra a existéncia sem o ser, a existéncia que permanece sob a existéncia, como uma afirmacdo inexoravel, sem comeco nem término, a morle como impossibilidade de morrer. A literatura, fazendo-se impotente para revelar, desejaria tornar-se revelagiio do que a revelagdo destréi. Esforco tragico. Ela diz: Nao represento mais, sou; ndo significo, apresento. Mas avontade de ser wma coisa, essarecusa a querer dizer, imersanas palavras transformadasem estdtuas de sal, esse destino, enfin, em ‘que elase torna, iornando-se alinguagem de ninguém, oescritode nenhum escritor, a luz de uma consciéncia privada de mim, esse esforco insensato para se enterrar nela prépria, para se dissinu- Jar por trés do fato em que ela aparece, tudo isso é agora oque ela manifesta e mostra. Mesmo que ela se tornasse muda como a pedra, téo passiva quanto ocadéver encerrado atras dessa pedra, adecisdo de perder apalavracontinuaria sendolidasobreapedra ¢ bastaria para despertar esse falso morto. A literatura aprende que néio pode ultrapassar-se em diregdio «20 seu préprio fim: ela se esquiva e ndo se trai. Sabe que é esse movimento pelo qual, continuamente, o que desaparece aparece. Quando nomeia, 0 que ela designa & suprimido; mas 0 que é suprimido é mantido, e a coisa encontrou (no ser que é a patavra) mais um refigio do que uma ameaga. Quando recusa nomear, quandodonome faz umacoisaobscura, insignificante, testemunha de uma obscuridade primordial, 0 que, aqui, desapareceu ~ 0 sentido do nome — esté realmente destruicio, mas em sew lugar surgin asignificacto geral, o sentido da insignificancia incrusta- ‘A PARTE BO FOGO 317 do na palavra como expressiio da obscuridade da existéncia, de modo que, se o sentido preciso dos termos se apagor, agora se

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