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Memory — of what has been, of acts of commission

or omission, of a responsibility
abdicated — affects the future conduct of
power in any form. Failure to adopt some
imaginative recognition of such a principle
merely results in the enthronement of
a political culture that appears to know no
boundaries — the culture of impunity.

Wole Soyinka (1999: 82)

1
1. Introdução
Moçambique: território de saberes feiticeiros1

Muito académicos hoje aceitam que categorias aparentemente estabilizadas e transparentes


como ‘feitiçaria’, ‘poluição’ tendem a obliterar critérios interpretativos através dos quais os
actores locais atribuem sentidos às suas experiências. Isto inclui, por exemplo, os modos em
como as distinções entre feitiçaria/bruxaria, entre contágio/poluição são vistos como aspectos
centrais das explicações locais das mudanças sociais.
Em traços gerais, este projecto, conduzido em Moçambique entre 2006 e 2008, 2 procura
contribuir para a criação de ligações face a uma aparente disjunção entre as práticas actuais
de detecção e punição de feiticeiros e as realidades socioeconómicas regionais onde estes
processos têm lugar. Neste trabalho, a ênfase recai sobre a análise epistémica da agência
ritual e das tensões sociais experimentadas por populações que habitam contextos urbanos
contemporâneos em Moçambique, combinando trabalho de arquivo com pesquisa etnográfica
e a casos de estudos. O objectivo final é mostrar como a chamada feitiçaria e outras formas
de poderes e tensões sociais/rituais nas culturas urbanas contemporâneas não são nem
vestígios arcaicos nem fenómenos exóticos isolados ou separados dos processos históricos e
políticos globais e das macro-transformações económicas. Tão pouco devem ser vistos como
práticas negativas ou anti-sociais; pelo contrário, devem ser visto como discursos morais, que
apelam e defendem outras formas de ser e estar no mundo.
O objectivo pretendido não é discutir as finas distinções ou definições sobre as
particularidades dos poderes associados à feitiçaria, aos chamados ‘poderes ocultos’. 3 Pelo

1
A realização deste projecto contou também com o apoio e a colaboração de vários colegas, a quem
agradecemos: João Carlos Trindade, que apoiou na análise do judiciário moçambicano; Ambrósio Cuahela,
André José, Joaquim Fumo, Sara Araújo e Zefanias Matsimbe que, em fases diferentes do projecto, participaram
em discussões sobre os seus resultados. Um agradecimento também a todos os que permitiram a realização deste
projecto, especialmente a Rafa Machava, Noémia Cuamba, Carolina Tamele, Maciane F. Zimba. Uma referência
particular de agradecimento aos juízes, procuradores e funcionários do Tribunal do Distrito Urbano 5, da cidade
de Maputo, assim como aos juízes de vários tribunais comunitários da cidade de Maputo e de Angoche, e aos
secretários dos bairros, que tornaram possível a realização deste estudo.
2
Este projecto integra também materias recolhidos em momentos anteriores (a partir de 1996).
3
O termo feitiçaria é problemático e tem imposto como um guarda-chuva que integra diversas forças históricas
e culturas. Este projecto usa o conceito de feitiçaria num sentido amplo, para fazer menção ao poder ‘oculto’
que permite fazer mal a pessoas ou à propriedade ou, para usar a expressão de Diane Ciekway (1998), a
perpetração de ‘danos mágicos’. A feitiçaria, apesar de ambígua, quando resulta em danos para as pessoas e bens
é designada, por vezes, de ‘magia negra’; já o uso de poderes ocultos para resolver ‘danos mágicos’ surge por
vezes referido como ‘magia branca’, apesar de estes dois lados da feitiçaria se confundirem e juntarem, por
vezes, como este projecto procura discutir. Para uma discussão mais detalhada do conceito e das várias
definições propostas em vários contextos africanos, assim como das ambiguidades resultantes da transferência
de conceitos de matriz ocidental para contextos africanos, nomeadamente feitiçaria, bruxaria e magia – veja-se
Douglas, 1977: xiii-xxxviii, 1988:102-104; Last e Chavunduka, 1986; Fisyi and Geschiere, 1991, 1996;

2
contrário, procurou-se compreender, de forma mais compreensiva, as inter-relações entre
estas crenças, tensões sociais e discursos morais em condições históricas específicas, em
lugar de se analisarem as acusações e suspeitas de feitiçarias como existindo fora dos
sistemas sociais, e por isso não sujeitas a qualquer mudança. O presente estudo levou em
consideração estes processos, vendo-os como coordenadas centrais das experiências
contemporâneas, e por isso mesmo extremamente sensíveis às contradições e mudanças
sociais e económicas.

Em Moçambique, a estrutura social tem sofrido profundas transformações fruto das tensões e
conflitos sociais, políticas e económicas que o país tem atravessado. Após um processo de
luta nacionalista, o país ascendeu à independência em 1975, para rapidamente ser engolido
por um longo conflito armado que só terminou em 1992. Os deslocamentos de populações
que estas guerras geraram – especialmente para contextos urbanos -, o agravamento da
situação económica desde meados da década de 1980 e os mecanismos demarcantes da
exclusão social reflectem estas tensões, muitas das quais encontram escape em acusações e
suspeitas de feitiçaria.
Uma forma de explicar o infortúnio como uma consequência da malevolência humana
(Evans-Pritchard, 1937), a feitiçaria usa a linguagem das relações interpessoais para falar
sobre catástrofes, conflitos e problemas importantes, quer imediatos, quer com profundas
raízes. Numa perspectiva histórica, a avaliação crítica da literatura disponível sobre o tema
revela que o campo dos estudos sobre a possessão de espíritos tem sido dominado por uma
ênfase nos espíritos como representações de processos psicológicos, sociais, políticos,
estéticos ou históricos. Procurando romper esta tendência, as abordagens actuais têm vindo a
chamar a atenção para a necessidade de se analisarem estes fenómenos como “uma realidade
holística” (Boddy, 1989: 136), que leva em consideração a presença, a factualidade dos
espíritos, do ‘oculto’, assim como da pesquisa em torno das lógicas culturais associadas à
feitiçaria, incluindo as práticas de possessão por espíritos (Masquelier, 2001; Honwana, 2003;
Meneses, 2006b, 2006c; Igreja, Dias-Lambranca e Richters, 2008). As acusações e suspeitas
de feitiçaria reflectem, de forma sensível, as mudanças que foram ocorrendo nas sociedades,
e, como tal, são um momento especial para interrogar a construção da modernidade em
África.

Geschiere, 1997:12-15, 215-224, 2002, 2006; Horton, 1993; Auslander, 1993; Comaroff and Comaroff, 1993,
1999, 2006; Hallen e Sodipo, 1997; Asforth, 1998; Niehaus 2002, assim como West 2005. Estes autores que
usam o termo feitiçaria de forma cautelosa, desenvolvendo as necessárias implicações semânticas num contexto
socio-histórico mais amplo.

3
É nos contextos urbanos que se detecta com maior visibilidade as situações pós-coloniais,
i.e., o conjunto de eventos experimentados pelos moçambicanos na actualidade, e de que eles
são actores, testemunhas e, por vezes mesmo, vítimas. O estudo destas situações de
recombinação identitária permanente chama a atenção para o facto de a “dicotomia habitual
do pré-colonial/colonial/pós-colonial distorcer as concepções de mudança religiosa. […]
Através de todos esses períodos os movimentos religiosos africanos mantiveram-se flexíveis e
receptivos, reflectindo uma grande variedade de aspirações e interesses, envolvidos em
macro e micro políticas” (Ranger, 1986: 49). Os debates entre a historiografia oficial e as
memórias colectivas, entre a praxis social e os processos identitários são o espaço
privilegiado de análise da sociedade moçambicana enquanto negociação de poder. As
cidades, palcos de encontro entre o tradicional4 e o moderno, são os locais onde surgem
novos ritos e linguagens de violência, múltiplas memórias e onde acontece a redescoberta
identitária.

1. 1. Feitiçaria e Modernidade: o objecto deste projecto

A feitiçaria pode ser descrita como uma acção maliciosa, levada a cabo através do recurso a
forças místicas ou mesmo pela violência, resultante de ódios e tensões intensas presentes na
sociedade, e que as pessoas interpretam como actuam sobre si independentemente da sua
vontade (Ashforth, 2005: 87). Sendo a feitiçaria uma linguagem de poder (Kapferer, 1997),
os supostos feiticeiros, como a maioria dos médicos tradicionais em Moçambique, operam de
acordo com normas que assentam em pilares referenciais que não foram integrados nas
políticas do estado, que emprega termos de análise e instrumentos políticos na resolução de
problemas e conflitos gerados pelo ‘oculto’ que não têm ligação alguma com estes sistemas
epistémicas. Neste sentido, e como procurarei demonstrar da análise de vários dos casos
estudados, o dilema da tradução intercultural emerge de forma flagrante nestes conflitos.
É neste contexto que se situa o campo analítico que este projecto privilegiou. De facto, este
projecto procura desafiar o macro-projecto civilizador proposto pelo mundo ocidental,
procurando debater como as ideias sobre o ‘outro’ ganham relevância cultural e histórica,
como as narrativas são produzidas e seleccionadas e como se transforma a ideia sobre a

4
Neste projecto, o conceito de ‘tradição’ é usado não no sentido predominante, de referência ao passado anterior
à modernidade. O termo é utilizado para fazer referência a sociedades e a sistemas sociais que não são nem
anteriores à modernidade (i.e., estáticos), nem retrógrados; pelo contrário, os campos sociais são
extraordinariamente dinâmicos, em constante mudança e adaptação.

4
feitiçaria se instala como um espaço de diferença, transformando-se em mitema da
‘irracionalidade’ africana, que irá justificar os receios europeus face aos africanos e legitimar
a missão civilizadora colonial, levada a cabo em nome da introdução de valores superiores de
religiosidade.
Neste relatório, conceitos como ‘magia’, ‘feitiçaria’ e ‘oculto’ são usados quase como
sinónimos de um idioma forjado no diálogo entre religiões e as modernas ciências sociais. O
desafio teórico que este projecto tem no seu bojo é consequência da proposta de que a
espiritualidade, cuja expressão no continente africano adquire inúmeras formas, dever ser
levada a sério e considerada segundo as suas próprias propostas (Mudimbe, 1997; Ellis e Ter
Haar 2004; Hountondji, 2007). Assim, não é analisar as experiências de ‘forças ocultas’
assumindo-as como experiências homogéneas, semelhantes ou facilmente comparáveis. A
feitiçaria é um conceito ambíguo, extraordinariamente versátil e plástica, mas
permanentemente vago quanto ao seu conteúdo.
Inspirado em muitos dos trabalhos que problematizam a persistência de uma linha abissal
separando a perspectiva colonial moderna sobre o mundo de outros recortes epistemológicos
(Benton, 2002; Santos, 2007) este trabalho procura mapear, nos inícios do séc. XXI, a
persistência de uma epistemologia de dominação que tem procurado impor um sentido único
– de matriz ocidental – de ordem, lei e saber. Esta epistemologia, contextual é produzida e
reproduzida através de uma dupla fractura: a fractura política produzida pelo colonial-
capitalismo moderno e a fractura cultural gerada pelo cristianismo moderno ocidental.
Captar de forma adequada as realidades sociais contemporâneas em toda a sua complexidade,
mudanças e contradições através da linguagem de poder da feitiçaria é um desafio. Ao
contrário dos estudos ‘clássicos’ sobre a feitiçaria e a magia, o que se procura estudar não é
“nem o retorno às ‘práticas’ tradicionais, nem os símbolos de atraso ou de falta de
progresso” (Moore e Sanders, 2001: 3). Seguindo a proposta de Terence Ranger (2007), o
questionar da ‘modernidade da feitiçaria’ passa, necessariamente, por uma compreensão da
inserção, em simultâneo, do continente africano nos diálogos globais, assim como da
identificação das suas particularidades (Gluckman, 1955a, 1955b).
Os supostos feiticeiros, tal como acontece com a maioria dos médicos tradicionais em
Moçambique,5 funcionam de acordo com as sua normas, existindo para além do alcance da
lógica formalista do Estado, que emprega termos de análise e instrumentos políticos que não
permitem uma ligação directa com o mundo do ‘oculto’.
5
Actualmente estima-se que só a AMETRAMO (Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique), uma
das associações que integra estes actores, tenha mais de 7 mil membros (informação pessoal de Pedro Cossa,
secretário da AMETRAMO, em 2008).

5
Assim, este trabalho, ao questionar o sentido quer do adjectivo ‘atrasado’ por vezes associado
a estas formas de espiritualidade, quer o próprio conceito de ‘tradicional’, alarga o campo do
debate à própria noção de saber indígena e de diálogos interculturais. Definir os povos
indígenas como os “povos originários e que ainda aqui estão, e que por isso possuem o
direito às suas terras” (Maybury-Lewis, 2005: 1) exige um aprofundar das situações de
flexibilidade dos factores políticos, económicos, culturais e históricos que têm configurado
articulações – bastante diferentes e mesmo rivais – do sentido de ser ‘indígena’. Embora o
recurso a um essencialismo estratégico possa ser compreensível, e mesmo útil, no denunciar
de injustiças colectiva e na procura do afirmar de ambições identitárias colectivas
experimentadas enquanto ‘povo colonizado’, esta abordagem não permite uma teorização das
situações pré-coloniais, coloniais e pós-coloniais como experienciais negociadas e
relacionais. Qualquer qualificador utilizado na busca de uma atribuição de ‘autenticidade’
necessariamente contribui para definir e prescrever, para incluir e excluir. Estas hierarquias de
humanidade podem assumir diferentes formas dependendo dos encontros, relações de poder e
das diferentes noções de ser, de acção política e de comunidade se estão a analisar. Neste
contexto, este estudo oferece exemplos muito interessantes sobre como o termo ‘indígena’ foi
utilizado de forma arbitrária ao serviço do colonialismo, como estas pessoas recorreram a
experiências e conhecimentos indígenas para desafiar e lutar contra esta colonização, e como
estes saberes continuam a ser usados nos nossos dias, nas competições por acesso a recursos e
ao poder. Visto desta perspectiva o encontro colonial simbolizou, para a maioria da população
colonizada ‘indígena’, a imposição de um saber hegemónico universal como o único saber
válido – o saber científico – e a marginalização de outros saberes, relegados para a categoria
de saber local, indígena ou ainda para um tempo anterior, enquanto saber tradicional. Neste
contexto, a feitiçaria passou a ser vista, nos meios jurídicos e académicos, menos como uma
forma de controlo social e mais como um acto imoral para a racionalidade moderna.
Este problema, como se discutirá em vários momentos deste relatório, tem sido colocado por
vários académicos. Há meio século atrás Max Gluckman (1955b: 101), ao discutir as crenças
na feitiçaria no continente africano sugeria abertamente que as crenças indígenas na feitiçaria
não só persistiam face à continua interacção com a modernidade, expandindo-se e
modificando-se para ir de encontro às novas situações. Para Gluckman, os conceitos de
ciência e de feitiçaria preenchem diferentes funções: a ciência explica como um dado
processo ocorre, enquanto a feitiçaria explica porque é que um dado processo teve lugar,
porque é que um dado facto aconteceu com uma determinada pessoa. O que é interessante de

6
estudar é a simbiose que ocorre, as transformações e mutações da feitiçaria que ocorrem em
novos contextos sociais, nos espaços urbanos.
Recentemente, e a partir de um estudo alargado sobre a justiça em Moçambique, Boaventura
de Sousa Santos afirmou:
As acusações de feitiçaria são uma forma de controle social face à turbulência das
relações sociais provocadas pelo aumento da mobilidade, o êxodo rural, o colapso das
expectativas no papel facilitador do Estado e na estabilidade do emprego, com o
consequente aumento da insegurança, a desestruturação das relações familiares, a
exclusão social, o enriquecimento e o empobrecimento rápidos, a emergência dos
valores do individualismo e da autonomia em conflito com os valores da família e da
comunidade (um conflito que é muitas vezes geracional), o aumento da concorrência
na luta pela ascensão social ou pela promoção no interior dos aparelhos de Estado,
etc., etc. (2003: 85).
Se a crença na feitiçaria actua como uma ‘válvula de pressão’ ao permitir libertar as pressões
sentidas na comunidade, muitos aspectos negativos são também detectados. Como este
estudo revela, muitas consequências negativas surgem fruto destas acusações. Os actos de
feitiçaria são vistos como causando uma forte perturbação social e as pessoas suspeitas de
serem as responsáveis por essas perturbações vistas como merecedoras de severos castigos,
incluindo agressões verbais, e mesmo a morte. Consequentemente, a feitiçaria continua a
provocar vários comportamentos que surgem perante a justiça sob várias formas.
A mole humana que habita as cidades moçambicanas – a maioria bastante jovem – ocupa
espaços sub e peri-urbanos, onde as condições sanitárias e as perspectivas socioeconómicas
deixam muito a desejar, símbolo de uma herança colonial onde as infra-estruturas urbanas
foram e ainda são extremamente deficitárias. As cidades tornam-se o símbolo da situação
pós-colonial, do encontro complexo entre múltiplos mundos, onde se digladiam o poder e a
impotência, a pobreza e a facilidade, os novos migrantes e os antigos habitantes, o cimento e
o subúrbio. É aqui que acontecem constantemente os desafios ao político, amplificando as
dimensões políticas, assim como epistemológicas dos encontros culturais. Contrastando com
o discurso da modernização socialista em voga na década de 1980, ou com o do
desenvolvimento contemporâneo, o contexto social de feitiçaria alerta os moçambicanos para
a fina fronteira que separa o poder socialmente construtivo do poder que resulta em rupturas
sociais e na ruína social e económica (Vines e Wilson, 1995; Pfeiffer, Gimbel-Sherr e
Augusto, 2007). Sendo um processo dinâmico, o terreno de poder revela-se em permanente
mudança, onde os actores que nele se movem estão constantemente sujeitos a uma avaliação
7
social. As novas forças económicas e sociais podem exacerbar tensões e hostilidades entre os
seus membros, que se tornaram suspeitos de não só causar, mas também beneficiar dos
problemas e aflições dos outros. Nestes contextos extremamente voláteis, a feitiçaria
(re)emerge como uma forma persuasiva que justifica as doenças, infortúnios ou até mesmo a
morte (Meneses, 2000, 2004b, 2007).

1. 2. Hipóteses de Trabalho

Nas últimas décadas, a proeminência que a feitiçaria tem conhecido no continente Africano
têm vindo a ser reveladas ao mundo através de um vasto corpo de estudos. Não é pois por
acaso que a ligação entre o capitalismo global e as economias ocultas emerge de forma
reveladora através do estudo dos processos de transformação económica e política na África
subsaariana, especialmente a partir da década de 90 do século passado. O ressurgir das
múltiplas circunstâncias de violência associadas à feitiçaria surge associadas à estranha
combinação entre a alienação e o fetichismo das mercadorias e o mundo espiritual africano.
São exemplos os conflitos ocorridas no Congo Democrático, no Gana, nos Camarões, na
África do Sul, na Tanzânia, em Moçambique, entre muitos outros.6
Por outro lado, nestas mesmas regiões, é visível um movimento crescente de crentes devotos
de igrejas evangélicas e independentes africanas que procuram apoio, conforto e protecção
espiritual dos poderes do demónio, frequentemente simbolizadas nas forças do mercado. A
busca de explicações (e mesmo de soluções) para problemas globais, como as crises
económicas, o enfraquecimento do poder de negociação dos produtores africanos de matérias
primas face aos mercados globais, o aumento crescente do desemprego e do endividamento
acontecem e têm lugar no contexto da religião. As ‘novas’ igrejas carismáticas oferecem
ajuda para lidar com estes problemas. No Gana, por exemplo, as igrejas pentecostais revelam
os perigos associados às mercadorias estrangeiras, oferecendo-se para remover os feitiços
fruto da globalização. Como defendem os pastores destas igrejas, qualquer bem importado do
exterior e vendido nos mercados locais de Accra ou de Kumasi (cidades do Gana) correm o
risco de estar infectados pelo mal (Meyer, 1998). Todavia, estes pastores não associam os
supostos poderes malignos destes bens materiais a relações de produção alienadas; pelo
contrário, identificam este mal como a materialização directa das forças do demónio, como

6
Sobre este tema veja-se Gruénais, Mbambi e Tonda, 1995; Geschiere, 1997; Comaroff e Comaroff, 1999a;
Niehaus, 2001; Nyamnjoh, 2001; West, 2005; Green e Mesaki, 2005; Nyaga, 2007; Meneses, 2008a.

8
um fetiche verdadeiro e real que exige a realização de um complexo ritual de ‘de-
fetichização’, antes destes bens materiais poderem ser consumidos localmente de forma
segura (Meyer, 1998, 2006; Fancello, 2008). Este estudo encontra paralelos noutras regiões,
como é o caso de Moçambique (Cruz e Silva, 2001; Pfeiffer, Gimbel-Sherr e Carvalho,
2007). Aqui, a exemplo do que acontece em regiões vizinhas, muitos africanos educados na
tradição ocidental consideram a continua existência e a força dos sistemas sociais
‘tradicionais’ e ‘informais’ de controle como repulsivos e contradizendo o objectivos dos seus
países de tornarem-se estados modernos (Honwana, 2002; Santos e Trindade, 2003; Serra,
2003; Meneses, 2006b, 2008b; Madeira, 2007). Palavras como ‘santuário’, ‘espaço de culto’
ou ‘culto secreto’ assumem uma conotação negativa na boca de quem advoga o primado do
direito e a legitimidade única do saber científico. Mas é do conhecimento geral a
popularidade que vários cultos e expressões religiosas gozam no país, os quais são
simultaneamente honrados e temidos, e muitos dos pastores e lideres religiosos actuam e
intervêm em situações conflituais, procurando resolver os problemas. A questão aqui passa
pois pelo facto de muito moçambicanos não terem confiança no sistema de justiça oficial
contemporâneo; neste projecto procurou-se investigar porque é que muitas pessoas preferem
submeter-se a práticas cruéis de justiça na procura de soluções para acusações e suspeitas da
presença de ‘forças ocultas’.

O presente relatório estruturou-se em torno das seguintes hipóteses de trabalho:

1) A crença na feitiçaria – e as acusações e mesmo crimes que lhe estão associados – é


complexa e relaciona-se de forma fundamental com a reciprocidade e controle, princípios
importantes na sociedade moçambicana.7 Assim, a análise dos sistemas de crenças constitui
um exemplo único para demonstrar que formas de interpretação de experiências sociais (i.e.,
formas de conhecimento) supostamente atrasadas e exóticas, como são a feitiçaria e a magia,
constituem formas de conhecimento moderno, não apenas porque continuam a ser praticadas
nos dias que correm, mas porque têm um importante impacto em vários sectores –
económico, político, social – da vida do país. Estes sistemas de conhecimento e de
interpretação do ‘oculto’ reflectem um processo cultural de transformação que está a
acontecer não apenas em áreas remotas, rurais, do continente, e que assenta nas expressões

7
Esta situação não é única a Moçambique, nem sequer ao continente africano. Sobre o oculto e as práticas de
feitiçaria noutros contextos veja-se, por exemplo Taussig, 1980, 1986; e Harding e Stewart, 2003.

9
religiosas praticadas no continente, reflectindo a relação indelével entre o local e o global nos
dias de hoje (Geschiere, 1999; Kohnert, 2003; West, 2001; Meneses, 2008a).
Esta primeira hipótese parte da ideia que uma análise da economia política dos sistemas de
crenças não é nem uma questão ultrapassada nem reflexo de um trajecto cultural marcado
pelo exotismo. A crença na feitiçaria, na possessão de espíritos, está profundamente
entrincheirada nas sociedades africanas. Esta crença exerce uma influência decisiva e
estruturante sobre múltiplos aspectos da vida corrente, incluindo áreas informais da política e
da economia. Estes sistemas de crenças sobre o oculto têm-se vindo a adaptar em função das
necessidades dos que os utilizam.

2) A segunda hipótese assenta na ideia de que os sistemas religiosos africanos constituem


uma referência de importantes soluções locais (indígenas) para os problemas actuais, onde se
inclui o problema do aumento da violência por parte de actores não estatais, como é o caso
dos problemas derivados de acusações de feitiçaria. Como os resultados deste trabalho
apontam, estes sistemas podem fornecer pistas ao resto do mundo sobre o pensamento
filosófico e sobre acções em prol da emancipação, no campo específico da mediação,
reconciliação e resolução de conflitos. O estudo a resolução de conflitos provocados por
suspeitas ou acusações de feitiçaria aponta formas em como os sistemas de justiça presentes
se têm desenvolvido e construído sentidos. Todavia, mesmo fazendo referência
especificamente à tentativa de ‘controle’ das acções de violência associadas à feitiçaria, as
respostas adequadas terão de surgir a partir de um diálogo com e para os africanos.

3) A resolução de conflitos no espaço da economia política dos sistemas de crenças ocultas


tem-se assumido formas cada vez mais violentas
Os processos de modernização e de globalização neo-liberal, no presente contexto africano
parece estar associado a uma crescente visibilização de formas violentas de resolução de
conflitos através de, por exemplo, movimentos anti-feitiçaria (caso da Republica Democrática
do Congo, da Tanzânia ou da África do Sul).
A explosão de acusações de feitiçaria sugere que a ligação entre o poder político e a feitiçaria
é cada vez mais próxima (Geschiere, 1997: 7), o que ajuda a explicar a importância central do
poder do oculto sobre o controlo social da violência. Os líderes políticos modernos e
tradicionais têm de compreender e de falar a linguagem da violência ritual se procuram
garantir o monopólio do estado sobre a violência (Ellis e Ter Haar, 2004). No continente

10
africano, embora poucos sejam os dados disponíveis sobre a violência associada à feitiçaria, 8
especialmente o caso da mortes de feiticeiras à margem da lei, a informação disponível
aponta um acréscimo notável desta violência nos tempos actuais, se comparada ao período
pré-colonial e início do moderno colonialismo, quando várias formas de punição eram
utilizadas para punir os presumíveis feiticeiros (pagamento de multas, migração forçada,
exílio, para além da morte).

As políticas dos movimentos anti-feitiçaria que aconteceram na década de 90 na África do


Sul, por exemplo, resultaram na morte de muitas pessoas. O impacto destas políticas fez-se
sentir não apenas a nível dos microcosmos das aldeias, mas também na sociedade sul-africana
em geral. Para além do dano infligido às pessoas e às famílias atingidas, este processos
desestabilizou também a sociedade a um nível mais profundo, tocando aspectos económicos,
políticos e sociais, ao desafiar o monopólio da força por parte do Estado, e ao minar
profundamente a legitimidade do novo governo pós-apartheid (Minnaar, Offringa e Payze,
1992; Ashforth 1998a, 2005: Niehaus, 2001, 2002a; Kohnert, 2003; Oomen, 2005; Geschiere,
2006). A complexa colisão entre sistemas de crenças ocultas e as transformações translocais e
transnacionais que as redes sociais conheciam, também parte de um processo mais amplo de
transformação dos modos de produção, resultou na modificação e no reforço, de forma
específica, das crenças na feitiçaria, com profundos impactos nas estruturas em que estas
crenças assentam, assim como do processo de democratização.

4) As formas modernas de feitiçaria caracterizam-se por uma crescente ambivalência no que


concerne às causas, intenções e efeitos. As causas subjacentes à crença na feitiçaria, as suas
origens históricas, assim como os efeitos diferem bastante, em função dos estratos sociais,
das tradições culturais,9 dos contextos, assim como das estruturas produtivas em presença.
Todavia, é crescente a discussão sobre a instrumentalização da feitiçaria, quer por parte de
sectores conservadores quer radicais. A feitiçaria é usada como alavanca política para se
alcançarem os objectivos almejados, seja através de uma exploração mistificada, seja através
do afastamento ou mesmo eliminação física dos oponentes, muitas vezes sem se ter em conta
8
A violência da feitiçaria refere-se a qualquer forma de dano e violência infligida por feiticeiros (reais ou
imaginários) sobre cidadãos inocentes, assim como a toda a forma de violência efectuada sobre terceiros
acusados de feitiçaria. Em ambos os casos esta violência pode revelar-se fatal. Sobre o tema veja-se, entre
outros, Evans, 1992; Fisiy e Geschiere, 1996; Ashforth, 1998a, 2005; Serra, 2003; Green e Mesaki, 2006;
Kiernan, 2006.
9
As modernas acusações de feitiçaria têm muitas vezes as suas raízes no passado colonial ou mesmo pré-
colonial, onde a ‘tradição’ tem sido (re)inventada continuamente por novas e velhas autoridades, como forma de
legitimar as alterações nas relações de poder.

11
os efeitos que estas acções terão, a longo termo, sobre a sociedade. Os movimentos armados
em África têm recorrido a acusações e práticas de feitiçaria como ‘cultos de contra-violência’
para fazer face a inimigos políticos. Os Naparama, durante o último conflito armado, são
exemplo de uma situação de ‘lutas dentro de uma luta’, 10 apontando caminhos utilizados por
grupos em desvantagem (mulheres, jovens, etc.) para mostrar o seu descontentamento face ao
impasse que a guerra que grassava em Moçambique produzia (Wilson, 1992; Pereira, 1999).
Apesar deste projecto discutir perifericamente o problema da guerra civil em Moçambique,
este argumento é importante porque chama a atenção para a violência e para a coerção
exercida sobre civis durante situações de guerra, mas onde estes civis não surgem como
vítimas passivas e colaterais; pelo contrário, continuam a aspirar a e a agir por objectivos
políticos e sociais.
Descrições de cultos de contra-violência são também conhecidas noutros locais do
continente. Assim se inscreve o processo da ‘caça às bruxas’ 11 que o Benim conheceu durante
o regime marxista-leninista de Matthieu Kérékou (1973-1989), a purga de traidores e
feiticeiros no MPLA12 durante a luta armada de libertação nacional (1966-1975), ou ainda
vários episódios de luta contra o apartheid e o racismo na África do Sul no final da década de
80, início dos anos 90 (Evans, 1992; Minnaar, Offringa e Payze, 1992; Brinkman, 2003,
Bierschenk, 2003). Como os trabalhos publicados sobre este tema revelam, as populações
afectadas parecem identificar os intervenientes na ‘caça aos feiticeiros’ como heróis que
‘limpavam’ as suas áreas dos perigos e dos males da feitiçaria, em lugar de os ver como um
mal e uma forma de violência. É por isso que a ‘caça às bruxas’ representa, em determinadas
condições históricas, o que Peter Geschiere (1997) expõe como sendo uma forma popular de
acção política, dirigida à promoção de novas ordens democráticas, à procura de uma
distribuição mais equitativa de riqueza e de bens, à defesa da solidariedade social.

O volume das análises académicas que discutem a modernidade da feitiçaria aumentou nas
últimas décadas, tendo como traço comum a ênfase que colocam na influência da feitiçaria
nas relações de poder, na política e no desenvolvimento social. Todavia, a natureza ambígua
da própria feitiçaria torna extraordinariamente difícil predizer o impacto dos sistemas ocultos
de crenças, especialmente da feitiçaria (e a sua violência) sobre a política no continente

10
Esta proposta é feita por Norma Krieger (1988), em relação à luta de libertação nacional no Zimbabwe.
11
DE acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, a
expressão ‘caça às bruxas’ refere-se à “perseguição sistemática de um governo ou de um partido aos seus
adversários políticos” (2001, vol. 1: 613).
12
Movimento Popular de Libertação de Angola, uma das forças nacionalistas angolanas.

12
(Geschiere, 1997: 9-12, 23, 233; Niehaus, 2001: 192). Este aspecto é particularmente verdade
dada a contradição irresolúvel entre o desejo emancipador e o carácter repressivo de
diferentes movimentos anti-feitiçaria à luz da opinião dos actores e do significado destas lutas
para uma reconciliação efectiva.
Em breves palavras, esta discussão sobre a feitiçaria ultrapassa a abordagem sobre
‘modernidade da feitiçaria’, por apostar, de forma desafiadora, na insegurança espiritual e
epistémica que Moçambique conhece, onde a feitiçaria, ao revelar as tensões no seio das
famílias, das comunidades, permite a mediação desses conflitos.
É isto que explica este projecto, levado a cabo em Moçambique, e em espaços urbanos.
Quanto mais fino e específico for o estudo sobre os conceitos de mal e do mundo invisível,
mais complexa e diversa será a visão de África. Para perceber a persistência do fenómeno da
feitiçaria e os seus ‘novos’ matizes, é necessário desagregar a análise e historicizar os
processos. Embora uma explicação ampla sobre os múltiplos sentidos da feitiçaria seja
apresentada e discutida no corpo deste relatório, esta é, simultaneamente, “auto-evidente e
solenemente real” (Moore e Sanders, 2001: 4). Exactamente por estas razões, não é apenas a
realidade da feitiçaria que precisa ser pesquisada, mas as questões éticas e epistémicas que o
estudo sobre a feitiçaria suscita, numa combinação entre o conceito e a experiência.

1. 3. Estrutura do Relatório

O presente relatório é composto de três partes. Após a introdução, a primeira parte integra
uma digressão histórica sobre a presença destes fenómenos em África e em Moçambique, lida
a partir dos desentendimentos gerados pelo encontro colonial. Uma breve análise à literatura
publicada sobre este tema permite contextualizar o problema, assim como as fontes e as
abordagens metodológicas utilizadas.13 A partir de uma discussão sobre os tempos e os
espaços das feitiçarias, a parte seguinte procura discutir, cruzando materiais de arquivo com
descrições etnográficas, as percepções de feitiçaria e o seu papel na vida das pessoas que
habitam e experimentam a cidade de Maputo, com alguns apontamentos sobre a cidade de
Angoche. A tradição oral, os rumores, as conversas e os mexericos revelam-se
simultaneamente formas de revelação e de explicação de contradições sociais. As diferentes
formas de expressar a religiosidade têm vindo a acrescentar à linguagem e às imagens com
que as pessoas debatem os conflitos presentes face a qualquer autoridade social. A ênfase nas
13
Esta reflexão já foi sumariamente apresentada no relatório apresentado em 2007.

13
particularidades históricas que configuram os debates sobre a feitiçaria em Moçambique
explica pela necessidade de evitar uma análise a-histórica, onde o presente se desliga do
passado. Neste relatório procurou-se integrar um sentido de historicidade, documentar um
passado, documentando-o, ressuscitando-o e reconfigurando-o no presente. A terceira parte
procura alargar a exploração das perspectivas das pessoas sobre o ‘oculto’ e sobre o mal,
aspectos que estão indissoluvelmente interligados. Por isso, esta parte discute as várias
instâncias envolvidas na procura de soluções para os conflitos da feitiçaria, debruçando-se
sobre as razões que explicam porque é que os tribunais (e outras instituições do Estado) se
tem mostrado incapazes de lidar com a feitiçaria e com os supostos feiticeiros. A urgência das
necessidades das pessoas, especialmente dos grupos mais vulneráveis, de tratamento corporal
e exorcismo espiritual no mundo obscuro da pobreza tem obrigado a um questionamento da
feitiçaria e da religião. Oscilando entre a ordem cristã e a energia espiritual, diferenças
denominacionais e ecumenismo, a disciplina da tradição e as tentações do orgulho espiritual,
múltiplas são as igrejas que procuram ajudar as pessoas desejosas de se libertarem das forças
demoníacas que oprimem a sociedade moçambicana. É por isso que este estudo integra
também um capítulo que debate este tema. As conclusões e a bibliografia integram a parte
final deste relatório.

O material usado neste relatório assenta na análise de cerca de trinta casos de suspeitas e
acusações de feitiçaria. Estes casos constituem uma amostra dos múltiplos problemas e
conflitos que a expressão ‘feitiçaria’ encerra em si.
Este estudo foi realizado junto de instâncias envolvidas na procura de mediação e resolução
de conflitos associados a suspeitas e práticas de feitiçaria: a organização não governamental
‘Mulher, Lei e Desenvolvimento’ (Muleide), em Tribunais Comunitários (cidade de Maputo e
de Angoche), com membros da Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique
(AMETRAMO) e da PROMETRA Moçambique, 14 junto de várias igrejas e mesquitas, bem
como de pesquisa etnográfica realizada em vários bairros da cidade de Maputo e de Angoche,
com um pequeno desvio por Mapulanguene. O estudo envolveu também a observação e
entrevistas junto das administrações de vários bairros, assim como a observação de casos que
envolviam acusações de feitiçaria junto ao Tribunal Judicial do Distrito Urbano 5 da cidade
de Maputo, e do Tribunal Judicial Distrital de Angoche.
Os processos etnográficos e antropológicos (da pesquisa à redacção deste relatório) podem
ser vistos como uma sucessão de estados na alocação de diferentes formas de ignorância e
14
Organização vocacionada à Promoção da Medicinal Tradicional.

14
conhecimento; frequentemente as trajectórias dos informadores e dos investigadores
intersectam-se. À medida que as informações iam tomando corpo, maiore4s eram os espaços
de ausência e de desconhecimento sobre o tema (Santos, 2006). Por isso, a nossa dívida de
gratidão para com os muitos médicos tradicionais, membros de instâncias ‘informais’ de
resolução de conflitos que, através das suas preocupações, do seu renovado interesse neste
projecto, das suas repetidas ofertas de ajuda, permitiram ampliar o diálogo sobre a feitiçaria.
O seu desejo de situar o conhecimento e a experiência sobre actores específicos, sobre
agendas e instâncias determinadas permitiu concretizar e dar corpo aos acontecimentos aqui
discutidos e analisados.

1. 4. Moçambique: dados contextuais

Com uma extensão territorial de cerca de 800 mil quilómetros quadrados, Moçambique é um
país da África austral, com uma população de cerca de 20,5 milhões de habitantes (Censo de
2007).
O país está administrativamente dividido em onze províncias. O desenvolvimento da
economia política do país levou à organização do país em torno de três regiões: o Norte
(províncias de Cabo Delgado, Niassa e Nampula); o Centro (províncias de Tete, Zambézia,
Manica e Sofala) e o Sul (província e cidade de Maputo, Gaza e Inhambane). Todavia, a
ênfase deste projecto centrou-se na cidade de Maputo (extremo sul), com alguns
apontamentos comparativos realizados na cidade de Angoche, localizada na província de
Nampula, no norte de Moçambique.
Do ponto de vista da diversidade, o país pode ser descrito como um mosaico cultural, onde
diferentes línguas, usos, religiões, etc. se cruzam de múltiplas formas, produzindo novos
referenciais identitários. Para além dos sistemas indígenas africanos, elementos islâmicos, da
cultura hindu, assim como de matriz portuguesa forma hoje a rede de instâncias envolvidas
na resolução de conflitos em Moçambique (Santos e Trindade, 2003; Meneses, 2007). A ideia
de Moçambique enquanto realidade geopolítica emerge nos finais do séc. XIX; com a
extensão da designação de uma pequena ilha – capital desta colónia até aos finais do séc. XIX
– a um território mais vasto que Portugal reivindicou como seu a quando da partilha de
África, na conferência de Berlim (1884-85).15
15
A Conferência de Berlim estabeleceu o princípio de que as exigências sobre colónias se efectuavam não a
partir das descobertas anteriores, mas sim a partir da ocupação efectiva (presença militar e administrativa)
desses territórios. Catorze países estiveram presentes nas negociações sobre a partilha do continente africano:

15
Esta nova situação trouxe consigo novos conflitos que iriam marcar a relação entre diferentes
experiências, saberes e culturas. Não sendo simétricas, porque marcadas por uma relação de
poder desigual, o estudo destas relações aponta elementos de diálogos, mútuas interferências
e apropriações, que marcam e estruturam a especificidade da modernidade pós-colonial
presente no Moçambique contemporâneo.
As múltiplas mutações políticas que Moçambique conheceu ao longo do último século –
Angoche
colonialismo, socialismo, neo-liberalismo – reflectem-se na indeterminação que muitos
sentem em relação ao sentido de ser moçambicano e às oportunidades que estão disponíveis
(Santos, 2003; Francisco, 2003). Moçambique: Mapa
com a localização das
Desde a década de 90 que a economia tem vindo a conhecer regiões onde
uma recuperação a
significativa,
investigação foi
transformando Moçambique num caso de ‘sucesso’ em África (Pitcher, 2002; World Bank,
realizada

2005; PNUD, 2006, 2008). Todavia, as desigualdades têm-se aprofundado, com efeitos
dramáticos. Uma avaliação dos quinze anos passados desde o fim do conflito armado revela
uma mudança rápida e visível do ambiente social e económico do país. Porém, este
crescimento económico trouxe consigo o agudizar de desigualdades e de problemas. Apesar
dasMapulanguene
inúmeras dificuldades experimentadas durante o conflito armado, muitos moçambicanos
lamentam o declínio dos valores comunitário de apoio e entreajuda, ao que contrapõem o
Cidade de Maputo
aumento exponencial da desigualdade, da corrupção, do crime e dos problemas sociais, como
indicadores de um mundo social em degradação. A crise económica que se instalou nos
principais espaços urbano a partir dos anos 90 - para onde migram muito moçambicanos em
busca de oportunidades - reflecte-se na escassez de dinheiro, que é apresentada por muitos
como ‘o grande mal’ que afecta, que polui os ambientes sociais de Maputo ou Angoche.
No grande Maputo,16 por exemplo, a explosão da construção civil, o aparecimento de novos
pólos industriais, a proliferação de telemóveis, o aumento da circulação económica com a
África do Sul criaram um novo contexto social onde parte da população se tornou
visivelmente mais abastada num curto espaço de tempo após a guerra. 17 Para muito, porém,
este período tem sido marcado por um empobrecimento constante.
Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Espanha, França, Holanda, Império Austro-húngaro, Império Britânico, Itália,
Portugal, Rússia, Suécia-Noruega (unificados entre 1814-1905), Turquia e os Estados Unidos da América. Sobre
este assunto, veja-se Newitt, 1997; Gentili, 1999; Departamento de História, 2000.
16
Que integra a Cidade de Maputo e parte da província de Maputo (Matola e Machava). Estima-se que a grande
‘área metropolitana’ de Maputo tenha hoje entre 1,8 a 2 milhões de habitantes.
17
Estes sinais são detectáveis na criação de novos bairros, no melhoramento das habitações, muitas das quais
com água potável e electricidade, na aquisição de viaturas, de antenas parabólicas de televisão, etc.

16
Em Angoche a situação é ainda mais dramática, sendo este período marcado pelo
empobrecimento contínuo e, para muitos, pelo aumento da insegurança económica e pela
necessidade de migrarem de contextos urbanos para o espaço rural, em busca de outras fontes
de subsistência (Meneses e Santos, 2008).
Entretanto, a responsabilidade pelo sustento da família alterou as relações dentro da família,
com as mulheres a terem uma participação cada vez mais activa na esfera do mercado. As
políticas de reajustamento estrutural têm tido impactos diferentes em mulheres e homens, na
forma em como afectam as relações sociais a nível da família e da comunidade. Se no
passado, muitas das famílias viviam principalmente do salário do homem e da economia de
subsistência a cargo da mulher, esta situação mudou radicalmente nos dias de hoje. Com
efeito, a produção agrícola – quer para consumo da família, quer para comercialização – está
cada vez mais nas mãos das mulheres, sendo responsáveis por uma parte significativa da
renda gerada em moeda (Chiconela, 2004; Tvedten, Paulo e Rosário, 2006; PNUD 2006,
2008). Os homens dedicam-se ao comércio formal (pequenos estabelecimentos de comércio),
ou estão empregados – menos frequentemente – em sectores da economia formal (construção,
Estado, pequenas indústrias, etc.), nos transportes semi-colectivos de passageiros, nos
mercados informais, etc. (Francisco e Paulo, 2006).

Moçambique:
população e níveis de
pobreza por província
(Ministério do Plano e
Finanças de
Moçambique, 2006)

Se até há alguns anos a migração para a África do Sul era, no sul de Moçambique, uma
actividade maioritariamente masculina, nos últimos anos tem-se acentuado a presença de
mulheres nestas deslocações, comparticipando desta fonte de rendimentos (Wuyts, 1980;
First, 1983). Esta mudança dos papéis de género, associada a um crescimento constante das
desigualdades em contextos urbanos tem contribuído para um crescimento da insegurança, da
competitividade e de ambientes socialmente hostis onde os conflitos emergem e são
17
expressos através de angústias, dores, males espirituais que exigem remédios espirituais. Os
habitantes de Maputo e de Angoche frequentemente procuram os serviços de curandeiros
(tinyàngà) ou ainda de profetas e bispos de igrejas na procura de soluções para crises
espirituais que estão subjacentes aos conflitos sociais e a problemas médicos (Meneses, 2000,
2006c). Aqui, o ‘oculto’ está presente de múltiplas formas. Os curandeiros comunicam e
gerem as ligações com o complexo mundo dos espíritos, apontado responsabilidades,
dirimindo conflitos, fornecendo interpretações e soluções (incluindo remédios) para os
‘azares’ e para as doenças. É este contexto que ajuda a explicar a persistência da semântica da
feitiçaria em contextos urbanos.
A intervenção colonial construiu a cidade como expressão da modernidade europeia. Como
apontou Edward Said, “ser um Homem Branco era simultaneamente uma ideia e uma
realidade. Incluía uma posição pensada em relação aos mundos branco e não-branco. Isto
significava – nas colónias – falar de uma certa forma, comportar-se de acordo com um
determinado código de regulação e mesmo demonstrar certos afectos e outros não.
Significava julgamentos, avaliações e gestos específicos” (1979: 227). Esta bifurcação entre o
espaço ‘europeu’ e o espaço ‘africano’, em termos políticos, traduziu-se no estado bifurcado,
para usar a expressão de Mahmood Mamdani (1996: 61). Porém, esta bifurcação não
estabeleceu, nas práticas constitutivas experimentadas no quotidiano, universos sociais
independentes e paralelos, sem soluções de continuidade. Pelo contrário, as apropriações,
ligações, contaminações, contradições aconteceram e continuam a ter lugar. Esta
compreensão da diversidade cultural desafia as noções essencialistas que têm sido utilizadas
como lugares de demarcação e inclusão política. Nas práticas observadas, os sentidos e
símbolos culturais são produzidos através de complexos processos de tradução, negociação e
enunciação, assim como por contestação e conflito, como este estudo revela.
Do ponto de vista discursivo, a construção da moçambicanidade opera-se, muitas vezes, por
uma oposição a valores modernos. Expressões como “nós, os africanos somos assim,
resolvemos os problemas assim.”18 A feitiçaria, os conflitos familiares e as ligações aos
antepassados, as cerimónias são construídas nestes nos discursos como pertencendo a um
universo ‘africano’, da ‘tradição’, numa afirmação de uma expressão cultural que se demarca
de uma suposta alteridade externa. A especificidade da ‘moçambicanidade’ acontece através
da experimentação de práticas e símbolos, da forma em como são produzidos, re-inventados,
reorganizados e estruturados, dando origem a novas realidades e universos de saber que

18
Palavras de Noémia C., conselheira da Muleide em Maputo, no Distrito Urbano nº 5, durante uma das sessões
de aconselhamento de um dos casos observados.

18
permitem dar sentido e tornar cognoscível estes novos espaços. Habitando espaços
‘modernos’ – espaços urbanos, a cultura ‘moçambicana’ emerge como a apropriação da
urbanidade, experimentada de forma ‘africana’, um marcador usado como referência de uma
outra memória pós-colonial – a produção de sentidos de pertença ao campo do político - que
identifica a presença de outros valores, lutando contra a exclusão e a marginalização.
Por definição cidades coloniais, Angoche, e especialmente Maputo, são hoje
extraordinariamente heterogéneas, onde as mudanças identitárias parecem acompanhar a
fluidez das opções que a economia informal oferece. O estudo destas experiencias sociais –
onde a incerteza sobre o amanhã, a escassez de recursos – são uma realidade, permite alargar
o campo de interpretação crítica destas questões. Em situações em que a escassez de recursos
fornece experiências objectivas de indeterminação, estas desencadeiam processos sociais de
interpretação que obrigam à interpelação constante da natureza e do conteúdo dos referentes
culturais.
Como Mary Douglas (1966, 1992) nos chama a atenção, nestes espaços intersticiais as
possibilidades de poder e de transformação são ilimitadas, dando azo a um sistema de
permanente (re)construção dos campos estruturados, exactamente por serem indeterminados.
Seguindo a proposta de Mary Douglas (1966, 1992), o ‘perigo’ resulta desta indeterminação e
deste poder transformador e produtor de realidades imprevistas, onde a indeterminação
emerge como uma fonte potencial de poluição e subversão das categorias fundamentais dos
espaços ‘modernos’ e ‘tradicionais’, e como estes são continua e repetidamente
experimentados pelos sujeitos.
Os discursos sobre feitiçaria são aqui analisados como sistemas cosmológicos e pragmáticos
que constroem mundos sociais e políticos particulares e irredutíveis. A categoria ‘feitiçaria’,
essencial à construção do ‘tradicional’, é uma componente contemporânea, presente nas
realidades sociais observadas durante a pesquisa levada a cabo em Moçambique. Neste
sentido, devem ser vistas como componentes lógicas que estão na origem dos factos e
processos complexos que observamos. São os fundamentos das socialidades e agenciamentos
que dão origem às experiências dos sujeitos. Estes são fundamentais porque estabelecem uma
ética de relações que compõe a matriz social observada.
A análise da feitiçaria revela-nos um conjunto de saberes especializados que medeiam a
relação entre os espíritos e o mundo dos vivos, utilizando-se estes saberes para desencadear
processos sociais e interpessoais. Neste contexto, as noções de segurança e insegurança
pessoal e social estão necessariamente ligadas ao reconhecimento das relações com os
espíritos. A ligação aos antepassados, a gestão da acção destes sobre a vida individual e
19
familiar, é complexa e imprevisível. Tanto pode resultar na protecção, como podem dar
origem a situações de desastre, quando de protectores estes espíritos se transformam ou são
manipulados por interesses malévolos.
A procura de protecção e de solução para estes problemas acontece através de curandeiros, a
maioria dos quais integra a AMETRAMO.19 Especialmente no caso de Maputo, e porque o
acesso aos médicos tradicionais/curandeiros20 corresponde a um forte esforço financeiro,
permitindo apenas que aqueles que têm posses financeiras razoáveis os consultem, muitas
pessoas que integram o grupo economicamente mais vulnerável recorrem a igrejas na procura
de protecção contra os espíritos e os feiticeiros. Ir aos curandeiros significa tanto ir buscar
protecção contra os espíritos perturbadores, como procurar forças ‘más’ para obter mais
poder, mais força – força física, saúde, protecção e defesa contra inimigos, apoio para subir
na vida, etc. – face a potenciais concorrente e/ou inimigos. Neste sentido, a feitiçaria e os que
estão envolvidos neste circuito revelam-se parte central do mercado de trabalho e de
investimento pessoal para a obtenção de recursos materiais e financeiros.
“Esses curandeiros estão a estragar a nossa tradição 21” marca a profunda mudança que o
sentido do curandeiro está a conhecer nos nossos dias, problematizando a modernidade da
feitiçaria e das praticas de curandeiros, quando estes últimos são crescentemente vistos como
estando a transitar do campo da cura e da protecção para o campo da obtenção de benefícios
pessoais ligados às exigências de uma vida ‘moderna’ marcada pelo dinheiro, pelo mercado e
pelos bens de consumo, vinculando-os ao espaço da feitiçaria contemporânea. Esta alteração
nas práticas de saberes resulta numa transformação social profunda que se traduz em
insegurança e imprevisibilidade, que está associada à crise económica e social que a
sociedade moçambicana atravessa. Neste contexto, ultrapassar ‘os azares’ de uns exige que se
retire a protecção de outros, criando-lhes problemas, o que está na origem da situação de
insegurança generalizada e de desconfiança em relação àqueles que obtêm sucesso nas suas
vidas. Quem tem sucesso é cada vez mais percebido como tendo provavelmente recorrido à
feitiçaria e aos médicos tradicionais/curandeiros para tal. O curandeiro passa pois a ser um
vector central do clima de insegurança e de violência presente. Se a busca pelo bem-estar e
sucesso relacionados com a acumulação monetária é uma das principais experiências da

19
Há ainda a PROMETRA, a Associação de Vendedores de Medicinas Tradicionais (AVEMETRAMO) e a
Associação dos Ervanários de Moçambique (AEMO).
20
Neste projecto, e consciente da complexidade epistémica que lhes está associada, termos como ‘curandeiro’,
‘nyàngà’ e médico tradicional são usados como sinónimos, perspectiva que acompanha as construções
discursivas dos praticantes de ‘outras’ medicinas (que integram ainda as vertentes religiosa e normativa).
21
Expressão de um dos intervenientes num dos casos observados, e que envolvia acusações de feitiçaria,
entrevistado em Angoche em Agosto de 2004.

20
modernidade, esse processo acontece através de uma experiência de riscos e perigos em
permanência, os quais embora ocorrendo no campo ‘da tradição’, envolve disputas e
negociações no presente moderno com elementos que podem garantir ou impedir a sua
realização. A apropriação individual, o desrespeito pelos valores da tradição, das famílias e da
comunidade, são os reflexo desta transformação das sociabilidades associadas à tradição,
constantemente actualizadas pela contemporaneidade da feitiçaria na ligação à economia
capitalista global e às suas implicações. Foi com estas preocupações como referência que este
estudo optou por privilegiar, como campo analítico, duas cidades de Moçambique.

1. 5. A Cidade de Maputo

Os dados que de seguida são apresentados procurar apoiar a contextualização desta pesquisa,
ao fornecer elementos que facilitam a compreensão da situação socioeconómica da cidade e a
diversidade cultural presente na cidade capital, um dos espaços onde o estudo foi levado a
cabo.
A cidade de Maputo situa-se no extremo sul do país, ocupando 347 quilómetros quadrados.
Trata-se de uma cidade relativamente jovem.22 Os dados do censo populacional de 200723
apontam uma população de 1.094.315 habitantes, dos quais 51,4% são do sexo feminino e
48,6% do sexo masculino. A população da cidade capital corresponde a 5,3% do total do país,
o que justifica a importância deste espaço urbano como campo analítico.
Por ser a capital, Maputo agrega uma grande diversidade cultural, sendo de destacar o grupo
etnolinguístico Rhonga, um dos mais antigo e que ainda mantém uma forte presença na
cidade. Todavia não é único, pois vários outros, como o Changana, Chopi, Xitswa e outros
oriundos de várias regiões do país.24

22
Conhecida até à independência como Lourenço Marques, foi fundada enquanto presídio em finais do séc.
XVIII. Em 1876seria esta povoação foi promovida a vila, tendo sido elevada à categoria de cidade em 1887.
23
Dados obtidos do portal do Instituto Nacional de Estatística – Moçambique, a de Junho de 2009, disponível
em http://www.ine.gov.mz/censo2007.
24
O grande grupo linguístico no sul de Moçambique é o Thonga, que inclui vários grupos, como o Rhonga,
Changana, Tswa, etc.). Dada a complexidade associada à interpretação ‘étnica’ do tecido social moçambicano
contemporâneo, nos últimos recenseamentos os grupos populacionais têm vindo a ser definidos a partir de
critérios linguísticos, tornando-se a língua o foco da auto-identificação.

21
Esta cidade detém, simultaneamente, o estatuto de província (desde 1980) e de autarquia. 25
Administrativamente divide-se em sete distritos municipais, com um total de 61 bairros e
povoações.
Destes distritos municipais, apenas um - o Distrito Urbano nº 1 - integra unicamente bairros
de cimento.

Unidade Administrativa População Bairros/Povoações


Autárquica (2007)
Distrito Urbano nº 1 107.530 Central A; Central B; Central C; Alto Maé A; Alto Maé B;
Malhangalene A; Malhangalene B; Polana Cimento A; Polana
Cimento B; Coop; Sommerchield.
Distrito Urbano nº 2 155.385 Aeroporto A; Aeroporto B; Xipamanine; Minkadjuíne; Unidade 7;
Chamanculo A; Chamanculo B; Chamanculo C; Chamanculo D;
Malanga; Munhuana.
Distrito Urbano nº 3 222.756 Mafalala; Maxaquene A; Maxaquene B; Maxaquene C;
Maxaquene D; Polana Caniço A; Polana Caniço B; Urbanização.
Distrito Urbano nº 4 293.361 Mavalane A; Mavalane B; FPLM; Hulene A; Hulene B;
Ferroviário; Laulane; 3 de Fevereiro; Mahotas, Albazine; Costa do
Sol.
Distrito Urbano nº 5 290.696 Bagamoyo; George Dimitrov (Benfica); Inhagóia A; Inhagóia B;
Jardim; Luís Cabral; Magoanine; Malhazine; Nsalane; 25 de
Junho A; 25 de Junho B; Zimpeto.
Distrito Municipal da 19.371 Gwachene; Chale; Inguice; Ncassene; Xamissava.
Catembe (Distrito Urbano
nº 6)
Distrito Municipal da Ilha 5.216 Ingwane; Ribjene; Nhaquene.
da Inhaca (Distrito
Urbano nº 7)

As diferenças entre os distritos, as localidades e os bairros são notórias, quer do ponto de


vista de organização e edificação urbanas, quer das características sociais e demográficas dos
que habitam estes espaços. Estas diferenças levam, nas palavras de Manuel Araújo (1999), à
identificação de três áreas distintas na cidade de Maputo: urbana, suburbana e peri-urbana.
Estas correspondem grosseiramente e respectivamente, a habitações que vão de vivendas com
jardins a apartamentos de diversos tipos (Distrito Urbano nº 1 26), casas de construção mais
modesta e precária nas zonas suburbanas (Distrito Urbano nº 2 e nº 3 e parte dos Distrito nº 4
e nº 5) e peri-urbanos (Distritos Urbano nº 4 e nº 5, Catembe e Inhaca), estes últimos fazendo
25
É uma das 43 autarquias do país, tendo estado sempre nas mãos do partido Frelimo, embora o município conte
ainda com vereadores eleitos pela Renamo e pelo grupo ‘Juntos pela Cidade’.
26
Corresponde à zona mais antiga da cidade, ao núcleo da cidade colonial – Xilunguíne (cidade dos brancos).
Veja-se Lobato, 1970; Santos e Meneses, 2006.

22
fronteira com as áreas rurais. Frequentemente a população de Maputo refere-se a estas duas
últimas zonas como sendo agora “os próprios subúrbios”.

Cidade de Maputo: densidade


demográfica por bairros (Araújo,
2007: 9)

Esta diferenciação reflecte as características originais do projecto colonial da cidade: um


espaço de ‘cimento’, onde habitava a população colona, rodeado de uma cintura de ‘caniço’ 27,
sem planos de ordenamento, e que migrava para esta região em busca de emprego.

Bairro George
Dimitrov (Benfica)-
Distrito Urbano nº 5
durante a época das
chuvas

27
Originariamente a maioria das habitações era feita de estacas (pau a pique) e caniço, sendo depois maticadas;
outras ainda eram feitas de madeira e zinco. Todavia, na actualidade é cada vez maior o número de pessoas que
constroem habitações com materiais definitivos (blocos, tijolos, cimento, etc.). Todavia, se esta característica
está a mudar, ela não é acompanhada à mesma velocidade pela construção de infra-estruturas viárias,
saneamento, serviços e outras. O suburbano é geralmente descrito como esta cintura de caniço; já o peri-urbano
corresponde a um segundo anel que rodeia a cidade, na zona de contacto com o espaço rural; o peri-urbano
mantém ainda algumas das características rurais: uma densidade ocupacional mais baixa, actividade agrícola
presente, etc. (Araújo, 1999, 2007; Lage, 2001).

23
A cidade de cimento corresponde ainda, nos nossos dias, núcleo central da área urbana,
enquanto o ‘caniço’, os ‘subúrbios’ continua a simbolizar o espaço sub e peri-urbano.
A estrutura física dos bairros que correspondem ao espaço sub e peri-urbano é caracterizada
por habitações de construção precária, com caminhos labirínticos. A elevada concentração
populacional dos bairros nestes espaços tem gerado problemas ambientais tais como o lixo a
erosão. Nos tempos chuvosos os bairros ficam quase intransitável, com as ruas e caminhos
inundados devido à falta de escoamento, o que torna difícil o acesso.
Esta distribuição coincide, grosso modo, com a estratificação social entre a classe média alta
(Distrito Urbano nº 1) a casos situados entre a classe média e grupos sociais que auferem
rendas mais modestas e baixas (os outros distritos urbanos).28

Maputo: perspectiva da
cidade de cimento
(Bairro da Polana
Cimento, Distrito
Urbano nº 1)

Quanto à organização local, os bairros (especialmente da cintura sub e peri-urbana)


apresentam uma estrutura organizativa complexa, que importa ter em mente quando se

28
De acordo com os dados dos últimos recenseamentos da população, o sector mais populoso da cidade é o
suburbano, onde habita mais de metade da população desta urbe.

24
analisa o funcionamento dos sistemas de justiça, pois a apresentação de casos e as
convocatórias29 funcionam dentro e em função desta sequência (veja-se o capítulo 9).

SB

Esquema da organização
Pessoal da administração presente nos bairros da
cidade de Maputo. A
estrutura dos bairros de
Angoche apresenta bastantes
Chefes de quarteirão semelhanças. (veja-se
Meneses e Santos, 2008)

Chefes de dez casas

Em termos económicos, a cidade de Maputo está fundamentalmente virada para serviços e


para o comércio, especialmente informal; possui ainda pequenas indústrias, onde se destaca o
papel do porto de Maputo, vital para o desenvolvimento da região. Isto explica o facto de a
contribuição média da cidade de Maputo para o PIB nacional tenha sido, entre 2001-2006 -
período englobado por este estudo - de 19,5% (UNDP, 2007: 12).

1. 6. A Cidade de Angoche

Angoche é uma cidade mais pequena, um dos municípios da província nortenha de Nampula.
Situada no litoral costeiro, este município conta com cerca de 87 mil habitantes.

29
Termo utilizado normalmente para ‘convidar’ as pessoas a estar presentes para se resolver um determinado
problema. O termo ‘convocatória’ é usado quase como sinónimo de ‘notificação’. Qualquer convocatória
normalmente indica a data e a hora em que o notificado se deverá apresentar, levando também o carimbo e a
assinatura do responsável da instância (tribunal comunitário, AMETRAMO, Muleide, etc.).

25
Cidade de Angoche –
Parapato (Unidade
Autárquica do
Parapato)

Na sequência da reforma municipal dos anos 90, Angoche passou a contar com cinco
Unidades Autárquicas: Inguri, Johar, Mussoriri (Inguri B), Parapato (Angoche cimento) e
Cerema. O Parapato, a zona de cimento, é o núcleo da cidade estão instalados os serviços
administrativos (Ministério da Administração Estatal, 2005), embora muitos dos partidos
políticos que militam nesta urbe tenham as suas sedes noutras Unidades Autárquicas,
especialmente no Inguri.

Angoche, Bairro do Inguri (Unidade Autárquica do Inguri A)

Entre 2003 e 2008, Angoche foi um dos poucos municípios que foi liderado por uma força
política que não a Frelimo.30 Com a Renamo31 no poder, a politização dos conflitos sociais

30
FRELIMO – Frente de Libertação de Moçambique, movimento nacionalista que liderou a luta pela
independência de Moçambique; posteriormente transformou-se em partido político. É actualmente o partido no
poder no Município de Angoche.
31
RENAMO - movimento de resistência em Moçambique, envolvido num violento conflito armado em
Moçambique entre 1976 e 1992. Após os Acordos de Paz de 1992 transformou-se num dos principais partidos
políticos do país.

26
atingiu proporções importantes, com impactos profundos na vida dos habitantes desta cidade
(Meneses e Santos, 2008).

A cidade enfrenta vários problemas, sendo dos principais associados ao saneamento público.
A canalização de água está em mau estado e muitos dos habitantes recorrem a fontenários ou
a poços situados a longas distâncias.

Município de Angoche
Província deNampula
Distrito de Angoche

Cidade de Angoche, com a divisão


autárquica (Ministério da Administração
Estatal, 2005)

A população que actualmente habita a região de Angoche é um produto da mistura de pessoas


oriundas das ilhas Comores, Árabes, Indianos, Persas, Portugueses, assim como das regiões
mais interiores de Moçambique (Newitt, 1972a, 1972b). Segundo Lupi (1907: 17), o nome
‘Angoche’ refere-se à “divisão política do litoral, ou com mais propriedade, ao centro, à
capital do berço do sultanato xirazi implantado para as bandas do sul da ilha de
Moçambique, e que durante séculos senhoreou indisputadamente todo o tracto da costa que
vai do rio Mussirimadji [...] até à margem do Muniga”.
A mais falada na região é o Ekoti, ao que se segue o Emakhuwa e o português. A língua Koti
resulta de uma mistura originalmente desenvolvida a partir de um dialecto do Kiswahili,
tendo sofrido influência do Emakhuwa.

27
Em torno do espaço urbano encontra-se um sem número de povoações, cuja figura central é o
mwénè.32 Todavia, no norte de Moçambique persistem ainda algumas tradições de
matrilineagem e participação da mulher na esfera pública. Apesar de invisibilizadas pelo
sistema ‘moderno’ de administração, profundamente androcrático, as mapwyiamwénè33
permanecem exemplo da autoridade feminina na região, ao promoverem a ligação entre a
família e o espaço mais amplo dos antepassados, assim como por assegurarem a reprodução
das linhagens (Geffray, 1991; Bonate, 2006, 2007c; Arnfred, 2007).
A população de Angoche professa, na sua grande maioria, a religião islâmica, com uma presença
residual de igrejas cristãs. A religião islâmica influencia a vida social e cultural. Para além do
islão de matriz africana, as várias confrarias Sufi - Shadhiliyya e Qadiriyya - jogam um papel
importante no panorama religioso da região. Desde finais do séc. XIX que estas confrarias
defendem a importância da shari’a34 não apenas através da introdução de textos clássicos da
jurisprudência islâmica, mas também ao proclamar vários shaykhs Sufi como muftis. A partir de
finais da década de 60, uma outra corrente do Islão tomou corpo em Moçambique – o
Wahhabismo, com fortes ligações à Arábia Saudita, Kuwait e ao Sudão. Um traço
característico desta corrente exige a interpretação literal das fontes Islâmicas (o Corão e os
Hadith35), ou seja, a aplicação expressa da shari’a.
Em Angoche, a matrilineagem e o Islão coexistem, obrigando a uma reflexão sobre o carácter
plástico das identidades. Nesta região, a diversidade das manifestações de identificação com
o Islão vai conhecer várias mudanças a partir de finais do séc. XIX. Nessa altura, a shari’a
representava o sistema de justiça presente, quer nas regiões costeiras, quer entre as
populações do interior de Moçambique (Lupi, 1907: 80). Os mwalimo36 assistiam os chefes
locais na administração da justiça, quando, por exemplo, a inocência ou culpa do acusado era
determinado através da ingestão de bolas de papel com inscrições do Corão, ou ainda
bebendo a água em que essas inscrições se dissolviam (Almeida e Cunha, 1885: 48; Lupi,
1907: 193; Mello Machado, 1970: 255).
Os shaikhs eram dos principais dignitários político-religiosos. Estes foram assim
caracterizados por Ernesto Vilhena, um dos Governadores da Companhia do Nyassa:
32
Para os amakhuwa, mwénè é um título atribuído a um chefe, simbolizando o reconhecimento, nessa pessoa, de
uma larga sabedoria e experiência.
33
A irmã ‘mais velha’ (uterina ou reconhecida como tal pela sua experiência) de um chefe ( mwénè) nas
sociedades makhwua do norte de Moçambique. Em termos simbólico-religiosos, a pwyiamwénè é um dos pólos
do poder nas sociedades matrilineares do norte do país, representando a ligação entre a fundadora do grupo e as
gerações mais novas.
34
Princípios legais Islâmicos.
35
Conjunto de leis, ensinamentos e dizeres do Profeta Mohammed, através dos quais este justificou as suas
decisões ou ofereceu conselhos.
36
Professor(a) de religião.

28
Na maioria destas povoações encontram-se chefes que a si próprios dão o nome de
cheia, cheque ou chaca [shaiks], em geral, mestiços37 e cuja autoridade, quando não
passa regularmente de pais a filhos, tem sido transferida por escolha dos governadores
para mestiços também, visto serem estes os que constituem a camada fidalga, que mais
assiduamente professa a religião e que maior autoridade possue, consequentemente,
sobre o negro indígena. A acção destes chefes não se estende muito para o interior;
são por assim dizer uma transição entre o meio europeu e o propriamente indígena,
representado pelos grandes chefes macuas e macondes (1905: 14).

Economicamente, Angoche vivia da pesca e da comercialização do caju (Artur, 2003). Antes


da guerra civil, funcionavam três fábricas em Angoche: de processamento de peixe; de
descasque de arroz e descaroçamento da castanha de caju. Todavia hoje as fábricas de descasque
de arroz e de caju estão paralisadas e a frota de pesca desactivada. Consequentemente o
desemprego é enorme, pois que mais metade da população da cidade era assalariada nas
fábricas. Como consequência desta situação de desastre económico, as pessoas dedicam-se à
pesca artesanal, à pecuária de pequenas espécies, e à agricultura, sendo o sector familiar e
privado são os garantes da segurança alimentar da região (Conceição, 2003; Cruzeiro do Sul,
2003).

1. 7. Opções Metodológicas

A investigação realizada ancorou-se numa indispensável interdisciplinaridade, cruzando


perspectivas históricas, antropológicas, sociológicas e jurídicas. Apoia-se, igualmente, numa
leitura comparativa entre as diferentes realidades sociais, económicas e ideológicas que foram
resultando das diferentes realidades e expressões políticas presentes.
A abordagem metodológica escolhida para a recolha de dados privilegiou uma vertente
qualitativa, cruzando a observação sistemática, entrevistas semi-estruturadas, e análise de
documental (arquivos, jornais) e bibliográfica. Neste relatório é patente a tensão entre a
redução dos complexos fenómenos sociais em macro categorias conceptuais e a necessidade
de uma abordagem qualitativa que garantiu uma etnografia rica e profunda, repleta de
sentidos. Embora a literatura sobre feitiçaria esteja em expansão em Moçambique e no

37
Importa salientar que vários dos ‘filhos da terra’ (Vilhena, 1905: 225), mulatos, professavam a religião cristã,
integrando as elites locais no norte de Moçambique.

29
continente, e fornaça dados contextuais importantes, o enfoque destes estudos não tem sido a
resolução de conflitos.
Em relação à observação das instâncias envolvidas na resolução de conflitos, esta privilegiou
as cidades de Maputo e de Angoche. Nesta última cidade o trabalho foi realizado a cabo em
conjunto com Boaventura de Sousa Santos. Já o trabalho de Mapulanguene (contexto mais
rural) beneficiou de trabalhos e contactos anteriormente levados a cabo, no âmbito de outros
projectos de investigação.
Para tornar possível a recolha de informação ampla e diversificada que permitisse revelar a
complexidade das suspeitas e acusações de feitiçaria, foi elaborado um calendário de
observação de diversas instâncias que participam na resolução de conflitos relacionados com
a feitiçaria: AMETRAMO, Muleide, tribunais comunitários, administração de bairros,
tribunais judiciários, polícia, igrejas, etc.
Porque este projecto procurou analisar o problema da feitiçaria em contexto urbano, a opção
tomada foi a de centrar o estudo na cidade de Maputo (dado o seu volume e complexidade),
assim como em Angoche. Em ambos os espaços os investigadores envolvidos neste estudo já
haviam realizado outros projectos de pesquisa.
O perfil da cidade de Angoche permite um contraste com a cidade de Maputo; a introdução
de um capítulo que analisa a situação em contexto rural – o caso de Mapulanguene – alarga a
possibilidade de identificação de zonas semelhantes e dos momentos de diferença com
contextos urbanos.
A par das observações foram realizadas várias entrevistas semi-estruturadas a juízes de
tribunais comunitários, a conselheiros da Muleide, polícias e intervenientes nos processos de
feitiçaria, assim como a juízes e procuradores do Tribunal Judicial do Distrito Urbano nº 5, do
Tribunal Judicial Distrital de Angoche, de entre outros. No total foram realizadas mais de 60
entrevistas; pela natureza sensível desta investigação, muitos aspectos foram omitidos,
porque diziam respeito à vida privada dos entrevistados. Neste sentido, procurou-se
resguardar a sua privacidade, não revelando a sua identidade.
Através da observação participante e das entrevistas foi possível compreender em
profundidade, por exemplo, o que os actores de várias instâncias consideravam ser
comportamentos desviantes, para chegar aos casos que eram considerados, nas instâncias que
não o judiciário moderno, como acções desviantes, envolvendo a prática de feitiçaria. Num
outro patamar, esta abordagem metodológica permitiu seleccionar as ofensas criminais que,
apesar de formuladas como adultério, homicídio, assalto, roubo ou abuso de confiança,
continham elementos de acusações de feitiçaria. No total, para este estudo, foram observados
30
20 casos envolvendo acusações de feitiçaria e 10 outros casos envolvendo queixas associadas
a suspeitas de feitiçaria (onde os supostos feiticeiros viram os seus bens destruídos e/ou
forma sujeitos a acções violentas). Foram ainda analisados vários casos já arquivados.
A diversidade metodológica que guiou este projecto, reflectindo o seu carácter
interdisciplinar, procurou, por um lado, usar as diferentes fontes numa relação de
complementaridade; por outro lado, também contribuiu para um questionamento permanente
das informações recolhidas. Por isso, pesquisa bibliográfica e documental prolongou-se ao
longo da realização deste projecto, centrando-se não apenas na análise de processos (Muleide,
AMETRAMO, tribunais comunitários, tribunais judiciários), mas também de material de
arquivo e outras fontes documentais.
Em relação aos processos, a maioria das instâncias onde o trabalho de campo foi levado a
cabo são dominadas pela oralidade, e muitos actos processuais não são registados. Para estes
casos as entrevistas apresentavam-se como um complemento fundamental. Noutros casos, em
várias destas instituições os processos estão dispersos, incompletos, o que dificultou a sua
consulta e análise. Para as entrevistas e observações contou-se com o apoio de tradutores de
Ekoti, Emakhuwa, Xirhonga e Xichangana.
Porque parte do projecto incidiu sobre uma história presente, associado a este projecto
procedeu-se à constituição de um banco de informação de imprensa sobre temas que incidem
directamente sobre o tema da feitiçaria. Para esta parte do trabalho, assim como para demais
materiais de arquivo, o apoio do Arquivo Histórico de Moçambique revelou-se muito
importante, assim como os documentos analisados no Arquivo Histórico Ultramarino. Foi
ainda consultada documentação disponível noutros arquivos e bibliotecas (veja-se a
bibliografia).
Já a revisão bibliográfica apresentada reflecte a tentativa de alargar o estudo realizado nas
cidades de Maputo e Angoche a outros espaços moçambicanos, assim como de estabelecer
comparações com outras realidades presentes no continente africanos e noutras partes do
mundo, procurando desmistificar as leituras essencialistas e a-históricas ainda presentes sobre
o tema. Neste sentido, esta leitura relembra-nos que utilidade heurística de categorias como
‘feiticeiro’ dependem mais da forma em que são usadas para explicar, os processos e práticas
específicos em que aconteceram e acontecem. As publicações que surgiram ao longo da
última década sobre feitiçaria em África são extremamente diversas: incluem estudos sobre
assassinatos através de drogas (Murray e Sanders, 2005), sobre homens-leão (West, 2005;
Israel, 2008), sobre crianças feiticeiras (De Boeck, 2005; Cahn, 2006), sobre zombies
(Comaroff e Comaroff, 1999a, 1999b; Niehaus, 2005), sobre o pânico em torno da feitiçaria
31
(Alexander; McGregor e Ranger, 2000; Ashforth, 2005; Bernault, 2005), sobre a luta contra a
feitiçaria como um tema recorrente na história do continente (White, 2000; Crais, 2002;
Shaw, 2002; Green, 2003); sobre o oculto como uma resposta à economia neo-liberal e aos
processos de desenvolvimento (Comaroff e Comaroff, 1999b; Golooba-Mutebi, 2005;
Pfeiffer, Gimbel-Sherr e Augusto, 2007), assim como do oculto como expressão da
resistência popular e de crítica à corrupção e opressão por parte das elites locais (Tonda,
2000; West, 2001; Isichei, 2002; Geschiere, 2003). Outros temas tratados nestes trabalhos
incluem ainda o debate sobre o oculto como uma forma de poder político em África
(Kapferer, 1997; Geschiere, 1997; Bernault e Tonda, 2000; Niehaus, 2001, Ellis e Ter Haar,
2004), como uma fonte de resistência e de violência civil (Brinkman, 2003; Nicolini, 2006),
como uma expressão dos debates em torno da sexualidade (Niehaus, 2006), da epidemia do
HIV-SIDA (Yamba, 1997; Ashforth, 2001), ou ainda como uma forma de resolver extra-
judicialmente conflitos sociais (Tonkin, 2000; Peters, 2002; Hund, 2004; Geschiere, 2006).

32

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