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CRÍTICOS PRIVILEGIAM ORIGEM DO AUTOR PARA ESTIGMATIZA-

LO SEM LER SUAS OBRAS


24/12/2017 02h00

Bernardo Carvalho

Assisti recentemente a um debate entre escritores brasileiros numa feira


internacional. Quando a mediadora abriu para as perguntas do público, um senhor francês
pediu a palavra: "Como é que vocês, vindos de um país como o Brasil, explicam que só
haja escritores brancos nesta mesa?".
A pergunta não era uma pergunta, claro, a menos que o francês fosse um idiota e
não soubesse que no Brasil a discriminação e o racismo imperam mais ou menos
dissimulados há séculos.
O efeito foi imediato. Constrangidos, os cinco escritores na mesa, quatro deles
predominantemente brancos, tiveram de se explicar, exprimindo com maior ou menor
ênfase sua vergonha e seu repúdio ao racismo no país. O francês se deu por satisfeito.
Nessa hora, a mediadora achou por bem passar a palavra à única representante negra
na delegação brasileira, uma historiadora que se encontrava na plateia e que começou por
constatar o óbvio: correspondendo a mais da metade da população do país, os negros não
estão representados como deveriam na sociedade.
Até aí, nada a acrescentar. Sou um defensor de primeira hora das políticas de ação
afirmativa que buscam garantir aos negros os mesmos direitos e as mesmas condições de
acesso, participação e inserção de que desfrutam os brancos na sociedade brasileira,
sabendo que isso pode não ser suficiente, mas é o mínimo e o começo para tentar reparar
desigualdades e injustiças irreparáveis sofridas ao longo de séculos.
Ultrapassada a constatação, entretanto, a historiadora deu um salto de raciocínio: o
problema, segundo ela, não era apenas a sub-representação dos negros naquela mesa e na
sociedade brasileira; o problema era o que pensavam e diziam os escritores ali reunidos,
representando a literatura do país. Vítimas do colonialismo, perdidos num labirinto, eles
reproduziam sem se dar conta o discurso eurocêntrico do opressor.
Confesso que por essa eu não esperava, embora o argumento não seja novo nem
original. Durante uma discussão recente, um amigo me perguntou se eu já tinha parado
para pensar que, sem os horrores do colonialismo e da escravidão, a arte que mais admiro
(eu estava falando de Joyce) talvez não existisse.
É possível. Como talvez tampouco existisse um monte de outras coisas que eu prezo
e que se desenvolveram em contraposição a tudo o que o colonialismo e a escravidão
representam, dentro das sociedades que os promoveram.
O que há de novo nesse discurso normativo aplicado às artes é o pressuposto
generalizador que, privilegiando o lugar do autor, permite ignorar a singularidade das
obras.
Em sua intervenção, a historiadora parecia deduzir que o discurso dos autores
brasileiros (ela não entrou em detalhes, mas na véspera havíamos falado de Kafka e
Tolstói, entre outros) reproduzia o discurso do colonizador, do opressor, simplesmente
por fazer referência a autores europeus.
Bastaria analisar a obra desses escritores para entender que, mesmo quando
circunscritas ao mundo literário do opressor, existem diferenças, incompatibilidades e
contradições irreconciliáveis. Bastaria ler Kafka para entender que sua obra foi uma das
representações mais potentes jamais concebidas contra o discurso do opressor, seja ele
colonizador ou simplesmente agente normativo.
Quando, nos anos 70, o nigeriano Chinua Achebe acusou Joseph Conrad e seu
"Coração das Trevas" de racismo, estava tratando de uma obra. É possível concordar ou
não com a acusação (outros escritores negros, como Caryl Phillips, discordaram da
interpretação de Achebe sem deixar de admirá-lo), mas são argumentos ancorados na
leitura e não numa projeção fantasmática do autor.
A novidade agora diz respeito à possibilidade de se isentar da leitura (porque esta
presume reflexão e contradição) para atribuir ao autor, pela simples suposição de sua
origem, um estigma que o faça corresponder a priori à imagem e ao discurso que
queremos atribuir a ele e que seja suficiente para banir sua obra.
O mais assustador e grotesco, tratando-se de literatura, é que essa estratégia anuncia
uma "compreensão" que dispensa tanto o livro como a leitura. É o que permite pôr todos
os escritores brasileiros brancos no mesmo saco, supostamente unidos pelo racismo, além
de desautorizar seu pensamento crítico, com base no mesmo preceito.
Isto, sim, lembra muito o velho discurso eurocêntrico que não admite diferenças
entre as diversas manifestações do outro, reduzindo-as todas, para esvaziá-las da potência
de suas singularidades, a um amálgama do exótico.

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/bernardo-carvalho/2017/12/1945479-criticos-
privilegiam-origem-do-autor-para-estigmatiza-lo-sem-ler-suas-obras.shtml

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