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―Hoje as pessoas veem a obra dela com certa esperança, com grande frescor,
algo que não houve à época‖, diz Zeuler Lima, professor da Washington
University em Saint Louis (EUA) e autor de extensa pesquisa sobre Lina. ―O
discurso modernista também não abria espaço para certos experimentos, e
acho que a obra dela foi bastante experimental, não só do ponto de vista
tecnológico, prático, mas também na maneira como ela pensava.‖ O
pesquisador costuma dizer que Lina foi uma arquiteta moderna, mas não
modernista, já que não perseguia uma linguagem específica nem seguia
determinadas regras formais em sua produção – ao contrário, por exemplo, de
outros grandes, como Oscar Niemeyer. ―A Lina constrói com tijolo, concreto,
ferro, pedra, barro, palha, com qualquer tipo de coisa‖, diz o arquiteto André
Vainer, que trabalhou com Lina por cerca de 13 anos, entre 1977 e 1992. ―Você
olha a cobertura da Casa do Benin [Salvador, 1987], de barro, e compara com
o Masp [São Paulo, 1957–1968], são coisas diametralmente opostas, e isso é
um sinal de liberdade enorme, de abertura para projetar.‖
Construir sem regras técnicas e formais não era algo gratuito, mas parte de
uma concepção de que o arquiteto deve entender os contextos sociais e
humanos de cada local para poder projetar. Para Lina, cada caso era um caso,
e a arquitetura deveria ter como protagonista o ser humano, não o espaço,
como ela mesma disse certa vez. ―Ela olhava o espaço não como os arquitetos
geralmente definem, que é um espaço vazio cartesiano geométrico, mas como
os antropólogos definem, que é o espaço vivido‖, diz Lima. ―Iniciava um projeto
com o que ela tinha, seus princípios, mas recebia do mundo e das situações, e
esse diálogo criava-se na própria obra.‖ Quando, num fim de semana, foi pela
primeira vez à velha fabrica instalada no bairro paulistano da Pompeia – que
seria transformada em uma das sedes do Serviço Social do Comércio (Sesc) –
e viu famílias comendo e conversando, com seus filhos brincando, Lina
afirmou: ―É essa a atmosfera que quero manter aqui‖. Nesse sentido, diz
Vainer, ―a Lina representa um tipo de arquitetura que tem um respaldo com a
realidade muito grande, o que é raro hoje. Ela sempre trabalhava a partir de
ideias que não eram de arquitetura, mas de relacionamento humano, de
sociedade, de justiça entre os homens e de comportamento‖.
Se não teve tantas obras construídas, Lina foi incansável em sua produção em
diferentes áreas. Foi também designer, cenógrafa, editora de revistas, curadora
de museus e exposições e até ―estilista‖ – chegou a desenhar roupas e joias,
principalmente nos primeiros anos no Brasil. Mas, na verdade, tudo para ela
era arquitetura. As coisas se misturavam, de modo híbrido, e tudo estava
dentro de um jeito maior de pensar a profissão, o mundo e o ser humano
dentro dele. ―Arquitetura, para mim, é ver um velhinho, ou uma criança, com
um prato cheio de comida atravessando elegantemente o espaço do nosso
restaurante à procura de um lugar para se sentar, numa mesa coletiva‖, disse
certa vez no Sesc Pompeia. Lina trazia de sua formação em Roma,
influenciada pelo professor Gustavo Giovannoni, uma ideia do ―arquiteto total‖.
―Para ela, o arquiteto deve vestir a ‗pele do lobo‘: ser cozinheiro para projetar
uma boa cozinha, ser aluno e professor para projetar uma boa escola, ser ator
e espectador para projetar um bom teatro‖, escreve Marcelo Ferraz, arquiteto
que trabalhou por 15 anos com Lina.
Para poder se propor a fazer uma arquitetura tão diversa e experimental e
conseguir transitar com tamanho êxito por variados campos do conhecimento,
ainda mais sendo mulher em meados do século XX, Lina precisava de
conhecimentos e ferramentas poderosos. E os tinha, como relembra Vainer:
―Uma capacidade de desenho e de síntese impressionante, um entendimento
da história da arquitetura, uma postura ideológica muito bem definida e
construída e uma postura de liberdade‖. Para entender um pouco como isso foi
criado, é preciso voltar à vida de Lina desde os primeiros tempos.
Foi também aí que assimilou algumas das bases do que seria sua arquitetura
até o fim da vida.
―É uma pessoa muito complexa‖, diz Vainer. ―Às vezes eu fico tentando
enquadrá-la, mas a verdade é que não dá. Quando ela dizia que era ‗stalinista‘,
isso estava muito mais ligado ao papel que Stalin teve durante a Segunda
Guerra Mundial, que possibilitou que os Aliados vencessem os nazifascistas,
do que a qualquer outro sentido atribuído ao termo, como os relacionados a
expurgos, matanças. Ela era mais ligada a uma esquerda mais moderna,
desligada do ‗partidão‘, da União Soviética. Era heterogênea.‖ O documento da
revogação do pedido de prisão na época da ditadura , por exemplo, foi dado
por Lina à Vainer e Ferraz nos anos 1980, em uma pastinha que continha
também uma foto de Che Guevara e outra de Lenin. ―Ela tinha uma vida
burguesa, afinal o Bardi tinha muito dinheiro‖, diz Vainer. ―E por isso também
fez gratuitamente os projetos do Masp e da Igreja de Uberlândia. E acho que
isso é também uma espécie de distribuição de renda, uma postura socialista de
certa maneira. Algo como: ‗Eu não preciso desse dinheiro, mas quero doar meu
conhecimento‘.‖
Seja como for, com suas contradições e coerências – Lina também gostava de
chocar, o que deve ser levado em conta –, o fato é que sua arquitetura sempre
foi de propósito social, acessível e humanizada. O Sesc Pompeia, para o qual a
arquiteta foi chamada após longos anos ―colocada de escanteio‖ pelo poder
político e também pela arquitetura dominante, talvez seja a experiência mais
bem-sucedida de Lina no sentido de utilizar a arquitetura para criar um espaço
democrático e igualitário. Nos anos seguintes, entre 1986 e 1990, já bastante
madura e calejada, Lina pôde, em seu segundo período na Bahia, fazer uma
série de projetos, como Casa do Benin, Casa do Olodum e Ladeira da
Misericórdia – o qual viu ser abandonado e parcialmente destruído ainda em
vida. Ali levou ao máximo sua experiência como arquiteta-antropóloga, se
assim podemos dizer, investigando e vivenciando intensamente a cultura
popular baiana e afro-brasileira.