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testemunhos de “desfiliados” que dele Há conexões de fundo entre o mas-

João Camillo Penna


resultam. Através de uma série de sacre de Canudos e o massacre do
ensaios articulados, o roteiro vai do Carandiru, assim como entre a guerra
testemunho judaico ao hispano-ameri- que quebrou a espinha das convic-
cano e daí ao testemunho carcerário ções cientificistas de Euclides da
brasileiro, esclarecendo especifici- Cunha e as favelas do Rio de Janeiro
dades deste. Discute manifestações onde se alojaram os soldados pobres,
sintomáticas e ambivalentes da cul- negros e mulatos que voltaram dela,
tura, o samba e o funk, acompanha o e aqueles outros que foram expulsos
destino de figuras como Marcinho vp, pelo “Bota-abaixo” sobre o qual se
Força e Sabotage, e coteja o docu- constituiu a cidade moderna e sani-
mentário Falcão – Os meninos do trá- tarizada. O sistema prisional bra-
fico com o romance Cidade de Deus. sileiro se tornou, por sua vez, uma
espécie de laboratório biopolítico
Toca em feridas profundas, apontando da pobreza, uma versão mal disfar-
para as dificuldades de elabora- çada de campo de concentração para

ESCRITOS DA SOBREVIVÊNCIA
ção dessa trama histórica complexa, pobres, que o extermínio do Carandiru
cuja atualidade é gritante, ao mesmo evidencia como sintoma clamoroso que
tempo em que contribui para uma dis- grita aos céus (ver, a propósito,
cussão que se torna mais urgente a a obra 111, de Nuno Ramos, citada
cada dia que passa. na capa deste livro, com a foto de
satélite tirada no momento em que se
josé miguel wisnik
dava a ação policial no presídio).

As duas maiores cidades do Brasil


FOTO: Cecilia Cavalieri

se fundam sobre um recalque para-


digmático cujos elos são raramente
João Camillo Penna trazidos à tona, que acusam falhas
geológicas tremendas na formação

ESCRITOS DA SOBREVIVÊNCIA
social brasileira e que se manifes-
tam em múltiplas modalidades con-
traditórias de mal-estar, sublima-
ções, mascaramentos, estetizações e
produções de alternativas. Escritos
da sobrevivência é um exame sério,
João Camillo Penna é professor de Literatura denso, consistente e original desse
Comparada e Teoria Literária na UFRJ, autor quadro complexo, mobilizando os ins-
de um livro de poesia, Parador (Móbile trumentos da literatura comparada na
Editorial, 2011), e de inúmeros artigos na
área de crítica da violência. travessia de diferentes formas de

9 788542 100709
escritos da sobrevivência
João Camillo Penna

escritos da sobrevivência
© 2013 João Camillo Penna
Sumário
Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico
da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

Coordenação Editorial
Isadora Travassos

Produção Editorial
Cristina Parga
Eduardo Süssekind
Rodrigo Fontoura Agradecimentos 9
Sofia Soter
Victoria Rabello
Introdução 11
Capa
Laura Vinci Capítulo 1
Sobre viver (Giorgio Agamben e Primo Levi) 41

cip-brasil. catalogação-na-fonte Capítulo 2


sindicato nacional dos editores de livros, rj Fala Rigoberta! 93
p459e
Capítulo 3
Penna, João Camilo, 1925- O sujeito carcerário 137
Escritos da sobrevivência / João Camillo Penna. - Rio de Janeiro : 7Letras, 2013.
314 p. : 23 cm
Capítulo 4
isbn 978-85-421-0070-9 O encontro e a festa (Hermano Vianna) 161
1. Violência. 2. Testemunho; 3. Literatura Comparada. I. Título. Capítulo 5
13-1242. cdd: 305
Marcinho VP como personagem  183
cdu: 316.7
Capítulo 6
A violência como figura (o Rap do Pequeno Príncipe) 221

Capítulo 7
Sabotage e a soberania 243
2013
Viveiros de Castro Editora Ltda. Capítulo 8
Rua Visconde de Pirajá 580, sobreloja 320 – Ipanema Mediação e inclusão 275
Rio de Janeiro | rj | cep 22410-902
Tel. (21) 2540-0076
editora@7letras.com.br | www.7letras.com.br
Bibliografia 297
E a experiência da sobrevivência na noite desses anos,
sua memória, está gravada no corpo...
zé celso martinez corrêa
Agradecimentos

Este livro colige o essencial de uma pesquisa de doze anos, realizada entre
2000 e 2012. Para a sua consecução foi essencial a bolsa de produtividade em
pesquisa do CNPq (desde 2001), além de um estágio pós-doutoral Capes/
Cofecub, em Paris, na Universidade de Paris Diderot Paris 7 (2011/2012).
Um livro não se escreve sozinho. Contei com muitas (incontáveis) ajudas
de pessoas queridas sem as quais seguramente o livro não teria saído (e
quase não sai, saindo agora com significativo atraso), ou teria saído muito
pior do que saiu. Corro o risco de esquecer alguns (ou muitos), mas pelo
menos gostaria de lembrar o nome de alguns deles aqui. José Miguel Wis-
nik, mestre oculto, Julio Ramos, inspirador de muitos dos caminhos que
o projeto tomou, Haquira Ozakabe (in memoriam), professor essencial
da vida e da morte. Armando Freitas Filho, mestre da poesia e de outras
vidas (ou seriam a mesma?). Michelle Elaine Peria, Tessi Gomes, parceiras
de vida. Tatjana Pavlovic, amiga distante-próxima dos tempos de Estados
Unidos, que ainda dura. Heloísa Buarque de Hollanda, que previu as possi-
bilidades da ideia, recebendo-a em uma versão inicial. Entre os acadêmicos
(não do Salgueiro, seria melhor se fosse), na UFRJ, e fora dela, no Depar-
tamento de Ciência da Literatura, e em outros, contei com o apoio inesti-
mável de algumas pessoas cuja interlocução em alguns momentos cruciais
fez a diferença entre sobreviver ou não: Marcelo Jacques de Moraes, Ângela
Maria Dias, Alberto Pucheu Netto, Ana Alencar, Ricardo Pinto, Eduardo
Brito Losso, Eduardo Coelho, Marcelo Diniz, Beatriz Resende. O projeto
temático “Escritas da violência” da FAPESP (2006-2010), coordenado por
Márcio Seligmann-Silva, Jaime Ginzburg e Francisco Foot-Hardman, deu-
me o ensejo para desenvolver algumas das hipóteses que fazem parte deste

9
livro. Candace Slater convidou-me para ministrar dois cursos de graduação Introdução
sobre o material do projeto em UC Berkeley em 2007, que me ajudaram a
esclarecer alguns dos aspectos da discussão. Em Paris contei com uma rede
de apoio, sem a qual cairia: Claire Nancy, Solange, Alain e Valérie Duyck.
Não fosse Silvana Jeha a praticamente forçar-me a mandar o projeto para a
Faperj, provavelmente esse livro não teria se concretizado. Ao Nuno Ramos
pelo presente da capa e à Laura Vinci pela leitura que a capa desenhada por
ela faz do livro que me deu o livro de volta. Para Cecilia Cavalieri, dentre
outras razões, por que ela é a própria vida – e em se tratando de sobrevi-
vência, a vida conta.

variações em torno do massacre


Cena 1: Nos últimos dias da guerra de Canudos, em Os sertões, de Eucli-
des da Cunha, Antonio, o “beatinho”, e Bernabé entregaram-se às forças
do exército. Instado pelo comandante a convencer os jagunços restantes
no arraial a se entregarem, voltou depois de uma hora Beatinho com um
grupo de trezentas mulheres, crianças e meia dúzia de velhos, justamente
o peso morto de que os poucos jagunços, ainda sobreviventes no arraial,
precisavam se liberar para continuar lutando. A fila andrajosa causou uma
estranha reação nos soldados.
A entrada dos prisioneiros foi comovedora. [...] Os combatentes contem-
plavam-nos e entristecidos. Surpreendiam-se; comoviam-se. O arraial, in
extremis, punha-lhes adiante, naquele armistício transitório, uma legião
desarmada, mutilada, faminta e claudicante, num assalto mais duro que o das
trincheiras em fogo. Custava-lhes admitir que toda aquela gente inútil e frágil
saísse tão numerosa ainda dos casebres bombardeados durante três meses.
[...] [A] vitória tão longamente apetecida decaía de súbito. Repugnava aquele
triunfo. Envergonhava. Era, com efeito, contraproducente compensação a tão
luxuosos gastos de combatentes, de reveses e de milhares de vidas [...].1

A reação dos combatentes é entre “comovedora” e “surpresa”, mas afi-


nal “envergonhada”. O narrador é preciso em sua descrição dos ânimos: a
visão correspondeu a um assalto mais terrível do que a violência da guerra.
O assalto “moral”, portanto, fora mais rijo do que o das armas. O gosto da
vitória lhes é tirado da boca: “a vitória tão longamente apetecida decaía”.

1 Euclides da Cunha. “Os sertões”. Obras completas vol. II, Rio de Janeiro: Companhia José
Aguilar Editora, 1966, p. 485.

10 11
O luxo de gastos da guerra, contraposto à inutilidade das gentes, às entra- “assalto” moral – construção da literatura como denúncia e protesto, forma
nhas do arraial vistas ali em sua inteireza, não mais do exterior, em posi- pela qual a literatura faz o trabalho de luto do crime, subitamente perce-
ção de inimigo, mas por dentro e defronte, como que ao avesso. Dentre os bido como sendo não mais da pobreza, mas da própria cultura, em nome
membros desta procissão sinistra, Euclides destaca a figura de uma megera da qual se mata, erigindo-se então como epitáfio dos milhares de jagunços
assustadora, carregando em seus braços uma menina, sua “neta, bisneta, assassinados em Canudos; este, o papel da literatura: apresentar o simulacro
tataraneta”, cuja face esquerda fora arrancada por um estilhaço de granada, perfeitamente ambivalente do massacre como diagnóstico moral do país.
deixando ver o osso do maxilar, a que grudara os restos da pele da ferida Em Euclides, constitui-se um dos mais poderosos paradigmas da cultura
já cicatrizada, e cuja face direita sorria. A esta figura, de riso incompleto, brasileira do século XX: um treno fúnebre contendo a defesa da autentici-
formoso de um lado e horrendo do outro, Euclides chamou de “a criação dade e da verdade cultural dos mortos. No início do XXI, um testemunho do
mais monstruosa da campanha.”2 massacre em que foram executados, segundo estatísticas oficiais, 111 presos,
pelo batalhão de choque da Polícia Militar, revela a “justificativa” política,
Cena 2: O conto “Pavilhão 9” de Hosmany Ramos, que transcreve o
eleitoreira, da invasão do Pavilhão. Para um massacre meticulosamente exe-
testemunho de Milton Marques Viana, sobrevivente do massacre do Caran-
cutado para não ser testemunhado (os guardas foram evacuados, os poli-
diru, ocorrido em 2 de outubro de 1992, narra o momento exato, captado
ciais militares retiraram suas insígnias e crachás, a luz foi cortada), impres-
pela televisão e visto pelos presos, em que o Coronel Ubiratan Guimarães
siona a quantidade de testemunhos por ele deflagrados, dentre os quais um
recebeu a permissão de invadir o Pavilhão 9 da Casa de Detenção de São
dos mais impressionantes é o do cirurgião, ex-auxiliar de Ivo Pitanguy, o
Paulo:
presidiário Hosmany Ramos. Em ambos os casos, o massacre tem um álibi
O promotor [e secretário de segurança] Pedro Franco brada em alto em bom político, explícito no caso de Canudos e espúrio no caso do Carandiru: cons-
som: “Coronel Ubiratan, o senhor está no comando das operações. Faça o que piração monarquista estrangeira, no primeiro; votação do PMDB, partido do
achar melhor. Se o juiz autorizar, e se necessitar invadir o Pavilhão, está auto-
governador de S. Paulo na época – Luiz Antônio Fleury Filho, autoridade
rizado. Amanhã será dia de votação e o PMDB não pode sair prejudicado por
conta de alguns marginais arruaceiros. Sufoque urgentemente a bagunça!”3 maior e provável mandante do massacre, ex-deputado federal (1998-2005),
e militante da chamada “bancada da bala” –, no segundo. Tanto em Os ser-
As duas cenas, a do final de Os sertões e o trecho do testemunho de Hos- tões quanto em “Pavilhão 9”, a literatura coloca-se a missão de testemunhar
many Ramos, giram em torno de dois massacres finisseculares, enfeixando – o extermínio dos jagunços em Canudos; a execução sumária dos presos
o século XX, dentre outros que pontuam de maneira mais ou menos conspí- “arruaceiros” no Carandiru, contradizendo o terrível veredito citado por
cua a história contemporânea brasileira. Massacres, no entanto, exemplares: Euclides: “Ademais, não havia temer-se o juízo tremendo do futuro / A his-
uma solução policial-militar para um “desajuste” social, revelando o binô- tória não iria até ali”.4 Essa a missão da cultura: historiar o que a sociedade
mio da penalização e da culturalização da pobreza brasileira. O século XX brasileira penalizou. Euclides chega a Canudos acreditando na bazófia nar-
literário brasileiro se abre com a revelação corrosiva e espantosa a si pró- rada pela mídia impressa, como correspondente dessa mesma mídia, de que
prio das até então desconhecidas entranhas de sua pobreza interiorana. Ela a cidade era um reduto de monarquistas financiados do exterior com ambi-
é penalizada pela Guerra de Canudos e culturalizada por Euclides em seu ções de derrubar o regime republicano recém-instituído. Ao chegar des-
livro, que contém o depoimento sobre a derrota “moral” dos vitoriosos da cobre o reverso disso: a população era constituída de trabalhadores rurais
guerra civil, expostos à violência da indigência que combateram com “tão profundamente religiosos, sem educação formal, atordoados com a tran-
luxuosos gastos de combatentes, de reveses e de milhares de vidas”. Um sição simbólica da mudança ao regime republicano, que pertencia a um
2 Ibidem, p. 486.
3 Hosmany Ramos. “Pavilhão 9”. Pavilhão 9. Paixão e morte no Carandiru. São Paulo: Geração
Editorial, 2001, p. 246. 4 Euclides da Cunha. Os sertões, loc. cit., p. 462.

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mundo que desconheciam e que não lhes concernia.5 E o que é essencial: de Canudos, sobretudo nas avaliações mais ponderadas e “progressistas”
“aquela rude sociedade, incompreendida e olvidada, era o cerne vigoroso da revolta como “loucura coletiva”, de uma leitura de causas do fenômeno
da nossa nacionalidade”;6 isto é, o extermínio tivera por objeto o segmento que passava pelo diagnóstico da degenerescência e do atavismo de Antônio
mais autêntico da população brasileira. No massacre do Carandiru revela- Conselheiro.13 Sua “psicose progressiva”14 seria o “produto natural da here-
se afinal ao público em larga escala a situação real dos presídios brasileiros, ditariedade psíquica”,15 um “infeliz destinado à solicitude de um médico”,16
como depósito anômico de pobres e como laboratório social desta mesma diagnóstico que Euclides compartilha com o médico Nina Rodrigues, que
pobreza, análoga às “classes perigosas” do século XIX europeu, mas a que será encarregado de realizar a análise frenológica do crânio do Conselheiro,
falta precisamente o contorno de uma classe.7 Em ambos os casos, clara- depois da exumação do seu corpo. Que o arcabouço teórico de Os sertões
mente, a justificativa “política” apenas arranha a superfície de uma razão seja o evolucionismo biológico apenas demonstra que a própria denúncia
de estado muito mais profunda, “biopolítica”, algo ligado ao campo descor- do extermínio participa do discurso que o justifica.17 Da mesma forma, o
tinado por Michel Foucault como a gestão estatal da população concebida médico Drauzio Varella, autor do primeiro texto literário em que se depõe
como patrimônio biológico a ser defendido. Assim, é no contexto do sur- sobre o massacre de 1992, que programa todos os testemunhos de sobrevi-
gimento das grandes ciências demográficas, de uma administração maciça ventes publicados adiante, parte de uma leitura estritamente darwiniana
das coletividades, que aparece a noção de raça, como “contínuo biológico do encarceramento. “Em cativeiro” – escreve ele – “os homens, como os
da espécie humana”, e de racismo, a partir do qual se estabelece um “corte demais grandes primatas (orangotangos, gorilas, chimpanzés e bonobos),
entre o que deve viver e o que deve morrer”.8 Desta forma, explica Foucault, criam novas regras de comportamento com o objetivo de preservar a inte-
“os massacres se tornaram vitais”.9 É através do biopoder, sob a forma do gridade do grupo”.18 Mais uma vez, o depoimento contra o diagnóstico da
racismo, portanto, que se assegura a função assassina do Estado,10 estrutu- barbárie, justificativa do massacre, é biopolítico; mais uma vez, o protesto
rado a partir do imaginário da guerra civil contra os seus “inimigos sociais” contra a ação militar policial do extermínio participa do mesmo discurso
coletivizados. Enquanto a delinquência constitui uma figura individuali- que diz no Brasil proverbialmente que “bandido bom é bandido morto”,
zada do inimigo social, o criminoso, configurado pelo sistema prisional, que se regozijou com a morte dos presos.
o biopoder como forma de gestão populacional, visa a um inimigo cole- Assim, o riso monstruoso e incompleto da menina de Canudos, o
tivo, do qual a sociedade deve ser protegida.11 É o que faz entrar o direito “monstro”, símbolo da duplicidade do Brasil, espécie de mise en abyme da
de matar, explica Foucault, na economia biopolítica da vida.12 Explica-se revelação realizada por Os sertões, eco afetivo do “monstro” Antonio Con-
assim a presença no discurso científico corrente na época da Campanha selheiro, reaparece nos testemunhos do Carandiru sob a forma da revelação

5 Nicolau Sevcenko. “Introdução. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do pro-


13 Euclides da Cunha. Os sertões, loc. cit., p. 193.
gresso”. In: Fernando A. Novais e Nicolau Sevcenko (orgs.). História da vida privada do Bra-
sil, vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 18-19. 14 Ibidem, Idem.
6 Euclides da Cunha. Os sertões, loc.cit., p. 161. 15 Gazeta de Notícias, edição de 1° de abril de 1897. Citado por Walnice Nogueira Galvão. No
calor da hora. A Guerra de Canudos nos jornais. 4ª expedição. São Paulo: Editora Ática, ter-
7 Sobre as classes perigosas, ver Louis Chevalier. Classes laborieuses et classes dangereuses à
ceira edição, 1994, p. 95.
Paris pendant la première moitié du XIXe siècle. Paris: Hachette, 1984, segunda edição. Ver
também Robert Castel, La discrimination négative. Citoyens ou indigènes? Paris: Seuil, 2007. 16 Euclides da Cunha. Os sertões, loc. cit., p. 193.
8 Michel Foucault. “Aula de 17 de março de 1976”. Em defesa da sociedade. Tradução: Maria 17 Euclides defende uma tese tipológica sobre as duas linhagens de mestiçagem brasileira, a
Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999; segunda tiragem, 2000, p. 304. litorânea e a interiorana, o mulato e o curiboca, com privilégio do último – exemplificado
pelo sertanejo, de que o jagunço canudense seria um representante –, que permanecera por
9 Michel Foucault. História da sexualidade I. Vontade de saber.Trad. Maria Theresa da Costa S.
razões histórico-geográficas insular e abandonado da civilização, estabilizando-se muito pró-
Albuquerque e J.A. Guilhon de Albuquerque. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1977, p. 129.
ximo do autóctone indígena, um retrógrado e não um degenerado, muitíssimo superior ao
10 Michel Foucault. “Aula de 17 de março de 1976”, loc. cit., p. 306. “mestiço neurastênico do litoral”. (Ibidem, p. 166-169.)
11 Michel Foucault. “La société punitive”. Dits et écrits, I. Paris: Gallimard, 1994, p. 1336-1339. 18 Drauzio Varella. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999; 2002, vigésima
12 Michel Foucault. “Aula de 17 de março de 1976”, loc. cit., p. 308. impressão, p. 10.

14 15
da prisão como amostra laboratorial da pobreza urbana brasileira, seu sím- suas mulheres, as viandeiras, que se instalaram após a guerra no morro da
bolo concentrado, tornado visível periodicamente pela mídia nos incidentes Providência, atrás da Central do Brasil, próximo do Ministério da Guerra,
de revoltas de presos, assassinatos de diretores de presídio, que abundam no esperando a desmobilização, a eles se juntando sobreviventes de Canudos,
noticiário recente. Em ambas as cenas, atesta-se uma mesma divisão interna “centenas de mulheres e crianças trazidas para a capital federal”.21 E que o
ao Brasil, separado de sua pobreza interiorana ou de sua pobreza urbana, nome “favella”, rebatizando o morro, que passaria a topônimo das moradias
fechada em uma cidadela sitiada ou no sistema penitenciário, representação de comunidades carentes situadas nas encostas de morros do Rio, desig-
do “inimigo social” tornado visível pela mediação da literatura ou da mídia. nando um arbusto típico da região nordestina, era o nome de um morro
Subitamente o Brasil se torna consciente de sua outra metade criminalizada. localizado nas cercanias do arraial de Canudos, onde os soldados acampa-
Como de praxe, a outra metade, seja ela distante ou próxima, e cada vez ram: o Alto da Favella. Que os soldados de Canudos tenham trocado de
mais distante e irreal quanto maior for a proximidade, mesmo dentro de lugar nesse trânsito, passando de algozes a primeiros moradores das encos-
uma cidade, transmitida pelos televisores interligados da nação, é a parte tas cariocas que se multiplicarão adiante com a expansão que conhecemos,
desconhecida e ignorada – esse o objeto dos dois epitáfios, que nomeiam se explica pelo fato de serem eles também “humildes, no máximo da classe
o massacre. Ambos denotam uma mesma demonização ou estigma sobre média”, não muito distantes dos canudenses que exterminaram.22 A mesma
o que intimamente desconhecemos, a dupla guerra, com estrita segmenta- Favella (e favella) retomará nos anos 1920 e 1930 o nome de morro da Pro-
ção territorial e divisão de papéis: construção midiática, cultural, gestão do vidência. Tampouco é coincidência o fato de este morro da Providência
medo do “Outro” – a pobreza endêmica, penalizada – para uns; e guerra efe- ter sido, em 2008, o palco da terrível execução de três jovens negros mora-
tiva para os moradores de penitenciárias, periferias, comunidades, favelas e dores da favela, sendo um deles menor de idade, assassinados por trafi-
bairros pobres, divididos entre a penalidade e a subjetivação pela cultura, cantes da facção inimiga do morro da Mineira, entregues a seus algozes
para outros. O imaginário da guerra civil, a política de segurança cujo único por soldados do exército, atuando como seguranças, em concessão espe-
resultado é a insegurança da sociedade em larga escala, a configuração de cial do presidente Lula, na obra assistencialista que seu aliado, o senador
um país em torno da lógica biopolítica, oposicional do inimigo aterrorizante e candidato perdedor à prefeitura da cidade, o bispo evangélico Marcello
a ser exterminado – três vértices da mesma figura como ponto de interseção Crivella, dirigia na mesma favela, com finalidades claramente eleitoreiras
entre as duas cenas. Dois eventos da mídia, portanto,19 Canudos e o Caran- e com dinheiro público.23 Este microcosmo das contradições da política
diru; nos dois casos, uma mesma construção simbólica do inimigo social, brasileira – o exército brasileiro prestando serviços ao narcotráfico; a “lei
jagunço ou preso, este mesmo morador da fronteira desconhecida, devas- da rua” aplicada por traficantes e a justiça militar; a aliança do presidente
sada e insegura que divide internamente o território.20 do Partido dos Trabalhadores com um político religioso conservador; a
Palmilhando ainda por um instante essa dupla figura, não é certa- obra social de fachada custeada pelo contribuinte no palanque eleitoral –
mente um acaso o fato de uma das primeiras favelas oficiais do Rio de contém cifrada, em última análise, uma mesma moral: a mesma penaliza-
Janeiro, batizada precisamente de “Morro da Favella”, ter sido formada ção da pobreza, perpetrada ontem pelos primeiros moradores do Morro da
por ex-combatentes da Campanha de Canudos: cerca de 10.000 soldados, Favela aos habitantes do arraial de Canudos e hoje aos atuais moradores do
19 Cf. No calor da hora de Walnice Nogueira Galvão, loc. cit.; Gatos de outros sacos, p. 72-73.
mesmo morro. A favela carioca como repetição próxima, “familiar”, interna
“Pela primeira vez os jornais brasileiros estavam sendo usados com o fito de criar um pânico
generalizado. Notícias sobre Canudos apareciam diariamente, e quase sempre na primeira 21 Maria Cristina Cortez Wissenbach. “Da escravidão à liberdade: dimensões de uma privaci-
página; efetivamente, esse foi o primeiro acontecimento a ter cobertura diária na imprensa dade possível”. História da vida privada do Brasil, vol. 3, loc. cit., p. 96.
brasileira”. Robert M. Levine. O sertão prometido. O massacre de Canudos. Trad. Mônica Dan- 22 Nélson Werneck Sodré. “Revisão de Euclides da Cunha”. In: Euclides da Cunha. Obras com-
tas. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1995, p. 53. pletas vol. II, loc. cit., p. 42.
20 Foi sem dúvida Ivana Bentes, em artigo do Jornal do Brasil (08/07/2001), “Cosmética da fome 23 Renato Lessa. “Estado providência”. Estado de São Paulo, 25/06/2008; Merval Pereira. “Poli-
marca cinema do país”, quem mapeou este território continuo do sertão e da favela das repre- tização trágica”, O Globo, 17/06/2008; Maria Rita Kehl. “O impensável”, Folha de São Paulo,
sentações do “outro” no cinema brasileiro. 22/06/2008.

16 17
à antiga capital, da distância do arraial de Canudos, trazido para dentro da e no interior da moderna capital do país, projetando para dentro de si a dis-
outra cidade, continua sendo o palco de pequenos ou grandes massacres. A tância “regressiva” da pobreza, segundo um mecanismo que uma analogia
diferença de cifras não nos deve enganar: 15.000 mortos em ambos os lados com a tópica psicanalítica, e o retorno do recalcado da neurose, segundo
do conflito canudense – afinal de que vale distinguir entre exterminadores Freud, descreve bem.30 Uma ironia igualmente terrível no que toca à pri-
e exterminados, ambos tão próximos no espectro social?24 – e não apenas meira prisão brasileira, a Casa de Correção da Corte (tornada Complexo
três, como na noite de 14 de junho de 2008, mas 45 ou 50 mil homicídios Penitenciário Frei Caneca, não muito longe do atual morro da Providência,
praticados anualmente no Brasil nos últimos anos, segundo estatísticas de e desativado em 2006). Seguindo o diagrama do panóptico de Bentham,
ONGs, números superiores ao de muitas guerras civis ou não, concentrados sua construção, iniciada em 1834, coloca o Brasil na vanguarda do movi-
nas áreas mais pobres do país.25 Ou especificamente os assassinatos come- mento do reformismo penitenciário na América Latina. O projeto é de fato
tidos pela polícia carioca: entre 2003 e 2007, a polícia do Rio de Janeiro o primeiro da América Latina; irônico, no entanto, que tão impressionante
matou 5.669 pessoas; apenas em 2007, 1.330 pessoas. Todas essas mortes modernidade contenha de fato um programa de extermínio.31
foram registradas como “autos de resistência”, embora pesquisas realizadas Da mesma forma se dá a muito conhecida história da modernização
nas ações letais da polícia carioca no ano de 2003 demonstrem que 65% das do Rio de Janeiro: nos primeiros anos do século XX, a tripla “ditadura”
mortes apresentam características claras de execuções.26 sanitarista e modernizante, representada pelo engenheiro Lauro Mül-
A antiga capital se presta a uma análise topológica, ou “heterotópi- ler, o médico sanitarista Oswaldo Cruz e o urbanista Pereira Passos, será
ca”, que dê conta de seus múltiplos espaços como projeções da sociedade
27
nomeada pelo presidente Rodrigues Alves para realizar a urbanização do
brasileira, que a cidade interioriza ao mesmo tempo que expele, em um Rio, que consiste antes de mais nada na destruição das moradias pobres na
movimento ao mesmo tempo centrífugo e centrípeto, variações em torno área central da cidade, em um processo intitulado à época “Regeneração”
do extermínio, do deslocamento ou da remoção. Assim, Canudos prefigura (pela grande mídia) ou “bota-abaixo” (pelos despejados). Estes moradores
de mais de uma maneira o destino das cidades brasileiras, da mesma forma desalojados se refugiarão nas encostas dos morros, acarretando a disse-
que os presídios brasileiros se converterão em microcosmos das periferias e minação conhecida das favelas.32 Esta foi, portanto, a primeira “remoção”
comunidades destas mesmas cidades. A matriz da analogia topológica está carioca, a que se seguirão outras tantas com finalidades mais ou menos cos-
em Euclides em sua leitura da “civitas sinistra do erro”.28 Assim, ele propõe méticas ao longo das próximas décadas. Everaldo Backheuser, em 1905, na
a analogia da análise geológica para interpretar a figura do Conselheiro:
seu atavismo regressivo seria o vestígio extinto de uma estratificação primi- 30 Sigmund Freud. “Repressão”. Edição eletrônica brasileira das obras completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
tiva rochosa, da mesma forma que o tipo étnico do sertanejo, este “anacro-
31 Embora o projeto da Casa de Correção da Corte, tenha sido o primeiro a seguir o modelo da
nismo étnico”,29 teria mantido incubada em sua insularidade a quase pureza reforma penal na América Latina, a longa demora em sua construção (1834-1850), fez com
original do autóctone indígena. Há portanto uma lógica histórica contida que ela fosse inaugurada após a Penitenciária de Santiago, no Chile, construída entre 1844 e
1849. Brasil e Chile sendo, portanto, os pioneiros da modernização penal na América Latina
no fato de que a cidade erradicada no interior da Bahia ressurja às margens (Ricardo D. Salvatore e Carlos Aguirre. “The Birth of the Penitentiary”. Latin America: Essays
on Criminology, Prison Reform, and Social Control, 1830-1940. Austin: University of Texas
24 Robert M. Levine. O sertão prometido. O massacre de Canudos, loc. cit., p. 266. Press, 1996, p.9-10). Sobre as estatísticas de óbitos da Casa de Correção: “245 presos morre-
25 Citado em Commission des droits de l’homme. “Droits civils et politiques, notamment les ram na prisão dos 1.099 admitidos entre junho de 1850 e dezembro de 1869. Se excluirmos
questions conernant lês disparitions et les exécutions sommaires. Executions extrajudi- os sentenciados a menos de 2 anos, temos 236 mortes em um universo de 656 presos (36%).
ciaire, sommaires ou arbitraires”. Rapport de la Rapporteuse spéciale, Mme. Asma Jahangir Para os sentenciados a mais de 10 anos, os índices de mortalidade excederam a 50%. E dos 32
(16/092003-08/10/2003). presos sentenciados a mais de 20 anos, 27 morreram, 2 foram transferidos, e 2 perdoados. O
único sobrevivente foi preso um ano antes; podemos adivinhar quanto tempo ele sobrevive-
26 Luiz Eduardo Soares. “Refundar as polícias”. Le monde diplomatique Brasil, janeiro 2009, p. 6.
ria.” (Marcos Luiz Bretas. “What the Eyes Can’t See: Stories from Rio de Janeiro’s Prisons”.The
27 Michel Foucault. “Des espaces autres”. Dits et écrits II, loc. cit., p. 1571-1581. Birth of the Penitentiary in Latin America, loc.cit., p. 104).
28 Euclides da Cunha. Os sertões, loc. cit., p. 215. 32 Nicolau Sevcenko. “Introdução. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do pro-
29 Ibidem, p. 328. gresso”, loc. cit., p. 23.

18 19
revista Renascença, que exaltava a modernidade da nova capital, já alertava trânsito da representação do funk na mídia impressa entre as páginas dos
em tons de Cassandra para o terrível contraste entre aquela “aldeia de case- cadernos culturais e policiais.37 Hermano Vianna, em duas teses, vai tra-
bres e choças” que crescia no morro e a maravilhosa avenida Central, hoje çar a progressiva dissociação interna à cidade, investigando a passagem da
Rio Branco, construída precisamente sobre o vazio deixado pela destruição forma do samba, plasmada a partir de amplos contatos entre elites e classes
das moradias da área central da cidade.33 Eis a negação constitutiva contida populares e alegorizada na figura do encontro, e do funk contemporâneo,
no cerne da moderna e sanitarizada capital, que remete metonimicamente marcado pela clivagem radical entre as duas metades da cidade, a zona sul
a outra, o massacre de Canudos: ela se funda na derrubada das moradias e a zona norte, e a radical ausência de mediação e de mediadores que fizes-
populares, sob o vazio pavimentado deixado por elas e o consequente des- sem a passagem que dera origem, de forma tão característica, por outro
locamento de seus antigos moradores para suas margens menos visíveis. lado, ao samba.38 Este é o tema do capítulo 4 deste livro, “O encontro e a
Algo como a urbanização do diagnóstico de Euclides sobre o arraial: “Era festa (Hermano Vianna)”.
um parêntesis; era um hiato. Era um vácuo. Não existia.”34 Este recalque
***
paradigmático e fundante, que por assim dizer “neurotiza” a cidade, vai
gerar uma cultura sintomática em seus símbolos ambivalentes e contradi- Cena 3: Sabotage, Mauro Mateus dos Santos, um dos mais geniais
tórios, ao mesmo tempo maravilhosos e terríveis, dentre os quais, mas de rappers paulistanos contemporâneos, ex-gerente de tráfico da favela da
formas bastante distintas, o samba e o funk.35 Paz, zona sul de São Paulo, foi assassinado em 24 de janeiro de 2003, em um
A cultura produzida no Rio de Janeiro simbolizará de forma ambígua ajuste de contas entre traficantes, embora tivesse abandonado o tráfico pelo
esse processo de negação constitutiva. Explica-se assim a dupla face penal menos dois anos antes. Rappin’ Hood, outro rapper também paulistano, o
cultural que as formas musicais populares mais características vão assumir. mesmo que o retirara do tráfico nos antes, disse sobre ele: “o exemplo dele
Vide a longa história do samba, que nasce da transformação do malandro prova que o hip-hop salva, ele era um homem regenerado, o problema é
penalizável em malandro-sambista profissional decente da cultura.36 Mais que ele esqueceu o passado, mas o passado não esqueceu dele”.39
recentemente, vimos no funk, na mesma cidade, algo de semelhante, con-
Cena 4: Marcio Amaro de Oliveira, o Marcinho VP, gerente do tráfico
forme arguta demonstração de Micael Herschmann, que acompanhou o
do morro Santa Marta, situado na zona sul do Rio de Janeiro, foi executado
no dia 28 de julho de 2003, em Bangu III. Quatro acontecimentos interli-
33 “É interessante fazer notar a formação dessa pujante aldeia de casebres e choças no coração
mesmo da capital da República, eloqüentemente dizendo pelo seu mudo contraste a dois pas- gados o catapultaram de pequeno traficante a “marginal midiático”:40 1) a
sos da Grande Avenida, o que é esse resto de Brasil pelos seus seis milhões de quilômetros”.
Apud Maria Cristina Cortez Wissenbach. “Da escravidão à liberdade: dimensões de uma 37 A pesquisa demonstra a passagem do funk carioca entre os cadernos culturais dos jornais
privacidade possível”, loc.cit., p. 96. (100% em 1990; portanto, antes do “Arrastão” exibido pelo Fantástico em 18/10/1992) e os
34 Euclides da Cunha. Os sertões, loc. cit., p. 462. cadernos policiais (92,8% em 1992), até chegar a um equilíbrio precário em 1996 (56% cader-
nos policiais; 44% cadernos culturais). Micael Herschmann. O funk e o hip-hop invadem a
35 “Nossas análises demonstram todas que as neuroses transferenciais se originam de recuar-se
cena. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2000, p. 94.
o ego a aceitar um poderoso impulso instintual do id ou a ajudá-lo a encontrar um escoador
ou motor, ou de o ego proibir àquele impulso o objeto a que visa. Em tal caso, o ego se defende 38 Hermano Vianna, O mundo funk carioca. Rio de Janeiro: Zahar,1988; O mistério do samba. Rio
contra o impulso instintual mediante o mecanismo da repressão. O material reprimido luta de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.“De início, o que me levou a estudar os bailes foi justa-
contra esse destino. Cria para si próprio, ao longo de caminhos sobre os quais o ego não tem mente a possibilidade de um fenômeno daquela proporção [envolvendo na época algo como
poder, uma representação substitutiva (que se impõe ao ego mediante uma conciliação) – o 1 milhão de pessoas, segundo estimativa de O mundo funk carioca, p. 13] existir na cidade em
sintoma. O ego descobre a sua unidade ameaçada e prejudicada por esse intruso e continua que vivia sendo ignorado pelos membros dos vários grupos sociais com os quais eu convivia”.
a lutar contra o sintoma, tal como desviou o impulso instintual original. Tudo isso produz o Cf. Hermano Vianna, “O funk como símbolo da violência carioca”. In: Gilberto Velho e Mar-
quadro de uma neurose.” (Freud, Sigmund, “Neurose e psicose”). cos Alvito (orgs.), Cidadania e violência. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/Ed. FGV, 1996, p. 182.
36 Cf. dentre outros, Feitiço descente. Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio 39 Marina Amaral. “Som e fúria. A saga de Sabotage”. Especial Caros Amigos. Hip hop hoje,
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, Ed. UFRJ, 2001, de Carlos Sandroni, e “Para não dizer não falei número 24, junho de 2005, p. 19.
de samba: os enigmas da violência no Brasil”, de Alba Zaluar (dir. Fernando Novais). História 40 A expressão é de Ivana Bentes e Micael Herschmann, “O espetáculo do contradiscurso.”
da vida privada no Brasil. Vol. V. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Caderno Mais! Folha de São Paulo, 18 de agosto de 2002.

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contratação de seus serviços e de seus comandados como seguranças para pulsivo daquilo mesmo de que se pretendia escapar, seja isso a morte de
a equipe de filmagem do videoclipe de Michael Jackson, “They don’t care fato ou a morte social, representada pela criminalidade. Ocorre ainda em
about us”, dirigido por Spike Lee; 2) a entrevista dada por ele aos três maio- Euclides, obviamente em uma chave bastante distinta, algo como essa “sal-
res jornais cariocas na noite da filmagem; 3) o envolvimento com o docu- vação” pela cultura: José Calazans conta que o escritor resgatou um menino
mentarista e filho de banqueiro, João Moreira Salles; 4) a publicação do de 6 ou 7 anos, sobrevivente do combate de Canudos, e o levou para o Rio
romance-reportagem Abusado: o dono do morro Dona Marta, do Jornalista de Janeiro e eventualmente para São Paulo, entregando-o a Gabriel Prestes,
Caco Barcellos. diretor da Escola Normal, que o adotou e criou, batizando-o de Ludgero
Prestes. O menino teria obtido um diploma do ensino básico, tornando-se
Cena 5: Sérgio Cláudio de Oliveira Teixeira, o “Força”, único sobre-
professor em São Paulo.42 Dois fenômenos estão em jogo aqui: a simboli-
vivente dentre os dezessete falcões de tráfico entrevistados por MV Bill e
zação mais ou menos controlada da violência, segundo ela se transforme
Celso Athayde em Falcão –meninos do tráfico, a quem a versão em livro
ou não em categoria estética, e a inclusão cultural, que nomeia o mote de
do documentário é dedicada, declarou aos presentes, na exibição do docu-
tantos programas de “recuperação” da delinquência praticados hoje em dia
mentário, no auditório da TV Globo, duas semanas depois da primeira
no Brasil. Parafraseando e retirando de seu contexto original uma frase
exibição, que: “a prisão [o] salvou da morte”.41 Na mesma ocasião, Beto
de Foucault de 1984, do verbete “Foucault”, escrito para o Dicionário de
Carrero, empresário do ramo de circos, convidou-o a ingressar na escola
filósofos de Huisman e assinado por Michel Florence (M.F.), diria que o que
de palhaços, sob aplausos efusivos da plateia, realizando o seu sonho de
abordo aqui é a constituição de sujeitos a partir de uma divisão moral ou
menino, como o filme mostrara, viabilizando assim a sua “salvação” de fato.
penal –o jagunço, o preso, o traficante, o marginal – tornando-os objetos
A cena parece saída de um de nossos shows de variedades televisivas, Rati-
de cultura.43 Nas três cenas narradas acima, tratadas em detalhe neste livro,
nho ou Leão, com a encenação cotidiana em tempo real da realização dos
temos um desdobramento midiático do problema que vimos antes em Os
desejos da população carente em benefício do grande público.
sertões e no conto “Pavilhão 9”. A ambiguidade do jagunço de Canudos
é agora retomada pela cultura e pela mídia, que reelabora o imaginário
crítica da subjetivação da guerra civil estruturante da sociabilidade e muda o sinal do “inimigo
O que se discute em Escritos da sobrevivência é atestado em Canudos, no social”, espetacularizando-o, estetizando-o ou precariamente incluindo-o.
testemunho de sobreviventes do Carandiru, na “salvação” de Sabotage e Jovens pobres que em geral trabalharam no tráfico durante grande parte
de Força, na visibilidade obtida por Marcinho VP. Trata-se antes da mais de suas vidas logram ou não distanciar-se da delinquência que os subjeti-
nada da ambígua subjetivação penal e cultural brasileira, em suas múltiplas vou. Subjetivação, portanto, perfeitamente ambígua: é a penalização que os
figurações do “inimigo social”, ou das elaborações simbólicas do modelo constitui como sujeitos/objetos, que os torna objeto de interesse cultural.
da delinquência. O capítulo 3 trata do testemunho carcerário brasileiro; o Os exemplos, no entanto, estão longe de ser homogêneos. Senão veja-
capítulo 5, de Marcinho VP; o capítulo 7, de Sabotage; e o capítulo 8, do mos: Sabotage, com impressionante talento artístico individual, é o único
documentário Falcão – meninos do tráfico e de Cidade de Deus (o livro e o dentre eles a conseguir agenciar um projeto artístico, “sublimando” ou “ele-
filme). A “salvação” neste contexto é polissêmica e significa dentre outras vando” – “suspendendo”, no sentido da Aufhebung hegeliana – a vida de
coisas um desvio viável da rota quase certa que leva à morte por assassinato marginalidade ao patamar de símbolo musical. As quatro subjetivações/
violento na vida desses egressos do crime, salvação esta assombrada quase objetivações agenciadas por Marcinho VP – do pop internacional, da mídia
sempre, segundo uma necessidade interna ao modelo, pelo retorno com- impressa, do encontro entre classes, do relato literário – situam-se na inter-
42 José Calasans. “O jaguncinho de E. da Cunha”, Revista de Cultura da Bahia, v. 7, 1972, p. 75-78.
41 Talita Figueiredo. “‘A prisão me salvou da morte’, afirma falcão sobrevivente”. Folha de São Apud Robert M. Levine. O sertão prometido. O massacre de Canudos, loc. cit., p. 273.
Paulo, 15 de abril de 2006. 43 Michel Foucault. Dits et écrits II, loc. cit., p. 1452.

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face profundamente ambígua e indecidível entre a cultura e a estetização da surpresa e da comoção era: mas são estes afinal os nossos inimigos? São
da marginalidade. Observe-se, além disso, neste caso, a criminalização da estes os traficantes que nos causam tanto medo e de que nos protegemos
relação do favor, entre Marcinho e João Moreira Salles, acusado de “favore- com muros cada vez mais altos, em enclaves fortificados e com sistemas de
cimento pessoal” – a mesma relação que codificava a mediação ou fluidez segurança cada vez mais sofisticados? A mesma pergunta essencialmente
relativa entre segmentos sociais estanques no Brasil, circunscrevendo a zona que se fizeram os soldados de Canudos, acometidos do “assalto” moral. A
ambígua onde circulam os homens livres na sociedade escravocrata do século que dever-se-ia juntar uma outra: de onde a surpresa?
XIX, segundo o esquema que Roberto Schwarz identificara como a matriz Recuemos um pouco e tentemos desenhar o contorno do campo que
da obra de Machado de Assis, a partir da obra de Maria Sylvia de Carvalho aqui se esboça. O que tenta se pensar aqui é a subjetivação no campo da
Franco.44 Desde esse modelo, portanto, seria possível formular uma hipótese cultura ou da literatura. Ou seja, colocar a pergunta: a cultura pode consti-
inicial de leitura da cultura contemporânea brasileira: as mediações que antes tuir sujeitos? Não apenas representar sujeitos, mas constituí-los? Constituir
existiam (e quem sabe abundavam) entre estratos distintos da sociedade, res- sujeitos, no caso, só se coloca como questão no contexto de uma destituição
ponsáveis pelas formas culturais reconhecidamente mais bem-sucedidas do ou “des-subjetivação” em larga escala, i.e., do que Robert Castel chama de
Brasil, como Machado, o samba, e o futebol, não seriam mais possíveis diante desfiliação – termo preferível a “exclusão”.46 O capítulo 1 deste livro, sobre o
de um cenário de segmentarização radical, crescente como o que define a testemunho judaico, e o 2, sobre o testemunho hispano-americano, funda-
cidade brasileira atual, e em especial a sua ex-capital, dividida entre os diver- mentam os termos do campo da literatura de testemunho. Assim, a partir
sos comandos do narcotráfico, as UPPs, as milícias e os enclaves fortificados dos anos 1960, na literatura hispano-americana, surgirá o gênero do teste-
das classes altas protegidos por seguranças privados, etc., vale dizer por uma munho como programa de subjetivação de “desfiliados”. O testemunho his-
estratificação territorial dos espaços de contato e circulação. pano-americano resgata um gênero fundado pelos relatos de sobreviventes
No caso de Força, a conversão do ex-falcão do tráfico a palhaço idôneo, judeus de campos de concentração e extermínio nazistas, após a segunda
encenada diante das câmaras, aponta para um desenlace futuro desconhe- guerra mundial, com o qual guarda ao mesmo tempo semelhanças e dife-
cido. O saldo positivo do documentário, sublinhado pelos comentadores e renças importantes. Os grandes exemplos de testemunho judaico foram
pelo público, fora a hipótese tão longínqua, mas sempre salutar – embora escritos pelo químico e sobrevivente de Auschwitz Primo Levi: É isto um
rapidamente esquecida –, da despenalização do tema do tráfico no Brasil. A homem? (1947, 1958) e Os afogados e os sobreviventes (1986).
única alternativa, diante da inexequibilidade deste antiprograma político, Enquanto o testemunho judaico tem como ponto de partida a expe-
seria então a sua culturalização. Retornando mais uma vez à cena do tér- rimentação biopolítica sobre o humano realizada no campo pelos SS,
mino da guerra de Canudos, e abusando quem sabe um pouco do paralelo, resultando em um relato impressionante de subjetivação da experiência
a reação que os dez milhões de telespectadores do Fantástico tiveram após humana, o testemunho hispano-americano tem por vocação constituir
assistirem ao documentário Falcão – meninos do tráfico, em 16 de março de subjetividades marginais e minoritárias, situadas no contexto desta outra,
2006, é a tradução em regime midiático contemporâneo da reação dos sol- imensa, experimentação econômica, social, política, cultural e biopolítica
dados de Canudos, confrontados à matéria do que exterminavam.45 Os for- com o humano que se chama colonização e escravidão. As diferenças entre
madores de opinião, entrevistados após os 58 minutos de imagens, diziam- o testemunho judaico e o hispano-americano saltam aos olhos: ambos con-
se “comovidos”, “surpresos”. Mas a pergunta que parecia ressoar por detrás figuram um gênero literário limite, nem ficção nem documento jornalís-
tico, mas algo de uma natureza distinta, que atravessa estes dois campos.
44 Roberto Schwarz. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977; Maria Sylvia de
Carvalho Franco. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Fundação Editora Unesp, 46 Castel explica de maneira pertinente que a opção entre exclusão e desfiliação não consiste em
1997, 4ª edição. uma mera vaidade semântica. “Exclusão” nomeia algo estanque, designa estados de privação.
45 “Falcões” são meninos empregados no narcotráfico, com a função de olheiros ou vigias que Por outro lado, “desfiliação” nomeia um percurso (Robert Castel. Metamorfoses da questão
sinalizam a aproximação de “inimigos” da boca: a polícia ou as facções em guerra com ela. social. Uma crônica do salário. Trad. Iraci Poleti. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 26.)

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Na América hispânica trata-se de fazer passar através da codificação letrada pos se confundem), com estados-nações enfraquecidos, é um mundo sem
do espanhol os traços de uma outra cultura, o que situa, em suma, um pro- fronteiras ou com fronteiras internas ao império. Paradoxalmente é neste
blema antropológico e identitário. Já o testemunho judaico configura um mundo por assim dizer sem bordas que surgem, de dentro das fronteiras
problema ético-moral: o drama da sobrevivência nas condições limites cir- imperiais, novas figuras de uma indigência generalizada, de populações
cunscritas pela gestão SS do campo. literalmente sem direito: os refugiados em campos de concentração, os sem
Mas ambos, de forma essencial, falam de uma morte coletiva: os geno- -pátria que vivem nas salas de espera internas de aeroportos internacionais,
cídios indígenas na América espanhola, o extermínio judaico na Europa. os imigrantes sem-documentos, os presos de Guantánamo, suspeitos de
Ambos têm como centro a figura de uma morte social, intransferível; são atos terroristas, etc. A figura do refugiado, que Hannah Arendt identificara
uma enunciação eminentemente inautêntica, que tão somente singulariza como emblema de uma crise da tripla função território-nação-estado,50 a
uma instância coletiva que o testemunho visa impossivelmente a transmi- partir dos grandes descolamentos de povos sem estado do final da primeira
tir. Ambos têm o mesmo ponto de partida: partem da objetivação biopolí- guerra mundial, adquiria uma nova atualidade, nos campos de Omarska,
tica do racismo, conforme vimos com Foucault, operador sistêmico tanto na Bósnia e Herzegovina, na figura da limpeza étnica, na segunda guerra
nos regimes da colonização e escravidão quanto no antissemitismo. do Iraque, na horda de desempregados nas nações industrializadas, na exa-
Foi sem dúvida Giorgio Agamben quem realizou com rigor a junção cerbação da pobreza nos países do terceiro mundo.51
do trabalho de Foucault sobre a biopolítica e os totalitarismos do século Cabe responder à pergunta: qual é a produtividade analítica de se
XX, localizando especificamente nos Lager, nos campos de concentração e utilizar uma categoria importada como a de testemunho para pensar o
extermínio nazista, o novo paradigma biopolítico contemporâneo.47 Agam- problema da penalização e culturalização da pobreza brasileira? Não dis-
ben fornece aqui elementos para entender o que, em algum momento, foi poríamos nós de categorias mais próximas, brasileiras, para se pensar os
autoproclamado como “nova ordem mundial”: a hegemonia das políticas problemas brasileiros? E a pergunta afim a estas: qual o privilégio do holo-
nacionais de segurança, a guerra preventiva norte-americana, deflagrando causto judaico, como modelo para se pensar o quadro atual da violência
a suspensão da ordem jurídica internacional, e constituindo uma sobera- brasileira, em que se situa em linhas gerais este livro? O uso de uma noção
nia mundial sobre não sujeitos, ou sujeitos extirpados de cidadania; “vida como esta, vinculada a uma realidade caracteristicamente europeia, con-
nua” (bloss Leben), expressão cunhada por Benjamin,48 mas relida atra- sistiria em uma importação indevida de uma categoria estrangeira e estra-
vés da categoria foucaultiana de biopolítica, que consiste, como vimos, nha, que pouco tem a ver com a realidade de outros países situados fora
na transformação da totalidade da vida em objeto de gerenciamento pelo da Europa, e tampouco com o Brasil? Deveríamos cunhar nossos próprios
estado, a chamada “estatização do biológico”.49 Consumara-se no mundo, conceitos, formalizados a partir de nossa própria realidade, e não simples-
de fato, então, um grande trânsito histórico, assinalado pela queda do Par- mente adaptar conceitos estrangeiros que a descrevem mal? Parece-me que
tido Comunista Soviético, dando origem a uma nova soberania em escala estas perguntas devem ser respondidas.
planetária do estado democrático-capitalista, onde ressurgia reconfigurada A forma-testemunho que surge com os relatos de sobreviventes dos
a mesma forma totalitária da gestão da vida nua. campos de concentração e extermínio nazistas codifica um gênero rele-
Um mundo “globalizado”, i.e. submetido a uma ordem única ao mesmo vante para se pensar violências que ocorreram antes ou fora do contexto
tempo econômica, jurídica, policial e militar (em que estes quatro cam- europeu. Ela tem um destino paralelo ao do conceito jurídico de “geno-
cídio”, definido pelo Direito Internacional em 1948 pela Convenção das
47 Giorgio Agamben, Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I. Tradução: Henrique Burigo. Nações Unidas para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, na
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 129.
48 Walter Benjamin. “Para uma crítica da violência”, p. 153-154. Ernane Chaves prefere traduzir 50 Hannah Arendt. The Origins of Totatitarianism. New York: Meridian Books, 1958, p. 267-302.
a expressão por “mera vida”. 51 Giorgio Agamben. Means Without Ends. Notes on Politics. Trad. Vincenzo Binetti e Cesare
49 Michel Foucault. “Aula de 17 de março de 1976”, loc.cit., p. 286. Casarino. Minneapolis: Minnesota U Press, 2000.

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esteira do holocausto judaico. O conceito e o termo, no entanto, foram genocídio de proporções mais extensas na história da humanidade, e teria
forjados pelo jurista judeu-polonês Raphael Lemkin, tendo por objeto o merecido o status de paradigma.
genocídio armênio na Turquia em 1944, no bojo de uma denúncia da polí- Pode-se condenar a atribuição paradigmática do genocídio judaico
tica de extermínio da ocupação alemã durante a Segunda Guerra Mundial. como eurocêntrico, mas ele consiste antes de mais nada no dispositivo jurí-
Lemkim primeiro estudara o genocídio armênio, em 1933, mas foi ape- dico que abre a possibilidade de estabelecer coordenadas para se pensar a
nas em 1944 que a categoria foi reconhecida pelo Direito Internacional. violência étnica ao longo da história. Como afirma ainda Enzo Traverso,
O genocídio judaico não é, portanto, evidentemente, o único, nem muito a especificidade da Shoah se deve a uma singularidade e comparabilidade
menos o primeiro, nem sem duvida será o último, mas é ele que estabelece com relação a outros genocídios.53 Apropriemo-nos da definição de para-
o paradigma, a partir do qual se pode fundamentar as bases para se pensar digma de Agamben, no momento em que ele estabelece as suas diretrizes
outros genocídios. metodológicas: “o paradigma é um caso singular e isolado do contexto do
Enzo Traverso, em A violência nazista, demonstra de maneira convin- qual ele faz parte, apenas na medida em que, apresentada a sua própria sin-
cente que a excepcionalidade do genocídio judaico não se deveu a uma ori- gularidade, ele torna inteligível um novo conjunto de que ele próprio cons-
ginalidade qualquer objetiva da empresa nazista. O que o nazismo realizou titui a homogeneidade”.54 O estatuto de paradigma é análogo ao do exemplo,
foi simplesmente uma síntese de práticas surgidas ao longo do século XIX, ao mesmo tempo singular e coletivo. É desta forma que o genocídio judaico
que foram adaptadas às necessidades do antissemitismo europeu ancestral deve ser entendido como caso exemplar, paradigma da ação violenta esta-
para estabelecer o programa da Solução Final. O holocausto combinou uma tal ao longo da história, o dispositivo jurídico, utilizado no julgamento de
série de operações criadas antes: o genocídio étnico foi inventado no geno- Nuremberg. Já o modelo do testemunho só será efetivamente definido em
cídio ameríndio dos Estados Unidos; o modelo imperial nazista adaptou um julgamento exemplar posterior, o de Eichmann, em 1961. É apenas ali
o dispositivo estabelecido pela colonização, sobretudo inglesa, da África e que pela primeira vez falaram as vítimas, o que não ocorrera em Nuremberg.
da Ásia; o modelo industrial provém da racionalização da produção pela O julgamento de Eichmann coloca pela primeira vez na cena política o
linha de produção taylorista; o modelo biológico provém do “darwinismo testemunho da vítima, o sobrevivente do genocídio, como figura ambígua,
sociológico”, e assim por diante.52 portadora ao mesmo tempo de uma verdade experiencial e jurídica.55 E é
Em resumo, a originalidade da operação genocida alemã está em pro- na relação entre vítima e sobrevivência que se dá o drama da enunciação
duzir uma síntese de todas estas invenções ocorridas em outro lugar. No específica da testemunha que nos interessa aqui, de que o holocausto esta-
entanto, o genocídio alemão tem uma função paradigmática. O fato de o belece o paradigma. Ao mesmo tempo, a enunciação da vítima produz uma
dispositivo do direito internacional ter surgido neste genocídio e não, por figura identitária. No caso do julgamento de Eichmann, “a memória do
exemplo, no genocídio armênio durante a Primeira Guerra Mundial – inclu- genocídio torna-se constitutiva de uma certa identidade judia ao mesmo
sive o primeiro a ser estudado por Lemkin – se deve, não resta dúvida, à tempo que reivindica fortemente a sua presença no espaço público”.56 O
sua especificidade europeia. Ele se dera não em qualquer país europeu, mas mecanismo identitário sutura o abismo entre os diversos grupos que cons-
naquele que, desde sempre, se identificara com os ideais da civilização, das tituem o estado de Israel, ao produzir uma versão unitária da nação, sub-
artes e do espírito – a Alemanha. O genocídio ameríndio, numericamente linhando o que todos têm em comum, com a finalidade explícita de pro-
superior ao judaico (segundo a estimativa de Todorov, dos 80 milhões de 53 Enzo Traverso. L’Histoire comme champ de bataille. Interpréter les violences du XXe siècle.
habitantes do continente em 1500, 70 milhões foram dizimados nos primei- Paris: Éditions de la Découverte, 2011, p. 154.
ros 100 anos) e transcorrido ao longo de séculos, é sem qualquer dúvida o 54 Giorgio Agamben. “Qu’est-ce qu’un paradigme”. Signature rerum, p. 19.
55 Annette Wieviorka é taxativa: “o processo de Eichmann marca o que chamamos o advento da
testemunha”. Annette Wieviorka. L’ère du témoin. Paris: Plon, coleção Hachette Littératures,
1998. p. 82.
52 Enzo Traverso. La violence nazie. Une généalogie européenne. 56 Ibidem, p. 81.

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duzir uma verdade unificada do estado, instrumentalizando o genocídio Esta “novidade” enunciativa toca, portanto, no problema da media-
para fins políticos.57 Em 1966, alguns anos depois, surge num outro qua- ção, que mencionei en passant acima ao resumir as teses de Hermano
drante do mundo o testemunho hispano-americano, com a publicação de Vianna e ao falar da criminalização da instituição do favor no episódio
Biografía de un cimarrón, de Miguel Barnet, uma história de vida de um de Marcinho VP. Em ambos os casos, um diagnóstico semelhante do que
ex-escravo, Esteban Montejo, um sobrevivente da escravidão cubana que parecera desaparecer da cultura brasileira contemporânea, e especifica-
Barnet conhecera com 103 anos em 1963, entrevistara, e cujo testemunho mente carioca: os mediadores entre estratos sociais estanques que caracte-
ele redige.58 A memória da escravidão africana veicula aqui também um rizavam tradicionalmente a cultura brasileira de outros tempos. Reunindo
motivo identitário, ligado à produção de uma história comum da coloni- os fios dispersos dessa discussão, sabemos que é precisamente a diferença
zação latino-americana, centrada na revolução cubana. A enunciação cole- entre dois mediadores, o antropólogo ou cientista social letrado e algo deri-
tiva da vítima, a reconstituição da memória e verdade jurídica de sua expe- vado da figura do “informante”, que define estruturalmente o testemunho
riência, é assim inseparável da construção da identidade como modelo de hispano-americano. A “prosa do Carandiru” demonstra, por outro lado, o
politização da memória. deslocamento desta figura do “transcritor” do testemunho hispânico em
Transponhamos agora este quadro para o Brasil. Digamos logo sem uma série de instâncias, que incluem, além de algo muito semelhante a
rodeios: é na existência carcerária, enquanto laboratório da pobreza brasi- ele – como no caso do jornalista Bruno Zeni, em Sobrevivente André Du
leira, que vamos encontrar de forma literalmente concentrada a vida nua rap, ou de Hosmany Ramos (que transcreve, como vimos, o testemunho
em sua versão contemporânea no Brasil, nos termos que venho trabalhando de Milton Marques Viana, em “Pavilhão 9”) –, uma figura difusa do patro-
aqui e que informam este livro. É na prisão que a normalidade anormal do cinador, ou editor. É o caso de Drauzio Varella, autor do romance que dera
estado de exceção que regula os bairros pobres, periferias, comunidades e origem ao gênero como um todo, como vimos, apresentador de Diário de
favelas do Brasil se manifesta como um precedente jurídico para a vida fora um detento: o livro, de Jocenir, e de Fernando Bonassi, apresentador de
do complexo penitenciário. Daí a importância dos testemunhos carcerários Memórias de um sobrevivente, de Luiz Alberto Mendes – procedimento
surgidos na sequência do massacre do Carandiru enquanto forma literária que a coletânea de textos carcerários Letras de liberdade, surgida neste
especificamente biopolítica, característica da atualidade mundial. De fato, contexto, rotinizara, intercalando textos de presos com posfácios de cele-
a comparação com os Lager nazistas reaparece insistentemente nos relatos bridades do mundo editorial, que de alguma forma autorizavam o relato
de presos brasileiros; dado que um detalhe topográfico sintomático parece que seguiam. O fato de o jurista, o médico e o jornalista permanecerem
confirmar. Chamando as coisas pelos nomes devidos, as prisões brasilei- nas imediações da enunciação – não mais, é verdade, como narradores da
ras são verdadeiros depósitos humanos, ou “campos de concentração para experiência prisional, mas como autorizadores do texto, agora assinado
pobres”.59 A grande novidade contida na série de relatos de presos deriva- por um preso comum – acrescenta uma modificação de fato sensível à
dos do nefando episódio da crônica policial-militar paulistana foi a emer- estrutura tradicional da mediação literária testemunhal. Diferentemente
gência de uma enunciação carcerária do preso comum, contrastando com da enunciação do testemunho hispano-americano, embora nem sempre,
a tradição brasileira de depoimentos de reformadores juristas ou médicos os narradores tendem a assinar seus próprios textos, internalizando à
sobre a prisão; de presos políticos; ou de jornalistas, conforme a classifica- estrutura textual o que permanece ainda como exterioridade na América
ção de Marco Antonio Bretas, que estudarei mais em detalhe no capítulo 3, Hispânica, sob a forma de uma divisão do trabalho de matiz etnográfico
“O sujeito carcerário”. entre escrita e oralidade, intelectual e informante.60

57 Ibidem, p. 84.
58 Miguel Barnet. Cimarrón. Buenos Aires: Editiones Del Sol, 1987. 60 Eneida Leal Cunha defende uma hipótese oposta à minha. Ver Eneida Leal Cunha. “Margens
59 Loïc Wacquant. As prisões da miséria. Tradução: André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar e valor cultural”. Reinaldo Marques e Lúcia Helena Vilela (orgs.), Valores. Arte-Mercado-Po-
Editor, 2001, p. 11. lítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

30 31
Revendo momentos decisivos da literatura/cultura brasileira a par- da pergunta canônica de por que não teremos produzido mais Machados
tir do problema da mediação, teríamos, em primeiro lugar, em Machado de Assis no Brasil, cabe, no entanto, insistir na especificidade do momento
de Assis – i.e., no autor maior da literatura brasileira, aquele mesmo que, atual no que toca à questão que vimos acompanhando. O testemunho
nas palavras de Antonio Candido, significara o ponto de maturidade da carcerário depõe sobre a produção de subjetividades em uma sociedade
“formação da literatura brasileira” –,61 algo como uma cena primitiva da estritamente segmentarizada, cujo exemplo maior, é claro, seria o confina-
subjetivação pela cultura. A biografia de Lúcia Miguel Pereira narra preci- mento penitenciário, de sujeitos constituídos literalmente pela pena, “pena”
samente e de forma pungente o percurso que leva o enteado da ex-escrava entendida aqui no duplo sentido de penalidade e instrumento de escrita.
Maria Inês a tornar-se o maior escritor brasileiro, e primeiro presidente da Um mundo de exceção, de sujeitos de autonomia cada vez mais precária,
Academia Brasileira de Letras.62 O que nos faz perguntar sobre a relação dependentes de instâncias constitutivas cada vez mais instáveis, e com difi-
entre subjetivação pela literatura e formação da literatura, ou seja, sobre a culdades quase intransponíveis de produzirem-se a si próprios.
relação entre subjetivação e formação, como processo de interiorização ou
autonomização da mediação, i.e., de transformar-se o próprio sujeito em ***
autor de sua obra, e o Brasil em sujeito de sua própria literatura. Cena 6: A capa do diário carioca Jornal do Brasil de 15 de maio de
Explicar-se-ia talvez pela prevalência deste modelo autonomista da 2007 mostrava um grupo de atores da ONG Nós do morro com armas de
subjetivação na literatura brasileira a importância relativa que a matriz plástico em uma foto tirada no set de filmagens do longa-metragem Cidade
identitária – com sua dívida explícita para com a discussão etnográfica ou dos homens, com a manchete “Tráfico exibe poder de fogo pelo Orkut”. A
pelo menos das ciências sociais, tão importante na configuração do teste- chamada da foto detalhava: “Doze traficantes com armas e coletes à prova
munho hispano-americano – teria no Brasil. De forma exemplar, o maior de balas. Entre eles, uma mulher”. A matéria discorria sobre o uso corrente
narrador surgido do cárcere do Carandiru, Luiz Alberto Mendes, escreve do Orkut como apologia do crime, com luxuosa exibição de armamentos
um livro de matiz dostoievskiano, Memórias de um sobrevivente, que narra “poderosos e modernos” – é verdade que de plástico, mas isso os editores
a formação do narrador em moldes oriundos do Bildungsroman, i.e., o pro- aparentemente ignoravam – que contrastava com a modéstia do equipa-
grama clássico de autonomização literária de narrativização autorreflexiva mento da Polícia Militar, que “não sabe quando vai receber novas armas”.
da vida. É certo, assim, que a transposição do “transcritor” em autorizador Para além da retratação que o JB nunca apresentou aos atores do Nós
dos relatos carcerários no Brasil coloca-o fora, embora em contato direto, do morro (o jornal republicou a mesma foto no dia seguinte, juntamente
da enunciação especificamente literária, transformando-o em espécie de com outras análogas encontradas em páginas do Orkut, em matéria em que
instância institucional-editorial de inscrição social do relato, e não mais explicava o serviço público que prestara aos atores, ao revelar-lhes a utili-
gestor da fala e mão letrada que escreve e transcreve. Sem cair na cilada zação indevida de suas imagens por páginas de apologia ao crime [sic]),
o quiproquó comicamente registrado pela cena é revelador da tênue, mas
61 Antonio Candido. Formação da literatura brasileira. Momentos decisivos. Rio de Janeiro: decisiva, linha que separa nos dias de hoje o simulacro da violência da vio-
Ouro sobre Azul, 2006, p. 681. lência propriamente dita. Os jovens carentes do morro do Vidigal, dirigidos
62 Leia-se, por exemplo, a troca de Maria Inês pela lusitana Carolina como formalização da por Guti Fraga, são subitamente arremetidos de volta ao mundo do crime
mudança de status de Machado, cujo “custo” foi o abandono de sua madrasta, a quem revê
apenas em seu enterro, em cena testemunhada por Coelho Neto. “Estava definitivamente de que a cultura os salvou. Evitemos ver aí um diagnóstico lúgubre sobre o
aceito na burguesia, cavaleiro, desde [18]67, da Ordem da Rosa, marido de uma senhora fina, fracasso da subjetivação modelo ONG, i.e. do programa de cidadania pela
de boa educação, morando em sua casa, tendo os seus móveis, os seus livros, vivendo no meio
que era o do seu espírito. E, então, cortou violentamente as amarras com o passado. Temendo via da inclusão cultural como alternativa ao crime nas comunidades caren-
talvez pôr Carolina em contato com Maria Inês, não querendo, ele próprio, ter constante- tes. A farsa midiática corriqueira contém uma moral característica, ilustra-
mente diante dos olhos esse espectro de uma infância penosa, abandonou a pobre mulata”
(Lúcia Miguel Pereira. Machado de Assis. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1955, quinta ção acabada do que Alba Zaluar denominou “integração perversa”. Vejamos
edição, p. 123).

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mais uma vez, com mais detalhe: jovens pobres livrados do crime, represen- capítulo 6 deste livro. É precisamente esta violência simbólica/real o vín-
tando o papel de jovens pobres criminosos, i.e., transformados em cultura, culo que une os dois protagonistas do documentário: o justiceiro Helinho
ou “narcocultura”, como diz com exemplar ambiguidade o líder do Affro- (Hélio José Muniz) – apelidado “Pequeno Príncipe”, condenado a 150 anos
Reggae, José Junior63 – inclusive como figurantes da versão de Os sertões do a prisão por 65 homicídios (ou 44, as fontes divergem) em 1998, e executado
Teatro Oficina de Zé Celso Martinez Corrêa!64 – são remetidos de volta à na prisão, após a conclusão do documentário – e o percussionista Garnizé
criminalidade da qual a cultura os retirara por uma mídia interessada em (José Alexandre de Oliveira), que tocava na época em Faces do subúrbio,
produzir o crime mesmo onde crime não há. O simulacro não produz mais um grupo de rap/hip-hop baseado em Recife, e que dirigia um programa
o “assalto” moral –irmão gêmeo do assalto das armas, com que guarda vín- de educação comunitária para crianças pobres em Camaragibe (os projetos
culo metafórico, como em Os sertões, ou nos testemunhos do Carandiru –, de Criart e Criança Câmara), um subúrbio de Recife. De um lado, o justi-
mas a tênue separação entre a encenação do crime, o crime de fato e a sua ceiro, adorado pela população de Camaragibe, representante ideal de uma
reprodução midiática. Aqui é o próprio modelo da inclusão cultural que justiça perfeitamente eficaz, imediata e sem entraves; de outro, o músico, o
expõe o seu reverso de má consciência: o crime evitado ressurge repenti- mestre do símbolo, não menos adorado em sua cidade, mas por favorecer
namente; o ator que representa a si próprio, separado de sua vida egressa à subjetivação comunitária e à inclusão cultural. Este vínculo figural pro-
por tênue verniz profissional, vê-se destituído da profissão pela própria duz uma estética violenta, na versão brasileira do gansgsta rap (protagoni-
visibilidade da profissão que o constitui. A produção midiática maciça de zado pelo rapper dublê de gangster estetizado),65 presente em MV Bill, que
imagens da violência, com o interesse evidente de exacerbar o diagnóstico o torna programa cancional (veja-se emblematicamente o título de seus
disseminado de descontrole e insegurança social (“poder paralelo”; “defesa dois primeiros CDs ,Traficando informação [1999] e Declaração de guerra
de policiamento ostensivo na rua”, milícias, etc.), funciona precisamente [2002]), nos Racionais MCs e no rapper Sabotage, Mauro Mateus dos San-
como um ato falho ou lapso da mídia (a pressa e o descuido são sem dúvida tos, ex-gerente de tráfico, de que falei acima. E também uma pedagogia da
explicações parciais pelo equívoco), em que se revela o seu desejo mais do violência figurada: com Garnizé, como vimos; no Afro-reggae66 da favela
que consciente, e o retorno do recalcado do crime de seus sujeitos converti- Vigário Geral; no projeto de Luke Dowdney de ensinar boxe às crianças
dos, no que não seria exagerado chamar de Psicopatologia da vida midiática. do complexo da Maré,67 e em tantos outros exemplos de produção cultu-
A subjetivação pela cultura produz um simulacro cultural do crime ral contemporânea (CUFA, Grupo Nós do Morro...). Nos projetos artísticos
que ela simula, por meio de uma relação analógica entre uma violência mais bem-sucedidos, como no de Sabotage, teremos o vínculo complexo
simbólica, cultural, e a violência propriamente dita. O que introduz uma
nova volta na ambiguidade constitutiva do modelo: a cultura distingue-se 65 Os modelos prototípicos, norte-americanos, são, é claro, bem conhecidos. Em primeiro
do real da violência que figura, ao mesmo tempo em que é assombrada lugar: Tupac Shakur, filho de uma família (mãe, avô, padrasto, madrinha) de ativistas do
movimento Black Panthers nos anos 1960, todos com extensa história prisional, e cujo assas-
pela mesma violência de que se distingue, que a constitui e legitima, cor- sinato exemplifica o retorno do real na estetização da violência musical. A violência politi-
rendo sempre o risco de ver desaparecer a distinção que a funda. É esta, por zada dos anos 1960 se transforma em estetização da violência musical no gansgta rap, para
exemplo, a matriz estrutural do documentário O Rap do Pequeno Príncipe retornar como violência literal mortal no assassinato de Shakur, em setembro de 1996, ao ser
alvo de uma rajada de tiros na saída de uma luta de Mike Tyson – outro exemplo desta trans-
contra as almas sebosas, de Marcelo Luna e Paulo Caldas (2000), objeto do formação da violência. 50 cent, e Snoopy Dog – que integrava, com Shakur, o selo Death Row
(Corredor da morte) – seriam outros exemplos (cf. a biografia de 50 cent: Do lixo ao luxo. A
63 Em entrevista, à revista Época, José Junior diz o seguinte: “O que o AfroReggae faz, toca e autobiografia do grande astro do hip-hop. Com Kris Ex. Trad. Abner Dmitruk. Rio de Janeiro:
dança é narcocultura. [...] É o mesmo que MV Bill, Racionais, Rappa fazem. Os grandes suces- Ediouro, 2007.)
sos cinematográficos dos últimos anos, Carandiru, Cidade de Deus são narcocultura”. Época, 66 Cf. Da favela para o mundo. A história do grupo cultural afro reggae, de José Junior (Rio de
09/08/2008, edição 429. “Um olhar inovador”. Janeiro: Ediouro, 2006, segunda edição) e Favela Rising, de Jeff Zimbalist e Matt Mochary
64 As cinco partes de Os sertões, no total de 26 horas, foram apresentadas no Centro Cultural da (2005).
Ação da Cidadania, no Rio de Janeiro, entre os dias 2 e 14 de outubro de 2007, contando com 67 Luke Dowdney. Crianças do tráfico. Um estudo de caso de crianças em violência armada orga-
a participação de 17 crianças do Grupo Nós do morro como figurantes do espetáculo. nizada no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003.

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entre uma violência soberana do símbolo na música e na canção e a vida Fernandes Vietes por cinco também meninos, mas pobres, em 8 de fevereiro
nua que a forma musical simboliza, em uma difícil e instável equação entre de 2007. Aqui, a polaridade é entre a “vítima pura” – o menino executado em
estado e arte de exceção – como desvio fracassado da morte que a arte, modo sacrificial (com ressonâncias crísticas: a via crucis, etc.) – e o horror
enquanto durou, administrara. dos “monstros”, cujo ato de crueldade absolutamente excessiva e gratuita
A violência da imagem é, no entanto, frequentemente indiscernível serve para apressar a tramitação da legislação de redução da maioridade
da violência efetiva, conforme a distinção programática entre simbólico penal e estampar o desejo da população pela pena capital, ou pelo estado de
e “passagem ao ato” proposta pela psicanálise.68 Ao tirar do pânico real exceção. Ato contínuo, a população, representada dentre outras pessoas pelo
das identidades representadas em versão estética a sua força, as imagens filósofo Renato Janine Ribeiro, torce para que os “monstros” “recebam [na
identitárias, estereotipadas e segmentadas, produtora de modas, e estilos cadeia] a sua paga [...] de modo demorado e sofrido”,70 o que os transforma,
de juventude, reproduzem a mesma distância do “Outro” que elas em tese aos mesmos “monstros”, em seres “matáveis”, homines sacri, vida nua.
deveriam suturar. Em um exemplo paradigmático, como em Ônibus 174,
de José Padilha (2002), temos uma verdadeira direção cênico-cinemato- FONTES
gráfica feita por Sandro do Nascimento, sobrevivente da chacina da Can-
delária, que encena uma violência simulada com seus reféns no interior Alguns dos textos que compõem este livro foram publicados anterior-
do ônibus, para benefício das câmeras e da audiência televisiva, em uma mente, com algumas ou grandes modificações. Aqui estão as fontes.
subjetivação fulminantemente penal e cultural, que leva inescapavelmente INTRODUÇÃO: Teve uma versão inicial em espanhol, no dossiê Relatos de
à morte. Tanto este documentário quanto O Rap do Pequeno Príncipe con- La violência en Brasil, com o título de “Criminalización y culturalización de
tra as almas sebosas são programados estruturalmente por Notícias de uma la pobreza”, tradução de Rodrigo F. Labriola, em Pensaminento de los Con-
guerra particular, de Kátia Lund e João Moreira Salles (1999), que de forma fines, número 23/24, abril de 2009. Uma segunda versão modificada com
pioneira desentranha o mote da dupla focalidade da “guerra”, comparti- o título de “Sujeitos da pena”, em Helena Bocayuva e Silvia Alexin Nunes
mentalizada entre a perspectiva da polícia e a dos favelados. É ainda a nar- (orgs.). Juventudes, subjetivações e violências. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.
rativa de Luiz Eduardo Soares, que, entrevistado em Ônibus 174, identifica A versão aqui apresentada sofreu ainda algumas alterações com relação às
com perfeita clareza a subjetivação pelo crime – Sandro sai da invisibilidade duas anteriores.
e da anomia social pelo ato praticado diante das câmeras e do Brasil. É o
crime, culturalizado, que subjetiva. CAPÍTULO 1: SOBRE VIVER (GIORGIO AGAMBEN E PRIMO LEVI). Teve tam-
Assim, a subjetivação penal/cultural é assombrada pela vida nua, como bém duas versões. A primeira, com o título “Sobre viver no lugar de quem
vimos, na produção constitutiva do “real”, do “abjeto”, da “vida precária”, falamos (Giorgio Agamben e Primo Levi)”, em Márcio Seligmann-Silva
todas figuras de uma exclusão constitutiva, que a cultura tenta impossivel- (org.). Palavra e imagem, memória e escritura. Chapecó: Argos, 2006. E
mente simbolizar.69 Nesta contradança, a “monstruosidade” – que em Os “Sobre viver (entre Giorgio Agamben e Primo Levi)”, em Outra Traves-
sertões era estampada pela vítima, no sorriso incompleto da menina – pode sia – Revista de Literatura, nº 5. Curso de Pós-Graduação em Literatura.
passar ao algoz, como no caso midiático, emblemático do estado de coisas Universidade Federal de Santa Catarina. Ilha de Santa Catarina, 2º semestre
que estamos narrando, do assassinato do menino de classe média João Hélio de 2005. Uma versão abreviada do trabalho foi apresentada em uma aula do
curso de extensão “A testemunha entre literatura e história. De Primo Levi
68 Cf. Charles Melman. “Por que o ICMS não é aplicável à sessão de psicanálise?” Ricardo Gol- a Giorgio Agamben”, organizado por Andrea Lombardi, na UFRJ, em agosto
denberg. Goza! Capitalismo Globalização Psicanálise. Salvador: Ágalma, 1997. e setembro de 2011. Agradecimentos a Andrea Lombardi e aos alunos ins-
69 Respectivamente: Jacques Lacan. Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse (Paris:
Seuil, 1973); Judith Butler. Bodies that Matter (New York: Routledge, 1993); Judith Butler. Pre-
carious Life. The Powers of Mourning and Violence (Londres: Verso, 2004). 70 Renato Janine Ribeiro. “Razão e sensibilidade”. Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 18/02/2007.

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critos no curso são devidos. As duas versões escritas, mais a terceira expo- dades, literatura, mídia. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. O capítulo aqui
sitiva, eram recortes de um texto nunca publicado em sua integralidade, a publicado é o mesmo publicado anteriormente com algumas alterações.
que foram acrescentadas novas partes, e são aqui integradas em um texto
CAPÍTULO 8: MEDIAÇÃO E INCLUSÃO. Foi apresentado sob a forma de confe-
um pouco diferente.
rência em inglês sob o título de “Including Violence. Mediations of War in
CAPÍTULO 2: FALA RIGOBERTA. Foi editado com o título de “Este corpo, esta Brazil”, em duas ocasiões, em UC Berkeley e em UC Davis, em maio de 2006.
dor, esta fome: Notas sobre o testemunho hispano-americano”, em Márcio Fui convidado na época por professores das respectivas instituições: Julio
Seligmann-Silva (org.). História, memória, literatura. O testemunho na era Ramos e Luz Mena. A eles o meu agradecimento. A versão aqui apresentada,
das catástrofes. Campinas: Editora Unicamp, 2003. A presente edição con- inédita em papel, é bastante modificada com relação à conferência original.
tém algumas modificações.

CAPÍTULO 3: O SUJEITO CARCERÁRIO. Foi publicado em uma versão mais


curta, com o título de “Testemunhos da prisão: trauma, verdade jurídica
e epitáfio”, em Letteratura d’America. Rivista trimestriale. Anno XXVI, n.
13-113, Roma, 2006.

CAPÍTULO 4: O ENCONTRO E A FESTA (HERMANO VIANNA). Foi publicado


em um dossiê sobre música popular brasileira organizado por José Miguel
Wisnik em Teresa. Revista de literatura brasileira 4/5. São Paulo: Ed. 34,
2003. Cabe agradecer a José Miguel Wisnik pelo convite. A versão de 2003
era editada, esta é completa.

CAPÍTULO 5: MARCINHO VP COMO PERSONAGEM. Foi publicado com o


título de “Marcinho VP (um estudo sobre a construção do personagem)”
em Ângela Maria Dias e Paula Glenadel (orgs.). Estéticas da crueldade.
Rio de Janeiro: Atlântica Editora, 2004. A presente edição é a mesma da
edição anterior.

CAPÍTULO 6: A VIOLÊNCIA COMO FIGURA (O RAP DO PEQUENO PRÍNCIPE).


Foi apresentado em inglês como conferência com o título de “Metaphorical
Violence and Violence as Metaphor: The Rap of the Little Prince”, na Tulane
University em maio de 2003. O convite para a conferência foi feito por dois
professores de Tulane: Tatjana Pavlovic e Idelber Avellar. A eles o meu agra-
decimento. A versão aqui apresentada, inédita em papel, é bastante modifi-
cada com relação à conferência original.

CAPÍTULO 7: SABOTAGE E A SOBERANIA. Foi publicado com o título de


“Espaços da (in)segurança nacional (ensaio sobre a soberania)”, em Izabel
Margato e Renato Cordeiro Gomes (orgs.). Espécies de espaço. Territoriali-

38 39
capítulo 1
Sobre viver (Giorgio Agamben e Primo Levi)

Poderíamos dizer, imitando o gesto de Michel Foucault, ao situar a emer-


gência do conceito de homem na modernidade no limiar dos séculos XVIII
e XIX em As palavras e as coisas, que a noção de humanidade surge após
a Segunda Guerra Mundial, na sequência da “descoberta” dos campos
de extermínio alemães. Foi exatamente neste contexto que o Tribunal de
Nuremberg instituiu, por exemplo, a categoria de “crimes contra a huma-
nidade”, ou de “crime contra o status do humano”, como prefere batizá-la
Hannah Arendt.1 Se o que resultou do surgimento do duplo empírico-
transcendental que é o homem foi a emergência das ciências humanas
no século XIX,2 a emergência da categoria de humanidade deu origem às
recentes políticas humanitárias, centradas na implementação dos direitos
humanos, baseadas no duplo: direito internacional soberano (estilo Tribu-
nal Internacional de Haia, com cuja fundação Hannah Arendt sonhava em
63) e “vida nua” (bloβ Leben), segundo expressão de Walter Benjamin, em
“Crítica da violência”. Se isso for verdade, então os testemunhos de sobre-
viventes têm um papel crucial nessa definição contemporânea do humano.
Robert Antelme, em A espécie humana:
O resultado de nossa luta terá sido apenas a reivindicação arrebatada e quase
sempre solitária de permanecer, até o fim, homens. [...] Dizer que nos senti-
mos então contestados enquanto homens, enquanto membros de uma espé-
cie, pode parecer um sentimento retrospectivo, uma explicação posterior. É
isso no entanto que foi mais imediatamente sensível e vivido, e é isso, por

1 Hannah Arendt. Eichmann in Jerusalem. A Report on the Banality of Evil. Harmondsworth:


Penguin Books, 1977, p. 268-269.
2 Michel Foucault. As palavras e as coisas. Tradução: Salma Tannus Muchail. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 1999, 8 ª ed., p. 439-444.

41
sinal, exatamente isso que foi querido pelos outros [os detentos de direito gunta lançada por Benjamin sobre “a origem do dogma que afirma o
comum e a administração SS]. A colocação em dúvida [La mise en question] caráter sagrado da vida”.7 O seu alvo mais ou menos explícito são as novas
da qualidade de homem provoca uma reivindicação quase biológica de per-
políticas humanitárias, inauguradas de maneira célebre pelo artigo pri-
tencimento à espécie humana. Ela serve em seguida à meditação sobre os
limites desta espécie, sobre a distância da “natureza” e sua relação com ela, meiro da Declaração dos Direitos Humanos e do Cidadão da Revolução
sobre uma certa solidão da espécie portanto e para terminar, sobretudo, serve Francesa, que declara a liberdade e a igualdade um direito de nascimento a
para conceber uma visão clara de sua unidade indivisível.3 ser estendido à humanidade como um todo. O acaparamento da vida pela
política e pelo direito surge na contemporaneidade em lugares tão distintos
Ou a pergunta-provocação que fornece o título à obra de Primo Levi,
quanto nas discussões de bioética sobre o nascimento (direito de repro-
É isto um homem?, assim como o poema de pórtico que expande a provo-
dução, inseminação artificial, clonagem, engenharia genética) e a morte
cação do título:
(direito à eutanásia, definição dos critérios que definem a vida no coma),
[P] ensem bem se isto é um homem até as questões candentes da política internacional, como as expedições
que trabalha no meio do barro, militar-humanitárias de “ajuda” aos povos vítimas de perseguições, a sele-
que não conhece paz,
que luta por um pedaço de pão, tividade com que a noção de “crime contra a humanidade” e as resoluções
que morre por um sim ou por um não. da ONU são aplicadas, e o cinismo explícito das políticas desenvolvimen-
Pensem bem se isto é uma mulher, tistas para o terceiro mundo. Como tal, o projeto de Agamben se insere,
Sem cabelos e sem nome, por um lado, na linhagem das investigações de Hannah Arendt sobre a
Sem mais força para lembrar,
emergência do homo laborans na modernidade, em A condição humana,
Vazios os olhos, frio o ventre,
Como um sapo no inverno.4 que identifica o momento em que a vida humana, sacralizada pela cultura
judaico-cristã, passa a ser absolutamente identificada à produção;8 e, por
É precisamente esta problemática definição de humano que Giorgio outro, na do trabalho de Michel Foucault sobre o biopoder, que localiza
Agamben se propõe a estudar, em seu livro O que resta de Auschwitz. O também na modernidade a “estatização do biológico”,9 ou seja, a assunção
arquivo e o testemunho. Homo sacer III (1998; tradução brasileira, 2008), da vida como objeto de gerenciamento do estado, manifestada pela emer-
dando seguimento ao work in progress intitulado Homo Sacer, que se ini-
ciara com Homo Sacer. O poder soberano e vida nua I (1995; tradução bra-
sileira, 2002).5 A proposta de Agamben é no mínimo polêmica e escandali- 7 Walter Benjamin. “Para uma crítica da violência”. Tradução: Ernani Chaves. Escritos sobre
zou a muitos.6 Situemos, antes de mais nada, as suas principais articulações. mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades /Ed. 34, 2011, p. 153-154. Tradução modificada.
8 Veja-se, por exemplo, a passagem retirada de A ideologia alemã de Marx, estudada por Han-
Em O poder soberano e a vida nua, Agamben procurara responder à per- nah Arendt. O que diferencia o homem do resto da natureza é essencialmente o fato de ele
produzir os seus meios de subsistência. Esta produção consiste na reprodução dos meios da
natureza, análogo à reprodução do indivíduo visando à subsistência da espécie. “A maneira
3 Robert Antelme. L’espèce humaine. Paris: Galimmard, 1957, p. 11.
pela qual o homem produz comida depende em primeiro lugar da natureza dos meios de
4 Primo Levi. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p. 9. subsistência que ele encontra e que tem que reproduzir. Este modo de produção não deve
5 Os volumes da série vão se multiplicando. Até agora (2012) temos: Homo sacer II, 1. Estado ser visto simplesmente como reprodução da existência física de indivíduos. Ao invés, é uma
de exceção (2003, tradução brasileira, 2004); e Homo sacer II, 2. O reino e a glória. Por uma forma definida de sua atividade, uma maneira definida de expressar sua vida, um modo de
genealogia teológica da economia e do governo (2007, tradução brasileira 2011); Homo sacer vida definido. À medida que indivíduos expressam sua vida, eles são. O que eles são coincide,
II, 3. O sacramento da linguagem. Uma arqueologia do juramento (tradução brasileira 2011); portanto, com o que eles produzem...” (Hannah Arendt. The Human Condition. New York: A
Home sacer II, 5. Opus dei. Arqueologia do ofício (2012, não traduzido no Brasil); Homo sacer Double Day Anchor Books, 1959, p. 92; Karl Marx e Friedrich Engels, “The German Ideology.
IV, 1. Da altíssima pobreza. Regras e formas de vida (2011, não traduzido no Brasil). A Critique of the Most Recent German Philosophy as Represented by Feuerbach, B. Bauer,
6 Para um apanhado das reações negativas, sublinhando sobretudo o silêncio desaprovador and Stirner”; Loyd D. Easton e Kurt H. Guddat (editores). Writings of the Young Marx on
da crítica após a publicação do livro, assim como uma revisão extremamente negativa do Philosophy and Society. New York: Double Day/Anchor Book, 1967, p. 409).
projeto do livro como um todo, inserindo-o no contexto das obras anteriores de Agamben, 9 Michel Foucault. Em defesa da sociedade. Tradução: Maria Ermantina Galvão. São Paulo:
ver Giorgio Agamben à l’épreuve d’Auschwitz, de Philippe Mesnard e Claudine Kahan. Martins Fontes, 1999; 2000, p. 286.)

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gência de categorias como raça, natalidade, degenerescênica e sexualidade, O outro lado da equação soberania/vida nua, a vida nua ou “vida
e de disciplinas como a demografia, a saúde pública e a psicanálise.10 sacra”, tem a sua primeira figura, desentranhada por Emile Benveniste e
O nó da questão que interessa a Agamben é a localização de um nexo reelaborada por Agamben, no compêndio de Sexto Pompeu Festo, Sobre
essencial, “simetria” ou “analogia estrutural” entre o funcionamento da o significado das palavras, na categoria do direito arcaico romano de homo
soberania e o da vida nua, ou vida sacra, como ele a rebatiza.11 A definição de sacer.14 Homo sacer é aquele que, tendo cometido um crime hediondo, não
soberania provém do jurista nazista alemão Carl Schmitt, segundo o qual, pode ser sacrificado segundo os ritos da punição, mas no caso de ser morto,
paradoxalmente, a soberania estatal não se manifesta no domínio da norma, o seu executante não será punido.15 O homo sacer é, portanto, este ser para-
ou do ordenamento do direito, mas na situação de exceção, e no monopó- doxal que cometeu um crime além de qualquer punição, indesejado tanto
lio da decisão. O ordenamento necessita do estabelecimento de uma ordem pelos deuses quanto pelos homens, fora da jurisdição de ambos, insacrifi-
normal, mas cabe ao soberano decidir onde e quando encontramo-nos na cável, mas, por assim dizer, “matável”. Excluído das duas ordens, é ele quem
situação de vigência da norma. Ele se encontra, portanto, claramente fora mobiliza a figura antropológica recorrente e equivocada (segundo Agam-
do ordenamento, já que é ele quem define as condições de normalidade, cir- ben) da ambiguidade original do sagrado, puro-impuro, ao mesmo tempo
cunscrevendo a decisão como sua prerrogativa própria – a possibilidade de, totem e tabu (como em Freud). Ele se encontra em um limbo difícil de
em caso de emergência, decretar o estado de exceção – e relegando a norma situar, e que repete a topologia do banimento, da “exclusão inclusiva” ou da
a uma “tranquila superficialidade” que caracteriza os estados de direito.12 “inclusão exclusiva” da soberania. Isso porque a vida sacra é propriamente
Mas ao mesmo tempo a norma, para poder funcionar, precisa interiorizar a a coisa do soberano, aquele no qual a soberania se manifesta e se torna real-
exceção soberana, como seu limite externo, excluindo-a como condição do mente soberana, em que a exceção soberana se produz ao produzir o ser
funcionamento da norma. O estado de direito, no qual vive a norma, exclui excepcional na violência de sua decisão. “A sacralidade” – escreve ele – “é,
a exceção para poder funcionar, mas só pode fazer isso interiorizando-a sobretudo, a forma originária da implicação da vida nua na ordem jurídi-
como exterioridade (“capturada fora”, ex-capere, etimologia de “exceção”), co-política, e o sintagma homo sacer nomeia algo como a relação ‘política’
como limite intransponível sem o qual todo o direito e todo o ordenamento originária, ou seja, a vida enquanto, na exclusão inclusiva, serve como refe-
não fazem sentido nenhum. É o paradoxo topológico que mobiliza o livro rente à decisão soberana”.16
inteiro de Agamben, e que se encontra em Schmitt: “o soberano está, ao Ora, esta é, segundo Agamben, a grande figura política do nosso
mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico”.13 tempo, e que terá na Shoah, ou seja, no extermínio dos judeus europeus na
10 Ver, a respeito, a aula de 17 de março de 1976, em Em defesa da sociedade, e o capítulo “Direito
segunda guerra mundial, a sua matriz originária. Os judeus foram extermi-
de morte e poder sobre a vida” em História da sexualidade I. A vontade de saber. nados, conclui terrivelmente Agamben, como piolhos, ou seja, como “vida
11 Giorgio Agamben. Homo Sacer I. O poder soberano e a vida nua. Tradução: Henrique Burigo. nua”, e o problema da Shoah deve ser pensado não como questão jurídica
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 92.
ou religiosa, mas como biopolítica.17
12 Ibidem, p. 24.
13 Ibidem, p. 23. Schmitt: “Embora ele [o soberano] permaneça fora do sistema legal normal-
mente válido, ele no entanto pertence a ele, pois é ele quem deve decidir se a constituição pre- das nossas democracias parlamentares, de forma que cheguemos ao paradoxo tipicamente
cisa ser suspendida na sua totalidade” (Schmitt 1985, 7). O que define o movimento de dupla moderno de uma violência tranquila. (Benjamin: “o ‘estado de exceção’ em que vivemos é
exclusão e dupla inclusão política, central para o funcionamento da soberania: a soberania na verdade a regra geral”. “Teses sobre o conceito de história”. Obras escolhidas vol. I. Magia
se subtrai à norma, constituindo-a, ao mesmo tempo que, constituída, a norma se subtrai à e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994, 7 ª
soberania, abandonando-a como estado-limite; a soberania inclui a norma como exterior a ed., p. 226.)
si mesma ao fundá-la, ao decidir onde começa a norma e a anormalidade, ao mesmo tempo 14 Émile Benveniste. O vocabulário das instituições indo-européias. Volume II. Trad. Denise e
que a norma inclui a exceção soberana ao mantê-la sempre como limite, e condição exterior Eleonora Bottmann. Campinas: Ed. Unicamp, 1995, p. 190.
interna para seu funcionamento. Os estados de exceção, nem tão excepcionais assim, são
15 Giorgio Agambem. Homo Sacer I. O poder soberano e a vida nua, loc.cit., p. 80.
aqueles em que o banimento recíproco da exceção no estado de direito (a decisão é banida da
norma, excluindo-a, e a norma bane a decisão interiorizando-a) é substituído pela identifica- 16 Ibidem, p. 92.
ção absoluta da anormalidade à norma, da violência ao estado de “tranquilidade superficial” 17 Ibidem, p. 121.

44 45
Primo Levi descreveu aquele que, no jargão do campo, era chamado “o A hipótese de Agamben, em O que resta de Auschwitz. O arquivo e o
muçulmano”, um ser em que a humilhação, horror e medo haviam ceifado Testemunho. Homo Sacer III, situa-se exatamente no mesmo contexto – limi-
toda consciência e toda personalidade, até a mais absoluta apatia (daí a sua
tando o escopo de sua investigação, no entanto, ao testemunho de sobre-
irônica denominação). Ele não apenas era excluído, como seus companheiros,
do contexto político e social ao qual havia outrora pertencido; não apenas, viventes dos campos de concentração alemães, e mais precisamente aos
como vida hebreia que não merece viver, ele era votado em um futuro mais ou testemunhos de Primo Levi. Para ele, basicamente, o testemunho em geral,
menos próximo à morte; ainda mais, ele não faz mais parte de maneira alguma e os de Primo Levi em particular, seriam o local de uma experimentação
do mundo dos homens, nem mesmo daquele, ameaçado e precário, dos habi- sobre o humano que, partindo da experiência biopolítica em larga escala
tantes do campo, que o esqueceram desde o início. Mudo e absolutamente só,
ele passou para um outro mundo, sem memória e sem comiseração.18 levada a cabo pelos SS nos campos de extermínio – ocorrendo, portanto,
de forma perigosamente ambígua, exatamente no mesmo terreno que esta
Tomando-se como base os dois termos que designavam a vida na cul- – resultaria na dedução de um conceito absolutamente novo de humano,
tura grega clássica, a zoé (a vida em geral) e o bíos (a vida individual ou em impessoal e singular, liberto das categorias de indivíduo e sujeito, que sem-
grupo em particular), o que encontramos na modernidade é uma absoluta pre “moralizaram” o conceito de homem ao longo da história do ocidente.
coincidência entre os dois, tanto no soberano quanto na vida nua. O Führer O programa desta experimentação aparece desenvolvido de maneira enig-
é aquele cuja vida é já sempre imediatamente política (fonte de direito), e mática e lacônica na última página de O poder soberano e a vida nua: se
biopolítica (a partir dele se define o patrimônio racial do povo alemão), o entrelaçamento intrínseco entre vida nua e soberania, a implicação da
ele é aquele cuja vida privada desaparece, absolutamente exposto à vida vida nua na ordem jurídico-política (como forma de vida), caracteriza-se,
pública, portanto, ao mesmo tempo zoé e bíos. Da mesma forma, o ban- tanto do lado da soberania quanto do da vida nua, pela coincidência da zoé
dido, ou seja, o banido pela lei, ou o judeu da Shoah, são imediatamente com o bíos, de uma zoé que é já sempre imediata e originariamente bíos,
expostos ao poder soberano, são imediatamente vida politizada, já que seria preciso propor agora não um retorno impossível às distinções clás-
adquirem, nesta relação que os constitui, seu único sentido, o que faz deles, sicas entre as duas esferas, entre o privado e o político, o corpo biológico
ao mesmo tempo, também zoé e bíos. Ou, como resume Agamben: “uma lei e o político (como querem Hannah Arendt e Leo Strauss), e sim fazer da
que pretende fazer-se integralmente vida encontra-se diante de uma vida própria vida nua uma “forma de vida toda vertida na vida nua, um bíos
que se confundiu em todos os pontos com a norma...”.19 Este é o paradoxo que é somente a sua zoé”.21 Ou seja, a uma zoé que é puro bíos (a proposi-
do “muçulmano”:20 aparentemente pura vida, zoé, mas nele não subsistindo ção biopolítica moderna) opor um bíos que é somente zoé.22 O programa
nada de natural, nenhum instinto animal. Trata-se de um corpo puramente é referido a dois antecedentes eminentes: Heidegger e Schelling.23 O bíos
tomado pela política, que o constitui excluindo-o do direito no estado de vertido em zoé agambeniano retraduz de fato o programa heideggeriano,
exceção em que existe o campo. resumido na frase inicial de Ser e Tempo, “a essência do Dasein jaz [liegt] na

18 Ibidem, p. 190-191.
19 Ibidem, p. 191. 21 Giorgio Agamben. “Imanência absoluta”. Alliez, Éric (org.), Gilles Deleuze: uma vida filosó-
fica. São Paulo: 34 Letras, 2000, p. 194.
20 Como escreve Primo Levi: “Era comum a todos os Lager o termo Muselmann, “muçulmano”,
atribuído ao prisioneiro irreversivelmente exausto, extenuado, próximo à morte” (Primo 22 Ver, a respeito, a bela elaboração que faz do programa agambeniano Peter Pál Pelbart, em A
Levi. Os afogados e os sobreviventes. Os delitos, os castigos, as penas, e as impunidades. Tradu- vertigem por um fio. Políticas da subjetividade contemporânea. São Paulo: Iluminuras, 2000,
ção: Luiz Sérgio Henriques. São Paulo: Paz e Terra,1990, p. 57). “Os Muselmanner eram assim p. 26-27.
chamados por uma referência ao modo de andar, de cabeça baixa e joelhos dobrados, dos 23 Em um parágrafo particularmente agudo, situado no final do capítulo “Potência e direito”,
turcos muçulmanos, onde não estão ausentes alguns elementos racistas” (Philippe Mesnard e que recoloca o projeto do livro no contexto metafísico do debate aristotélico sobre a potência
Claudine Kahan. Giorgio Agamben à l’épreuve d’Auschwitz. Temoignages/Interpretation 2001, e o ato, ele amplia esta lista para incluir também Nietzsche, Bataille, e Bartleby, o escriturário
Paris: Kimé, 2001, p. 43). Sobre as razões do termo Muselmann, ver as detalhadas reconstitui- de Melville (Giorgio Agamben. “Imanência absoluta”, loc. cit., p. 55-56). A Bartleby, Agamben
ções de Mesnard e Kahan (p. 42-44). dedicou o livro Bartleby ou a criação.

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sua existência”,24 que situa na cotidianidade da experiência fáctica do Ser-aí, abrir-se um campo de pesquisa que jaz além daquele, definido pela intersec-
no ser-lançado, na inseparabilidade entre ser e modos, entre sujeito, estado ção de política e filosofia, ciências médico-biológicas e jurisprudência.29
de espírito (Befindlichkeit) e humores (Stimmungen), entre vida e mundo, o Talvez seja no belo ensaio sobre Deleuze “Imanência absoluta”, de 1996
local próprio da experimentação ontológica. E Schelling, que na sua Filoso- – que reconstrói a genealogia dos temas desenvolvidos laconicamente no
fia da revelação fala de um ser que é pura existência. O que insere a questão último texto publicados em vida de Deleuze, “Imanência: uma vida” –, que
política no grande horizonte do projeto filosófico da metafísica ocidental, Agamben explicita de maneira mais clara esta estratégia ambígua, através
de isolar o ser puro (òn haplôs) das múltiplas formas em que o ser pode da articulação entre os projetos de Deleuze e Foucault. “Deleuze apercebe-
existir,25 análogo ao projeto biopolítico de isolar a vida nua da vida digna se perfeitamente” – escreve ele – “de que o pensamento que toma como
de ser vivida.26 Não se trata portanto de separar o vínculo epocal indisso- objeto a vida compartilha deste objeto com o poder e deve confrontar-se
lúvel entre vida nua e forma de vida, projeto que une as tradições liberais com suas estratégias”.30 O que Foucault coloca de maneira clara no final de
e conservadoras, de esquerda e direita, e sim em situar precisamente um História da sexualidade I. A vontade de Saber:
campo da experimentação radical no nexo indissolúvel entre as duas, em
algo que poder-se-ia chamar de forma-de-vida. Se a soberania é definida E contra esse poder ainda novo no século XIX [o biopoder], as forças que resis-
tem se apoiaram exatamente naquilo sobre que ele investe – isto é, na vida e
pela separação da vida nua das formas de vida, é apenas através da emanci-
no homem enquanto ser vivo. [...] [O] que é reivindicado e serve de objetivo
pação de uma tal divisão, e da própria soberania, em direção a uma política é a vida, entendida como as necessidades fundamentais, a essência concreta
não-estatal, que se pode pensar uma “vida da potência” ou pensamento.27 do homem, a realização de suas virtualidades, a plenitude do possível. [...] [A]
vida como objeto político foi de algum modo tomada ao pé da letra e voltada
Chamo pensamento ao nexo que constitui as formas de vida em um contexto contra o sistema que tentava controlá-la.31
inseparável como formas-de-vida. Não quero dizer com isso o exercício indi-
vidual de um órgão ou faculdade psíquica, mas uma experiência, um expe- Talvez pudéssemos situar exatamente neste ponto, em que a resis-
rimentum que tem por objeto a potência da vida e da inteligência humana.28
tência ao poder se liga irresistivelmente às subjetivações/objetivações do
É apenas no lugar interno em que uma não pode se distinguir da outra poder, o início da crise que levará Foucault a interromper os trabalhos em
que se pode definir a possibilidade de transcender (ir além) o programa andamento da História da sexualidade, e retomar o problema desde o iní-
biopolítico contemporâneo. O que pode ser resumido no paradoxo topoló- cio, com o retorno aos gregos, a fim de isolar processos de subjetivação
gico de um “jazer além”: não-subjetivos, ponto de partida de qualquer estratégia de resistência. Para
Deleuze, este é o momento de reformular com relação à vida, e no final
Se denominamos forma-de-vida a este ser que é somente a sua nua existência,
da sua, o problema de um “campo transcendental sem sujeito”, ou em sua
essa vida que é sua forma e que permanece inseparável desta, então veremos
última versão, o “plano de imanência”, liberando-o da consciência, onde o
sujeito transcendental kantiano e a fenomenologia (Husserl e Sartre) ainda
24 Martin Heidegger. Ser e tempo I. Tradução: Márcia Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, o haviam aprisionado, e desenhando “uma zona pré-individual e absolu-
2001, 10ª ed. , p. 77, tradução modificada. tamente impessoal”.32 Segundo Agamben, é algo muito parecido com isso
25 Referência à frase famosa de Aristóteles, no livro Z da Metafísica: “O ente pode ser dito de
diversas maneiras...” (Tò òn légetai pollakôs) (1028a 10). Ver a respeito o belo ensaio de Jean 29 Giorgio Agamben, “Imanência absoluta”, loc.cit., p. 194. Para o texto de Deleuze, consultar
Beaufret, “Note sur Platon et Aristote”: “O verdadeiro título da ontologia de Aristóteles não é a tradução de Alberto Pucheu Netto, “Imanência: uma vida”. Terceira Margem. Revista da
um nome, e sim o aforisma: Tò òn légetai pollakôs” (Jean Beaufret. «Note sur Platon et Aris- Pós-Graduação em Letras. Rio de Janeiro. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de
tote». Dialogue avec Heidegger. Philosophie grecque. Paris: Minuit, 1973, p. 117.) Letras e Artes, Faculdade de Letras, Pós-Graduação, Ano IX, n. 11, 2004.
26 Giorgio Agamben. “Imanência absoluta”, loc. cit., p. 188. 30 Ibidem, p. 183.
27 Giorgio Agamben. “Form-of-Life”. Virno, Paolo e Hardt, Michael (eds.) Radical Thought in 31 Michel Foucault. História da sexualidade I. Vontade de saber. Trad. Maria Theresa da Costa S.
Italy. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1996, p. 153. Albuquerque e J.A. Guilhon de Albuquerque. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1977, p. 136.
28 Ibidem, idem. 32 Giorgio Agamben. “Imanência absoluta”, loc.cit., p.174.

48 49
que Primo Levi realiza no testemunho. A operação testemunhal consistiria, Em seu estudo sobre o humano, Primo Levi parte da dicotomia estru-
basicamente, na formulação de um critério de vida absolutamente liberto tural darwiniana entre “submersos” e “salvos”, ou seja, entre os não adap-
da transcendência moral-teológica do sujeito, através da literalização dos tados e os adaptados à luta pela sobrevivência, identificando a condição
processos de objetivação da vida executados pelo SS, voltando, contra de “salvação” à “proeminência”, ou seja, ao privilégio obtido por meio de
aquele mesmo poder que a controlava, uma afirmação absolutamente neu- astúcia. Ele divide, em seguida, os proeminentes entre judeus e não judeus,
tra (nem positiva, nem negativa) destes processo de controle biopolítico. interessando-se pelos primeiros: enquanto os não judeus eram automatica-
mente consignados a funções especiais, “os judeus tinham que fazer intri-
*** gas e lutar duramente para conseguir essas funções”.38 Os proeminentes não
De fato, é interessante observar como Primo Levi, no capítulo “Os sub- judeus se subdividem por sua vez também em duas categorias: os crimino-
mersos e os salvos” (I sommersi e i salvati33), de É isto um homem? (1947), sos comuns, epítome da crueldade humana, e norma anormal nos campos,
cujo título e temática será retomada e expandida na obra homônima “refle- retirados das prisões alemães para aí desempenharem funções administra-
xiva” posterior (1986), situa o testemunho em uma relação indissolúvel com tivas, e os prisioneiros políticos, que surpreendentemente rivalizam com
a experimentação SS, ao mesmo tempo dela se distanciando por um meca- aqueles em brutalidade. Primo Levi conclui o seu estudo com quatro casos
nismo sutil mas essencial. O que ocorreu no campo, escreve ele, “foi também de indivíduos que exemplificam as múltiplas estratégias de sobrevivência
(e marcadamente) uma notável experiência biológica e social”.34 A experiên- no campo: Schepschel, o galego que excedia no “jeitinho”; Alfred L, o diri-
cia obedece os princípios elementares da pesquisa laboratorial científica, em gente de uma fábrica de produtos químicos, oriundo da classe alta, que
perfeita adequação ao método indutivo experimental codificado pelo século faz pouco a pouco valer sua disciplina interior de classe e consegue com
XVII: um ambiente fechado, em que pessoas de idades, condições, origens, isso obter privilégios do Kapo; Elias Lindzin, um polonês mínimo vindo
línguas e culturas diferentes são submetidas a uma rotina idêntica. Já Fran- do gueto de Varsóvia, dotado de extremo vigor físico, ladrão nato, meio
cis Bacon dizia que a experiência científica equivale a colocar a natureza na demente, que viceja no campo e teria dificuldades em viver na sociedade
roda, de forma a fazê-la confessar por meio de tortura o seu segredo.35 “[N] civil; e Henri, o mestre do contrabando de mercadoria inglesa, que aprende
enhum pesquisador – continua Levi – poderia estabelecer um sistema mais a usar a compaixão dos superiores em seu proveito.
rígido para verificar o que é congênito e o que é adquirido no comporta- O objeto dessa investigação retrospectiva é, portanto, o comportamento
mento do animal-homem frente à luta pela vida”.36 O estudo empreendido a do dúbio “animal-homem frente à luta pela vida”, segundo parâmetros biopo-
seguir por Primo Levi situa-se ele também dentro do registro científico – é líticos darwinianos, já que, afinal, a ideologia racial nazista não passa de um
um químico quem escreve. Nele se evidencia um projeto classificatório e evolucionismo sociológico.39 Primo Levi se recusa a formular qualquer tese
tipológico, e uma progressão por alternativas binárias, baseado em um cri-
e que recolhe por conseguinte tal qual a natureza lhos oferece; dá-se o nome de experimen-
tério de variação, para falar como Claude Bernard.37 tador àquele que emprega processos de investigações simples ou complexos para fazer variar
ou modificar, com um objetivo qualquer, os fenômenos naturais, e fazê-los aparecer em cir-
cunstâncias ou condições nas quais a natureza não os apresentava” (Emile Zola. O romance
33 A expressão italiana foi traduzida em português como “Os submersos e os salvos”, como
experimental e o naturalismo no teatro. São Paulo: Perspectiva, 1982, p. 29).
capítulo de É Isto um homem?, por Luigi Del Re, e como Os afogados e os sobreviventes, como
título do volume, por Luiz Sérgio Henriques. 38 Primo Levi. É isto um homem?, loc. cit., p. 92.
34 Primo Levi. É isto um homem?, loc.cit., p. 88. 39 Sobre este ponto, ver as análises de Lacoue-Labarthe e Nancy em O mito nazista, assim como
toda a terceira parte de Homo Sacer. O poder soberano e vida nua, “O campo como paradigma
35 Lorraine Daston. “Baconian Facts, Academic Civility, and the Prehistory of Objectivity”. In:
político do moderno”, de Agamben. Foucault: “No fundo, o evolucionismo, entendido no
Megill, Allan (ed.) Rethinking Objectivity. Durham: Duke University Press, 1994, p. 48.
sentido lato – ou seja, não tanto a própria teoria de Darwin quanto o conjunto, o pacote de
36 Primo Levi. É isto um homem?, loc.cit., p. 88. suas noções (como: hierarquia das espécies sobre a árvore comum da evolução, luta pela vida
37 Por exemplo, na Introdução ao Estudo da Medicina Experimental. Veja, por exemplo, esta entre as espécies, seleção que elimina os menos adaptados) –, tornou-se, com toda a naturali-
citação de Zola, em O romance experimental: “Dá-se o nome de observador àquele que aplica dade, em alguns anos do século XIX, não simplesmente uma maneira de ocultar um discurso
processos de investigações simples ou complexos ao estudo de fenômenos que não faz variar político sob uma vestimenta científica, mas realmente uma maneira de pensar as relações

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sobre a natureza humana, rejeitando a hipótese hobbesiana de que o “homem quer, o que implica merecimento ou punição), seja ainda pela confiança
é essencialmente brutal, egoísta e estulto”, e de que o sistema concentracioná- vitoriosa em uma qualquer “habilidade” na luta pela sobrevivência. Primo
rio teria simplesmente exposto o homem real oculto por detrás das inibições Levi explicitamente descarta cada uma destas posições em Os afogados e os
e códigos sociais. A sua hipótese se distingue sutilmente daquela, e repousa sobreviventes: o extermínio dos judeus não faz categoricamente nenhum
sobre uma noção de sobrevivência: a necessidade e o sofrimento físico silen- sentido, concordando neste aspecto com Adorno;43 o ocorrido permanece
ciam no homem os códigos sociais. É o que definirá a situação de ser “opri- para todo sempre não assumível por aquele que o viveu, dirá Agamben.44
mido até o fundo”,40 caracterizada por sua radical ambivalência moral, “aquém E é Primo Levi quem de fato define com agudeza característica a questão
do bem e do mal”, como diz o título nietzschiano do capítulo anterior. sutil do ponto em que a “experiência humana” biopolítica, transcorrida no
Mas se o horror contido nessa gigantesca operação de objetivação do campo e levada a cabo pelo SS, pode, enquanto memória, ser assumida pela
humano é indubitável e sua recusa um ponto pacífico, qual seria então o testemunha, no intervalo difícil de localizar em que a objetivação experi-
interesse de rememorá-la, ou repeti-la no exercício do testemunho? Primo mental vira subjetivação experiencial.
Levi responde por meio de uma declaração de princípios que contém um Uma tal operação seria equivalente, para Agamben, nada mais nada
elemento importante do programa testemunhal: “nenhuma experiên- menos, a escrever uma Ethica more Auschwitz demonstrata, circunscre-
cia humana é vazia de conteúdo, [...] todas merecem ser analisadas; [...] vendo o território propriamente mosaico de uma “nova terra ética” do
se podem extrair valores fundamentais (ainda que nem sempre positi- futuro.45 A referência ao mesmo tempo séria e irônica ao Ethica more Geo-
vos) desse mundo particular [...]”.41 O que contém em sua generalidade metrico demonstrata (Ética demonstrada pelo método geométrico) de Spi-
um imperativo mais ou menos explícito: interessar-se por tudo o que diz noza deve nos colocar em alerta sobre o que é visado aqui. No entanto,
respeito ao humano, não recusar, como destituído de interesse, nada que nos perguntamos, em que medida uma ética da liberdade da potência e
ocorre ao homem. Até mesmo nesta experiência particularíssima como da alegria como a espinosiana pode ter a ver com a situação de coação
a ocorrida no campo, há um conteúdo, um valor a ser extraído, ou seja, absoluta que define a existência de um Häftling, em um campo de exter-
uma lição geral referente ao humano. O que sem dúvida deve ter valido mínio, ou da “vida nua”, como o traduz Agamben, a partir de Benjamin?
a Primo Levi a pecha de ingênuo (cf. a discussão com Jean Améry).42 A É sem dúvida na tese espinosiana do ser unívoco que Agamben está pen-
dificuldade consiste precisamente em identificar a natureza possível da sando aqui. Segundo ela, no dizer de Deleuze, o ser “se diz em um único
relação subjetiva para com o ocorrido, e seria um equívoco ver aqui uma e mesmo sentido da substância que é em si mesma, e dos modos, que são
qualquer “aceitação” ou “endosso” da experiência SS, seja pela via da “elei- em outra coisa”.46 Esta tese vem, ao que tudo indica, de Duns Scot: o ser se
ção” (nós que sobrevivemos fomos eleitos pela providência), seja pela da diz do mesmo sentido de tudo o que é, infinito ou finito.47 O criador ou a
teodiceia, implícita ainda na escolha do termo “holocausto” para designar
a Shoah (o extermínio dos judeus constituiu um sacrifício a um deus qual- 43 Trata-se da sóbria avaliação adorniana da ópera de Arnold Schönberg, O sobrevivente de Var-
sóvia. Apesar de tudo, o princípio de estilização artística ainda confere sentido ao que não
tem sentido nenhum, fazendo com que a “crua dor corporal dos castigados com coronha-
da colonização, a necessidade das guerras, a criminalidade, os fenômenos da loucura e da das” provoque prazer: “Pelo princípio de estilização estética e até pela prece solene do coro,
doença mental, a história das sociedades com suas diferentes classes, etc. Em outras palavras, o destino imponderável se apresenta como se tivesse tido algum sentido algum dia”. Theodor
cada vez que houve enfrentamento, condenação à morte, luta, risco de morte, foi na forma Adorno. “Engagement”. In: Notas de literatura. Trad. Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro: Rio
do evolucionismo que se foi forçado, literalmente, a pensá-los.” (Michel Foucault. Em defesa de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991, p. 65.).
da sociedade, loc.cit., p. 307.) 44 Giorgio Agamben. O que resta de Auschwitz. Trad. Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo,
40 Primo Levi. É isto um homem?, loc.cit., p. 88. 2008, p. 107.
41 Ibidem. 45 Ibidem, p. 21.
42 O capítulo “O intelectual em Auschwitz”, de Os afogados e os sobreviventes, responde às críticas 46 Gilles Deleuze. Spinoza et le problème de l’expression. Paris: PUF, 1968, p. 58.
endereçadas a ele por Hans Mayer/Jean Améry, autor do testemunho Além do crime e do cas- 47 “Deus é conhecido não somente num conceito análogo ao conceito de criatura, isto é, num
tigo, que se suicidou – assim como o próprio Primo Levi iria fazê-lo posteriormente em 1987. conceito que está totalmente distinto daquele que é predicado da criatura, mas nalgum con-

52 53
criatura, a substância (que é em si mesma) e os modos (que são em outra mesma substância ilimitada – é talvez aonde resida até hoje a maior dificul-
coisa) são dotados exatamente da mesma natureza. Eles são formalmente dade e o caráter abissal da filosofia de Spinoza, e é certamente neste desdo-
diferentes, mas possuem a mesma substância. O que se opõe às teologias bramento que Agamben pensa ao propor provocadoramente uma Ethica
positivas, sobretudo à tomista, segundo a qual as qualidades atribuíveis às more Auschwitz demonstrata.
criaturas preexistem em Deus, e só são atribuídas àquelas por analogia para Ora, uma das grandes lições de Auschwitz, segundo Agamben,
com os atributos divinos.48 Para Spinosa, ao contrário, os atributos de Deus demonstrada com rigor pelos testemunhos de sobreviventes, é que a tarefa
– o pensamento e a extensão –, de onde se deduzem os modos, podem essencial do pensamento consiste em entender o espírito da pessoa comum,
ser ditos da mesma maneira do infinito e do finito, exatamente como e não o do ser excepcional (como Spinosa ou Dante, escreve ele).52 A teste-
dois nomes podem nomear a mesma pessoa ou coisa, como provam os munha é por definição precisamente uma pessoa ordinária, que testemu-
exemplos famosos citados por Spinosa na carta a De Vries: “Israel” é assim nha enquanto pessoa ordinária, sobre o ser ordinário da vida, que é nada
nomeado como patriarca, e como “Jacó”, com relação ao seu irmão; “plano” mais que ordinária. É o caráter qualquer da vida, para utilizar uma categoria
pode ser dito “branco”, se visto por um homem.49 Estes atributos são dife- que Agamben estudara anteriormente,53 que é essencialmente vida de qual-
rentes, mas nomeiam uma substância única e infinita, o que significa que quer um, o objeto da interrogação do testemunho. Entender esse caráter
não se pode dividi-la, ou quantificá-la. Cada atributo é infinito em si, já ordinário e impessoal da vida, o ser humano em si, sem distinções, absolu-
que não pode ser limitado por si mesmo, apenas pelo outro (por exemplo, tamente igual a si mesmo, é que constitui a tarefa que o testemunho se pro-
a extensão pode limitar o pensamento, mas o pensamento não pode limitar põe a pensar. É nesse sentido que o testemunho pode ser entendido como
o pensamento), o que se opõe à tese de Descartes, segundo a qual existem resistência e experimentação, no sentido de Agamben: enquanto recusa às
duas substâncias (a res extensa e a res cogitans), cada uma delas podendo distinções entre vida ordinária e vida excepcional, entre vida indigna de ser
ser distinguida realmente uma da outra, na outra, e podendo existir sem a vivida e vida digna, entre soberano e “vida nua”. É unicamente a partir da
outra. Spinosa, ao contrário, demonstra que os atributos são inseparáveis, proposição de uma absoluta igualdade entre os seres, contrária à operação
distinguidos formalmente, e atribuídos a uma mesma substância, Deus.50 de isolamento e separação soberanos da «vida nua», que se pode pensar em
Ora, se os dois atributos são atribuídos igualmente a uma substância única, uma ética do testemunho. É somente enquanto inseparabilidade entre o ser
fica demonstrado o absurdo da tese de que a substância extensa, o corpo, e as diversas maneiras em que ele pode ser dito (Aristóteles) que se pode
não seja digna da natureza divina (Ética, I, prop. 15, escólio), como quer entender a vida igual a si mesma como potência de vida, possibilidade e
a tradição que Descartes resume, já que, se “há igualdade entre todas as não fato de vida.54
formas ou todos os gêneros de ser, nenhuma forma de ser é inferior a uma
outra, nenhuma é superior”.51 Essa absoluta igualdade entre as formas (os 52 Giorgio Agamben. O que resta de Auschwitz, loc. cit., p. 21.
atributos) da vida – todas elas igualmente ilimitadas, pois atribuídas a uma 53 Em A comunidade que vem, Agamben dedica o primeiro fragmento à categoria escolástica de
quodlibet, “qualquer”. Na enumeração escolástica dos transcendentais “qualquer ente é um,
verdadeiro, bem ou perfeito” (quodlibet ens est unum, verum, bonum seu perfectum), o adje-
ceito unívoco a ele próprio e à criatura.” Opus Oxoniense, I, d. 3, parte 1, questão 1, argumento tivo “qualquer” não remete a uma indiferença do ser, mas a um ser tal que ele sempre importa.
26 (John Duns Scot. Seleção de Textos. In: Os pensadores. Tomás de Aquino, Dante Alighieri, O que permite a Agamben propor um ser que vem singular, nem individual, nem universal.
John Duns Scot, William of Ockam. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 164). 54 Parece-me que a postulação agambeniana (espinosiana) da não separação entre o ser e as
48 Gilles Deleuze. Spinoza et le problème de l’expression, loc.cit., p. 45. diversas maneiras em que ele pode ser dito pode ser entendida a partir da distinção estudada
por Jean Beaufret, na ontologia aristotélica, entre o hóti estí (que é) e o tí esti (o que é), que
49 Ibidem, 52; Ethics. Treatise on the Emendation of the Intellect and Selected Letters. Tradução:
remete a um duplo sentido de ousía na Metafísica. Enquanto “que é” consiste na aparição da
Samuel Shirley. Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1992, p. 267.
coisa como tóde ti (“eis aqui esta coisa singular na minha frente”) – aparição esta que a filo-
50 É justamente esta utilização inovadora da categoria cartesiana de “distinção real”, identifi- sofia aristotélica ainda consegue vislumbrar, nem que seja para em seguida enterrá-la sob a
cando-a à distinção formal, que constitui, segundo Deleuze, uma das grandes descobertas do atribuição categorial –, “o que é” responde à pergunta “o que então é isso que aqui está?”, que
espinosismo. sem dúvida prevalece, e que será de fato o que a tradição conseguirá ler em Aristóteles, até,
51 Gilles Deleuze. Spinoza et le problème de l’expression, loc. cit., p. 59. quem sabe, Kant (Jean Beaufret. “Note sur Platon et Aristote”, loc.cit., p. 109-110). O duplo

54 55
Esta nudez da vida aparece em O que resta de Auschwitz na figura recor- ção aos fatos ocorridos. Duplo excesso, portanto: dos fatos com relação à
rente da lacuna, tratada inicialmente como aporia ou decalagem entre fato existência no interior da vida do sobrevivente; e da verdade ou realidade
histórico e verdade ontológica. Como explica Agamben, existe uma decala- destes fatos em decalagem em relação aos próprios fatos. A reconstituição
gem entre os “fatos e gestos” que abrangem a fase terminal de extermínio de histórica é irresistivelmente factual, marcada portanto, por uma aporia:
deportados judeus, ciganos, prisioneiros políticos, etc., e a sua compreen- “a não-coincidência entre fatos e verdade, entre constatação e compreen-
são. Estes fatos e gestos podem ser descritos e ordenados em uma sequên- são”.56 Ou ainda: existe uma lacuna constitutiva e essencial no testemunho,
cia temporal, porém estaremos longe de compreender a sua significação. os “sobreviventes davam testemunho de algo que não pode ser testemu-
Esta decalagem pode ser percebida em toda a sua gravidade no testemunho nhado”,57 sobre o que poderíamos chamar o intestemunhável. A verdade do
de Zelman Lewental, membro do Sonderkommando de Auschwitz: o que que aconteceu não está na reconstituição histórica dos fatos, mas na relação
ocorreu em Auschwitz é absolutamente inimaginável e mais inimaginável intervalar que une e separa o sobrevivente do que ele viveu.58 É essa lacuna
ainda é que alguém possa contar o que lá ocorreu. A inimaginabilidade que nos interpela constantemente, e cujo som inaudível tratar-se-ia, por um
do ocorrido é radicalizada na improbabilidade da própria sobrevivência, esforço sobre-humano de audição, de ouvir – o inaudito. “Escutar o não-
tornando o inimaginável a condição de possibilidade do testemunho, este dito”, resume, sob a forma de uma espécie de imperativo, o programa ético
nexo improvável entre a vida e um contá-la. O que Agamben transcreve e do livro, a tarefa a que se propõe Agamben, de mapear esta “nova terra ética”.
amplifica, compondo a figura do que ele denomina a aporia de Auschwitz: Ora, esta lacuna tem um nome: o muçulmano. É esse o centro vazio,
cujo silêncio inaudito o testemunho enquanto ética se propõe a ouvir. O
Por um lado, de fato, o que aconteceu nos campos aparece aos sobreviventes
como a única coisa verdadeira, e, como tal, absolutamente inesquecível; por sobrevivente é o ser excepcional, e o muçulmano, o ser ordinário; “eles são
outro, tal verdade é, exatamente na mesma medida, inimaginável, ou seja, a regra, nós, a exceção”, a anomalia, escreve Primo Levi.59 Mas a testemu-
irredutível aos acontecimentos reais que a constituem. Trata-se de fatos tão nha sobrevivente não pode legitimamente falar em seu próprio nome e
reais que, comparativamente, nada é mais verdadeiro; uma realidade que em nome de sua excepcionalidade – haveria algo de grotesco em um gesto
excede necessariamente os seus elementos factuais.55
como esse –, ele terá que falar enquanto ser ordinário, pelo muçulmano,
Isto é: há um excesso dos fatos ocorridos, o que os torna para os sobre- como fala ventríloqua de seu silêncio. É, em suma, como figura de uma fala
viventes a única verdade digna deste nome, algo impossível de se esquecer; que ouve e que se substitui ao silêncio da multidão dos mortos do campo de
mas por outro lado, esta verdade única está muitíssimo em excesso em rela- extermínio, que se pode pensar uma ética do testemunho.

sentido de ousía fica muito explícito no início do livro Z da Metafísica, citado acima: “O ente ***
pode ser dito de diversas maneiras [...] Ele denota em primeiro lugar o ‘o que é’ (tí esti), isto
é, a individualidade (tóde ti), e em seguida a qualidade ou quantidade ou qualquer outra
56 Ibidem, p. 20.
categoria. Ora, de todos os sentidos que têm o ente, o sentido primário é claramente o ‘o que
é’, que denota a substância (ousía) (pois quando descrevemos a qualidade de uma coisa parti- 57 Ibidem, p. 21.
cular dizemos que ela é ‘boa’, ou ‘má’, e não que ‘tem cinco metros de altura’, ou ‘um homem’; 58 Esta figura intervalar tem sua origem em Heidegger, na diferença estabelecida em Ser e
mas quando descrevemos o que ela é (tí estin), não dizemos que ela é ‘branca’, ou ‘quente’, ou Tempo entre Historie e Geschichte (“historiografia” ou “ciência histórica” e “história”, na tra-
‘tem cinco metros de altura’, mas que ela é ‘um homem’ ou ‘um deus’) e todas as coisas são dução de Márcia Cavalcante Schuback). Gechichte é a história dos acontecimentos enquanto
ditas ‘ser’, porque elas são ou quantidades ou qualidades ou paixões, ou qualquer outra coisa” que Historie é a história factual objetiva. A historiografia, o arrolamento de fatos ocorridos,
(1028a 10-20). Enquanto “o que é» é tido inicialmente como sinônimo de «eis aqui» (tóde ti), só faz sentido se os fatos fechados do passado forem transformados em abertura para uma
o que significaria dizer que a essência (o que é) consiste no encontro da coisa singular (“este possibilidade autêntica de presente. É aqui que se revela de maneira determinante a estrutura
homem, este cavalo”, dirá Aristóteles nas Categorias), e que este é o “sentido primário” da temporalizante do Dasein que só se espacializa no “aí” (Da) enquanto diferença ou exterio-
ousía, logo após Aristóteles parece reduzir tudo às determinações categoriais. Salvo engano, ridade com relação a si mesmo. É na decisão de repetir o passado no futuro, na disjunção de
o tóde tí é uma primeira versão do “ser qualquer”, e da forma-de-vida agambeniana, da vida presente que o Ser-aí se faz – no limite portanto entre o ser-lançado do passado e o projeto
como potência. Ver, a respeito de Aristóteles, não só o capítulo “Potência e direito” de O poder por vir (Heidegger. Ser e tempo, loc. cit., vol. II, §76, p. 199-205).
soberano e a vida nua, mas também o ensaio sobre Deleuze, “Imanência absoluta”. 59 Primo Levi, Os afogados e os sobreviventes. Os delitos, os castigos, as penas, e as impunidades.
55 Giorgio Agamben. O que resta de Auschwitz, loc. cit., p. 11. Tradução: Luiz Sérgio Henriques. São Paulo: Paz e Terra, 1990, p. 47.

56 57
Observemos como o muçulmano aparece pela primeira vez na pena de los de Os afogados e os sobreviventes, dedicado ao colaboracionismo judeu,
Primo Levi, naquele mesmo capítulo de É isto um homem? intitulado “Os que retoma e expande o questionamento moral já esboçado em “Aquém do
submersos e os salvos”. A categoria biopolítica de “luta pela sobrevivência” bem e do mal”, e no capítulo homônimo de É isto um homem?
em moldes darwiniano-evolucionistas, implantada em condições laborato- Se ele pudesse eleger uma imagem que concentrasse “todo o mal de
riais de experimentação pelo sistema SS, e tendo como centro as “seleções” nosso tempo”, escreve Primo Levi, seria a deste “homem macilento, cabis-
para o extermínio, produz uma perversa divisão da humanidade do campo baixo, de ombros curvados, em cujo rosto, em cujo olhar, não se possa ler o
em dois grupos bastante distintos: o dos que se salvam e o dos que se afo- menor pensamento».62 Este não homem (ao mesmo tempo humano e inu-
gam, o daqueles que se “adaptam” melhor, para retomar o mote darwiniano, mano), que se situa no não lugar indecidível entre a vida e a morte, vazio de
e o daqueles que sucumbem à fome, ao frio e à doença. Esse “implacável pensamento, presente que é puro não futuro, já contendo em si em germe
processo de seleção” funcionava a partir de uma regra rígida e paradoxal, o destino próximo da câmara de gás, é uma imagem onde se condensam os
que traduz perfeitamente o estado de exceção, da coincidência entre norma traços mais ou menos indistintos de uma multidão sem rosto. É essa ima-
e anormalidade, sobre o qual escreve Agamben em O poder soberano e a gem que resume por si só a grave acusação contida no livro como um todo,
vida nua: os que se afogam são exatamente aqueles que obedecem à risca que diz respeito “a todo o mal de nosso tempo”, e que o poema-pórtico,
o ordenamento do campo, comem apenas a sua ração e realizam obedien- narrativizando o título da obra, agudamente denuncia:
temente o trabalho a que são obrigados. Estes têm uma passagem rápida,
Vocês que vivem seguros
em geral não mais do que três meses entre a chegada e a câmara de gás, e Em suas cálidas casas,
exatamente a mesma história, ou “não-história”, já que suas “presenças sem Vocês que, voltando à noite,
rosto” carecem de qualquer individualidade. São os chamados “muçulma- Encontram comida quente e rostos amigos,
nos”, escreve Primo Levi, “a multidão anônima, continuamente renovada pensem bem se isto é um homem...63
e sempre igual, dos não-homens que marcham e se esforçam em silêncio; O trecho contém uma tripla operação, ao mesmo tempo ética, estética
já se apagou neles a centelha divina, já estão tão vazios que nem podem e biológica: a singularização e a condensação da memória depositam-se
realmente sofrer. Hesita-se chamá-los vivos; hesita-se em chamar ‘morte’ na figura do “mal”, uma espécie de grau zero impessoal da vida, absolu-
à sua morte, que eles já nem temem, porque estão esgotados demais para tamente igual a si mesma, situada na base de um sistema evolutivo estru-
poder compreendê-la”.60 Por oposição a essa imagem singular e homogênea turado em uma hierarquia rígida perversa instituída pelo SS. A estrutura
da não humanidade, os caminhos da salvação são múltiplos, e envolvem, deste capítulo de investigação sobre a experiência humana no contexto
invariavelmente, se excetuarmos as funções especiais (médicos, alfaiates, concentracionário, de É isto um homem?, comporta um elemento duplo,
músicos, cozinheiros, etc.), o fator astúcia na obtenção de favorecimentos e que repete estruturalmente o procedimento binário do método experimen-
regalias. Levi é categórico: nenhum dos prisioneiros judeus que conseguiam tal: a unicidade da imagem do muçulmano, igual a si mesma, que condensa
durar no campo eram Häftlinge “normais”.61 Apenas através do “jeitinho”, a características da multidão sem rosto e sem especificidade, de um lado; e
kombinacje, como se dizia em polonês, expressos em vantagens materiais de outro os casos exemplares, que cristalizam os múltiplos modos de “falta
e tolerância dos poderosos, era possível sobreviver. E só quem sobrevivia de dignidade”, visando a uma espécie de tipologia da amoralidade em Aus-
eram aqueles que obtinham algum tipo de “proeminência” (Prominenz). As chwitz. Ou seja: os tipos de sobreviventes são múltiplos, enquanto que a
diversas formas dessa proeminência caracterizarão o que Primo Levi chama vida-morte do “muçulmano” é idêntica a si mesma. Tendo em vista o pano
de “zona cinzenta” de ambiguidade moral, título e objeto de um dos capítu- de fundo da análise biológico-social darwiniana que subjaz ao estudo do

60 Primo Levi. É isto um homem?, loc. cit., p. 91. 62 Ibidem, p. 91.


61 Ibidem, p. 90. 63 Ibidem, p. 9.

58 59
químico Primo Levi, o código moral desaparece sob a égide da luta pela nem mesmo como destino de testemunhar sobre o que aconteceu e viu.
sobrevivência, identificada ao polo animal, no binômio animal-homem, Ao contrário dessas respostas autocomplacentes, o que mais dói em Primo
que se propusera a estudar, a partir da experiência biopolítica SS. Da luta Levi é a percepção da profunda arbitrariedade do critério de sobrevivên-
pela sobrevivência ele constrói uma imagem em negativo, o “muçulmano”, cia dramatizado pela dúvida sobre estar vivo no lugar de um outro.67 Os
enquanto grau zero da vida, necessidade em estado puro, e que Agamben, “salvos” (i salvati), em uma irônica contraposição ao sentido teológico da
a partir de Benjamin, chamará de “vida nua”. Por outro lado, as múltiplas salvação, são com certeza os piores, aqueles que de alguma maneira cola-
figuras da sobrevivência, baseadas no sufocamento dos códigos morais, boraram e participaram da “zona cinzenta” moral que vigora no campo.
fornecem uma outra imagem da necessidade, o resultado do princípio O critério de seleção, a adaptabilidade, em boa lógica darwinista, está na
adaptativo na luta pela sobrevivência. Duas imagens portanto da sobrevi- razão inversa do critério moral: submergiram os melhores, os que revelam
vência, uma singular em negativo, o “muçulmano”, e a outra múltipla, “bem padrões morais límpidos e altos, e salvaram-se os piores, os “mais adapta-
adaptada”, sugerem os diversos exemplos de modos de sobrevivência no dos”.68 Radicalizando o princípio da substitutibilidade e da sobrevida do
campo de concentração. sobrevivente, e aplicando-o ao próprio ato de testemunhar, Primo Levi
Mas é no capítulo “A vergonha”, de Os afogados e sobreviventes, que postula uma radical “impropriedade” ou “inautenticidade” do testemunho,
Primo Levi formulará de maneira clássica a ética do testemunho enquanto e sua relação intrínseca e essencial com aquele que submergiu, aquele que
enunciação intrinsecamente ligada ao silêncio do muçulmano. O capítulo deveria estar aqui, no lugar de quem eu agora falo. Este trecho é bastante
se interroga sobre um locus classicus da literatura testemunhal: a culpa do conhecido e citado, mas vale a pena lê-lo outra vez:
sobrevivente com relação aos que morreram. Como explicar que, depois
[N]ão somos nós, os sobreviventes, as autênticas testemunhas. [...] Nós, sobre-
de tudo o que sofreram, eles não se sentissem simplesmente alegres uma viventes, somos uma minoria anômala, além de exígua: somos aqueles que,
vez reconquistada a liberdade? É porque no campo eles viveram aviltados, por prevaricação, habilidade ou sorte, não tocamos o fundo. Quem o fez,
como “animais subjugados”,64 pautados por uma moral duvidosa, responde quem fitou a górgona, não voltou para contar, ou voltou mudo; mas são eles,
inicialmente Primo Levi. Por que os suicídios foram tão raros em Aus- os “muçulmanos”, os que submergiram – são eles as testemunhas integrais,
cujo depoimento teria significado geral. Eles são a regra, nós, a exceção. Nós
chwitz? Porque o suicídio é uma “escolha não instintiva” própria do ser tocados pela sorte, tentamos narrar com maior ou menor sabedoria não só
humano, e nós vivíamos como animais, guiados unicamente pelo instinto nosso destino, mas também aquele dos outros, dos que submergiram: mas
de sobrevivência. Por que não houve resistência? Devido à desnutrição, a tem sido um discurso “em nome de terceiros”, a narração de coisas vistas de
privação e outros sofrimentos físicos.65 O que não impede que a autoacusa- perto, não experimentadas pessoalmente. A demolição levada a cabo, a obra
consumada, ninguém a narrou, assim como ninguém jamais voltou para con-
ção retorne com força, sobretudo no que toca à omissão de solidariedade.
tar sua morte. Os que submergiram, ainda que tivessem papel e tinta, não
O segredo da sobrevivência é um egoísmo praticamente absoluto (“meu teriam testemunhado, por que sua morte começara antes da morte corporal.
princípio é: em primeiro lugar, em segundo lugar e em terceiro lugar estou Semanas e meses antes de morrer, já tinham perdido a capacidade de observar,
eu”, escreve Ella Lingens-Reiner),66 uma falta total de solidariedade para recordar, medir e se expressar. Falamos nós em lugar deles, por delegação.69
com os outros. No limite, o sentimento de vergonha do sobrevivente se
É aqui, portanto, que Primo Levi formula o que se poderia chamar a
deve ao fato de ele viver no lugar de um outro, provavelmente “melhor”
sua ética do testemunho, como enunciação por definição inautêntica, fala
pessoa do que ele. A sobrevivência não pode de nenhuma maneira ser
que se substitui ao silêncio daquele que tocou o “fundo” e “fitou a górgona”,
explicada por qualquer tipo de noção religiosa de eleição ou providência,
situada no lugar impossível da enunciação do morto, e cuja tarefa é sim-

64 Primo Levi. Os afogados e os sobreviventes, loc. cit., p. 42. 67 Ibidem, p. 46.


65 Ibidem, p. 43. 68 Ibidem, p. 47.
66 Ibidem, p. 44. 69 Ibidem, p. 48.

60 61
plesmente presentificar o ausente, aquele que submergiu. A ética testemu- Todo o comentário de Agamben vai se situar em torno da passagem
nhal vai precisamente substituir à proposição de fato da substitutibilidade citada acima. A “lacuna” que o testemunho essencialmente comporta,72 sua
da sobrevivência, uma outra de direito da substitutibilidade enunciativa do estrutural bipolaridade, consiste em primeiro lugar no fato de que a teste-
testemunho. Se a luta pela sobrevivência determina que a sobrevida é um munha não pode testemunhar sobre si própria,73 e em segundo lugar no
viver no lugar de um outro,70 a testemunha se propõe a falar no lugar de um fato de a testemunha substituir uma instância absolutamente coletiva, a dos
outro. Mais ainda, revertendo o princípio instintivo (biopolítico) da “luta mortos, singularizada na figura do muçulmano. Aquele que testemunha, o
das espécies”, trata-se, eticamente, de afirmar que não somos nós, os sobre- pseudotestemunho, que apenas ocupa o lugar da testemunha autêntica, tes-
viventes, que deveríamos estar aqui falando, mas eles, os que não sobrevi- temunha sobre a im-possibilidade de aqueles que morreram testemunha-
veram. São eles, e apenas eles, que poderiam enunciar a verdade sobre o rem.74 Ora, a substitutibilidade é o processo constitutivo da mímesis enten-
campo, e não nós, marcados pela inverdade essencial do cálculo da zona dida como identificação e essencialmente ligada à compaixão, que estrutura
cinzenta. A rigor, o nosso testemunho só pode falar por eles. a experiência artística desde a purgação catártica da tragédia aristotélica (o
Em um primeiro nível, Primo Levi formula aqui um protocolo da repre- “terror e a piedade...”), até a ético-política da piedade em Jean-Jacques Rou-
sentação em sentido estrito. É o que dizem literalmente as expressões “narrar sseau, e a ética da compaixão de Schopenhauer. É a mesma estratégia utili-
não só o nosso destino, mas também aquele dos outros”, “um discurso ‘em zada no Museu do Holocausto em Nova York, ou em Berlim: você é aquele
nome de terceiros’”, ou “falamos nós, em lugar deles, por delegação”. O que que morreu, e que não está mais aqui. Mas o mecanismo descrito por Primo
constitui a testemunha como representante, delegado, em sentido literal, é Levi reverte estas colocações: ele, o que não está aqui, é que deveria estar
o fato de ele ser um enviado, a quem é legada a tarefa ou o poder de repre- aqui – eu o estou apenas substituindo, sou o seu stand in, como se diz em
sentar alguém. Mas lendo com mais cuidado o texto de Primo Levi, perce- linguagem teatral. Mais ainda: ele é uma figura coletiva que a enunciação
bemos que trata-se, na verdade, de reverter a proposição da representação: testemunhal singulariza, através de um eu coletivo, que enuncia a impro-
não sou eu quem fala no lugar dele, mas é ele quem fala no meu lugar, já que priedade do sujeito, e que torna o sujeito essencialmente im-próprio. O que
é apenas enquanto fala por aquele que não está aqui que o testemunho pode está em jogo aqui é a relação com a comunidade dos mortos figurados por
existir. Sem resolver o double bind essencial do gesto testemunhal, evitando aquele que os anuncia e os representa no campo de concentração, sempre
simplesmente moralizá-lo, testemunhar consiste, ao mesmo tempo, em uma uma antecâmara do campo de extermínio a ele ligado por laços indissolú-
“obrigação moral para com os emudecidos”, e uma maneira de esquecê-los,71 veis. São esses mesmos laços que são resgatados agora entre a comunidade
“bem”, e “mal”. Um além do bem e do mal que se substitui a um aquém do de mortos condensada na imagem do muçulmano que ligam a testemunha
bem e do mal. A im-possibilidade do testemunho consiste precisamente no àquele por quem testemunha. O que interessa a Agamben é precisamente o
fato de sua possibilidade ser fundada na fala que falta, daquele que essencial- fato de que o que autoriza o testemunho, e o torna para sempre um gênero
mente não fala, daquele que está ausente e que o testemunho presentifica por ao mesmo tempo legítimo e ilegítimo, é essa substitutibilidade impossível
procuração, mas que ao mesmo tempo fala através de mim, enquanto eu que e reversível: eu estou no lugar deles, quando são eles que deveriam de fato
falo me silencio. O testemunho é a enunciação cuja legitimidade repousa estar no meu lugar. É esta relação com o que não está, figura da rememo-
sobre uma ilegitimidade, a ilegitimidade da sobrevida; mas é enquanto fala ração, do resto, inscrito no título O que resta de Auschwitz, o intervalo que
do, e para, o outro que ele pode ilegitimamente existir. me separa e une com o ausente – é esta relação intervalar e inessencial que
constitui o testemunho, e que me faz testemunhar.

72 Giorgio Agamben. O que resta de Auschwtiz, loc. cit., p. 40.


70 Ibidem, p. 46. 73 Ibidem, p. 48.
71 Ibidem, p. 48. 74 Ibidem, p. 43.

62 63
O que interessa a Agamben não é algo como uma sensação de culpa uma enunciação da vergonha. Estruturalmente, essa diferença ou inautenti-
– embora este seja, de fato, um lugar comum do testemunho de todos os cidade interna do testemunho está ligada à sua duplicidade ou bipolaridade
sobreviventes. O que interessa é o fato de o testemunho, entendido como intrínseca: muçulmano e testemunho, testemunha autêntica e sujeito teste-
voz do inaudito, porta-voz do silêncio do muçulmano, tal qual o vê Primo munhal. O que, num contexto muito diferente, mas análogo, no testemu-
Levi, reverter de maneira radical o repúdio e a rejeição de que ele era objeto nho latino-americano – e com semelhante questionamento sobre o estatuto
no campo, da parte dos outros deportados, como atestam todos os teste- da autenticidade – tornar-se-á a diferença entre informante e antropólogo,
munhos de sobreviventes. Como escreve o pintor Aldo Carpi, deportado entre culturas orais e escritas, entre testemunho coletivo e “gestor”, como o
em Gusen: “Ninguém quer saber das cenas e figuras do Lager, ninguém chama o teórico cubano Miguel Barnet, 77 primeiro praticante do testemu-
quer ver o Muselmann”.75 A falta de ajuda aos muçulmanos no campo não nho latino-americano. Esta estruturação da enunciação como subjetivação
deve nos surpreender: a faina diária da sobrevivência determina uma eco- imprópria, ponto de singularização de uma coletividade, constitui um ele-
nomia estrita de gestos e palavras, como escrevem as testemunhas. Mas a mento essencial tanto no testemunho judaico quanto no latino-americano,
literal invisibilidade do muçulmano remete a algo ainda mais profundo: o e, quem sabe, de todo o testemunho.78
muçulmano é a imagem (esse é o termo de Primo Levi) da possibilidade A ética pós-Auschwitz parte de um distanciamento das éticas nietzs-
sempre renovada, o anúncio quase certo, do destino de todos os depor- chianas e heideggerianas, tornando inaceitáveis os temas do amor fati, da
tados – a seleção para as câmaras de gás. Recusar-se a ver o muçulmano decisão temporalizante, e do ser-para morte, após a experiência da coação
significa de uma certa maneira aumentar a distância mínima que separa o absoluta e da morte administrativa que definem a realidade concentracio-
deportado que tenta sobreviver daquele que deverá morrer em breve.76 É nária. Em ambos os casos, é o problema da decisão soberana (Schmitt) que
aqui, e apenas aqui, que a vergonha pela substituição da sobrevida, vergo- nunca mais poderá ser tratado da mesma maneira como tema ético. A ética
nha diante do muçulmano que o sobrevivente não ajudou, e não viu, que do século XX se inicia com a superação nietzschiana do ressentimento, da
a ética do testemunho atinge a sua agudeza programática. Não se trata de vingança contra o passado, no eterno retorno do mesmo.79 Dizer “sim” à
remediar a vergonha, ou de curá-la – o que a tornaria simplesmente igual existência em todas as suas formas, “afirmar o mundo como ele é, sem sub-
à culpa – mas de fazer da convivência com ela, personificada pela convi- tração, exceção ou seleção”,80 recusar a recusa e a acusação da vida, negar-se
vência com a morte do muçulmano no testemunho, enquanto enunciação unicamente a desviar o olhar – é a reversão nietzschiana do niilismo que
testemunhal do seu silêncio, a sua tarefa essencial. É neste con-viver-com-o- define uma filosofia experimental, e uma relação dionisíaca com a existên-
morrer, e nessa fala que escuta o silêncio, que o testemunho do sobrevivente cia. O “amor pelo destino” (amor fati) consiste precisamente em “perceber
pode se transformar finalmente em uma ética. não apenas a necessidade daqueles lados da existência antes negados, mas
A testemunha não testemunha por si própria, mas sempre para um a sua desejabilidade”,81 transformando a imposição do tempo no passado
outro, ou para outros, por um outro, ou por outros (embora o documen- em desejo no presente, fazendo o passado, em suma, eternamente retornar,
tário de Marta Nehring e Maria Oliveira 15 Filhos [1996] demonstre que mas agora como ato da vontade.82 Mas seria grotesco imaginar a possibi-
nem sempre é assim). Além disso, a sua inapelável alteridade, a sua radical
77 Miguel Barnet, La fuente viva. Havana: Editorial Letras Cubanas,1983, p. 37.
impropriedade, no sentido de ser constituída por algo que não lhe é pró-
78 Sobre este tema, ver, adiante, o capítulo 2, “Fala Rigoberta”.
pria, está ligada a uma outra impropriedade, ao fato de ser essencialmente 79 Giorgio Agamben. O que resta de Auschwitz, loc. cit., p. 104.
80 Nietzsche. The Will to Power. Trad. Walter Kaufmann e R.J. Hollingdale. New York: Vintage
75 Ibidem, p. 58. Books, 1968, p. 536.
76 Sobre as ressalvas essenciais ao problema levantado por Agamben, enfatizando o seu caráter 81 Ibidem, idem.
mórbido, ligado à estética do sublime, sobretudo no que toca a esta curiosa ênfase na in-visi- 82 Nietzsche: “Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas:
bilidade do muçulmano, ver os esclarecimentos de Philippe Mesnard e Claudine Kahan (loc. – assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas. Amor fati: seja este, doravante, o
cit., p. 77-85). meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo

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lidade de um tal desejo com relação a Auschwitz, simplesmente porque lho, mas continuava, contra todas as expectativas, sentindo uma angústia
seria impensável querer a sua repetição. É, justamente, em torno da impos- intensa que perpassava as imagens de liberdade que vivia. De repente a
sibilidade de decidir sobre Auschwitz que se enfrentam as posições de Jean angústia se intensifica e ele percebe que está de volta ao Lager. O que ele
Améry e de Primo Levi. A posição de Jean Améry é claramente ressen- vivera antes eram apenas férias, ou uma “trégua”, para retomar o sentido do
tida e culmina com uma recusa terminante do que ocorreu, radicalizada livro como um todo, “nada era verdadeiro fora do Lager”.85 O sonho dentro
na negação do próprio passar do tempo, enquanto natureza biológica que do sonho termina e ele ouve a voz conhecida do comandante gritando em
age temporalmente pelo perdão, pelo esquecimento, e pela cicatrização das polonês: Wstavach, “Levantem-se”.86
feridas. Ao contrário, é privilégio humano negar-se a estar de acordo com O que está em jogo aqui é muito claramente um pesadelo traumá-
o ocorrido: tico, como vem sendo estudado ultimamente pela psicologia e pela psi-
canálise, no contexto dos chamados “distúrbios de stress pós-traumático»
Meus ressentimentos existem para que o delito se torne realidade moral para
o criminoso, para que seja confrontado com a verdade do seu malfeito... Nos (Post-Traumatic Stress Disorder, PTSD), e que é constatado com frequência
dois decênios dedicados à reflexão sobre o que me aconteceu, acredito ter entre os sobreviventes dos campos de concentração.87 Mas é bem verdade
compreendido que a remissão e o esquecimento provocados por uma pressão que este problema não é novo. Ele já fora percebido por Pierre Janet,88 e
social são imorais...O sentido natural do tempo encontra realmente suas raí- de maneira célebre por Freud durante a primeira guerra mundial, no con-
zes no processo fisiológico da cicatrização das feridas e passou a fazer parte
da representação social da realidade. Precisamente por tal motivo ele tem texto das primeiras descobertas das neuroses de guerra – que o levariam a
um caráter não apenas extramoral, mas antimoral. É direito e privilégio do reconceitualizar o seu modelo do sistema neurológico, introduzindo uma
ser humano não se declarar de acordo com todo acontecimento natural e, pulsão de morte em contraposição ao princípio do prazer.89 Trata-se da
por conseguinte, nem mesmo com a cicatrização biológica provocada pelo descoberta da memória traumática, que força Freud a repensar o problema
tempo. O que passou, passou: tal expressão é, ao mesmo tempo, verdadeira e
da repetição, e do sintoma, vendo-a não mais (unicamente) como realiza-
contrária à moral e ao espírito... O homem moral exige a suspensão do tempo;
no nosso caso, encravando o malfeitor no seu malfeito.83 ção de um desejo, como nas neuroses traumáticas, que ele percebera estar
na origem da etiologia da histeria, mas como “compulsão repetitiva” (Wie-
Para Primo Levi, por outro lado, a impossibilidade de querer a repe- derholungszwang), única maneira de explicar o retorno tenaz da memória
tição de Auschwitz está relacionada a uma questão essencial para se pen- dolorosa do trauma nos sonhos de ex-combatentes.
sar a especificidade do testemunho como trabalho da memória. É que, na A perspectiva de um eterno retorno do passado como coerção da
verdade, Auschwitz nunca deixou de retornar, sem que o sobrevivente no memória no pesadelo traumático, expandido na afirmação de que “nada
entanto queira ou decida este retorno. Como comprova o parágrafo final era verdadeiro fora do Lager”, confirma a terrível verdade da frase do grego
de A trégua sobre o sonho repetido que tivera depois da liberação, e que Mordo Nahum de que “guerra é sempre”, explicando talvez a hipótese agam-
fornece, ao mesmo tempo, uma resposta existencial à verdade política da beniana de uma generalização da experiência concentracionária na política
sociedade civil formulada pelo grego Mordo Nahum, de que “guerra é sem-
85 Ibidem, p. 359.
pre”,84 ao introduzir uma chave irônica para o título da obra. Neste sonho
86 Ibidem, idem; Giorgio Agamben. O que resta de Auschwitz, loc.cit., p. 106.
dentro de um sonho, ele deixara Auschwitz, encontrava-se em liberdade, 87 Leia-se a respeito a coletânea organizada por Cathy Caruth, Trauma. Explorations in Memory,
à mesa com a família e os amigos, num campo verdejante, ou no traba- que parte de uma pesquisa sobre o trauma na Shoah, assim como Trauma. A Genealogy, de
Ruth Leys.
88 Cf. “The Intrusive Past: the Flexibility of Memory and the Engraving of Trauma”, de Bessel A.
acusar aos acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em Van Der Kolk e Onno Van Der Hart (Cathy Caruth [ed.]. Trauma. Explorations in Memory
suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim! (Friedrich Nietzsche. A gaia Ciência. [ed.]. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1995.)
Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 187-188).
89 Os textos relevantes de Freud são: “Reflexões para os tempos de guerra e morte” (1915)
83 Jean Améry. Apud GiorgioAgamben. O que resta de Auschwitz, loc.cit., p. 105-106. (volume XIV das Obras completas); “Introdução à psicanálise e às neuroses de guerra (1919),
84 Primo Levi. A trégua. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 76-77. “Além do princípio de prazer” (1920) (volume XVII), e “Por que a guerra?” (1932).

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moderna, que tem no campo o seu paradigma político. Aqui teríamos quem sibilidade definitiva de experimentar esta apropriação da impropriedade
sabe a versão mais terrível do paradoxo topológico de O poder soberano e que ocorre na morte própria. As mortes por extermínio nos campos ale-
a vida nua: a anormalidade é a norma, o estado de exceção é a regra, a paz mães são “mortes não morridas”, em que não se “sofre a morte em seu pró-
(ou a trégua de Primo Levi) é igual à guerra, conforme a inversão do para- prio ser”, em que o “poder morrer”, entendido como “poder resolutamente”
doxo de Clausewitz sugerida por Foucault.90 Todos estes paradoxos seriam sofrer a morte, é impossível. O que implica, segundo Agamben, que o filó-
resumidos pelo mais terrível – a– política contemporânea é uma amplifi- sofo ainda pressupõe a possibilidade de morrer a morte, segundo o modelo
cação do modelo estabelecido pelo campo, a liberdade da sociedade civil (aparentemente de origem rilkiano) da morte própria. Enquanto que o que
é a coerção concentracionária – cristalizado pelo pesadelo traumático, que ocorre em Auschwitz é precisamente que a distinção entre próprio e impró-
apaga os limites que separam a interioridade do campo da vida aqui fora, prio, entre morte própria e morte imprópria, deixam de fazer sentido. Em
introduzindo o eterno retorno do Lager como história moderna.91 Auschwitz, basicamente, a apropriação do próprio passou a ser impossível,
Da mesma forma, o extermínio administrativo em massa tal qual pois o impróprio tornou-se integralmente próprio – outra forma do para-
praticado nos Lager alemães torna impensável qualquer tipo de decisão doxo topológico mencionado acima. O que Améry não deixara de notar
(Entscheidung), conforme teorizara Heidegger, com relação ao ser-para-a ao observar que todas estas reflexões heideggerianas sobre a morte só são
morte. A decisão em jogo no Ser-aí consiste em que, na morte, ocorre a possíveis quando se tem o luxo da liberdade. E mesmo após os campos de
possibilidade de ele finalmente se apropriar daquilo que fora a sua vida coti- extermínio, a morte própria ainda permanece para Heidegger no horizonte
diana feita de falatório, “publicidade” e diversões, na “impropriedade” (das como modelo a que se opõe a morte não morrida. Ainda permanecemos
Man) essencial de sua existência fática. A apropriação da impropriedade dentro do círculo da decisão94 soberana, e ainda é possível “decidir” sobre
que ocorre pela primeira vez na morte, ou antecipada nos momentos de a morte. No entanto, quando o “pensamento da morte” se realizou em uma
angústia, é vazia de qualquer conteúdo ou prestígio especial, e não constitui burocracia da morte, conclui Agamben – muito próximo do Adorno do
qualquer realização particular. Ela se encontra na possibilidade do Ser-aí final de Dialética Negativa –, todas essas distinções se tornam indiferentes.
projetar-se na história, ao temporalizar-se na decisão de repetir o passado Ou, como escreve Adorno:
no futuro, de decidir pelo que ele já faticamente é.92 Ora, em uma confe-
O assassinato administrativo de milhões fez da morte uma coisa que nunca se
rência pronunciada em Bremen, “O perigo” (Das Gefahr), uma das únicas tinha tido que temer exatamente da mesma maneira. Não há mais nenhuma
referências de Heidegger aos campos de extermínio – ele que se engajara ao chance de que a morte possa chegar à vida empírica do indivíduo de uma
nacional-socialismo em 1933-1934, no que consiste um dos maiores escân- qualquer forma que se conforme ao curso desta vida. A última, a mais pobre
dalos filosóficos do século XX –, ele escreve que o extermínio dos campos possessão que resta ao indivíduo é expropriada. Que nos campos de concen-
tração não era mais um indivíduo quem morria, mas um espécime – isto é
cristaliza uma situação geral da morte contemporânea caracterizada pelo
triunfo da técnica. Nesta “fabricação de cadáveres”,93 assistir-se-ia à impos-
90 A inversão da famosa frase de Clausewitz, “a guerra não é mais do que a continuação da 94 O tema da decisão (da Entscheidung) é o nexo que articula a tese político-teológico de Carl
política por outros meios”, é estudada por Foucault como a transformação da guerra em novo Schmitt sobre a soberania, com a analítica da existência de Heidegger. O estado de exceção na
paradigma do poder (Michel Foucault. Em defesa da sociedade, loc.cit., p. 22-23). política equivale ao milagre no registro teológico, pois é na decisão que o soberano funda o
direito e seu estado, e o deus o destino de um povo. O que, em termos da analítica da existên-
91 Benjamin, em um fragmento de “Parque Central” que discute inicialmente o eterno retorno
cia, equivale ao momento de volta decidida para o estar-lançado, que define o envio do ser-aí
de Nietzsche, escreve em seguida: “Deve-se fundar o conceito de progresso na ideia da catás-
ao destino histórico de uma comunidade, e de um povo, como repetição de seus heróis (Hei-
trofe. Que tudo ‘continue assim’, isto é a catástrofe. Ela não é sempre iminente, mas sim o
degger. Ser e tempo II, loc. cit., §74, p. 188-191). É neste contexto que o nacional-socialismo,
sempre dado. O pensamento de Strindberg: o inferno não é nada a nos acontecer, mas sim
como pode ser visto em dois de seus pensadores mais eminentes, não pode ser separado do
esta vida aqui (Walter Benjamin. Obras escolhidas III. Tradução: José Carlos Martins Barbosa
tema de uma decisão soberana. O pensamento revolucionário de esquerda, que produz a sua
e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1994, 3 ª ed., 1994, p. 174).
própria matriz do problema político da decisão (estudado detidamente por Schmitt), não
92 Martin Heidegger. Ser e tempo II, §76, loc. cit., p. 204. poderá escapar de uma elaboração da Ent-scheidung que leve em conta a sua formulação
93 Martin Heidegger apud Giorgio Agamben. O que resta de Auschwitz, loc. cit., p. 80. nacional-socialista (Cf. Slavoj Zizek. The Ticklish Subject. Londres: Verso, 1999, p. 9-69).

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um fato que com certeza afetará a morte daqueles que escaparam à medida um evento e pode, portanto, dar testemunha disso”.97 O testemunho não se
administrativa.95 interessa por fatos, como vimos, mas pela lacuna que subsiste entre os fatos
*** e sua verdade experiencial. Embora o julgamento dos fatos não seja por
Agamben tece o cerne de seu argumento sobre testemunho, em torno ele inviabilizado, trata-se muito mais essencialmente de circunscrever uma
da dupla etimologia de testemunho, desentranhada pelo filólogo Émile “consistência não jurídica da verdade”. Eis o que interessa radicalmente ao
Benveniste. Testemunha vem, ao mesmo tempo, de testis, “aquele que assiste sobrevivente: “Tudo o que leva uma ação humana para além do direito, o
como um terceiro (terstis) a um caso em que dois personagens estão envol- que subtrai radicalmente ao Processo”.98
vidos”, o que coloca em cena o sentido jurídico da testemunha; e de supers- O programa de Agamben de escrever uma “ética demonstrada pelo
tes, “aquele que subsiste além de”, o sobrevivente (“aquele que se mantém no método de Auschwitz” tem como ponto essencial o desbastamento dos ele-
fato”), termo de etimologia análoga a superstes (supérstites).96 Sobreviver, mentos jurídicos e morais que sobredeterminam e confundem o problema
nesse sentido, é uma experiência-limite, e toda experiência é uma expe- ético, distinguindo de maneira rigorosa os três campos, e restituindo a
riência limite; sobreviver consiste em trazer no corpo e na voz o atestado especificidade da ética. Aqui encontramos um alvo essencial de Agamben:
de uma subsistência. A testemunha é, portanto, ao mesmo tempo, aquela o diferendo com relação ao direito, ligado por definição à soberania (e ao
que vê e que enuncia em tribunal, na posição de terceiro, que atesta sobre estado), visando a uma “desjuridicização” do testemunho, explicitado cla-
o litígio envolvendo duas partes; e a que atravessou uma experiência, “além ramente nesta passagem:
de”, a que sobreviveu a ela e se mantém no fato dela. Ela é aquela que fala Um dos equívocos mais comuns – e não só a propósito do campo – é a tácita
do além de sua experiência, a partir da experiência a que sobreviveu. Essa confusão entre categorias éticas e categorias jurídicas (ou, pior ainda, entre
dupla figura é constitutiva de todo o gênero do testemunho, tal qual ele se categorias jurídicas e categorias teológicas: a nova teodiceia). Quase todas as
categorias de que nos servimos em matéria moral ou religiosa são de algum
vocalizou no século XX a partir do extermínio judaico, como deposição modo contaminadas com o direito: culpa, responsabilidade, inocência, julga-
sobre o genocídio ameríndio na América Central, em Ruanda, na África do mento, absolvição.99
Sul, etc. A testemunha produz uma enunciação sobre uma verdade litigiosa
dos fatos, atesta sobre essa verdade; mas a verdade do que atesta é inimagi- Este é portanto o programa estabelecido por Agamben: purificar
nável, no limite essa verdade não é enunciável, ela se situa além de qualquer o campo da ética de suas aderências ao campo jurídico, religioso (teoló-
enunciação possível. gico) e moral, a ele geralmente associados. Atacar este problema, segundo
Agamben, logo nas primeiras páginas de seu livro, assume uma posi- o método utilizado por ele, significa expor o testemunho ao teste de cada
ção extremamente arriscada e polêmica com relação ao que poderíamos uma das noções enumeradas, e demonstrar de que maneira ele descontrói
chamar o “discurso testemunhal”, escolhendo uma das etimologias de tes- cada uma delas. Para Agamben, o que interessou desde sempre a Levi na
temunha em detrimento de outra. O que de fato interessa à testemunha sua experiência, desde o Relatório sobre a organização higiênico-sanitária
do extermínio judaico não é a sua dimensão jurídica, como deposição em do campo de concentração para judeus de Monowitz (Auschwitz-Alta Silésia)
juízo, como terstis, segundo a reconstituição de Benveniste. O que interessa de 1946, solicitado tanto pelo que vivera e vira no campo quanto pela sua
é a dimensão do sobrevivente, do supérstite, se diz em italiano, do supers- especialidade de químico, foi a identificação de um espaço ético avesso ao
tes, isto é, traduz Agamben, “aquele que viveu algo, atravessou até o final juízo e às “distinções sumárias”, como pode ser deduzido da entrevista de
1986 a Barbara Kleiner: “De fato, interessam-me a dignidade e a falta de

95 Theodor Adorno. Negative Dialectics. Tradução: E. B. Ashton. New York: Continuum 1990, p.
362. 97 Giorgio Agamben. O que resta de Auschwitz, loc. cit., p. 27.
96 Emile Benveniste. O vocabulário das instituições indo-européias. Volume II. Poder, Direito, 98 Ibidem, idem.
Religião. Trad. Denise Bottmann e Eleonora Bottmann. Campinas: Ed. Unicamp, 1995, p. 278. 99 Ibidem, p. 28.

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dignidade”.100 Agamben extrai desta afirmação a lição de uma indedicibili- Não é possível reduzir “a rede das relações humanas do Lager a dois blocos,
dade101 moral: a falta de dignidade interessa a Levi tanto ou mais do que a o das vítimas e o dos opressores”.105 Ou ainda: “[P]arece ter chegado o tempo
dignidade. No limite, as duas zonas se confundiriam ou se identificariam de explorar o espaço que separa (não só nos Lager nazistas!) as vítimas dos
de modo irredutível na experiência concentracionária: opressores, e de fazê-lo com a mão mais ágil e o espírito menos turvo do que
se fez, por exemplo, em muitos filmes”.106 A tendência maniqueísta à simpli-
Em última análise – escreve Agamben – não é o julgamento que lhe importa –
menos ainda o perdão. “Eu nunca compareço como juiz”. “Eu não tenho auto- ficação consiste numa hipertrofia do juízo, emblematizado pelo Juízo Final
ridade para conceder o perdão... estou sem autoridade.” Aliás, parece que lhe cristão, na divisão da humanidade em dois grupos claramente distintos: o
interessa apenas o que torna impossível o julgamento, a zona cinzenta em que dos bons e o dos maus. Ao contrário, a lição do campo era que “o inimigo
as vítimas se tornam carrascos, e os carrascos vítimas. É sobretudo a respeito estava ao redor mas também dentro, o ‘nós’ perdia seus limites, os conten-
disso que os sobreviventes estão de acordo: “Vítima e carrasco são igualmente
ignóbeis; a lição dos campos é a fraternidade da abjeção”.102 dores não eram dois, não se distinguia uma fronteira mas muitas e confusas,
talvez inúmeras, separando cada um do outro”.107 A “zona cinzenta” expõe
O que resta de Auschwitz é um longo comentário sobre dois capítulos de esses limites para defender em cada um deles a impotentia judicandi, como
Os afogados e os sobreviventes (1986): “A zona cinzenta” e “A vergonha”. O pri- resume, a respeito dos Sonderkommandos, Primo Levi: “Peço que a história
meiro trata, como o título sugere, da área em que o contorno definido entre dos ‘corvos do forno crematório’ seja meditada com piedade e rigor, mas que
vítimas e carrascos, deportados e SS se torna pouco nítido. Aqui, a análise da o julgamento sobre eles fique suspenso”.108 O colaboracionismo não pode ser
amoralidade, “aquém do bem e do mal”, da sobrevivência em Auschwitz, se avaliado por aqueles que estão fora da situação concentracionária – e mesmo
redefine, a partir de É isto um homem?, como um estudo sobre o colaboracio- por aqueles que, lá tendo estado, já não mais lá estão –, simplesmente por-
nismo judaico no sistema concentracionário, cristalizando-se em três casos que o campo é pautado por um “código moral” diferente, a que não se tem
exemplares: os Kapos, ou chefes que gerenciavam as atividades do campo de acesso fora dele. O acontecido no campo configura um aquém das noções
concentração e seus funcionários; os Sonderkommandos de Auschwitz, ou comuns de bem e de mal, e, como tal, não pode ser julgado por nós, que esta-
seja, “os esquadrões especiais “encarregados da gestão dos fornos cremató- mos aqui fora. “Não mais somos capazes de julgar nosso comportamento e o
rios”;103 e finalmente o caso de Chaim Rumkowski, o presidente do gueto da alheio, tido noutra época segundo o código de então, com base no código de
cidade polonesa de Łódź. O capítulo inteiro é escrito sob o signo de uma com- hoje”.109 O que suscita uma rigorosa suspensão do juízo moral: “é imprudente
plexificação, uma espécie de antídoto ao princípio redutor e esquematizante, precipitar-se, emitindo um juízo moral”.110 A condição de vítima implica em
intrínsecos à “linguagem e o pensamento”.104 Como entender a experiência uma certa parcela de culpa, porém os atos por ela cometidos não podem ser
que nós sobreviventes vivemos?, é a pergunta com que ele inicia o capítulo. julgados por nenhum tribunal humano. A culpa única recai sobre o sistema,
o Estado totalitário como um todo. A quem compete julgar, portanto? Basi-
100 Primo Levi, apud Giorgio Agamben. O que resta de Auschwitz, loc. cit., p. 55. camente a ninguém, responde Primo Levi. “Se dependesse de mim, se fosse
101 A noção de “indecidibilidade”, ou de “indecidível” [indécidable], essencial para o projeto de obrigado a julgar, absolveria facilmente todos aqueles cujo concurso para o
Giorgio Agamben, foi criada pelo lógico austríaco naturalizado americano Kurt Gödel e res-
gatada por Jacques Derrida, que a menciona pela primeira vez no longo ensaio sobre Mal- crime foi mínimo e sobre os quais a coação foi máxima”.111
larmé, de La dissémination, intitulado “A dupla sessão” [“La double séance”]. Sobre o “indeci-
dível”: “Uma proposição indecidível – Gödel demonstrou a sua possibilidade em 1931 – é uma 105 Ibidem, p.18.
proposição segundo a qual, dado um sistema de axiomas que domina uma multiplicidade,
106 Ibidem, p. 19.
não é nem uma consequência analítica ou dedutiva dos axiomas, nem está em contradição
com eles, não é verdadeira nem falsa em relação a esses axiomas. Tertium datur, sem síntese». 107 Ibidem, p. 22.
(Jacques Derrida. La dissémination. Paris: Ed. du Seuil, 1972, p. 248-249). 108 Ibidem, p. 32.
102 Giorgio Agamben. O que resta de Auschwitz, loc. cit., p. 27. 109 Ibidem, p. 46.
103 Primo Levi. Os afogados e os sobreviventes, p. 26. 110 Ibidem, p. 22.
104 Ibidem, p. 17. 111 Ibidem, idem.

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Ora, a recusa de julgar o colaboracionismo judaico na situação con- o humano do inumano, que se encontra uma das contribuições mais rele-
centracionária, isto é, a suspensão do veredicto sobre aqueles que colabo- vantes da ética do testemunho. Para Agamben, a relação intrínseca entre
raram por coação, a decisão de, contra o senso comum, tentar entender a sobrevivente e comunidade dos mortos que estrutura o testemunho, sobre-
necessidade que os levou a colaborar, é paralela à reversão das “seleções” tudo na formulação de Primo Levi, propõe uma solução única ao problema
dos muçulmanos pelo SS, e do repúdio por ele da parte dos próprios depor- da sobrevivência, e à psicologia do sobrevivente, que se distancia radical-
tados no campo, explicitada na proposta do testemunho enquanto ética de mente de uma recorrente sobredeterminação desta relação por categorias
conviver com a morte dos milhares de muçulmanos, e de propriamente oriundas do direito, tais como dignidade, liberdade e culpa, inscritas em
falar o seu silêncio. A analogia está ligada a uma emancipação, em ambos diversos estudos sobre o assunto. Notadamente estes estudos são os do psi-
os casos, da separação soberana. O juízo, enquanto operação do direito, dis- canalista Bruno Bettelheim, ele também um sobrevivente, que desenvolve
tingue o bem do mal, da mesma forma que a biopolítica separa a vida digna a categoria psicológica de “situação extrema” (em O coração inconsciente
de ser vivida da indigna; o soberano, da “vida nua”. Não acusar o colabora- ou A fortaleza vazia) a partir da experiência concentracionária, e O sobre-
dor judeu, ou falar por aquele que por definição não pode falar, consistem, vivente. Uma anatomia da vida nos campos de extermínio [The survivor. An
ambos, em gestos de recusa de uma separação que o direito e a biopolítica, Anatomy of the Life in the Death Camps], de Terrence Des Pres, além do
enquanto operações soberanas, realizam. O que está em jogo aqui é algo artigo-resposta escrito por Bettelheim ao livro de Des Pres. Todos estes
como uma experimentação, para retornarmos ao termo de Agamben, que ensaios procuram, de maneiras distintas, pensar a sobrevida do sobrevi-
toma por objeto a experiência biopolítica SS e a transforma em experiên- vente demarcando-a da vida na morte do muçulmano. Bettelheim é cate-
cia ética de resistência. O que o mito biopolítico nazista estabeleceu antes górico: o ser humano é a “margem mínima” de “liberdade de julgamento”,
de mais nada foi uma definição da humanidade alemã, concebida como por oposição ao muçulmano, considerado como “morte moral”, máquina
patrimônio genético do povo, a ser distinguido do sub-humano judeu, e biológica vegetativa, anterior à morte física.114 O sobrevivente deve, por um
que a máquina de extermínio procurará, em seguida, executar adminis- gesto consciente, mesmo que baseado em uma escolha quase nula, defen-
trativamente. É a transformação da biopolítica, isto é, o gerenciamento da der custe o que custar esta reserva mínima de liberdade que o separa do
vida, em tánato-política, ou administração da morte, como quer Foucault, muçulmano, recusando-se à renúncia ou ao abandono ao “ponto sem volta”
que define o racismo como “meio de introduzir [...] nesse domínio da vida desta “morte moral”. Objeto de repulsa da parte dos outros deportados no
de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver e o campo, que fogem dele por ver nele estampada a morte que os espreita,
que deve morrer”.112 A essa politização da vida que estabelece no interior procurando assim espacializar a diferença mínima que os separa dele, o
do contínuo da vida cesuras, distinção e hierarquia entre as raças, é pre- muçulmano é identificado a uma “máquina biológica”, que teria perdido
ciso opor uma singularização vital da política, que recuse as discriminações toda a consciência moral.
entre uma natureza biológica e uma humanidade subjetiva, e que não mais A respeito da culpa essencial do sobrevivente de haver sobrevivido,
distinga qualquer critério valorativo que possa dividir a humanidade da enquanto milhares de outros morreram, de no campo haver observado
não humanidade. Entende-se então a radicalidade do gesto de Primo Levi, impassivelmente a destruição dos outros, de alegrar-se por haver sido pou-
para quem “o muçulmano é, antes, o lugar de um experimento, em que a pado enquanto outros morreram, Bettelheim conclui que qualquer ten-
própria moral, a própria humanidade, são postas em questão”.113 tativa de simplesmente inocentar o sobrevivente atinge apenas o nível da
E é justamente em um tratamento biopolítico original da sobrevida,
114 As expressões de Bettelheim não constam da citação de seu texto tal qual aparece na tradu-
que se recusa à moralização da vida, entendida como valor que diferencia ção brasileira de O que resta de Auschwitz. “Esta consciência e esta lucidez na ação, mesmo
não modificando a natureza do ato exigido, senão nos casos extremos, constituíam a mar-
gem mínima e a liberdade de julgamento que permitia ao preso permanecer um ser humano.”
112 Michel Foucault. Em defesa da sociedade, loc. cit., p. 304. (Apud Ce qui reste d’ Auschwitz. L’ archive et le témoin. Homo sacer III. Tradução: Pierre Alfieri.
113 Giorgio Agamben. O que resta de Auschwitz, loc. cit., p. 70. Paris: Payot & Rivages, 1999, p. 69. A tradução na edição brasileira aparece na página 63.)

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consciência, e não arranha o fundo do drama inconsciente que faz com de “sobrevivência moral”.119 Da mesma forma, para Bettelheim, a tarefa do
que o sobrevivente sinta-se, efetivamente, e para sempre, culpado. O que sobrevivente é enfatizar em si o instinto de vida como uma “obrigação”
torna a culpa algo intrínseco ao ser-sobrevivente.115 Terrence Des Pres, ao moral. Um enfatizando a culpa do instinto vital e o outro a sua inocência, a
contrário, procura inocentá-lo, vendo na sobrevivência uma vida despo- simetria dos argumentos parece reconduzir a um princípio comum. Apesar
jada de todo o caldo artificial de cultura, uma “vida sem reservas”, que se da sua aparente oposição (uma culpa irresistivelmente sentida identificada
afirma puramente como luta vitoriosa diante da morte, onde se manifesta a ao ser humano, e uma inocência reivindicada como princípio vital), tanto
“prioridade do elemento biológico”.116 Ao que Bettelheim responde com um Bettelheim quanto Des Pres, postulam um critério de sobrevida baseado
artigo indignado, pontuando enfaticamente a ofensa em se falar de abraçar em um princípio ao mesmo tempo biológico e moral, portanto biopolítico,
uma vida sem reservas aos milhares de pessoas que morreram na câmara separando a culpa da inocência, a existência biológica da moral. Ambos
de gás, e a ociosidade de uma postulação da inocência da vida biológica partem da definição de uma essência humana transcendente e abstrata, que
vitoriosa, diante da realidade de que os sobreviventes efetivamente convi- se demarca explicitamente do muçulmano, entendido como não humano.
vem com uma sensação de culpa durante todas as suas vidas.117 O que o faz Estas colocações sobre a moralidade da sobrevida, escreve Agamben, repe-
concluir com uma identificação da culpa ao próprio ser humano: “Apenas tem, na verdade, o gesto discriminatório dos SS, ao repetir a separação entre
a capacidade de sentir culpa nos torna humanos, particularmente se, visto “vida nua” e soberania, vida indigna de ser vivida e vida digna, que caracte-
objetivamente, não se é culpado”.118 riza os experimentos biológicos que tiveram lugar nos campos de extermí-
Para Bettelheim, é a diferença mínima com relação à “máquina bio- nio e de concentração. É, portanto, este limite entre o humano e o inumano
lógica” que define o critério da sobrevivência, fazendo o sobrevivente que precisa ser repensado.
manter-se em sua humanidade, essa mesma humanidade que reaparece
De fato, torna-se evidente que, quando se fixa um limite para além do qual se
na culpa essencial do sobrevivente com relação àqueles que morreram. deixa de ser homem, e todos ou a maioria dos homens o atravessam, isso não
Inversamente, é o fato de haver sucumbido a uma naturalidade biológica, prova tanto a inumanidade dos humanos, quanto a insuficiência e a abstração
vegetativa, que vai definir aqueles que morrem, perdendo a sua humani- do limite proposto”.120
dade mínima. O critério diferencial consiste na dignidade e liberdade que
Ou um pouco mais adiante:
distinguem o sobrevivente do muçulmano, não fazendo-o escravo do seu
corpo; ou a perda desta dignidade tornando o humano um muçulmano. O muçulmano penetrou em uma região do humano – pois negar-lhe sim-
Por outro lado, para Des Pres, a inocência irredutível do sobrevivente con- plesmente a humanidade significaria aceitar o veredicto das SS, repetindo o
seu gesto – onde, dignidade e respeito de si não são de nenhuma utilidade,
siste precisamente em haver perdido a consciência moral e haver se tornado como também não são uma ajuda exterior. Se existe, porém, uma região do
um ser puramente biológico, a quem não podemos culpar por ter se saído humano em que tais conceitos não tem sentido, não se trata de conceitos éti-
vitorioso diante da morte. O que os dois adversários têm em comum, no cos genuínos, porque nenhuma ética pode ter a pretensão de excluir do seu
entanto, é o estabelecimento de um critério biopolítico da vida, seja como âmbito uma parte do humano, por mais desagradável, por mais difícil que
seja de ser contemplada.121
limite a ser evitado, seja como característica a ser abraçada. Por outro lado,
ambos recorrem à mesma categoria de origem jurídica e moral de digni- Ao contrário de Bettelheim e de Des Pres, ou de qualquer visão huma-
dade para definir a vida do sobrevivente. Para Des Pres, os sobreviventes nista da experiência concentracionária, o ato de testemunhar pelo muçul-
precisam conservar a sua dignidade para sobreviver, como uma espécie mano, para Primo Levi, torna as categorias soberanas e transcendentes de
115 Giorgio Agamben. O que resta de Auschwitz, loc. cit., p. 94.
116 Ibidem, p. 98. 119 Ibidem, p. 99.
117 Ibidem, p. 98-99. 120 Ibidem, p. 70.
118 Ibidem, Ibidem. 121 Ibidem, p. 70-71.

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dignidade, culpa e inocência definitivamente obsoletas. Basicamente, não que aconteceu e não deveria ter acontecido nos campos de extermínio SS,
podemos recusar o muçulmano, como não podemos julgar o colaborador, aconteceu por causa de uma definição essencialista do humano. Definir o
sob pena de repetir a repartição soberana entre humanidade alemã e inu- humano a partir de uma essência é, de uma certa maneira, repetir a lógica
manidade judaica, entre moral humana alemã e venalidade sub-humana SS. Como todos os humanismos ela pressupõe uma essência transcendente
judaica, entre o patrimônio genético do povo alemão e a “vida nua” dos do homem que parte de uma divisão entre duas substâncias – uma animal
“piolhos” judeus, exterminados nas câmaras de gás. É neste sentido que (biológica) e outra humana (subjetiva, livre, judicativa). Na origem desta
existe cumplicidade entre a tradição humanista e a biomitologia SS. Que definição transcendente de humanidade, a que o testemunho responde
o humano não passa do inumano, ou, como formula Agamben, que “o com uma lógica imanente com o enunciado indecidível, “o humano é igual
homem é antes de mais nada o não-homem”122 – talvez seja esta a lição ao inumano”, está a divisão metafísica de origem agostiniana entre uma
biopolítica mais importante de Auschwitz, e que uma ética pós-Auschwitz, liberdade essencial e uma necessidade a ser controlada, que identifica na
para retomar a expressão de Adorno, tem como imperativo formular. O vontade livre o problema central do ser humano. É esta divisão que o carte-
que levaria a paradoxos do tipo: o humano é o inumano – nós que também sianismo reformulará para a modernidade como oposição entre um pensa-
somos inumanos. Primo Levi “começa a testemunhar” – escreve Agamben mento livre, independente, e uma máquina corporal escrava, dependente, e
– “só depois que a desumanização se consumou, só quando falar de digni- que a tese espinosiana da igualdade entre os atributos do pensamento e do
dade já não teria sentido”.123 Só podemos pensar o que significa uma ética corpo – ambos igualmente atribuídos a uma substância única – repensará
pós-Auschwitz uma vez ultrapassadas as categorias clássicas de bem e de radicalmente, como vimos acima. Todo o humanismo ou humanitarismo,
mal, como ocorre na «zona cinzenta» da coação absoluta, e uma vez esta- como o observamos estampado nos jornais e na televisão, no absurdo
belecida a igualdade essencial entre humano e inumano, conforme propõe lógico das chamadas “guerras humanitárias”, ou “democráticas”, não conse-
a enunciação muçulmana do testemunho. Só assim poderemos entender gue escapar das aporias do voluntarismo, ou seja, da soberania. A sua lógica
o programa estabelecido por Agamben de opor, a uma zoé que é puro bíos essencialmente ambígua foi fundada pela Declaração dos Direitos Huma-
soberano (programa biopolítico da politização da vida, que faz com que o nos e do Cidadão de 1789, a partir de uma divisão inconfessa entre direitos
alemão e o judeu sejam vidas imediatamente politizadas mas com destinos do homem e do cidadão, entre aqueles a quem é conferido o direito natural
radicalmente opostos) , um bíos que é somente zoé (ou seja: uma singula- humano e os cidadãos que decidem sobre este conferimento.126 Da mesma
rização vital da política que nos obriga a dizer que o humano é inseparável forma, o humanitarismo contemporâneo será sempre constituído a partir
do inumano e que um é essencialmente o outro). É o que subentende um da divisão entre um direito sagrado humano, que o simples fato de nas-
testemunho de Grete Salus: cer conferiria, expresso pela vida nua de homens, mulheres e crianças que
“precisam de ajuda” espetacularizada pela televisão, e um direito soberano
o homem nunca deveria suportar tudo o que pode suportar, nem deveria
nunca chegar a ver que tal sofrer levado à extrema potência já não tem mais militar-médico-nutricional encarregado de implementá-lo. O que mais
nada de humano.124 espanta aqui não é tanto o fato de o empreendimento humanitário neces-
sitar da guerra para fazer o bem, nem a questionabilidade dos critérios de
Todo homem contém a potencialidade do inumano; a potência humana bem e mal, ou o fato de que o bem se confunde com a economia de bens – o
confina como o inumano, já que o homem suporta até o não-homem.125 que espanta é o fato de o bem consistir no extermínio do mal, e que fazer o
O que significa que o ser humano é pura potência e não uma essência. O bem e matar possam ser concebidos como gestos idênticos ou simultâneos,
122 Ibidem, p. 87.
123 Ibidem, p. 66.
124 H. Langbein apud Giorgio Agamben. O que resta de Auschwitz, loc. cit., p. 82.
125 Ibidem, p. 83. 126 Giorgio Agamben. Homo sacer I. Poder soberano e a vida nua, loc. cit., p. 140.

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segundo uma antinomia perversa: salvar e exterminar ao mesmo tempo, dência humanista e sua “coisa”, a “vida nua”, sob a forma da soberania do
exatamente aqueles mesmos povos que pretendemos ajudar.127 direito, não abole, pelo mesmo gesto, qualquer instância judicativa neces-
E é verdade que tudo isso que assistimos hoje em dia sob o nome de sária para discernir a barbárie da não barbárie, a justiça do extermínio.
humanitarismo só pode ser entendido na sequência da visibilidade midiá- Resta saber se, ao distinguir o campo da ética do campo jurídico, moral
tica necessariamente violenta de que foram objeto os campos de extermínio e religioso, ele não acaba esvaziando a questão ao mesmo tempo jurídica,
judeus da Alemanha nazista, com o paradoxal apagamento da realidade do moral e religiosa do julgamento dos culpados, ou acaba pelo menos nuan-
extermínio por excesso de visibilidade, e sua transformação voluntarista em çando o que não pode ser nuançado, e sobre o qual não pode permanecer
política internacional humanitária. Para reverter esta lógica, torna-se impe- nenhuma dúvida. Resta saber se ele, ao partir da representação moderna
rioso, agora, mais do que nunca, recontextualizar os campos de extermínio, (kafkiana) do direito como sistema autorreferencial, ao refutar a possibi-
com o fim de distingui-los judiciosamente de seu resultado apropriativo: a lidade da decisão soberana, refugiando-se na zona flou do indecidível, não
criação de um conceito de humanidade a ser implementado como política abdica de uma prerrogativa essencial da justiça que é poder identificar os
internacional, última razão da soberania. E, para isso, nada melhor do que culpados e distribuir as penas. Resta saber, em suma, se ele, ao generalizar a
retornar ao testemunho de sobreviventes como uma verdade sobre o ocor- categoria interna ao campo de “zona cinzenta” descoberta por Primo Levi,
rido nos campos que absolutamente não admite descontextualização. não acaba também fazendo-a abarcar os criminosos nazistas, o que seria,
no mínimo, uma grande injustiça não só para com Primo Levi, além de
*** uma impropriedade do pensamento.
Senão vejamos. Trata-se para Agamben de pensar o campo como
Permanece, no entanto, uma dúvida. “imanência absoluta”, como ele resume, citando o título de seu ensaio sobre
O projeto agambeniano de tratar como imanência o testemunho dos Deleuze, isto é: do “tudo em tudo”,128 através da abolição literal de qualquer
campos de extermínio, e especificamente o de Primo Levi, é uma tentativa critério discriminatório, num contexto, como o do campo de extermínio,
impressionante de retornar, por assim dizer, à cena originária das políticas em que a “situação extrema” (Bettelheim) se tornou a regra, e em que é
humanitárias, reconstituindo a separação soberana entre vida nua e sobe- impossível decidir sobre a diferença entre uma e outra. Aqui, encontrar-
rania, que o campo de concentração administra, e a que o humanitarismo se-ia especificamente a tarefa do pensamento e da filosofia: ver o mundo
remete – como antídoto, no entanto, irremediavelmente cúmplice. Entre- desde o ponto de vista de uma situação extrema tornada regra. Tarefa
tanto, resta saber se Agamben, ao procurar afastar o fantasma da transcen- associada, salvo engano, a Spinoza, embora o nome de Spinoza não seja
mencionado: “segundo alguns filósofos, o nome desta situação extrema é
127 Nunca a ambiguidade desta invenção tipicamente contemporânea ficou tão clara quanto na Deus”.129 Não poder mais discernir a situação extrema da regra, equivale, no
máxima lançada por Tony Blair: “Bread and bombs!” (pão e bombas), que deveria pautar a
invasão do Afeganistão em 2001 pelas nações aliadas aos Estados Unidos, e de que “food for
jargão espinosiano, a não mais poder separar a substância (Deus) de seus
oil” (comida em troca de petróleo), na guerra contra o Iraque, é simplesmente uma variante. atributos. Ao contrário do projeto metafísico ocidental, de isolar o ser puro
Em ambos os casos trata-se de submeter ou condicionar a suposta ajuda humanitária iden- (òn haplôs) das múltiplas formas em que ele existe, Spinoza vincula inex-
tificada simbolicamente à distribuição de comida a uma economia da morte. É no momento
em que a distribuição da vida se confunde com a distribuição da morte (vida para quem? tricavelmente as duas coisas, criando um campo imanente indecidível e
morte para quem?) que se explicita a ambiguidade originária contida já desde a Declaração não-hierárquico, em que Deus está igualmente em todos os seus atributos,
dos Direitos Humanos e do Cidadão, entre direitos do homem e do cidadão, entre uma igual-
dade humana de nascimento, de direito, e um critério seletivo de cidadania, de fato (Ibidem, da mesma forma como a situação extrema está na regra.
p. 136-140), entre uma sacralidade da vida reduzida ao grau zero da vida e uma cidadania
condicionada e administrada pelos cidadãos de fato. É exatamente esta ambiguidade que a
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948 vai fixar, no contexto
das nações unidas do pós-guerra, criando a noção de humanitarismo – e de ajuda humanitá- 128 Giorgio Agamben. O que resta de Auschwitz, loc.cit., p. 57.
ria, a ser aplicada seletivamente segundo as conveniências das nações soberanas. 129 Ibidem, idem.

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É precisamente essa, segundo Agamben, a operação realizada pelo tes- temunhar;130 3) “o sujeito do testemunho é quem dá testemunho de uma
temunho de Primo Levi. Pensar o campo como imanência é dizer que ele só dessubjetivação”;131 e 4) o homem é sobretudo “o não-homem”.132 Que enun-
pode ser entendido a partir de suas próprias categorias, exatamente como ciam quatro indecidibilidades articuladas a quatro impossibilidades: uma
Primo Levi afirma que não podemos julgar de fora a “zona cinzenta”; escre- indecidibilidade do juízo comunicando com uma impossibilidade de jul-
ver para e com o muçulmano é situar o testemunho no intervalo que separa gar; uma indecidibilidade do testemunho, comunicando com uma impos-
e une o humano ao inumano, e significa pensar o humano como algo que sibilidade de testemunhar; uma indecidibilidade do sujeito, que comunica
é diferente em si mesmo, e não submetê-lo à discriminação de um critério com uma impossibilidade de separar o sujeito de seu nascimento no não-
exterior, abstrato e essencial. Mais ainda: pensar o campo como imanência sujeito; uma indecidibilidade do humano que comunica com uma impossi-
é transformar a interioridade do campo em pura exterioridade, tornando bilidade de definir o humano. Dos quatro enunciados, aquele sobre a inde-
caduca a oposição entre interno e externo, e gerando uma zona indecidível cidibilidade do juízo e a impossibilidade de julgar – a impotentia judicandi,
entre as duas. É isto que ocorre se o campo é o paradigma moderno da como escreve Primo Levi – sobredetermina todos os outros, pois é o juízo
política, se na política moderna não se pode mais diferenciar a norma da enquanto operação crítica, no sentido forte, que decide ou separa e, como
anormalidade, o estado de exceção do estado de direito, como ele escrevera tal, é associado por Agamben à soberania. Ir ao fundo da crítica à sobe-
em O poder soberano e a vida nua. É o que propõe a ética espinosiana dos rania, como operação de de-cisão ou separação, significa tocar na raiz do
modos imanentes da existência, que tem como princípio o conatus, ou seja, problema do direito, de que se reclamam tanto as tradições progressistas
o “perseverar em seu próprio ser” (Ética, III, prop. 7), a tendência natural do quanto as conservadoras, tanto o totalitarismo quanto o liberalismo, e uma
organismo à autopreservação enquanto corpo que estende a sua potência certa tradição humanista da esquerda. Operar uma crítica do direito a par-
o mais longe possível. Uma ética, portanto, avessa à oposição moral entre tir da “impotência de julgar” significa definir o direito como potência e não
bem e mal, que trabalhe unicamente com o critério diferencial de buscar fato da lei, o que torna, praticamente, inviável a operação da justiça. Operar
encontros que multipliquem o seu próprio ser e de fugir daqueles que o uma crítica imanentista do direito significa abolir a categoria de universa-
dividam. É por isso que as categorias de culpa e inocência não se aplicam ao lidade de que depende o juízo e a crítica, como patamar exterior metafísico
deportado. Nem culpados nem inocentes, os deportados, como todos nós, que subjuga o mundo, entendido agora como potencialidade de encontros
procuram simplesmente “perseverar em seu próprio ser”. Se Auschwitz é fortuitos, libertos da sobredeterminação da moral. O campo como “ima-
um acontecimento mais do que único, unívoco, isso implica dizer que a nência absoluta” seria algo assim como um espaço interior completamente
lição que o campo nos ensina é que a vida é um contínuo que não admite estilhaçado, se confundindo com um mundo de diferenças sutis e de nuan-
divisões. Ou seja: retomar a perspectiva biopolítica de um contínuo da vida, ces indecidíveis, vistas a partir do ponto de igualdade absoluta mulç-umana
recusando as divisões e hierarquias projetadas sobre esse contínuo, que o da existência igual a si mesma, situado no centro do campo. O campo como
campo implementa e administra, mas abraçando uma descoberta essencial revelação ético-jurídica da “zona cinzenta”, linguístico-literária da enuncia-
feita pelos sobreviventes do campo: de que a vida seja, como o atributo ção testemunhal, e biopolítica do muçulmano consiste no enunciado desta
espinosiano, substância única e infinita, diferente apenas em si mesma. igualdade absoluta.
Para Agamben, portanto, a “nova terra ética” mapeada por Primo Ora, Agamben adultera a proposição extremamente sutil de Primo
Levi produz essencialmente três grandes questões: a questão ético-jurí- Levi sobre a impotência de julgar os deportados, tornando-a uma propo-
dica de “zona cinzenta”, a linguístico-literária da enunciação testemunhal sição geral sobre a indecidibilidade do direito. Ele generaliza a disposição
e a biopolítica do muçulmano. Resultando, por sua vez, em quatro ordens
de enunciados: 1) o que interessa a Primo Levi é aquilo que torna o juízo 130 Ibidem, p. 43.
impossível, a “zona cinzenta” onde as vítimas e carrascos trocam de lugar; 131 Ibidem, p. 124.
2) o testemunho consiste em testemunhar sobre a impossibilidade de tes- 132 Ibidem, p. 87.

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matizada de Primo Levi, de recusar as grandes categorias de bem e de mal, da vida feliz. Assumir uma culpa e uma responsabilidade – o que, às vezes,
no sentido de um refinamento e complexificação destas categorias, e de pode ser necessário fazer – significa sair do âmbito da ética para ingressar no
do Direito.135
uma proposta de trabalhar ao invés com “nuanças e diferenças infinitas”.133
Se Primo Levi infinitiza essa diferenças criando um quadro extremamente No entanto, resta saber se o seu argumento que visa a circunscrever o
sutil do colaboracionismo judaico dentro do campo e do sistema totalitário território específico da ética – distinguindo-o das noções moralizantes e
em geral, recusando-se a julgá-lo, Agamben deduz daí, impropriamente, religiosas de pena, falta, culpa, e responsabilidade a ela tradicionalmente
uma tese geral sobre a impropriedade do juízo, como operação do poder ligadas – não acaba generalizando a singularidade ética, e inviabilizando a
soberano, ou lógica autorreferente da lei. Eis o que ele escreve, por exemplo, categoria de justiça. O que implicaria em deixar de entender o campo como
logo após postular a autorreferencialidade do direito, já que o “juizo é um singularidade, contradizendo o seu programa inicial. Já que infinitizar a
fim em si”, o que praticamente o exclui como sistema avaliativo de referên- finitude da situação ética in-umana não pode ser confundido com uma
cias, como operador de justiça e de verdade: generalização da particularidade do campo como «zona cinzenta» da jus-
Se isso for verdade [se aceitamos a hipótese de que “o fim último da norma é tiça. E é isso que, me parece, de fato, ele faz. Resta saber se não é Agamben
produzir o juízo” e não a verdade, ou seja, de que o juízo é fundamentalmente quem acaba embaralhando as cartas, confundindo as vítimas e seus car-
autorreferente] – e o sobrevivente sabe que é – então é possível que os pro- rascos, ao postular a contaminação essencial da moralidade e da religião,
cessos (os doze processos celebrados em Nuremberg, além de outros que se no campo da ética, concluindo daí sobre o caráter irremediavelmente ilegí-
realizaram dentro e fora dos confins da Alemanha, até aquele de 1961, em Jeru-
salém, que se concluiu com o enforcamento de Eichmann e deu início a uma timo do juízo, mesmo que “às vezes” sejamos obrigados a julgar. Concordo
nova série de processos na República Federal) sejam responsáveis pela confu- que a sobredeterminação jurídica do testemunho seja indesejável, sobre-
são as inteligências que, durante decênios, impediu de se pensar Auschwitz.134 tudo por desembocar em um modelo compensatório, punitivo-vingativo,
estéril, ou que não conduz a uma resolução minimamente satisfatória para
Ou um pouco adiante:
o problema do mal e da culpa. Nesse sentido, seria preciso cotejar tudo o
A confusão entre categorias éticas e jurídicas (com a lógica do arrependi- que está sendo dito aqui com as belas passagens sobre o perdão de Jacques
mento que a mesma implica) é, neste caso, absoluta [Agamben coloca lado Derrida, que podem ser lidas como uma nota de rodapé a Primo Levi e ao
a lado, neste fragmento, a defesa do advogado de Eichmann, de que o seu
testemunho (ou os testemunhos) em geral.136 O antídoto de Agamben con-
cliente se sente responsável diante de Deus mas não da lei, e o argumento
utilizado por ex-membros da Brigada Vermelha que vieram a público muitos tra essa juridicização contemporânea excessiva da política, por salutar que
anos depois declarando-se responsáveis pelo assassinato de um chefe de polí- seja, me parece, no entanto, excessivo.
cia vinte anos antes, mas descartando qualquer responsabilidade penal]. Está A referência a Eichmann e aos doze processos de Nuremberg situa a
na origem dos numerosos suicídios praticados para escapar de um processo discussão de Agamben em torno de Hannah Arendt, efetivamente uma
(e não só por parte dos criminosos nazistas), em que a tácita assunção de
uma culpa falta moral teria a pretensão de redimir-se daquela jurídica. Con- precursora da desconstrução agambeniana da moral e do direito, com a
vém lembrar que a primeira responsável por esta confusão não é a doutrina famosa proposição da “banalidade do mal”. É aqui que podemos encontrar
católica, que aliás, conhece um sacramento cuja finalidade consiste em liberar o primeiro tratamento sistemático da “zona cinzenta” de Primo Levi, atra-
o pecador com relação à culpa, mas a ética laica (na sua versão moderada e vés da temática da imbricação do bem no mal, da mistura do campo das
farisaica, que é dominante). Após ter alçado as categorias jurídicas em cate-
vítimas com o dos carrascos, no contexto do “sistema totalitário”. Conhece-
gorias éticas supremas, e ter, assim, confundido irremediavelmente os papéis,
ela ainda gostaria recorrer ao seu distinguo. Mas a ética é a esfera que não mos as demonstrações polêmicas de Hannah Arendt, que escandalizaram
conhece culpa nem responsabilidade: ela é, como o sabia Spinoza, a doutrina

133 Primo Levi. Os afogados e os sobreviventes, loc. cit., p. 21. 135 Ibidem, p. 33.
134 Giorgio Agamben. O que resta de Auschwitz, loc. cit., p. 21. 136 Jacques Derrida. Pardonner: l’impardonnable et l’imprescriptible.

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seus leitores em 1963137 e que tinham como objetivo basicamente compro- é a fraternidade na abjeção”, é, na verdade, uma citação descontextualizada
var, por um lado, o comprometimento das lideranças judaicas em toda a de David Rousset, que Primo Levi comenta com desaprovação em uma
máquina de extermínio da Solução Final, desde o papel na polícia e admi- entrevista.142 Continuando na mesma entrevista, Primo Levi discute breve-
nistração dos progroms até o dos Conselhos Judeus e dos Sondekomman- mente as estetizações “falsas” (escreve ele em outro lugar) de filmes como
dos; e por outro, do lado dos carrascos, a perspectiva de uma máquina O porteiro noturno de Liliana Cavani, e conclui que, se é bem verdade que
burocrática operando com funcionários destituídos de consciência moral, há algo de verdadeiro na frase “assustadora” de Rousset, que remete a uma
cometendo atrocidades por mera obediência às “ordens superiores”, o que é exterioridade ao “julgamento moral”, é preciso sempre ter em mente que “o
emblematizado pela justificativa evocada pelos líderes nazistas em seus jul- carrasco é um carrasco, e a vítima uma vítima”.143
gamentos, do Befehlsnotstand, ou o “estado de coação consequente a uma De fato, em Os afogados e os sobreviventes, ele menciona uma vez esse
ordem”, como o traduz Primo Levi.138 As vítimas judias aceitam a lógica SS, mimetismo entre vítimas e carrascos: “Sobre este mimetismo, sobre essa
ao abraçar com todas as forças a categoria de “proeminência judia”, como identificação ou imitação, ou ainda troca de papéis entre o opressor e a
critério operacional para a seleção dos que deveriam permanecer vivos e vítima, já se discutiu muito”.144 Essa figura consiste em uma radicalização
dos que deveriam morrer, diferenciando os “casos especiais” da massa de da zona ambígua moral aquém do bem e do mal, uma gradação do princí-
judeus, e endossando assim a lógica da anormalidade normal que define pio da coação do “macrocosmo da sociedade totalitária”, mas em nenhum
o estado de exceção nazista.139 O resultado da operação arendtiana é apro- momento ele expande esta categoria para abarcar os criminosos nazistas.
ximar as vítimas de seus carrascos, desconstruindo a ideia transcendente Não deve pairar qualquer dúvida sobre a justiça da punição de quem deve
de bem e de mal e criando uma zona intermediária, generalizada e ima- ser punido, em um livro subtitulado Os delitos, os castigos, as penas, as
nente, que precisa ser finamente esmiuçada e judiciosamente examinada impunidades. Sobre Muhsfeld, por exemplo, um SS que decide sobre a vida
pelo procedimento crítico, mas que consiste basicamente em uma mesma ou morte de uma menina que por acaso não fora morta pelo gás do ácido
coação característica do sistema totalitário, que une vítimas e carrascos em cianídrico, Primo Levi é taxativo: “Foi processado em 1947, condenado à
um mesmo “colapso moral”,140 e de que o nazismo é um caso exemplar. morte em Cracóvia, o que foi justo [....]”.145 A justiça da punição, que não
Agamben parte de uma posição clara mas qualificada de Primo Levi: remete de maneira nenhuma a uma impotentia judicandi, não o impede
“eu nunca compareço como um juiz”, “eu não tenho autoridade para conce- de especular, sempre de forma complexa e sutil, sobre a pessoa de Muhs-
der o perdão... estou sem autoridade”, para extrair a lição geral: “em última feld: “[M]as nem ele era um monolito. Se tivesse vivido num ambiente e
análise, não é o julgamento que lhe importa – menos ainda o perdão. [...] numa época diferente, é provável que se comportasse como qualquer
Aliás, parece que lhe interessa apenas o que torna impossível o julgamento, outro comum”.146 Que fique bem claro, no entanto, que não era um homem
a zona cinzenta em que as vítimas se tornam carrascos, e os carrascos, víti- comum. É preciso separar bem as coisas, distinguir, decidir, o que Primo
mas”.141 Ora, é preciso ter muito cuidado ao discutir essa suposta “troca de Levi não deixa de fazer:
lugar”. Philippe Mesnard e Claudine Kahan demonstram com propriedade
que a frase de Primo Levi citada por Agamben na sequência de sua argu-
mentação, “vítima e carrasco são igualmente ignóbeis, e a lição dos campos

137 Ler notadamente, a este respeito, os dois textos de Gershom Scholem sobre Eichmann, 142 Philippe Mesnard e Claudine Kahan. Giorgio Agamben à l’épreuve d’Auschwitz. Temoignages/
incluindo a sua resposta a Hannah Arendt. Interpretation, loc. cit., p.34.
138 Primo Levi. Os afogados e os sobreviventes, loc. cit., p. 32. 143 Levi Apud Mesnard e Kahan, Ibidem.
139 Hannah Arendt. Eichmann in Jerusalem. A Report on the Banality of Evil, loc. cit., p. 132. 144 Primo Levi. Os afogados e os sobreviventes, loc.cit, p.24.
140 Ibidem, p. 125-126. 145 Ibidem, p. 30.
141 Giorgio Agamben. O que resta de Auschwitz, loc. cit., p. 27. 146 Ibidem, idem.

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Não é difícil julgar Muhsfeld, e não creio que o tribunal que o condenou tenha testemunho inautêntico, que enuncia a verdade da autêntica testemunha
tido dúvidas; ao contrário, nossa necessidade e nossa capacidade de julgar se que morreu. E que, de toda a forma, não admite nenhuma dúvida sobre os
detêm diante do Esquadrão Especial [o Sonderkommando].147
delitos e as penas. Permanece então a pergunta: se o direito é por definição
Primo Levi, portanto, distingue claramente o caso do Sonderkommando uma operação do estado, do qual seria necessário emancipar-se, se todo o
do dos carrascos. É preciso não confundir a figura da colaboração judaica juízo está comprometido pela operação soberana e como tal é marcado de
com a da “obediência” nazista.148 É preciso entender de uma vez por todas fundamental ilegitimidade, como podemos julgar os criminosos nazistas?
que a coação, a que são submetidos os judeus que colaboraram na Solução Alain Badiou, em São Paulo. A fundação do universalismo, sem mencionar
Final, não é de maneira nenhuma de mesma natureza da “coação” a que se o nome de Agamben, mas claramente remetendo a ele, chama de “impos-
referem os criminosos nazistas, da obediência às “ordens superiores”. Han- tura” a proposição de uma igualdade demonstrada pelas vítimas do campo,
nah Arendt, embora tenha sido ela quem efetivamente criou esta confusão, em que “cada um, não sendo mais do que um corpo na soleira da morte, é
coloca os pingos nos ii, a este respeito: a despeito do que possam dizer os absolutamente igual a qualquer outro”.152 Esta proposição não poderia con-
carrascos, suas vidas nunca estiveram em jogo, e a desobediência de ordens sistir em um critério singular, de diferenças mínimas imanentes, a partir do
não acarretaria em execução – no máximo em perda de posição. O que não qual se pudesse fazer uma crítica do universalismo do juízo, com produção
é de maneira nenhuma o caso dos judeus que colaboraram, onde o que está do mesmo. Isso porque o campo é sobredeterminado de parte a parte, e
em questão, na maioria dos casos, é a sobrevivência ou não. Na discussão essencialmente, por diferenças hierárquicas “exorbitantes”, exemplarizadas
com Jean Améry/Hans Mayer, que o acusa de haver “perdoado” os SS, ele pela diferença entre vida e morte das seleções, ou pela diferença entre a raça
responde, para que não permaneça nenhuma ambiguidade: superior alemã e a sub-raça judia, que proíbem qualquer tratamento da
diferença mínima do campo visto como singularidade, e interior estilha-
Não tenho tendência a perdoar, jamais perdoei a nenhum de nossos inimigos
çado no campo imanente de exterioridades livres. A conclusão de Badiou,
de então, nem tenho vontade de perdoar a seus imitadores na Argélia, no
Vietnã, na União Soviética, no Chile, etc. [...].149 nesse confronto de São Paulo com o nazismo (e com Agamben), que apa-
rece no fecho de seu livro, é que é justamente o critério de universalidade,
A posição de Primo Levi é sem dúvida diferente da de Jean Améry, que cuja célula mínima é a projeção sobre o outro de si mesmo do “amai ao
postula que se “dê o troco”, a moral do zurückslagen.150 Ele não dá o troco, próximo como a ti mesmo” de São Paulo, que os SS tentaram abolir. É jus-
não porque o reprove moralmente, mas por uma “incapacidade intrínseca”, tamente a recusa de projetar-se sobre os outros, o fechamento em si, que
talvez devido a sua fraqueza física... O que não pode de maneira nenhuma permite a carnificina.153
ser confundido com uma “impotência de julgar”: “prefiro, nos limites do Há também, a meu ver, da parte de Agamben, uma incompreensão da
possível, delegar punições, vinganças e retaliações às leis de meu país”.151 tese de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal, nesse livro que pretende
Posição fraca e não predominante, diria Agamben, mas que, do meu ponto de fato radicalizá-la, tomando para si, e generalizando, a afirmação de
de vista, remetendo a uma delegação à lei, é simétrica àquela que liga o Primo Levi de que talvez “tenha chegado o tempo de explorar o espaço que
separa (não só nos Lager nazistas!) as vítimas dos opressores”.154 Isso porque
147 Ibidem, p. 31. o mal definido como banalidade, cadeia infinita de relais de subordinações
148 Primo Levi: “Aqui [aos membros do Sonderkommando] se lhe oferece a sobrevivência e se
lhe propõe, ou antes, impõe, uma tarefa sinistra mas vaga. É este, me parece, o verdadeiro
e coações, tornando impossível identificar uma transcendência do mal,
Befehlnotstand, ‘o estado de coação consequente a uma ordem’: não aquele sistemático e des-
pudoradamente invocado pelos nazistas levados a juízo e, mais tarde (mas seguindo suas 152 Alain Badiou. Saint Paul. La fondation de l’universalisme. Paris: PUF, 1997, p. 117.
pegadas), pelos criminosos de guerra de muitos outros países” (Ibidem, p. 32).
153 Ibidem, p. 118. A crítica contundente de Badiou é tanto mais relevante quando se sabe que a
149 Ibidem, p. 83. Ética. Um ensaio sobre a consciência do mal de Badiou é uma referência secreta do projeto
150 Ibidem, p. 82. de Agamben em O que resta de Auschwitz.
151 Ibidem, p. 83. 154 Primo Levi. Os afogados e os sobreviventes, loc. cit., p. 19.

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não impede que ele seja localizável ao longo de toda a cadeia, até o mais do muçulmano, e a partir da qual se desenham as pequenas diferenças dos
íntimo de seus elos, dos maiores aos menores, dos mais “responsáveis” aos deportados de Auschwitz, definindo o testemunho como relação paradoxal
menos “responsáveis”, na cadeia de colapso moral generalizado do estado (im-)possível entre o indecidível humano e inumano, a voz que falta e a
de exceção. Repensar o problema da atribuição de responsabilidades, dar a voz que fala, forma-de-vida que não é fato e sim potência de vida, é expan-
este conceito uma profundidade insuspeitada, é mesmo o que o projeto de dir de tal forma o escopo do campo testemunhal que perdemos de vista o
Hannah Arendt tem de mais notável. Mas é justamente o fato de que apesar essencial: o fato de que o que ocorreu nunca deveria ter acontecido, e que
de imanente o mal é atribuível e consignado às diversas responsabilidades testemunha-se, sobretudo, e antes de mais nada, para comprovar a verdade
que torna possível julgar Eichmann, apesar de todas as limitações e impro- do acontecido, como maneira de que isso nunca mais volte a acontecer.
priedades de que foi vítima o julgamento de Jerusalém. Julgar Eichmann é Nunca convém esquecer que o programa testemunhal consiste em
“justo” conclui Arendt, dando ao termo de justiça toda a sua dimensão e acreditar na verdade do acontecido nos campos, consignar provas sobre a
profundidade problemática.155 E é justamente aqui que se situa a diferença terrível e inacreditável realidade do que ali ocorreu, de forma a contradizer
entre o projeto de Agamben e o de Arendt. Arendt situa o problema do o cínico veredicto contado por Simon Wiesenthal e citado por Primo Levi
mal na fissura irredutível das relações de poder no contexto de uma grande no início de Os afogados e os sobreviventes, dos SS que diziam aos prisionei-
figura: a sociedade totalitária. O intervalo maligno, por assim dizer, é no ros: “Seja qual for o fim desta guerra, a guerra contra vocês nós ganhamos;
entanto “julgável”: as ruelas dentro do sistema são culpadas, há critérios ninguém restará para dar testemunho, mas mesmo que alguém escape,
objetivos – os atos – para se julgar, “mesmo que oitenta milhões de alemães o mundo não lhe dará crédito. [...] E ainda que fiquem algumas provas e
tenham feito como” fez Eichmann.156 Enquanto isso, Agamben, em sua sobreviva alguém, as pessoas dirão que os fatos narrados são tão monstruo-
“zona cinzenta”, avessa à jurisdição do direito e da moral, impermeável a sos que não merecem confiança [...]”.157 Comprovar, dar crédito a fatos nar-
toda e qualquer forma de juízo, ontologiza o intervalo “cinza” do estado de rados inacreditáveis, são operações legais e resumem o que está em jogo em
exceção, feito de “nuanças e diferenças infinitas” identificando o carrasco “prestar testemunho”. O sobrevivente é em si a prova dos fatos que narra,
à vítima, a partir do grau zero de sua igualdade absoluta, o que o impede ao mesmo tempo em que encarna a falha improvável do programa SS de
de enxergar as grandes desigualdades e diferenças abissais que a hierarquia erradicação e silenciamento dos fatos. Que essa falha fale, eis o imperativo
SS cria e administra, e razão única pela qual uma tal figura da igualdade que marca a enunciação testemunhal. O testemunho é, ao mesmo tempo,
absoluta da vida-morte do muçulmano jamais foi concebida. Transformar e indissoluvelmente testis e supertestes, segundo a etimologia que Agam-
o campo em campo de imanência, em cujo centro se encontra a “lacuna” ben resgata de Benveniste, como vimos.158 Ao mesmo tempo sobrevivente
(supertestes) e terceira parte em um julgamento que restitui a verdade dos
155 Uma vez desconstruído o último resquício de qualquer noção de que o crime perpetrado fatos em litígio (testis). Ao contrário do que afirma Agamben – “É claro
por Eichmann fosse um crime contra uma natureza definida, de que a justiça fosse uma vin- que Levi não é um terceiro; ele é de parte a parte um superstite, um sobre-
gança e restituição naturais, uma vez esclarecidas as impropriedades imensas do julgamento
de Jerusalém, Arendt é obrigada a afirmar, quase que a despeito de si própria, um sentido vivente” –, o que define o testemunho é que o sobrevivente é, ao mesmo
explícito de justiça: “E no entanto, penso que é inegável que seja precisamente a partir destas tempo, terceiro. É o duplo status de vítima e testemunha, o fato de a auto-
proposições há muito esquecidas que Eichmann foi levado a julgamento para começar, e que
elas foram, de fato, a suprema justificação para a pena de morte. Porque ele fora implicado
ridade da verdade se confundir com a da experiência, a indissolubilidade
e teve um papel central em uma empresa cujo objetivo explícito era eliminar para sempre entre parte interessada e parte desinteressada, entre experiência da objeti-
certas ‘raças’ da superfície da terra, ele tinha que ser eliminado. E é verdade que ‘a justiça
vação e enunciação subjetivante de fatos objetivos, que confere a especifi-
não deve apenas ser feita, mas deve ser vista para ser feita’, então a justiça do que foi feito em
Jerusalém teria emergido para ser vista por todos se os juízes tivessem ousado dirigir-se ao cidade do testemunho. Querer separar um elemento do outro, como forma
réu em alguma coisa como os seguintes termos [...]” (Hannah Arendt. Eichmann in Jerusa-
lem, loc. cit., p. 277.) E se segue uma acusação hipotética a Eichmann purificada de todas as
aderências indevidas a que o julgamento de Jerusalém ainda recorria. 157 Primo Levi. Os afogados e os sobreviventes, loc. cit., p. 1.
156 Ibidem, p. 278. 158 Émile Benveniste. O vocabulário das instituições indo-européias. Volume II, loc.cit., p. 278.

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de purificar a ética das operações do direito e do juízo, enquanto formas de capítulo 2
soberania, é descaracterizar profundamente a essência do testemunho, é
Fala Rigoberta!
perder de vista a sua razão de ser. É mais uma vez, soberanamente, decidir
sobre a separação entre o ser e suas múltiplas formas de ser, ontologizando
a ética como outra forma de soberania, distinta do juízo. O que comprova
a tenacidade da separação soberana, que acaba aparecendo onde menos
poder-se-ia esperar, aqui sob a máscara de emancipação ética da soberania
e da política. Por isso, aliviemos, sim, a justiça de sua carga excessivamente
punitiva, do sistema de pesos e medida da vingança, em que se resume
predominantemente o aparelho jurídico da justiça, mas não deixemos de
articular a verdade da experiência testemunhal com os fatos, mesmo que
Em 1992, quando se “comemoravam” os quinhentos anos da “conquista”
não evidentes, mesmo que inimagináveis, de que a experiência é insepará-
da América, a atribuição do prêmio Nobel da Paz à ativista política indí-
vel, e que é a condição de possibilidade de toda a justiça.
gena quiché guatemalteca Rigoberta Menchú, pelo seu testemunho Meu
A verdade da experiência levada a cabo pelo testemunho é uma expe-
nome é Rigoberta Menchú e assim me nasceu a consciência (1983) – editado
riência da verdade, por mais improvável e precária que ela seja. Pois é justa-
a partir de depoimento dado à antropóloga venezuelana Elizabeth Burgos-
mente a sua improbabilidade e precariedade que conferem a especificidade
Debray – constituiu um acontecimento ambíguo, cuja teia complexa seria
a esta experimentação. É certo que o testemunho de sobreviventes contém
difícil esgotar em uma análise. Em termos gerais, ele deve ser lido como um
a verdade da potencialidade indecidível do humano, e como tal uma lição
gesto simbólico de tentativa de restituição,1 ou de “desculpas”, por parte da
ontológica do múltiplo da existência, mas é preciso nunca nos esquecermos
prestigiosa organização sueca, em nome do Ocidente como um todo, pelo
do óbvio: de que essa verdade nunca deveria ter sido revelada. É o que o
genocídio das culturas que originalmente povoaram as Américas. Ele dava
testemunho não cessa de demonstrar: a verdade inquestionável do aconte-
continuidade, assim, na esteira da rubrica “crimes contra a humanidade”,
cimento, e o imperativo de sua não repetição. É sobretudo no imponderável
à discussão em escala mundial sobre a viabilidade de uma “compensação”,
desse futuro, na possibilidade de poder ser (por oposição à narração do que
inclusive material, com todos os problemas que um programa dessa natu-
foi), que se situa a potência de vida contida no testemunho, ou o testemu-
reza coloca (responsabilidade por crimes, localização das vítimas, quanti-
nho enquanto potência: a possibilidade de fazer com que os fatos ocorridos
ficação de perdas e de mortes, especulação sobre o que poderia ter sido…),
nos campos nunca mais sejam possíveis. Essa é de fato a forma-de-vida
a povos que sofreram injustiças históricas nas mãos das grandes potências
contida neste acontecimento: a possibilidade de que um tal acontecimento
em nome do progresso da humanidade, discussão esta que retornaria com
não mais possa ser.
1 O conceito de “restituição”, essencial para este ensaio vem de Enrico M. Santi, em “Latinamer-
icanism and Restitution”. Não somente o que foi perdido nunca retorna, mas a restituição do
que se perdeu opera em um regime autônomo, segundo uma lógica exterior à própria perda, de
forma que o que é restituído não tem praticamente nada a ver com o que foi perdido. O excesso
ou mais-valia simbólica da restituição com relação à perda, atesta o fato de que a restituição da
perda duplica a si mesma, mas não restitui de fato. A perda permanece fechada em si mesma,
confinada ao passado intocado, e unicamente recuperável pela memória e pelo trabalho de
luto. O tema do trabalho de luto no testemunho é tratado por Gareth Williams, conforme vere-
mos adiante. O paradigma da restituição é bíblico: “Se o que ele roubou é achado vivo em sua
possessão, seja uma cabeça de gado, um asno ou um carneiro, ele deve restituir dois animais
para cada um roubado”(Êxodo 22:3 Apud Enrico M. Santí. “Latinamericanism and Restitu-
tion”. Latin American Literary Review, volume XX, July-December 1992, número 40, p. 90).

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força, a respeito da escravidão africana, na Conferência sobre o Racismo na que estavam ligados à Guatemala foram afetados pela situação. O trabalho
África do Sul, em 2001. Em segundo lugar, deu visibilidade internacional de campo normal tornou-se impossível desde 1980, sendo já difícil desde a
década anterior. Assim, a rica onda de trabalhos etnográficos que tivera lugar
à “causa” indígena latino-americana, constituindo uma caixa de ressonân-
entre 1930 e 1970, e que compreendia a maioria das pessoas ainda comprome-
cias midiática para as milhares de denúncias da Anistia Internacional de tidas com o trabalho na Guatemala, passou aos temas do genocídio, refúgio
desaparecimentos, e abusos de direitos humanos, cujos números vinham político e direitos humanos.3
crescendo na virada da década de 1970 para a de 80, nas guerras civis loca-
lizadas na América Central, e especialmente na Guatemala. A contrapelo A série de testemunhos indígenas realizados nessa época (Zimmerman
da repressão violenta militar e paramilitar centro-americana apoiada pela menciona a existência de centenas, muitos deles não transcritos, armaze-
CIA, com o massacre dos movimentos libertários nacionalistas e indigenis-
nados no porão do Instituto Folklórico de la Universidad de San Carlos)4
tas, a atribuição do Nobel a uma ativista do Comitê de Unidade Campo- surge no contexto de um quase-holocausto indígena, uma espécie de atua-
nesa (CUC) guatemalteco – uma Comunidade de Base ligada à Teologia da lização do outro, o da colonização, como parte de um trabalho de campo
Libertação – esboça uma nova forma de ativismo político a partir da rees- etnográfico “modificado”, uma reflexão a posteriori sobre o fracasso do
truturação em outras bases de movimentos indígenas, ecológicos e agrá- projeto revolucionário, documento e denúncia do estado de coisas na Gua-
rios. Com a clareza que o olhar retrospectivo nos dá, podemos discernir, temala dos anos 1980. Testemunhos como o de Menchú, privilegiado den-
nessa articulação entre movimentos locais e organizações internacionais, tre tantos por razões específicas de que trataremos adiante, remetem a um
o contorno dos novos movimentos pós-nacionais antiglobalização, que se tipo de coalizão que corta transversalmente segmentos sociais e nacionais
cristalizariam a seguir, na insurreição do Exército Zapatista de Libertação – envolvendo Organizações Não-Governamentais ou instituições do tipo
Nacional, em Chiapas no México em 1994, no Movimento Sem Terra no da Fundação Nobel, a academia latino-americana e primeiro-mundista
Brasil, assim como em manifestações políticas como a de Seattle em 1999, e (sobretudo a americana) – e se inserem em um movimento de solidarie-
Davos, Porto Alegre e Gênova em 2001, orquestradas por coalizões do tipo dade internacional de denúncia dos abusos do governo guatemalteco e do
da AFL-CIO (American Federation of Labor-Congress of Industrial Organi-
zations), ou do Greenpeace. 3 Smith e Berger, p. 206. Apud Marc Zimmerman, ibidem, p. 232. Ou ainda este trecho, que
O referente histórico a que remete o testemunho de Rigoberta Menchú tem a vantagem de cobrir alguns dos fatos descritos no testemunho de Menchú: “Durante a
presidência de Lucas Garcia (1978-1982), o medo extremo da aristocracia tradicional tradu-
é, portanto a violenta contrainsurgência do início dos anos 1980, a resposta ziu-se cada vez mais por uma repressão violenta e ação militar contra todos os setores que
militar à guerrilha indígena iniciada em 1978, que se constituíra a partir promoviam mudanças – com uma preocupação mínima com a opinião pública mundial. Um
de uma forte mobilização em sindicatos de trabalhadores agrícolas etni- massacre de mais de 100 camponeses, entre homens, mulheres e crianças na cidade de Pan-
zos, em 1978, e de 35 manifestantes indígenas na Embaixada Espanhola [dentre os quais o pai
camente mistos,2 e que poderia ter levado a Guatemala a uma revolução de Menchú, como ele reporta no seu testemunho] assinalou a vontade de usar de qualquer
indígena. A inscrição do testemunho nesse momento corresponde a uma medida para reprimir as organizações camponesas... No final dos anos 70, o Exército Guer-
rilheiro dos Pobres (EGP) emergiu como um grupo clandestino particularmente eficaz. No
mudança de foco: da guerrilha passara-se ao diagnóstico de um holocausto início dos anos oitenta, as organizações guerrilheiras e os grupos políticos de oposição con-
de militantes indígenas, e deste a uma etnografia centrada no problema dos seguiram maior união à medida que a repressão governamental tornou-se mais indiscrimi-
nada. Da seleção das lideranças, dos guerrilheiros suspeitos, e de camponeses organizados,
direitos humanos: como alvo. ... no início dos anos 1980, as forças governamentais passaram então a dizimar
vilarejos inteiros, concentrando os ataques mais pesados nas populações rurais indígenas. A
A Guatemala esteve às portas de um holocausto político. Centenas de aldeias passagem da repressão seletiva à coletiva representa uma declaração de guerra em grande
foram eliminadas, milhares de pessoas foram torturadas e assassinadas e escala nas montanhas do noroeste, onde mulheres, crianças, e velhos são todos vistos como
pelo menos um milhão foi deslocado; virtualmente todos os antropólogos inimigos, ou ‘culpados’ por apoiar o inimigo” (Laurel Herbenar Bossen,. The Redivision of
Labor. Women and Economic Choice in Four Guatemalan Communities. Albany: State Uni-
2 Marc Zimmerman. “El otro de Rigoberta: Los testimonios de Ignacio Bizarro Ujpán y la resis- versity of New York Press, 1984, p. 337-338).
tencia indígena en Guatemala”. John Beverley e Hugo Achugar, (eds.). La voz del otro: testimo- 4 Marc Zimmerman. “El otro de Rigoberta: Los testimonios de Ignacio Bizarro Ujpán y la
nio, subalternidad y verdad narrativa. Lima/Pittsburg: Latinoamericana Editores, 1992, p. 238. resistencia indígena en Guatemala”, loc. cit., p. 242.

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apoio dos Estados Unidos à contrainsurgência militar, vocalizada essen- com uma coalizão internacional que é em parte responsável pela sua pro-
cialmente pela esquerda “latino-americanista” norte-americana.5 dução? Em primeiro lugar, para que não fique nenhuma dúvida, é preciso
O interesse da crítica proveniente dos Estados Unidos (principal quem sabe lembrar o óbvio (mas nunca é ocioso lembrá-lo): os movimen-
objeto do presente estudo) pelo testemunho hispano-americano deve ser tos emancipatórios, com sua dimensão complexamente modernizante, aos
entendido no contexto deste movimento de solidariedade internacional em quais o testemunho se liga, não são simplesmente produzidos unilateral-
face das atrocidades cometidas nas guerras civis na América Central e da mente por essas coalizões internacionais, originadas dos centros metropo-
repressão na Argentina.6 Isso explicaria, por exemplo, o fato de o testemu- litanos; eles articulam ações locais com ações internacionais, em estruturas
nho ter adquirido visibilidade apenas nos anos 1980, embora seu nasci- descentradas e multifocais, que partem de projetos de ajuda internacional,
mento enquanto forma autoconsciente date dos anos 1960, em torno da que se combinam em iniciativas particulares e movimentos específicos. A
revolução cubana (1959).7 Mas a sua inserção dentro de uma política de questão propriamente ontológica da produção dos movimentos de resis-
solidariedade não explicaria por si só o interesse pelo testemunho. Mais tência é um tema espinhoso, que não pretendo esgotar aqui. Uma medida
importante do que isso, ele consiste na entrada no cenário transnacional de precaução, no entanto: o momento atual requer uma concepção mais
de um modelo latino-americano de política identitária, que propõe uma fluida da criatividade dos movimentos sociais, fora de bases nacionais. Há
forma de expressão intimamente ligada aos movimentos sociais, e marca algo de espantoso no argumento identificado a uma certa esquerda que
a irrupção (midiática, comercial, política, acadêmica) de sujeitos de enun- considera os movimentos identitários (de minorias) como exportações
ciação tradicionalmente silenciados e subjugados, diretamente ligados aos provenientes dos centros metropolitanos. A prova disso seria o fato de eles
grupos que representam, falando e escrevendo por si próprios. supostamente não se coadunarem com a tradição nativa dos movimentos
Haverá contradição entre esta articulação do testemunho a um movi- em bases nacionais (brasileiras, por exemplo), propondo que a fragmen-
mento internacional e o fato de ele ser um “falar e escrever por si próprio” tação identitária serviria aos interesses escusos do capital, agora em sua
– entre o passo importante que é o testemunho, no sentido de uma auto- fase pós-nacional, e portanto prescindindo do projeto desenvolvimentista
definição e autoproblematização da América Latina em seus próprios ter- (nacional) para atuar. No entanto, ao negar aos países periféricos a possibi-
mos, na linhagem aberta, por exemplo, pela “transculturação” de Fernando lidade de criatividade política, demonstram uma subserviência insuspeita
Ortiz,8 ou pela “formação” de Antonio Candido – e a sua relação intrínseca ao capital e uma confiança irrestrita nos poderes insidiosos do império, que
surpreende justamente partindo de quem parte. É preciso substituir esta
5 Para o conceito de “latino-americanismo”, ver Alberto Moreiras. A exaustão da diferença. A
política dos estudos culturais latino-americanos.
interpretação totalizante dos processos econômico-sociais pela hipótese de
6 Alberto Moreiras, “The aura of testimonio”. Georg M. Gugelberger (ed.). The Real Thing: uma multicentralidade da criação política, que conduziria, em última aná-
Durham. Duke University Press 1996, p. 220. lise, a uma articulação entre forças de diversas origens e localidades, a uma
7 Esta visibilidade corresponde precisamente à fase “americana” desta recepção – em sua dupla causalidade ou produção múltipla e disseminada – este seria sem dúvida o
face, comercial (o consumo de edições de testemunhos) e crítica, o estudo do testemunho em
Departamentos de Estudos Latino-Americanos, pela crítica literária e pelas ciências sociais momento político identitário contemporâneo.
– e vai definir a especificidade e os limites da política da solidariedade. John Beverley e Marc Por outro lado, não é menos verdade que parte da “novidade” da cons-
Zimmerman descrevem assim o funcionamento desta rede solidária: “O testemunho...não é
uma forma de culpa liberal. Ele sugere como uma resposta ética e política apropriada a pos-
trução identitária testemunhal é a sua constituição articulatória, o oposto
sibilidade mais de solidariedade do que de caridade...O testemunho neste sentido tem sido do sujeito livre liberal (e neo-), autônomo e autossuficiente9 (inscrito por
extremamente importante ao ligar os contextos rurais e urbanos de luta dentro de um país
exemplo, hoje em dia, na expressão jargônica “mundo livre”, free world, que
dado, e ao manter e desenvolver a prática de direitos humanos internacionais e de movimen-
tos de solidariedade em relação às lutas particulares” (John Beverley e Marc Zimmerman.
Literature and Politics in the Central America. Austin: University of Texas Press, 1990, p. 177). 9 Sobre a subjetividade autônoma, e sua relação com a produção do artefato estético, ver Terry
8 Gareth Williams. “Translation and Mourning: The Cultural Challenge of Latin American Eagleton (1990). Sobre o interesse político de construções subjetivas dependentes, paródicas,
Testimonial Autobiography”. Latin American Literary Review. Volume XXI, January-June ou oposicionais para a literatura menor, ver David Lloyd (Nationalism and Minor Literature.
1993, n. 41, p. 97. Berkeley: University of California Press, 1987, p. 22-23).

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designa a nova ordem imperial), mas que obviamente não tem nada de metropolitana, capitalista”.13 A formulação não esconde o seu aspecto espe-
autônomo e autossuficiente, em que pese o complicado dilema contido no cular, como se no fundo não saíssemos da metrópole, até mesmo e princi-
prefixo auto- presente também em “autodefinição” e “autoproblematização” palmente no desmantelamento do sonho metropolitano de dominação, que
(acima). O sujeito testemunhal se opõe ao individualismo autotélico10 que surge de um desejo nascido também... na metrópole, e que, no limite, cabe-
define a autobiografia, como os críticos do testemunho não se cansaram de ria ao testemunho local exemplificar, e aos movimentos identitários a ele
demonstrar. Está claro que o testemunho introduz uma dimensão constitu- ligados espelhar. Esse aspecto projetivo obviamente não dá conta dos movi-
tiva que extrapola os limites nacionais, os estratos sociais, as segmentações mentos identitários e do testemunho – que existem “lá fora”, longe-perto
de classe, e que remete a uma constituição heterogênea ou híbrida, para uti- das metrópoles, frequentemente indiferentes aos desígnios a eles reservados
lizar o conceito de Canclini, comprovando, de uma certa maneira, ao trazer pelos centros metropolitanos –, mas diz algo sobre a natureza do “desejo
a exterioridade para o interior do sujeito, a tese da constituição exterior chamado testemunho” tal qual se configura nas metrópoles.
da subjetividade (produzida a partir de forças múltiplas distintas, na for- Como entender este desejo e a estetização a ele ligado? Sem preten-
mulação nietzschiana-deleuziana), ao contrário daquela outra (cartesiana, der esgotar aqui o problema, convém apenas sublinhar na crítica do teste-
estética) de uma autoconstituição ou autonomia do sujeito. munho o (des-)interesse de um prazer subjetivo, que se quer, no entanto,
No entanto, já suficientemente complicada como está, a questão da essencialmente político (não-subjetivo, e antiestético), e nada prazeroso.14
“colaboração” entre o sujeito testemunhal e seus “patrocinadores” trans- A origem da postulação do problema se encontra no programa benjami-
nacionais, ainda contém um problema suplementar: a elaboração teórica niano segundo o qual a estetização da política deve ser substituída por uma
sobre o testemunho, sobretudo de extração (norte-)americana, parte do que politização da estética. A nova estética proposta pela crítica testemunhal
poderíamos chamar o efeito testemunho, justamente aquela que viu nele de tem como corolário essencial a promessa de sua dissolução na política,
maneira mais aguda as possibilidades de uma política identitária, o este- entendida como exterioridade ao sujeito, seguindo uma opção ética que
tizou. No lugar do “nobre selvagem” colocaram o “nobre revolucionário”, opõe, a uma autoindulgência fetichizante, estética, um compromisso emi-
como escreve com certa maldade Enrico Santí.11 O testemunho, ou o “desejo nentemente político. A questão está embutida na própria análise textual,
chamado testemunho”, conforme expressão de John Beverley,12 constrói seu que salienta no testemunho o seu caráter extra-literário de “narración de
objeto, na justa medida de um programa político pré-estabelecido, que cabe urgencia”, na formulação de René Jara,15 uma história que ao mesmo tempo
a ele encarnar, ou, vicariamente, realizar. Sintoma disso é a generalidade ou em que precisa ser contada, requer do leitor que passe à prática, exatamente
não especificidade das categorias utilizadas, que perdem de vista a especifici- a praxis solidária. Que a teoria, enquanto produção autônoma, seja abolida
dade de cada testemunho, enxergando nele embates tão vagos como aquele e ceda lugar a um engajamento solidário, eis aqui o cerne do programa. No
entre o terceiro e o primeiro mundo, entre grupos marginalizados e grupos entanto, o contrário se deu: a teoria testemunhal se multiplicou, e a prá-
hegemônicos, ou o diagnóstico de um movimento globalizado de resistên- tica na qual ela supostamente se dissolveria, enquanto seu limite externo,
cia à dominação do capital transnacional. Ou, como resume com proprie- tem um estatuto duvidoso. Ter-se-ia portanto construído uma estética não
dade Gareth Williams: “Em grande parte de sua recepção ‘metropolitana’, muito diferente da estética tradicional, com seu devido benefício (des-)
o testimonio vem a ser retratado como ferramenta discursiva projetada em
última análise para facilitar o desmantelamento pós-colonial da dominação 13 Gareth Willliams. “Translation and Mourning: The Cultural Challenge of Latin American
Testimonial Autobiography”, loc. cit., p. 85.
14 Adorno, na Teoria Estética, opõe a estética desinteressada de Kant, no sentimento do belo, ao
10 GeorgeYúdice. “Postmodernity and Transnational Capitalism”. George Yúdice, Jean Franco e interesse da abordagem pulsional da análise psicanalítica da obra de arte. No entanto, ambas
Juan Flores (editores). On Edge. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1992, p. 11. as estéticas são guiadas pelo “poder do desejo” compreendido subjetivamente, de forma
11 Enrico M. Santi.”Latinamericanism and Restitution”, loc. cit., p. 94. negativa em Kant, e positiva em Freud (Theodor Adorno. Aesthetic Theory. Trad. Robert
12 John Beverley. “The Real Thing”. Georg M. Gugelberger (ed.). The Real Thing. Durham: Duke Hullot-Kentor. Minneapolis: University Of Minnesota Press, 1997, p. 11).
University Press, 1996, p. 282. 15 Apud John Beverley. Against Literature. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1993, p. 73.

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interessado produzido no sujeito? É esta a suspeita que se coloca aqui. A gravados fornecidos por Montejo, que Barnet encontrou em 1963, com
articulação de todos estes dilemas fornece o contorno do problema (teó- 103 anos. Este constitui o modelo para o chamado “romance-testemunho”,
rico? prático?) que o testemunho propõe à crítica. O presente ensaio tenta conforme designação conferida por Barnet posteriormente, que se coloca
entender esta construção, sobretudo em seu desdobramento crítico ameri- numa zona ambígua entre o documentalismo etnográfico e a ficção, a fide-
cano, mapeando os seus principais temas e reconstituindo as articulações lidade referencial e a intervenção mais ou menos pronunciada do editor, ou
mais importantes da crítica testemunhal. “gestor”, como é chamado, definindo logo de início a vocação essencial do
testemunho hispano-americano de constituir subjetividades subalternas.18
*** A quantidade de testemunhos que surgiram desde então na América
A importância do testemunho na América Latina espanhola está Latina espanhola foi imensa. Dentre os mais importantes podemos citar,
ligada à possibilidade de dar expressão a culturas com uma inserção pre- além de Yo me llamo Rigoberta Menchú: Hasta no verte Jesús mio (1969),
cária no universo escrito, e uma existência quase que exclusivamente oral. sobre uma empregada doméstica, e La noche de Tlatelolco (1971), sobre o
Como a distribuição entre escrita e oralidade repete uma segmentariza- massacre estudantil ocorrido na cidade do México no dia 2 de outubro de
ção social em grande escala – consequência de um processo de acultura- 1968, ambos de Elena Poniatowska: “Si me permiten hablar…”. Testimonio
mento e modernização que transcreve o legado colonial, perpetuando a de Domitila, una mujer de las minas de Bolivia (1977), da educadora brasi-
exclusão e a marginalização das culturas que não passam pelo processo de leira Moema Viezzer; La montaña es algo más que una inmensa estepa verde
«letramento» ou da escrita – o testemunho latino-americano acaba pos- (1982), de Omar Cabezas, transcrição direta do depoimento gravado, sem
sibilitando a expressão de culturas e subjetividades emergentes,16 explo- edição do “gestor”, sobre a guerrilha na Nicarágua; No me agarram viva. La
rando uma zona de confluência com a antropologia. Os modelos para o mujer salvadoreña en lucha (1987), de Claribel Alegría e D.J. Flakoll, cola-
testemunho hispano-americano devem ser encontrados por um lado nas gem de histórias de vida de mulheres que morreram na guerra civil em El
biografias, ou “histórias de vida”, produzidas por antropólogos, frequente- Salvador. A decisão da Casa de las Américas (o Ministério da Cultura de
mente ligados à escola de Chicago – como Juan Pérez Jolote. Biografía de Cuba) de criar um prêmio especial para a categoria de testimonio em 1970
un tzotzil (1952), do antropólogo mexicano Ricardo Pozas, e Los hijos de explicita o vínculo entre a revolução cubana e a criação deste espaço enun-
Sánchez, Autobiografía de una familia mexicana (traduzida para o espanhol ciativo na América Latina.19
em 1964), do antropólogo americano Oscar Lewis –, bem como no roman- A cena primitiva da criação do gênero testemunho ocorreu em 4 de
ce-reportagem de Truman Capote, A sangue frio (1966). janeiro de 1969, quando em uma reunião dos jurados do Prêmio Casa de
John Beverley elenca ainda como fontes do testemunho a tradição das las Américas – Ángel Rama, Isidora Aguirre, Hans Magnus Enzensberger,
crônicas coloniais, o ensaio nacional costumbrista (como Facundo de Sar- Manuel Galich, Noé Jitrik e Haydee Santamaría – sugeriu-se a criação de
miento, ou Os sertões de Euclides da Cunha), os diários de guerra (como uma categoria especial para o prêmio. A fala de Ángel Rama é significativa:
os de Bolívar e Martí), ou, mais proximamente, os relatos participativos “Existem, entre outras, boas obras literárias, com interesse, que não todas
de ativismo político ou de guerra cubanos, como as Memorias de la guerra chegam à qualidade de um prêmio que poderíamos mencionar, cujo valor
revolucionaria cubana de Che Guevara.17 O testemunho latino-americano 18 Mabel Moraña. “Testimonio y narrativa testimonial hispanoamericana”. Pizarro, Ana (org.)
canônico, considerado o primeiro, é a Biografía de un cimarrón (1966) do América Latina. Palavra, Literatura e cultura. Volume 3. Vanguarda e modernidade. São Paulo:
Editora da Unicamp, 1995, p. 488. A confluência entre este testemunho e a chamada “narrativa
cubano Miguel Barnet, que narra em primeira pessoa a vida de um ex-es- escrava”, gênero ligado ao esforço abolicionista nos Estados Unidos, no século XIX – e que tem
cravo (fugido, ou cimarrón), Esteban Montejo, a partir de depoimentos em Cuba uma versão importante, claro ancestral do Cimarrón de Barnet, na Autobiografía
de un esclavo, de Juan Francisco Manzano (escrita em 1839) –, não deve no entanto nos fazer
esquecer de que se tratam de gêneros distintos (Ver, por exemplo, Harles T. Davis e Henry
16 Raymond Williams. Marxism and Literature. Oxford: Oxford University Press, 1977, p. 124-125. Louis Gates Jr. [eds.]. The Slave’s narrative. Oxford: Oxford University Press, 1985).
17 John Beverley. Against Literature, loc. cit., p. 72. 19 John Beverley. Against Literature, loc.cit., p. 71.

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não está apenas no literário, mas no fato de testemunhar sobre o processo seria uma modalidade ideal de realismo, ou num gênero que reproduziria
da América Latina”.20 Substitui-se assim a avaliação qualitativa, literária, de forma transparente a verdade do real, e sim numa vocação subjetivante,
por uma outra, exterior ao valor exclusivamente literário, que estaria ligada ou representativa (no sentido político do termo). O que importa aqui é a
ao “processo” histórico pelo qual passa a América Latina, como ele é visto verdade do sujeito testemunhal compreendido como sujeito coletivo.
a partir da revolução cubana. A relação entre testemunho hispano-americano e antropologia requer
A teorização inicial do testemunho aparece em textos do próprio algumas pontuações finas, conforme podemos observar no testemunho
Miguel Barnet, e se centra na definição do papel do transcritor dos mate- de Rigoberta Menchú, onde o componente da cultura tradicional maia-
riais orais, na relação entre informante e transcritor ou gestor: quiché constitui um estrato importante, mas não o único. Para a ativista
política, filha de ativistas políticos, missionária católica, organizadora de
E aqui nos aproximamos de outro ponto que considero imprescindível para a
execução da novela-testemunho: a supressão do eu, do ego do escritor ou do comunidades indígenas, a mobilização de um passado cultural tradicional
sociólogo; ou se não a supressão, para ser mais justos, a discrição no uso do eu, está articulada à tematização da prática política. O que estabelece dentro do
na presença do autor e seu ego nas obras... Despojar-se de sua individualidade, relato uma polaridade passado-futuro, ou entre cultura tradicional (antro-
sim, mas para assumir a do seu informante, a de sua coletividade, que este pológica, em sentido estrito) e cultura política emancipatória. Rigoberta
representa. Flaubert dizia: ‘Madame Bovary, c’est moi.’ O autor no romance-
Menchú está longe de ser uma indígena “autêntica”, embora ela não deixe
testemunho deve dizer junto com seu protagonista: ‘Eu sou a época’.21
de usar a autenticidade como um dos materiais à sua disposição, como
O transcritor (o autor) deve portanto se apagar, chegando a uma “des- quando usa o vestimento tradicional maia, o huipil, em público. (O escritor
personalização” quase que absoluta, só subsistindo de forma residual, como guatemalteco Arturo Arias conta que Menchú prefere usar T-shirt e cal-
veículo para o sujeito testemunhal, que em última análise se confunde com ças jeans em particular.)23 A categoria de autenticidade passa para segundo
a coletividade como um todo e a própria história, o sujeito popular como plano, e o que é mais relevante é a maneira como o plano da cultura tradi-
sujeito da história. Claro está que este suposto desaparecimento ideal não cional é modificado e reescrito pela prática emancipatória, subordinando-a
deixa de ser problemático, e o próprio Barnet o desloca ao restabelecer o aos interesses da construção identitária. O essencial, portanto, consiste na
papel da ficção e ao nomear o gênero que inventa “romance-testemunho”, postulação de um sujeito que se escreve, autodefine e autoproblematiza em
mas ao fazer isso retoma a questão em termos do imaginário (ficcional) e seus próprios termos, para retomar o mote citado acima, um sujeito, em
acaba desmerecendo a originalidade da descoberta, e falseando a questão suma, em controle de seu próprio discurso, precisamente o contrário do
essencial do testemunho. A crítica posterior22 compreenderá a relação entre informante antropológico objetivado, ou da vítima passiva. Daí o enfoque
informante e gestor como negociação ou articulação complexa de diferen- da crítica no rastreamento das marcas de decisões tomadas pelo sujeito
ças: discurso oral e escrito, povo e elite, movimentos sociais e intelectual testemunhal, suas manipulações na transmissão da informação, a maneira
universitário, sujeito subalterno e sujeito letrado, antropologia e literatura, como a sua voz transparece por detrás, ou nos interstícios da construção
discurso referencial da verdade e discurso autorreferencial do texto, sem necessariamente deformante do testemunho, a começar pelo fato de se dar
que haja fusão ou conciliação possível entre os dois mundos. Note-se que em uma outra língua (o espanhol) que não a sua.
não há em Barnet uma ênfase na função referencial (mimética), no que O grande interesse do livro se situa exatamente na imbricação e inse-
parabilidade destes dois polos, o que fará a crítica testemunhal em seus
20 Ángel Rama, Isidora Aguirre, Hans Magnus Enzensberger, Manuel Galich, Noé Jitrik momentos mais fortes procurar localizar pontos de reconciliação ou fusão,24
e Haydee Santamaría. “ Conversación en torno al testimonio”. Casa de las Américas, ano
XXXVI, número 400, julho-setembro 1995, p. 122. Agradeço a Christian Dutilleux que me
mostrou esse documento.
21 Miguel Barnet. La fuente viva, loc. cit., p. 23-24. 23 Apud Beverley. “The Real Thing”, loc. cit., p. 278.
22 Por exemplo, Antonio Vera León. “Hacer hablar: la transcripción testimonial”. Beverley, John 24 George Yúdice. “Testimonio and Postmodernism”. Georg M. Gugelberger, (ed.) The Real
e Achugar, Hugo (eds.). La voz del otro: testimonio, subalternidad y verdad narrativa, loc. cit. Thing, loc. cit., p. 56.

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reescrita e tradução25 entre a cultura indígena religiosa tradicional e a pre- em modelo de uma autodefinição e autoproblematização em seus próprios
missa identitária, autodeterminante (marxista, católica...) testemunhal, ou termos, conforme o nosso mote. O que remete mais uma vez ao problema
identificar um movimento de ida e vinda entre o ritual camponês coletivo e ontológico da proposta identitária, que requer a noção de uma causalidade
a história como catástrofe brutal que fratura a comunidade.26 Assim, Yúdice múltipla e de uma constituição subjetiva articulatória, o que explica este
descobre sintonias profundas entre uma visão ético-ecológica comunita- traço biunívoco, repetitivo.29
rista da terra/natureza/corpo como instrumento de sobrevivência da comu- O cerne do testemunho de Rigoberta Menchú consiste na narração da
nidade, na cultura maia-quiché, e formas do cristianismo primitivo, que experiência do racismo e da destruição de sua família e comunidade, dos
operariam em profundidade nas Comunidades de Base.27 Ou Gareth Wil- trabalhos nas fazendas de algodão, da execução de seu irmão, pai e mãe pelo
liams, que situa os pontos de descontinuidade entre a cultura tradicional e o exército guatemalteco, e da redenção dessas experiências na formação de
engajamento político – como a decisão de não ter filhos ou a possibilidade sua consciência política, encaminhada pela decisão de aprender espanhol
de matar um ser humano na guerrilha, contrariando frontalmente os precei- (antes ela só falava quiché), pela conversão a um cristianismo sincrético,
tos maias –, ou de continuidade, como a que faz com que o recontar de uma marxista, politizado e, finalmente, pelo seu engajamento na organização
vida que ocorre no testemunho reinscreva de forma deslocada a cerimônia comunitária. O termo consciência, que aparece já no título do livro, coloca
maia de contar a sua própria vida antes da morte.28 Para Williams, tanto a no centro o problema da “conscientização”, no que não deixa de ser uma
descontinuidade quanto a continuidade remetem a uma perda essencial de espécie de Bildungsroman não ficcional, como a crítica tem observado,30
identidade (tradicional), da qual o testemunho consiste no trabalho de luto. ou uma “pedagogia do oprimido” nos moldes de Paulo Freire. Com a dife-
A categoria de “incorporação” (embodiment) passa a ser, para Yúdice e Wil- rença de que enquanto o Bildungsroman ou a autobiografia narram histórias
liams, a topologia destas superposições ou reinscrições de uma cultura na de vida individuais, o testemunho de Menchú, ou o testemunho em geral,
outra, retornos de uma convertidos em progressão na outra, como fórmula narra a construção de subjetividades coletivas, como veremos adiante.
de uma identidade em transformação, que o testemunho tem por missão Lugar comum dos testemunhos, este estatuto coletivo do sujeito é esta-
enunciar. A existência de um princípio emancipatório ao nível comuni- belecido frequentemente logo na primeira frase:
tário/ritual/arcaico, ecoando o de extração moderna (colonial, marxista,
... quero deixar bem claro que não sou a única, pois muita gente viveu e é a
etc.) é condição essencial, pois estabelece uma anterioridade mínima da vida de todos, a vida de todos os guatemaltecos pobres, e procurarei oferecer
prática identitária com relação à colonização, fazendo do sujeito testemu- um pouco minha história. Minha situação pessoal engloba toda a realidade
nhal algo de diferente de uma simples produção colonial (externa, trans- de um “povo”.31
nacional, moderna). A crítica do testemunho se preocupará em identificar
Ou a mineira boliviana, Domitila Barrios de Chungara, que inicia
as repetições e transcrições entre estes dois mundos como antídoto contra
assim o seu testemunho:
a possibilidade de a identidade ser produzida simplesmente de fora, como
corolário da dominação colonial, que fabrica a própria noção de identidade. Não quero que interpretem, em nenhum momento, a história que vou relatar
O que transformaria o sujeito identitário em resíduo da dominação, e não somente como um problema pessoal. O que me aconteceu pode ter acon-
tecido a centenas de pessoas no meu país... É por isso que não quero tão só
25 Gareth Williams.” Translation and Mourning: The Cultural Challenge of Latin American Tes- 29 Antonio Candido, na Formação da literatura brasileira, formulou o conceito semelhante de
timonial Autobiography”, loc. cit., p. 89-97. “dupla fidelidade”, segundo a qual os escritores brasileiros estão atentos ao mesmo tempo às
26 Fredric Jameson. “On Literary and Cultural Import-Substitution in the Third World: The modas europeias e à realidade local (Candido, vol. II, p. 117).
Case of the Testimonio”, em: Georg M. Gugelberger (ed.) The Real Thing, loc. cit., p. 187. 30 Doris Sommer. “No Secrets”. Georg M. Gugelberger (ed.) The Real Thing, loc. cit., p. 148; Fre-
27 George Yúdice. “Testimonio and Postmodernism”. Georg M. Gugelberger (ed.) The Real dric Jameson, “On Literary and Cultural Import-Substitution in the Third World: The Case
Thing, loc. cit., p. 53-57. of the Testimonio”, loc. cit., p. 182; e John Beverley. “The Real Thing”, loc. cit., p. 268.
28 Gareth Williams. “Translation and Mourning: The Cultural Challenge of Latin American 31 Elisabeth Burgos. Meu nome é Rigoberta Menchú, e assim nasceu minha consciência. Tradu-
Testimonial Autobiography”, loc. cit., p. 92-93. ção Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 32.

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relatar uma história pessoal. Quero falar do meu povo. Quero deixar um se “criar condições para que os presos pudessem falar por si mesmos”.36
depoimento de toda a experiência adquirida através de tantos anos de luta Para estes críticos (principalmente latino-americanistas americanos), tra-
na Bolívia, e aportar um grãozinho de areia com a esperança de que nossa
ta-se da possibilidade de constituição de subjetividades excluídas, em bases
experiência sirva de alguma forma para a nova geração, para a gente nova.32
radicalmente diferentes dos sistemas tradicionalmente existentes na Amé-
George Yúdice contrasta este sujeito coletivo ao conceito lukacsiano rica Latina. Assim, a postulação da radicalidade do testemunho partirá
de escritor profissional, representante do “povo todo”, o “mediador” que sempre de uma crítica do sistema intelectual latino-americano como insti-
objetiva a voz popular, universalizando-a, diria Adorno,33 traduzindo a sua tuição de subjetivação37 do subalterno, a partir da recuperação do conceito
materialidade em consciência abstrata. “Lukács não poderia conceber os gramsciano operada pelo Grupo de Estudos Subalternos, composto de
próprios elementos populares como enunciadores da história”, diz Yúdi- pesquisadores frequentemente de origem indiana, trabalhando nos Esta-
ce.34 Este conceito corresponderia por exemplo à função generalizadora dos Unidos.38 O que está sendo visado aqui é nada mais nada menos do que
do herói épico do romance histórico, à la Walter Scott. Ao contrário, o a literatura latino-americana como um todo, e a exclusividade da repre-
próprio sujeito testemunhal coletivo é representativo de sua comunidade, sentação político-literária da nação, que se constitui ao constituir o sujeito
não precisando da mediação do intelectual, que aqui, na figura do gestor, subalterno (ao subjetivá-lo), posicionando-se como seu representante.39
se apaga, e se despersonaliza, transformado em puro veículo para a apre-
sentação do sujeito coletivo. A referência ao “povo”, em ambos os trechos 36 Michel Foucault e Gilles Deleuze. “Os intelectuais e o poder”. Michel Foucault. Microfísica do
poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2000, décima-quinta edição, p. 70.
de testemunho citados acima, não deve enganar-nos quanto à natureza do
37 O conceito de subjetivação é de origem foucaultiana. Para Foucault “subjetivação” é o con-
vínculo entre o sujeito representante e a comunidade que representa. O junto de práticas disciplinares, jurídicas ou morais que constroem o indivíduo. As ciências
que é representado aqui não é uma totalidade social, mas uma totalidade sociais, por exemplo, têm sujeitos como objeto. Sujeitos são assim objetivados em enunciados
que dizem a verdade (“jogos verídicos”) sobre os sujeitos, constituindo-os como tais, e em
relativa, fragmentária, remetendo a identidades locais, o que, para Yúdice, relação aos quais os sujeitos agem, movem-se e se concebem. “Modos de subjetivação” são o
ligaria o discurso testemunhal à noção de pós-modernismo, tal qual ela- conjunto de práticas e regras (técnicas) que definem o sujeito (Michel Foucault. “Foucault”.
Dits et écrits, vol. II, Paris: Gallimard, 2001, II, p. 1452).
borada por Jean-François Lyotard, enquanto postulação de uma crise nas
38 Em Gramsci, a noção de “subalterno” é o sinônimo encontrado para evitar o termo de “pro-
“grandes narrativas” legitimadoras que produziriam os grandes sujeitos da letariado” nos Cadernos do Cárcere, e assim passar pela censura italiana. Encontra-se nas
história (o estado-nação, o proletariado, o partido, etc.).35 “Notas sobre a História da Itália”, no item “História das classes subalternas: critérios metodo-
lógicos” (Antonio Gramsci. Selections from the Prison Notebooks. Edição e tradução: Quintin
O que está em jogo nesse debate é uma crítica da função represen- Hoare e Geoffrey Nowell Smith. New York: International Publishers, 1971, p. 52-54). O con-
tativa na literatura, levada a cabo tradicionalmente pelo intelectual con- ceito é deslocado pelo Grupo de Estudos Subalternos. Veja-se a definição de Ranajit Guha,
cebido como porta-voz do povo, e a estruturação de um novo conceito de introduzindo o Subaltern Studies: Writings on South Asian History and Society, em 1982: “A
palavra ‘subalterno’ no título se refere ao sentido dado pelo Dicionário Conciso Oxford, isto
representação, ligado ao estabelecimento de identidades políticas. Uma é, o que é de ‘nível inferior’. Ele será usado como nome para o atributo geral de subordinação
referência neste passo, que sem dúvida deve ter sido importante para os na sociedade da Ásia do Sul, quer isto seja expresso em termos de classe, casta, faixa etária,
gênero e função, ou de qualquer outra maneira que seja.” (Ranajit Guha e Gayatri Chakra-
críticos recentes do testemunho, me parece ser a conversa entre Foucault e vorty Spivak [eds.] Selected Subaltern Studies. New York: Oxford University Press, 1988, p.
Deleuze, de 1972, em que se desenha o contorno de uma nova relação entre 35. Sobre o subalternismo na América Latina, ver: Latin American Subaltern Studies Group.
“Founding Statement”, in: Beverley, John e Oviedo, José. The Postmodernism Debate in Latin
teoria e prática, e em que Deleuze defende, por exemplo, a necessidade de America. Duham: Duke University Press, 1993).
39 Conforme resume Alberto Moreiras, a crítica do testemunho se situa no contexto de uma
32 Moema Viezzer. “Se me deixam falar…”Domitila, depoimento de uma militante boliviana. São certa exaustão, tanto ao nível literário quanto ao nível das políticas de esquerda, do paradigma
Paulo: Global1ª ed.: 1974; 9ª ed.: 1984, p. 11. nacional e da repartição cultura alta/baixa (mas as duas coisas são a mesma). Exaustão, por
um lado, da alegorização nacional apresentada pelo Boom dos anos 1960 e 70 (Gabriel Gar-
33 Theodor Adorno. “Discurso sobre lírica e sociedade”. Costa Lima, Luis (ed.). Teoria da litera-
cía Marquéz, Julio Cortázar, Carlos Fuentes...), e pós-Boom (Manuel Puig, Luisa Valenzuela,
tura em suas fontes. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975, p. 344.
Elena Poniatowska, Cristina Peri Rossi...), e por outro, do modelo de uma revolução nacional,
34 George Yúdice. “Testimonio and Postmodernism”, loc. cit., p. 43. visualizada pelos intelectuais da cultura como uma revolução predominantemente cultural
35 Ibidem, p. 43-44. e nacional (e não socialista), em que as alianças de classe seriam subordinadas aos interesses

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O paradigma fundacional desta relação vertical, nacional de represen- John Beverley utiliza o exemplo do feminismo para explicar essa nova
tação seria o poema de Pablo Neruda “Alturas de Machu Picchu” (do Canto prática da solidariedade: “A teoria e crítica feminista acadêmica não ‘repre-
Geral), em que o poeta, diante das ruínas da cidade inca, convida os seus senta’ simplesmente uma prática político-legal que ocorre essencialmente
habitantes mortos, metonímia das massas latino-americanas excluídas e fora da universidade; o movimento contemporâneo de mulheres atravessa
silenciadas pela colonização, a “levantar-se e nascer comigo”: a universidade e o sistema escolar”.42 Esta articulação entre movimentos
sociais lá fora e espaços acadêmicos aqui dentro sugere possibilidades de
Eu venho falar por vossa boca morta…
Acudi a minhas veias e à minha boca ação que extrapolam os limites de ambos, estabelecendo uma linha trans-
Falai pelas minhas palavras e meu sangue.40 versal43 que atravessa os segmentos estanques permitindo novas articula-
ções entre teoria e prática. O modelo mais próximo para a crítica à estru-
Note-se a circularidade característica do processo de subjetivação/ tura clássica de representação me parece vir do tratamento das questões
objetivação, da fala/boca, de forma que, por um lado, é o poeta que fala de subalternidade, pelo que se convencionou chamar de Estudos Pós-colo-
pela boca morta (“vossa boca”), e por outro são as massas silenciadas, niais. A questão central aqui é a relação intrínseca entre o projeto nacio-
mortas, que falam pela boca do poeta (“minha boca”). A redenção da nalista hegemônico e a exclusão do subalterno. Esta exclusão é “necessá-
morte diante do cenotáfio funciona como uma “transfusão” que faz a voz ria” para que se viabilize o processo de independência (i.e., a separação da
circular nas “minhas veias”, e no “meu sangue”. O resultado é a constitui- metrópole), já que as (ex-)colônias acedem à nacionalidade emprestando
ção do sujeito poético latino-americano (“eu venho...”), que se configura a forma nacional à metrópole. A exclusão do subalterno é portanto uma
ao outorgar-se a vocação de ser o órgão da voz dos excluídos. A crítica a condição para que a resistência ao imperialismo seja coerente, já que não
este processo de autoconstituição recorrerá às categorias de autoria/auto- há nenhuma resistência organizada no início da construção do processo
rização/autoridade, segundo a qual a autoria (do sujeito latino-ameri- de independência. Neste contexto, o subalterno consiste numa metáfora
cano) só se dá mediante sua autorização como porta-voz dos excluídos, e ou alegoria da nação.44 A relação configurada pela sinédoque (ou prosopo-
que lhe confere a autoridade enunciativa. A esta estrutura representativa peia, dirá Moreiras)45 estabelecida por Neruda entre populações indígenas
vertical (Neruda fala a partir das alturas de Machu Picchu), típica do inte- silenciadas e sujeito poético nacional (ou latino-americano) oblitera ou
lectual progressista de esquerda, opõe-se uma estrutura enunciativa hori- escamoteia, por meio de um processo mágico (transfusional), as diferen-
zontal, de articulação direta com grupos sociais subalternos, segundo a ças radicais que ela pressupõe, suturando a fissura constitutiva essencial
prática da solidariedade, e ligado à possibilidade de emergência de identi- que a estrutura. O outro em mim, ou eu no outro – eu falo pelo povo ou
dades minoritárias. Os modelos destas práticas são, por exemplo: a peda- o povo fala através de mim – constituem processos reversíveis e comple-
gogia de Paulo Freyre, ou as Comunidades de Base ligadas à Teologia da mentares, baseados no intercâmbio e absoluta substitutibilidade metafó-
Libertação,41 o movimento feminista, ou os “novos movimentos sociais” rica entre povo e eu. Spivak diria, jogando com a polaridade retórica, sen-
como as organizações das Madres de la Plaza de Mayo, na Argentina, o tido próprio versus sentido figurado, em glosa do Derrida de “A mitologia
Comitê de Unidade Camponesa de Rigoberta Menchá, o ativismo gay de branca”: a construção figurativa, trópica (ou tropical, poderíamos dizer) de
ACT UP, etc.
um sujeito nacional (ou continental) é baseada na apropriação de um outro
como emblema (figura) de si mesmo, tornando-o próprio, ou seja, “rasu-
de uma revolução em bases nacionais (Alberto Moreiras, “The aura of testimonio”, loc. cit., p.
193). A crise do modelo da cultura alta/baixa que a alegorização nacional procurava sintetizar
ocorre no bojo da multiplicação de movimentos sociais na América Latina, que tornam a
proposição da política identitária uma alternativa possível no mundo pós-guerra fria. 42 John Beverley. Against Literature, loc. cit., p. 18.
40 Apud John Beverley, Against Literature, loc. cit., p. 16-17; George Yúdice, “Testimonio and 43 Félix Guattari e Toni Negri. Communist like us. New York: Semiotext(e), 1990, p. 121-130.
Postmodernism”, loc. cit., p. 42; Alberto Moreiras. “The aura of testimonio”, loc. cit., p. 201-204. 44 Gayatri Spivak. In Other Worlds. Essays in Cultural Politics. New York: Routledge, 1988, p. 244.
41 George Yúdice, 1992, “Postmodernity and Transnational Capitalism”, loc. cit, p. 208-209. 45 Alberto Moreiras. “The aura of testimonio”, loc. cit., p. 200.

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rando” a (“esquecendo-se” da) absorção figurativa, e desta forma natura- O “eu” testemunhal nestes livros não presume nem nos convida a identificar-
lizando-o. Na construção do nacional, o subalterno é o tropo da nação.46 nos com ele. Somos demasiado estranhos a ele, e não há pretensão aqui de uma
experiência humana universal ou essencial. É por isso que, ao final de uma
Contra isso, as teorias do testemunho elaboram uma nova forma de
longa narrativa em que Rigoberta nos contou tanto, ela nos lembra que estabe-
política centrada na coalizão solidária de identidades diferentes, ou con- leceu limites que precisamos respeitar. A reivindicação de que ela é representa-
traditórias, mas que se entrerrespeitam, num “sujeito plural” que produz tiva ajuda a explicar porque, como os autobiógrafos, ela usa o pronome singular
identidades relacionais e não identificatórias, metonímicas e não metafó- “eu”, e não “nós”. Ou seja, ao mesmo tempo que ela recusa a intimidade com o
ricas, a partir da proposição de um eu (o sujeito testemunhal) que radi- leitor – já que a intimidade convida à identificação e talvez a nossa substitui-
ção imperialista dela como protagonista da história – ela também se preocupa
calmente recusa a identificação. Trata-se de um tema básico da crítica do em não substituir a sua comunidade com um gesto totalizante. Ao invés, a sua
testemunho: a diferença entre as narrativas em primeira pessoa que pos- singularidade consuma a sua identidade como extensão da coletividade. O sin-
tulam uma experiência individual e particular, e correspondem às formas gular representa o plural, não porque ele substitui ou compreende o grupo,
literárias hegemônicas da autobiografia e do Bildungsroman, e a formação mas porque a falante é uma parte indistinguível do todo. Em termos retóri-
cos, cujas consequências políticas devem estar evidentes neste ponto, há aqui
de uma subjetividade coletiva do testemunho. Ninguém melhor do que
uma diferença fundamental entre a metáfora da autobiografia e da narrativa
Doris Sommer descreve esta reivindicação de uma radicalidade formal do heroica em geral, que propõe uma identidade-por-substituição, de forma que
testemunho latino-americano. Ela começa a sua reflexão se interrogando um significante (superior) substitui o outro (eu substitui o nós, o líder substitui
sobre os inúmeros pontos no testemunho de Rigoberta Menchú em que o seguidor, Cristo substitui o fiel), e a metonímia, um movimento lateral de
esta se recusa a revelar certos detalhes sobre fatos ocorridos, sonegando identificação-através-da-relação, que reconhece as possíveis diferenças entre
“nós” enquanto componentes de um todo descentrado. É aqui que nós leitores
informações a Elizabeth Burgos-Debray, e a nós leitores, explicitando uma entramos, convidados a estarmos com a falante, ao invés de a sermos.48
reserva para conosco.47 Rigoberta está completamente consciente (este é
talvez um dos sentidos mais fortes do tema da conscientização no livro) Na leitura do testemunho subalterno, assim como em qualquer narra-
dos processos insidiosos de constituição hegemônica de identidade a par- tiva, sobretudo as em primeira pessoa, se desdobra um drama imperialista
tir da identificação, do papel essencial que a exotização ou fetichização ou colonial em miniatura. A identificação (sentido preciso da mimese ou
de sua própria identidade pode desempenhar no testemunho. Uma longa imitação)49 é o canal através do qual se estabelece o domínio do eu heroico e
passagem de Doris Sommer, a seguir, detalha a novidade política de uma admirável (a ser imitado) enquanto ideal do eu, nas formas literárias hege-
construção identitária baseada na reserva e na resistência representada pela mônicas em primeira pessoa, ou no império fascinado com o outro-subal-
“recusa à intimidade com o leitor”: terno do leitor do testemunho. O processo identitário é sempre o mesmo e
consiste essencialmente na substitutibilidade metafórica que faz com que
46 As ressonâncias de uma problemática deste tipo para o Brasil são notáveis, e poderiam levar ao
estudo de uma retórica do nacional, como figuração (prosopopeica) do subalterno. Desde os a figura (heroica) nos substitua imaginariamente, no momento em que
exemplos mais óbvios, a Iracema da América (de José de Alencar a Chico Buarque), passando nos colocamos (empaticamente) no lugar do protagonista – procedimento
por Macunaíma, em que o subalterno indígena figura o nacional; até o sertanejo de Euclides
da Cunha ou Guimarães Rosa, em que a figura do Brasil passa a aparecer em seu interior; pedagógico da Paideia grega, da imitatio latina (e Christi), e procedimento
até o negro de Gilberto Freyre, e a generalização do engenho nordestino como figuração do voyeurístico imperial da antropologia, da colonização e da leitura testemu-
Brasil como um todo; até o samba carioca como música nacional, no nacional-popular (ver
aqui mesmo o capítulo 4, “O encontro e a festa (Hermano Vianna)”) – em todos estes casos, o
nhal. Contra isso, todo o cuidado é pouco, e Rigoberta estrategicamente
subalterno é o tropo da nação. evita, recusa, subtrai informações e nisso contraria o nosso mais recôndito
47 Ela se recusa, por exemplo, a dizer-nos o seu nahuatl, ou nome ritual, ou então: “O indígena desejo de saber. Senão, pergunta-se Sommer, como se explicaria que estas
tem sido muito cuidadoso com muitos detalhes da própria comunidade e não é permitido,
por parte da comunidade, falar sobre muitas coisas de detalhes do indígena. E eu mais ainda,
manifestações encenadas, comuns em entrevistas a informantes na antro-
porque chegaram teólogos que viram e que tiram outra concepção do mundo indígena. Então,
para o indígena é muito doloroso que um ladino [pessoas de origem europeia, de “latino”] use 48 Doris Sommer. “No Secrets”. Georg M. Gugelberger (ed.) The Real Thing, loc. cit., p. 146.
roupa indígena. É um escândalo para o indígena. Tudo isso tem contribuído para que a gente 49 Ver a respeito Philippe Lacoue-Labarthe. “Tipografia”. Imitação dos modernos. Tradução:
guarde muitas coisas e que a comunidade não queira que se conte isso” (Burgos, p. 41, 42). João Camillo Penna. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

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pologia, não tenham sido omitidas na edição do testemunho? Não, a recusa É esta a forma antimimética, irrepresentável da identidade, solicitada
reticente consiste numa decisão do sujeito testemunhal mantida e confir- pela política identitária testemunhal. Na visão de Sommer ela, de fato, em
mada pela editora do testemunho. seu nível mais profundo e radical, não proporia nenhuma figura, modelo,
Essa recusa a ser absorvida (por nós) se complementa com uma recusa ou imagem. É no segredo, na recusa de intimidade encenada explicita-
em absorver (a sua comunidade). A noção de representatividade explica o mente por Rigoberta que repousa o segredo da identidade, e da identi-
uso da primeira pessoa do singular e de um sujeito coletivo-comunitário, dade como segredo não-absorvível pelo outro. Não é apenas que todos
mas não deve ser entendida como substituição totalizante dos outros, do são outros – forma ainda simplória e individualizada da alteridade, na for-
grupo. O formato estrutural do testemunho que contém um interlocutor mulação de Rimbaud, passível de assimilação pela estrutura especulativa
implícito, e a presença inscrita de um “você” dentro da textura narrativa, alienação/desalienação, outro/mesmo – mas que eu-é-com, já que o eu só
solicitado pelo “eu” que conta a sua verdade, remete – a nível da comu- existe na comunidade de outros não iguais a eu, composta a partir de irre-
nidade que representa – à existência de outros representantes comunitá- dutíveis diferenças, e que só pode existir enquanto forma intersticial entre
rios.50 O “eu” é uma singularidade plural, por assim dizer. A sua relação diferenças não essenciais.
com o grupo pressupõe diferentes estratos identitários, da mesma forma Um dispositivo análogo pode ser percebido no testemunho judaico (cf.
como funcionamos cada um em diferentes estratos e registros. Rigoberta o capítulo 1, “Sobre viver (Giorgio Agamben e Primo Levi)”). Ali também se
é mulher, indígena, marxista, cristã, etc.; todos estes registros remetem a trata de estruturar um eu pela narrativa, o eu testemunhal, espúrio e inau-
grupos e multiplicidades contidas no sujeito, e a relação com o grupo é têntico (nas palavras de Primo Levi), rigorosamente não representativo ou
uma relação entre multiplicidades. A narradora nos interpela,51 da mesma irrepresentável, mas experiencial, fissurado internamente, múltiplo e não
forma como interpela a gestora do testemunho. Não podemos nos identifi- unificado. Não sou propriamente eu, que estou aqui, que falo pelo morto,
car com ela, mas nos identificamos com o seu projeto e com a “comunidade mas ele, a “autêntica testemunha”, que deveria estar aqui depondo, que teria
política a qual ela pertence”. A narradora não reivindica a sua diferença mais razões do que eu para estar aqui. Em ambos os casos há uma operação
especial, não se propõe como grandiosidade heroica a ser imitada e/ou mimética de substituição, fala-se “no lugar” de alguém, por procuração. Mas
negada – ela solicita a nossa cumplicidade. Não podendo ser ela, e con- é a comunidade dos mortos, que não está aqui, quem na verdade fala, não
sequentemente não podendo imaginariamente substituí-la, diz Sommer, falo propriamente em “nome dela” – com que direito o faria? –, falo quando
“o mapa de identificações possíveis se espalha lateralmente ao longo do muito em meu próprio nome, conto a minha experiência. A inversão do
texto”. Assim como a comunidade é composta de diversos papéis e diferen- paradigma da representação é completa. Aquele que fala não subsume ou
tes representantes, nós também nos sentimos impelidos a ocupar um outro unifica a comunidade de mortos, que por direito deveria estar aqui, mas
papel qualquer na comunidade, e não o do protagonista. A identidade que explicita as suas diferenças internas, diversifica-as, conta a sua experiência,
se constitui desta maneira evoca uma pluralidade descentrada de códigos, sublinhando o abismo abissal de onde parte: o direito à vida dos que morre-
todos limitados e intersticiais, todos respeitando a possibilidade de existir ram, e o de sua sobrevida, como condição do testemunho. Aqui tampouco
um outro (código) diferente de nós (do nosso). Esta formação identitá- há sinédoque ou prosopopeia, como no caso do poema de Neruda: “Eu
ria produz uma imagem sem-imagem de uma aliança metonímica entre venho falar por vossa boca morta”. O sujeito testemunhal não se funda ver-
diferentes identidades, coalizões de diferentes grupos, que se constroem ticalmente fundindo-se às vozes (às bocas) que são o veículo para o que fala,
relacionalmente, na articulação com os outros grupos. mas situa-se horizontalmente entre aqueles que morreram, cuja experiência
única e insubstituível ele narra junto com a sua, e que o testemunho enfeixa.
50 Doris Sommer. “No secrets”, loc. cit., p.152. Não se deve esperar uma homogeneidade ou consenso entre os teóricos
51 O conceito de interpelação vem de Althusser, e define o modo pelo qual indivíduos concretos
são constituídos ou “recrutados” como sujeitos no que consiste a arma principal da ideologia.
do testemunho com relação a seu objeto. Seria inclusive contrário à própria
Sobre esse conceito, ver o capítulo 5, “Marcinho VP como personagem”. perspectiva teórico-prática que o testemunho abre. O crítico uruguaio Hugo

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Achugar, por exemplo, é profundamente cético quanto às possibilidades Voltamos à Paideia grega, e à imitatio latina, dos exemplos. A relação
radicais de constituição subalterna identitária, tal qual construída por Doris de representatividade entre aquele que presta o testemunho e a comuni-
Sommer, entre outros. (O fato de Achugar não ser americano, e de que, de dade que representa, longe de ser respeitosa, camufla escolhas e privilegia
uma maneira geral, as vozes céticas sobre a possibilidade do estabelecimento certas vidas sobre outras, propondo-as como exemplo. A experiência do
de uma função identitária a partir do testemunho tampouco o sejam, parece sofrimento ligada à etimologia do testemunho corresponde a uma função
confirmar o diagnóstico de uma distribuição político-teórica em bases geo- modelizante e moral, a função da vítima, numa passagem sutil entre “dar fé
políticas. Embora suspendendo por ora qualquer resposta definitiva a este de algo” e “sofrer pela fé” que se sente. Testemunha-se sobre este sofrimento,
respeito, não resta dúvida, no entanto, de que os campos teórico-práticos dos e é este o seu interesse moral. O sujeito testemunhal não é determinado por
países que compõem a América Latina são profundamente diferentes dos uma radicalidade democrática, de cumplicidades laterais, alternâncias de
da América do Norte, apresentando contrastes muitas vezes irredutíveis.) papel e posição, mas corresponde à apresentação de uma figura ou modelo
Para Achugar, a política solidária não estabelece uma forma irrecusável e privilegiado e a um interesse político específico. O testemunho utilizado
não absorvível de identidade comunitária, entendida como uma comuni- pelas políticas identitárias não deixa de produzir seus próprios modelos e
dade de diferentes representantes e diferentes representações. A proposição ideais do eu, configurar sua própria visão de uma comunidade a ser cons-
que ele vai atacar é precisamente a da representatividade do sujeito coletivo truída pelo testemunho, e imitada pela comunidade de seus leitores. O pro-
testemunhal, e seu suposto “respeito” pelo(s) outro(s representantes). Seu tocolo do testemunho supõe um procedimento de autorização: sua origem
ponto de partida são os relatos tradicionais (hegemônicos, diria Sommer), do oral o autoriza, dando-lhe um formato documental de verdade; sua relação
tipo das Vidas Paralelas de Plutarco, que determinam modelos de conduta, com um sujeito real o autoriza como modelo comunitário; sua relação insti-
exemplarizando certas experiências e as propondo como narrativas de vida. tucional (com o sistema universitário, intelectual, na figura do gestor, da edi-
A proposta de uma política solidária vai também escolher e privilegiar seus tora, do grupo cultural ou político que se reclama do testemunho) o autoriza
modelos identitários e os expor como exemplo. Um trecho de Achugar, que como veículo político. Daí a impossibilidade de um testemunho apócrifo,53
sugestivamente traça a própria história do testemunho, será suficiente aqui: o que simplesmente o converteria em ficção, e portanto não testemunho.
Introduzindo a dimensão da escrita inexistente nas colocações de seus
O “animar-se” a dar um testemunho tem sua origem ou sua própria história
na história etimológica do termo; etimologia que é também a história do tes- interlocutores, Gareth Williams retoma as primeiras linhas dos testemu-
temunho. Originalmente “testemunho” vem do grego “mártir”, “aquele que dá nhos de Rigoberta Menchú e Domitila Barrios de Chungara, citadas acima,
fé de algo”, e supõe o fato de se haver vivido ou presenciado um determinado e repensa de maneira rigorosa o problema da representação do coletivo.
fato. Entre os gregos, de fato, o uso de mártir conota sofrimento ou sacrifí- O sujeito coletivo não é um mero veículo transparente, uma simples siné-
cio, e atende basicamente ao fato de ser fonte de primeira mão. Ao passar ao
latim, e sobretudo com o advento da era cristã, mártir adquire o significado doque da comunidade que representa – o testemunho não é um simples
hoje vigente daquele que dá testemunho de sua fé e sofre ou morre por isso. registro referencial de práticas sem qualquer resíduo, como às vezes Bever-
Aqui é pois quando o termo adquire o sentido de conduta exemplar. A vida ley parece crer, mas se constitui na e pela escrita, num gesto radicalmente
do mártir é oferecida em narração biográfica como um exemplo a respeitar e ambíguo, que ao mesmo tempo em que reata o vínculo essencial do sujeito
eventualmente a seguir; quer dizer, a narração de sua vida é oferecida como
com a comunidade a que pertence, individualiza-o irremediavelmente e
uma conduta moral exemplar e exemplarizante. A relação testemunho-mártir
destaca o aspecto moral exemplarizante e mostra que o relato testemunhal de separa-o dela. No mesmo momento em que Menchú ou Barrios enunciam
uma dita vida aspira a cumprir, e de fato funciona desta forma, uma função suas próprias vidas como “vida de todos”, quando pedem que o que vão
exemplarizante em uma determinada comunidade.52 dizer não seja interpretado “somente como problema pessoal”, elas instau-
ram uma separação ou uma fissura radical entre esta experiência coletivo-
52 Hugo Achugar. “Historias paralelas/historias ejemplares: la historia y la voz del otro”. John
Beverley e Hugo Achugar (eds.). La voz del otro: testimonio, subalternidad y verdad narra-
tiva, loc. cit., p. 59. 53 Idem, p. 64.

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comunitária e o discurso representativo que veiculam, silenciando (mais impossível, mas impossível de ser evitado. A questão de fundo que Gareth
uma vez) aquela mesma comunidade a que pretendem dar voz. Isto porque Williams procura pensar aqui é a de um processo de modernização em
a transposição escrita do discurso oral comunitário – submetendo a fala à bases democráticas, progressistas (e não conservadoras, como a que ocor-
cadeia significante54 e introduzindo no sujeito a falta, como diria Lacan, da reu na América Latina), e para isso ele utiliza o modelo freudiano do traba-
sua própria comunidade e a comunidade como falta – repete e atualiza o lho de luto, como incorporação essencialmente ambivalente do objeto da
gesto colonial que troca a palavra falada pela palavra escrita, que faz calar a perda, relido como perda tanto do projeto de modernização como da cul-
língua local trocando-a pela língua colonial (o espanhol) – e, assim fazendo, tura tradicional, do “eu” autóctone como do colonizado e do colonizador,
reinscreve o primeiro assassinato em que consistiu o encontro entre as duas trabalho de luto que se consumaria na incorporação (embodiment) destes
culturas e atualiza a série de assassinos posteriores que se seguirão, em que mortos (destas mortes) no discurso emancipatório testemunhal.
se resume afinal de contas a colonização. Mas esta atualização ocorre agora Partindo de outro ângulo, Alberto Moreiras baseia-se na noção de
com sinal invertido: o sujeito testemunhal incorpora o inimigo, introjetando “latino-americanismo” – cunhada a partir da de “orientalismo” elabo-
a colonização e o colonizador, e transformando-a em enunciação da comu- rada por Edward Said, e ecoando o programa estabelecido por Enrico
nidade, que ele enuncia exatamente no momento em que dela se separa. A M. Santí57 – para fazer uma crítica contundente à teoria do testemunho
produção discursiva aliena o sujeito de sua comunidade, tornando Menchú enquanto construção disciplinar discursiva da América Latina. O “latino
e Barrios outras do que elas eram, introduzindo entre elas e suas comunida- -americanismo” no fundo continuaria repetindo de maneira sintomática
des respectivas a fissura da diferença da escrita, ao incorporar o discurso do o gesto fundador (fetichizante, exotizante) de Neruda, ao falar pelos que
colonizador,55 mas é exatamente ao se perder irremediavelmente enquanto não falam, já que, contrariamente ao que dizem os latino-americanistas
tal (enquanto sujeito idêntico a si mesmo), ao se perder o “eu” originário de – precisamente porque eles o dizem – e às expectativas da suposta obrigato-
uma cultura autóctone, que a comunidade retorna, na escrita, nas fissuras riedade (ética) de que uma prática solidária seria a única resposta possível
do discurso proferido, na sintaxe imperfeita do testemunho... solicitada pela leitura do testemunho, assiste-se a uma proliferação discur-
O testemunho enquanto escrita reinscreve, traduz e transcreve o siva impressionante e a nenhuma prática. “Minha proposta é a de que a
memorial dessas mortes, pautando-se por uma memória interna dos assas- solidariedade, embora ela possa ser de fato representada, é um fenômeno
sinatos (as mortes de agora lembram as mortes da época da colonização), afetivo de natureza não representativa. Enquanto tal, ou bem ela se mani-
mas também da resistência histórica nativa (o guerrilheiro nicaraguense festa como prática ou então ela não é por definição nada além da falsa cons-
Omar Cabezas ouve a história da luta de Sandino, o que o inspira a seguir o ciência epigonal de uma bela alma hegeliana”.58 Teríamos então no máximo
seu caminho), e ao reconfigurá-las como lamentação realiza o trabalho de
luto por estas perdas, transformando-as num ato de resistência.56 A refe- 57 Santí lança no final de seu “Latinamericanism and Restitution” um programa de pesquisa:
rência que trabalha em filigrana o texto de Gareth Williams é o Derrida realizar “a arqueologia do discurso que chamei de latino-americanismo”, programa este teria
como pré-requisito essencial o “desnudar-nos [aos latino-americanistas] completamente da
da “Farmácia de Platão”, e o problema do parricídio operado pela escrita pretensão à superioridade material ou de fato moral de que a nossa sociedade [a norte-a-
– enquanto técnica que assassina o logos oral da presença, mumificando-a mericana] reforça a cada esquina por meios vários, inclusive pela mídia” (Enrico M. Santí,
“Latinamericanism and Restitution”, loc. cit., p. 95). Salvo engano Alberto Moreiras aceitou o
e fixando-a como ausência. Daí os temas da modernização e da perda do desafio e iniciou o trabalho de realizar uma tal arqueologia, por exemplo, em “A Storm Blo-
objeto original, ou do “eu” autóctone, que não deve ser lido com facilidade wing From Paradise”, onde insere o latino-americanismo (americano, mas não existe outro)
no contexto dos “area-studies” (estudos de área), iniciados no pós-guerra, e portanto em um
eufórica como se tem a tendência de ler Derrida – mas como lamento, luto
projeto de saber/poder geopolítico. A postulação anti-hegemônica da crítica latino-ameri-
canista atual deve ser lida a partir desta determinação inicial essencialmente neo-colonial,
54 Antonio Vera León. “Hacer hablar: la transcripción testimonial”, loc. cit., p. 188. como uma contradição interna (Alberto Moreiras, “A Storm Blowing From Paradise: Nega-
55 Gareth Williams. “Translation and Mourning: The Cultural Challenge of Latin American tive Globality in Latin American Cultural Studies” in: Cânones Contextos. 5˚ Congresso ABRA-
Testimonial Autobiography”, loc. cit., p. 88. LIC-Anais. Volume 1. Rio de Janeiro: ABRALIC, 1997, p. 122).
56 Idem, p. 94. 58 Alberto Moreiras. “The aura of testimonio”, loc. cit., p.198.

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uma poética da solidariedade e não uma prática da solidariedade, uma dos pelo antropólogo James D. Sexton.60 Os paralelos e contrapontos com
poética de identidades e não uma prática identitária. A extraliterariedade, relação ao testemunho de Rigoberta Menchú são tantos que tornam Ujpán
que diferencia o testemunho da literatura concebida como discurso disci- uma espécie de seu duplo invertido. O período (1972-1983), os temas, os
plinar, e que define a novidade radical do testemunho como representação acontecimentos cobertos pelos diários são mais ou menos os mesmos que
não mimética, verdade irrepresentável de uma prática, foi substituída por os cobertos por ela. No entanto, Ujpán parte de uma visão fundamental-
uma literariedade crítica exacerbada, que retorna com força reduplicada, mente oposta: “enquanto Menchú é partidária de uma mudança social, e
sob a forma de uma proliferação crítica fantástica erigida em torno de uma de uma aliança indígena-ladina para o futuro dos maias, Ignacio parece
forma supostamente não literária. estar a favor de uma assimilação indígena dentro do sistema capitalista”;61
Ao invés do planejado desbancamento, de uma vez por todas, do apa- enquanto ela se vê como sujeito de uma experiência coletiva, Ujpán, quem
rato ideológico da literatura latino-americana, assistiríamos a uma forma sabe não menos representativo que ela, enuncia no entanto o ponto de vista
insidiosa de ideologia – a mesma sob outra forma, uma ideologia da crítica de um estrato de “indígenas mais individualizados e ladinizados”; enquanto
do testemunho, que falaria por ele, preencheria suas lacunas e silêncios, Menchú presta um depoimento oral, Ujpán é letrado, e escreve o seu pró-
criando um discurso sobre a abolição do discurso, uma poética da pós-lite- prio testemunho. Os paralelos continuam. Com tudo o que sabemos – e
ratura, ou seja, uma nova política literária. E assim fazendo, no fundo, ter- já sabíamos no auge da crítica testemunhal – sobre o que se desenrolou
se-ia simplesmente alimentado do testemunho no momento de exaustão desde a insurgência indígena guatemalteca – a contrainsurgência militar, o
do parâmetro crítico estabelecido pelo boom literário hispano-americano fracasso da revolução indígena –, parece claro, como escreve Zimmerman,
dos anos 1960 e70, e da proposta de uma literatura “alta” (mas os dois ter- que o testemunho de Ujpán, que representa um setor mais ao centro do
mos são sinônimos) de formato vanguardista-modernista, e de certa forma espectro político, é de fato mais representativo do que o de Menchú, que
permitindo a este modelo uma sobrevida, ou pelo menos uma sobrevida do representa as possibilidades radicais de mudança social. Quem sabe Ujpán
projeto crítico. Ter-se-ia desta forma autorizado e apropriado da forma tes- possa nos ensinar mais sobre o que aconteceu na Guatemala nos anos 1980
temunhal para se constituir como representação legítima de uma cultura do que Menchú? No entanto, não resta dúvida sobre as preferências da crí-
subalterna, que caberia a eles (os latino-americanistas) ventriloquamente tica. Zimmerman cautelosamente opõe a seu colaborador frequente, John
enunciar, e assim fazendo, provar mais uma vez, contra o que eles próprios Beverley, uma visão menos eufórica e mais modesta do testemunho:
diziam, a tese famosa de Spivak que responde negativamente à pergunta
O testemunho pode muito bem apresentar todos os sintomas de forças pro-
“Can the subaltern speak?” (“Pode o subalterno falar?”).59 fundas de transformação da nação ou de um modo de produção, como o
argumenta John Beverley...; mas dado o complexo jogo de forças nacionais
*** e internacionais, não pode necessariamente significar uma transformação
decisiva e definitiva.62
Retomemos por um momento a crítica de Achugar sobre a exem-
plaridade testemunhal e um certo heroísmo modelizante que aí opera, Zimmerman faz referência aqui às teses provocadoras de Beverley
na eleição de certos testemunhos em detrimento de outros. Poderíamos, sobre as relações entre modo de produção, lutas sociais e forma literária, que
dessa forma, tomar como contraexemplo – que oporíamos aos testemu- partem de desdobramentos clássicos de Marx sobre a acumulação primitiva
nhos exemplares eleitos pelos críticos do testemunho – as observações de e a mercadoria, e do Lukács da Teoria do romance e do Romance Histórico.
Marc Zimmerman sobre os diários do índio guatemalteco Ignacio Bizarro
Ujpán, Son of Técun-Umán (1981) e Campesino (1985), traduzidos e edita- 60 Marc Zimmerman. “El otro de Rigoberta: Los testimonios de Ignacio Bizarro Ujpán y la
resistencia indígena en Guatemala”. John Beverley e Hugo Achugar (eds.). La voz del otro:
testimonio, subalternidad y verdad narrativa, loc. cit., p. 230.
59 Gayatri Spivak. “Can the Subaltern Speak? Cary Nelson, e Lawrence Gorssberg (eds.) Mar- 61 Idem, p. 230-231.
xism and the Interpretation of Culture. Urbana: University of Illinois Press, 1988. 62 Idem, p. 1992.

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Toda a abordagem de Beverley é orientada por uma analogia-mestra, entre Lazarillo se apega ao desejo burguês de fazer-se a si mesmo, contrariando
dois momentos de “transição”, ou de “crise”, definidos por uma mudança o determinismo escolástico, mas não consegue, no ambiente conservador
radical de modo de produção: o século XVI (do feudalismo ao capitalismo) e que é o seu, uma mudança de status significativa. A sua recusa em aceitar
o século XX (do capitalismo ao socialismo [?]), numa estrutura circular em as carreiras à sua disposição (criado de cardeal ou de burocrata), perma-
duas pontas, unidas por uma continuidade problemática: a ocupação colo- necendo nas zonas fronteiriças da sociedade, torna-o um herói, por esco-
nial de espaços e povos que subsistem ou resistem à margem do império. lha (nesse sentido fiel ao critério da liberdade burguesa) da fronteira dos
Resumindo a tese desenvolvida ao longo de dez anos, em uma série estratos sociais. As polêmicas em torno da significação literário-histórica
de textos afins: o “herói problemático”, versão (transcendental, imaginária, do Lazarillo, em sua profunda ambiguidade ideológica, têm por sua vez
ideológica) do sujeito burguês, protagonista do romance como “épica da como substrato um duplo aspecto extraliterário: a “discussão política sobre
alienação”, formaliza uma prática específica, a experiência de marginaliza- a possibilidade e a direção da mudança social no presente”,66 e o registro
ção social (daí o fato de ele ser preferencialmente “o louco, o delinquente, “na vida”, no limite das possibilidades mimético-representativas, dos efei-
o órfão, o mendigo”) deste excedente constituído em relação ao mercado tos do programa capitalista. Note-se, de antemão, o foco de Beverley: os
de trabalho,63 segundo o roteiro marxiano da acumulação primitiva. Ora, interstícios do aparato mimesis-capital, entendido como duas faces do
o protótipo de Don Quijote é o pícaro, protagonista do romance picaresco mesmo sistema. O que torna o objeto da mimésis paradoxal – daí seu inte-
do século XVI, e exemplarmente o Lazarillo de Tormes, herói do romance resse – enquanto registro (apenas liminarmente mimético) precisamente
anônimo em primeira pessoa (La vida de Lazarillo de Tormes, y de sus for- daquilo que excede ao aparato mimético, e ao modo feudal-capitalista. A
tunas y adversidades [1554]), que apresenta de forma aguda a experiência representação é ao mesmo tempo o que decide sobre o destino dos corpos,
da pobreza e da marginalidade social de sujeitos convertidos em resto do assinalando-os de maneira determinada, quanto o registro do efeito des-
capital na época do seu nascimento – sujeitos cujas vivências são inabsor- tas assinaturas “na vida humana”, ou ainda o material bruto da prática (a
víveis pelas formas medievais de representação, e que portanto requerem a “mudança social”) ambiguamente literária e extraliterária.
criação de uma nova forma: o romance. É essa prática que será em seguida O interesse da tese de Beverley nesse passo é portanto estabelecer uma
contida ou subsumida no dialogismo de Don Quijote, que transcendenta- relação complexa, biunívoca (não de causa e efeito) entre o nascimento
liza, por assim dizer, um problema coletivo (o da população que fica de fora da forma-romance (contemporânea da forma-estado, e da forma-sujeito,
do modo de produção feudal e não fora absorvida pelo capitalismo), vivido todas versões da forma-mercadoria da primeira parte de O Capital), e as
como destino solitário (subjetivo, heroico). disputas sociais engendradas pelo excedente produtivo da acumulação
O que faz a modernidade do Lazarillo, no entanto, o “primeiro primitiva, restabelecendo para os estudos da literatura e da política uma
romance moderno” ou o “primeiro romance burguês”, e já uma espécie de bifrontalidade ontológica dos movimentos sociais e do plano mimético,
testemunho, é um duplo sucesso mimético, duas faces da representação do com o desdobramento desta zona liminar da prática extraliterária. Ora, o
modo de produção capitalista: primeiro, é o primeiro texto que representa corolário da acumulação primitiva é a colonização, o que prepara a segunda
o efeito da implantação do capitalismo na vida humana; por outro lado, e parte da tese histórica de Beverley. Trata-se da exportação, para as colônias,
em sentido inverso, representa a frustração deste mesmo “impulso capita- entre outras benesses, do modelo do capital, do genocídio e da ocupação
lista na Espanha”,64 Lazarillo sendo já o “proletário fracassado”,65 ou o tra- imperial, assim como da literatura, configurando uma continuidade entre
balhador que não foi, num mundo já essencialmente burguês e moderno. o século XVI e XX, e abrindo o momento contemporâneo.
A analogia contemporânea se explica por si só: o testemunho seria
63 John Beverley. Del Zararillo al sandinismo. Minneapolis: Prisma Institute, 1987, p. 50, 55. hoje em dia este registro bruto (liminarmente mimético) da prática não
64 Ibidem, p. 63.
65 Ibidem, p. 60. 66 Ibidem, p. 63.

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de um herói problemático, mas de uma situação coletiva problemática,67 e interessa aqui mais de perto, o da literatura, ela pode servir a propósitos
que, exatamente como a picaresca no século XVI,68 tem uma inserção com- progressistas (a picaresca, o testemunho), ou até mesmo revolucionários,
plicada no corpus literário – é considerado um gênero extraliterário, ou como veremos, ou a um uso conservador (como a exportação colonial da
não literário. Os traços de voz testemunhal no romance contemporâneo disciplina da literatura para a América Latina, o Boom dos anos 1960, etc.).
latino-americano, variando em graus de apropriação, e de matizes políticos O seguinte trecho retoma em essência toda a tese:
tanto à esquerda quanto à direita, no boom e pós-boom, apontam para um
O testemunho guarda a mesma relação com a novela moderna do que a
trabalho formal análogo ao que a picaresca e o romance burguês operaram novela picaresca com os gêneros de narrativa idealista do Renascimento. Se
no século XVI e XVII. Beverley enumera as muitas semelhanças entre a pica- o romance teve uma relação especial com o desenvolvimento da burguesia
resca e o testemunho (narração em primeira pessoa, etc.), mas sobretudo europeia e com o imperialismo, o testemunho é uma das formas em que
o fato de, exatamente como o testemunho hoje em dia, o Lazarillo ter sido podemos ver e participar, ao mesmo tempo, da cultura de um proletariado
mundial em sua época de surgimento [...]73
considerado, no século XVI, não literatura, seu herói não universal, e o seu
estilo, grosseiro.69 A história das práticas sociais e das formas contém uma A analogia tem o formato de uma regra de três e configura uma propor-
mesma lição de alargamento de fronteiras: assim como hoje não temos pro- cionalidade entre as partes. Observemos, no entanto, a inserção em surdina
blema em aceitar a picaresca como literatura, também o testemunho será do verbo “participar” após o “ver”, e a junção de duas posições distintas: uma
incluído no futuro dentro do espaço literário, num processo de expansão ou descritiva-científica (“ver”) e outra prática-revolucionária (“participar”),
de incorporação de suas margens, que já podemos acompanhar em nossa e, o que é mais essencial, a possibilidade de fazer as duas coisas ao mesmo
época através dos avatares do testemunho na novelística contemporânea. tempo. Com ar de quem não quer nada, é a proposta de uma prática da teo-
Há uma continuidade direta entre o momento de acumulação primitiva no ria, ou de uma possível inserção do intelectual na prática dos movimentos
século XVI e o momento imperial atual: também hoje se trata de absorver sociais que está sendo avançada aqui. Desdobrando o embutido na frase:
ou “integrar” estas populações que se encontram à sua sombra, nos subúr- enquanto na ascensão da burguesia, e no aparecimento de seu corolário lite-
bios dos subúrbios do império em que consiste o terceiro mundo,70 ou no rário, a picaresca, nos vemos limitados a entender o mecanismo social que a
coração das velhas cidades industriais arruinadas do primeiro, a sobra do constituiu (“ver”, procedimento descritivo-científico, análise histórica), hoje
fetiche da mercadoria, os espaços que representam o limite (ainda) não em dia podemos entender o mecanismo que faz surgir o testemunho e par-
apropriado pelo capital. O testemunho, exatamente como a picaresca, seria, ticipar dele, ou seja, ter um papel prático no “surgimento” dessa nova prática
portanto uma “forma para dar voz às vítimas do capitalismo”,71 que assim e desse novo gênero pós-literário, quase pura prática, que teria por voca-
“entram” na literatura, de onde elas foram (são) geralmente excluídas.72 ção precisamente superar a própria categoria de literatura, abrindo o espaço
A originalidade da tese de Beverley é identificar uma “criatividade” para uma “cultura do proletariado mundial”. As duas posições são apresen-
dos movimentos sociais e da forma literária, criatividade esta com sinal tadas sob a forma de uma alternativa na primeira frase de “The Margin at the
político indecidível, para retomar um conceito derridiano. No caso que nos Center”: “Será que lutas sociais fazem surgir novas formas de literatura, ou
será que a questão é mais a da adequação da representação destas lutas em
67 John Beverley. “The Real Thing”, loc. cit., p. 27.
68 “Há um parentesco evidente entre a picaresca e o gênero novo do testemunho na literatura
formas narrativas existentes?” (meu itálico).74 A alternativa remete a uma
latino-americana atual (narração em primeira pessoa, a partir de uma situação social margi- função ontológica (fazer surgir, participar) e outra representativa (mimé-
nal, com um estilo não literário), ao ponto de que alguns clássicos do gênero...constituem uma
tica) das lutas sociais. A perspectiva de Beverley, com variações ao longo
espécie de neo-picaresca ‘real’” (John Beverley. Del Zararillo al sandinismo, loc. cit., p. 176).
69 Ibidem, p. 168. dos anos, acredita na criatividade dos movimentos sociais, segundo a qual
70 Ibidem, p.64.
71 Ibidem, idem. 73 Ibidem, idem.
72 John Berverley. “The Real Thing”, loc. cit., p. 29. 74 John Beverley. “The Real Thing”, loc. cit., p. 23.

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ele (nós) poderíamos (e deveríamos) participar na criação destes movimen- Fica claro, portanto, por que escolher Rigoberta e não Ujpán. O “x”
tos, e disso trata essencialmente a crítica: abrir esse espaço participativo no do problema reside na representatividade do testemunho, ponto nevrál-
interior da elaboração formal. É essa prática participativa que se encarnará gico da ponderação de Achugar. Mas enquanto Achugar trabalha a ques-
adiante na solidariedade, mas que tem, no calor da hora dos primeiros tex- tão pelo ângulo da modelização testemunhal (a vítima-herói exemplar),
tos sobre o testemunho, outros desdobramentos possíveis. Assim, ao tratar Beverley está interessado no potencial ontológico, produtivo deste gênero
da nova poesia revolucionária (Ernesto Cardenal, na época ministro da cul- apenas tangencialmente literário, na criação de movimentos sociais. A sua
tura do governo sandinista da Nicarágua e Roque Dalton, poeta militante resposta à ressalva de Zimmerman (por que Menchú e não Ujpán?) seria
salvadorenho morto na clandestinidade), ele polemiza com Fredric Jame- simplesmente que o critério de escolha privilegia as possibilidades práticas
son, que postulara o abandono pelo marxismo da possibilidade de “projetar de produção de movimentos, e menos as teóricas (função descritivo-cientí-
visões políticas e socialmente atrativas de um futuro radicalmente diferen- fica) com a representatividade objetiva de Ujpán, sobretudo considerada a
te”.75 Beverley problematiza o diagnóstico da crise do marxismo, e matiza história subsequente da Guatemala. No entanto, a ressalva de Zimmerman
o decreto da renúncia da proposta revolucionária, defendendo a hipótese introduziria uma fissura entre literatura e movimento social, teoria e prá-
– possível quando escreveu o livro (em 1983, mas da qual ele se distanciará a tica, “ver” e “participar”, ou “representação” e “fazer surgir”, para reconstituir
seguir), e em um contexto hispânico (o livro é escrito em espanhol, versões toda a série de dicotomias, e quebraria a “plenitude” prática que Beverley
em inglês do mesmo tema terão matizes distintas) – de uma escrita “desde almeja. É claro que a ponderação de Zimmerman, de que “o complexo jogo
la revolución”. É portanto na vizinhança de Lenin (de “O que fazer?”), e do de forças nacionais e internacionais [em jogo no testemunho] não pode
problema da “produção” (não espontânea) da “consciência revolucionária”, necessariamente significar uma transformação decisiva e definitiva”,78 vai
como “criação social”, por meio da fusão da classe trabalhadora com uma prevalecer, e Beverley também mudará de opinião, o que o levará eventual-
intelligentsia radicalizada,76 que se coloca a “participação” do intelectual na mente a decretar que o testemunho perdeu seu interesse político.
produção (proposta ontológica, “fazer surgir”) das lutas sociais. A relação Mas, reconstituindo por um momento o percurso de Berverley, em
entre as forças que compõem a equação não são de mesma natureza, e ope- sua formulação essencial, as duas coisas deveriam estar juntas (ver e parti-
ram em registros diferentes. Contrariamente às aparências, a relação não cipar), pois justamente a postulação “produtiva”, prática, deveria subsumir
repete a tradicional repartição de poder/saber (antropológica, imperial) de a oposição ou torná-la irrelevante. Beverley é nostálgico do momento épico
dominador/dominado. Há aqui reciprocidade: Elisabeth Burgos-Debray se de “plenitude narrativa”, na tipologia da Teoria do romance, em que alma e
utiliza de Menchú, mas Menchú também se utiliza de Burgos-Debray. Os mundo, desejo e possibilidade, estão unidos.79 O sujeito testemunhal, como
movimentos sociais assim engendrados, como vimos, têm nome: tratam-se o herói da epopeia de Lukács, é uma sinédoque da coletividade (neste sen-
dos novos movimentos identitários, numa clara reconfiguração da prática tido, Sommer, ao postular um sujeito intersticial, uma identidade avessa à
revolucionária, atualizadas para o contexto pós-guerra fria. Mais adiante identificação, já incorpora as críticas a esta perspectiva de Beverley): ele é
(1993), a fusão entre intelectual e forças populares, matriz do testemunho, o porta-voz da sua coletividade, e a substitui, numa fusão pura, “orgânica”
conforme Beverley não cansa de apontar, não levará mais à revolução, mas a diria Lukács, “totalidade concreta” comunitária, anterior à divisão entre
“movimentos de resistência”, à “prática dos direitos humanos e movimentos sujeito e objeto, completa em si mesma, e impermeável a quaisquer preo-
de solidariedade”.77 E mais adiante ainda, como veremos, será decretada a cupações (formais) arquiteturais exteriores.80 Se é verdade que a autonomia
superação do testemunho, ou o esgotamento do seu interesse político.
78 Marc Zimmerman. “El otro de Rigoberta: Los testimonios de Ignacio Bizarro Ujpán y la
resistencia indígena en Guatemala”, loc. cit., p. 230.
75 Fredric Jameson, apud Beverley. Del Zararillo al sandinismo, loc. cit., p. 123. 79 John Beverley, Against Literature, loc. cit., p. 49.
76 Ibidem, p, 124, 125; 1996, “The Real Thing”, loc. cit., p. 31. 80 Georg Lukács. The Theory of the Novel. Tradução: Anna Bostock. Cambridge: MIT Press, 1971,
77 John Berveley. Against Literature, loc. cit., p. 78. p. 66-69.

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interior é impensável no mundo épico, anterior à diferenciação entre os No entanto, ponderaríamos, com certo ceticismo, o que é o “gestor”,
homens (à individualidade que vai definir por exemplo a forma-romance), o sujeito paratextual do testemunho, senão uma espécie de formalizador/
é porque nele a comunidade é uma totalidade imanente, plena de sentido universalizador? Neste sentido a sua tarefa não seria igual à do sujeito auto-
e avessa à qualquer exterioridade a si mesma; trata-se de uma totalidade ral do romance e seu analogon, o intelectual de vanguarda do partido? O
significante, sem exterioridade e sem consciência de si. próprio Beverley não diz exatamente isso, ao comentar a “produção” não
Beverley repisa com frequência a homologia entre testemunho e épica. espontânea de movimentos sociais e sublinhar uma articulação entre seg-
Por exemplo: «O narrador testemunhal recupera a função metonímica do mentos radicalizados populares e da intelligentzia, ou ao opor, na esteira
herói épico, sua representatividade, sem assumir suas características hierár- de Mao, as “contradições no interior do povo” (modelo do testemunho)
quicas e patriarcais»;81 ou a citação recorrente da expressão de Jara e Spadac- às contradições entre o povo como um todo e o imperialismo, por exem-
cini do testemunho como uma “epicidade cotidiana”.82 Note-se o reparo inte- plo, como contradição não articulável, ou simples dominação?85 Em outras
ressante com relação à ortodoxia lukacsiana: evita-se aqui explicitamente o palavras, como distinguir entre a contradição interna ao povo, a partir de
programa do romance histórico (ou socialista; Beverley e Yúdice coincidem uma perspectiva de coalizões contra um inimigo comum (ou análogo), e a
nessa crítica) de uma representatividade autoral, do trabalho essencial da contradição exterior, que configuraria o trabalho antropológico do “infor-
mediação/formalização/universalização de conteúdos materiais/locais. mante nativo”? Se Rigoberta é ela própria uma “organizadora” ou ativista,86
O testemunho não pode ser entendido a partir da categoria de realismo, o trabalho formal da representação já é de uma certa maneira realizado
pois tem como vocação mais essencial a sua exterioridade com relação à por ela mesma (ela é representativa), e prescinde-se do trabalho formal do
imitação.83 O problema da representatividade – e, portanto, da referência – intelectual, mas se for assim como entender exatamente o papel do inte-
testemunhal é delicado: a formalização/generalização operada pela síntese lectual? Tudo vai depender de por onde passa a linha que separa o interior
novelística, que evoca o trabalho representativo do intelectual de partido da coletividade plena de sentido (conforme Lukács, referindo-se à épica),
(em Lenin, por exemplo), segundo um modelo clássico de representação, e se a articulação intelectual faz ou não parte dela – do exterior do qual
deve ser substituído por uma “imediatidade” (sem mediação) concreta da esta enunciação do grupo se separa e a ela se opõe. Mas não é o intelectual
enunciação enquanto forma diretamente prática, e por uma “consciência” exatamente quem traduz e converte, transcreve e portanto generaliza, ao
interior aos movimentos sociais. Todo o problema da referencialidade que o fazer-se o instrumento desta representação coletiva local que é o testemu-
testemunho divide com o realismo será recolocado em termos de uma prá- nho? Gareth Williams tem razão em não inocentar o ato da escrita, enten-
tica dos movimentos sociais, na qual a forma literária estaria inscrita. É esta dendo-o como técnica modernizante e eminentemente ambígua, da qual
transparência do ato (a prática) que é em si já símbolo, anterior ao divór- o sujeito testemunhal é trágica e irremediavelmente cúmplice. No entanto,
cio entre interioridade e aventura,84 que Beverley empresta à caracterização falta ainda entender exatamente o desejo daquele que se oculta por detrás
lukacsiana da épica, que será ligada por ele à prática identitária. da voz que enuncia, a natureza exata da prática daquele que não é porta-
voz, mas porta a voz do outro, ao transcrevê-la, e que se esgueira por detrás
81 John Beverley. Against Literature, loc. cit., p. 160; “The Real Thing”, p. 27. da plenitude comunitária da voz que transcreve.
82 Ibidem, idem. Não se trata apenas de uma contradição em Beverley, mas, de maneira
83 Os debates em torno da literariedade versus referencialidade do testemunho estão distribuí- mais essencial, de um ocultamento no interior da mecânica da produtivi-
dos em dois campos mais ou menos coerentes: uma crítica mais tradicional (Elzbieta Sklo-
dade do testemunho, do desejo e do investimento prático do intelectual,
dowska, Roberto González Echevarría) enfatiza o seu aspecto textual e o seu pertencimento
ao parâmetro literário, enquanto que uma outra, precisamente a que estudo neste ensaio, o sujeito paratextual, aquele que fornece o quadro e o enquadramento da
reivindica-lhe uma especificidade extraliterária, não subsumível ao trabalho textual. Ambos
os lados, no entanto, mesmo a crítica que se concentra em localizar os elementos literários na
construção do testemunho, reconhecem nele a irredutibilidade do problema da referência. 85 John Beverley. “The Real Thing”, loc. cit., p. 33.
84 Georg Lukács. Theory of the Novel, loc. cit., p. 66. 86 John Beverley. Against Literature, loc. cit., p. 89.

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enunciação testemunhal. Se o «gestor» ocupa uma dupla posição, e é ao de uma identificação lateral – que em vez de propor uma imagem propõe
mesmo tempo articulador-produtor de movimentos, e dessa maneira a a identificação com projetos diferenciados de coalizões que coexistem e
eles exterior (mesmo que essa exterioridade seja cúmplice), e oculto por não se excluem mutuamente – a hipótese de que o testemunho simples-
detrás da voz coletiva plena em si mesma e privada de divisão que o sujeito mente substitui a identificação com o sujeito testemunhal pela identifica-
testemunhal veicula – é porque não se pensou ainda em profundidade a ção com o gestor, o sujeito paratextual do testemunho, como aquele que
contradição que separa uma posição da outra. A homologia entre “parti- gere e gerencia a fala testemunhal. Ele (ou ela) pertence ao mesmo universo
cipar” e “ver”, para retomar os termos iniciais de Beverley, pode esconder cultural (e de classe) do leitor, que se identifica com o projeto salvacionista
uma mobilização voyeurística do intelectual participante, como impensado de tipo etnográfico colocado em prática pelo sujeito que propõe, seleciona,
desta prática que se oculta por detrás da plenitude visível da voz que ele edita, e que invisivelmente (lembremo-nos da “supressão do eu”, de Barnet)
porta. O que é ocultado aqui é exatamente o olhar do intelectual que cons- estabelece a identidade da política identitária. A uma identificação de tipo
trói o seu objeto como objeto estético, para que ele brilhe solitariamente, romanesco (com um personagem, com o narrador em primeira pessoa da
pleno em si mesmo, como voz grupal, objeto abjeto (concreto, orgânico, autobiografia) se substituiria uma identificação estrutural com o disposi-
diria Lukács) desejável da prática solidária, muito próximo no final das con- tivo, e uma modelização de tipo diferente, um heroísmo da prática do inte-
tas do aesthetic fix que Yúdice diagnosticara como fixação na perda subjetal lectual bem-intencionado (liberal) de esquerda, e a uma prática da crítica.
do horror kristeviano no pós-modernismo primeiro-mundista.87 Há um O gestor do testemunho não estaria muito distante portanto do narrador
parentesco entre a solidariedade do intelectual norte-americano engajado do romance transcultural, tal qual sistematizado por Angel Rama, que se
e a fixação estetizante do intelectual hegemônico e seu “interesse” pelos oculta por trás da máquina narrativa ao apagar as comillas que separam
cadáveres latino-americanos enquanto restos de suas revoluções falhadas: a (sua) fala culta da fala popular, regional, e que revoluciona a narrativa
em ambas desaparece o sujeito e seus desígnios.88 O que demonstra que não regionalista ao unificar os estratos culturais distintos.89 A integração entre
poderia ser este o critério ético a distinguir um pós-modernismo hegemô- a escrita culta e a oralidade popular operada pela novelística transcultural
nico do testemunhal. A representatividade identitária, inclusive em seus (Rulfo, Arguedas, Guimarães Rosa) ainda espreitaria o modelo narrativo
matizes arcaizantes (a semelhança com a epopeia), a medida em que por do testemunho, e informaria o seu sonho mais profundo – mas sonho, é
detrás de sua concretude comunitária (ou solidária) se esconde o investi- verdade, unificado, estruturalmente identificado com a função democrá-
mento do intelectual cúmplice, corre o risco de configurar uma estética, tica, homogeneizante e hegemônica do sujeito paratextual do testemunho.
e estetizar o seu objeto autárquico de reflexão, separando-o daquele cujo O que estaria ocorrendo então seria uma mera substituição da formaliza-
desejo se oculta na estrutura narrativa do testemunho. O que em si não ção (autonomista, subjetiva) nacional, de um autor que ficcionaliza a voz
constituiria um problema, não fosse o fato de que esse desejo se esconde, popular, por uma outra transnacional, modernizante, que registra e edita
pretendendo puritanamente desaparecer, transformando-se em solidarie- o testemunho? Nesse sentido, a avaliação latino-americana do testemunho
dade participante, e assim revelando por detrás do engajamento político, e da política identitária como um todo (por oposição à avaliação norte-a-
sob a forma de denegação, um ou outro interesse inconfessável. mericana), tanto à esquerda quanto à direita, será muito clara: ela acusa,
Passando do problema da crítica à própria estrutura do testemunho, e não sem um certo ressentimento nacionalista, essa substituição de ser mera
fazendo as vezes de advogado do diabo, poderíamos opor à tese de Sommer transferência para as metrópoles da criatividade de subjetividades locais.
É claro que há uma certa má-fé de minha parte em identificar a nar-
87 Georg Yúdice, “Testimonio and Postmodernism”, loc. cit., p. 49-53. rativa testemunhal à transcultural. Não deve permanecer nenhuma dúvida
88 Em “Testimonio and Posmodernism” George Yúdice opõe a fascinação semipornográfica de
Joan Didion pelos corpos esfacelados nas ruas de El Salvador, em Salvador, como exem- 89 Angel Rama. Transculturación narrativa en América Latina. México: Siglo XXI editores, 1987,
plar do pós-modernismo hegemônico, ao testemunho de Rigoberta Menchú, enquanto pós- 3ª ed. 1987, p. 32-56; Neil Larsen, Modernism and Hegemony. A Materialist Critique of Aesthetic
modernismo emergente e marginal, remetendo a uma estética da solidariedade. Agencies. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1990, p. 56.

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sobre a diferença essencial entre os dois constructos: o aporte de uma polí- tica”, para retomarmos os termos de Walter Benjamin,92 aonde menos se
tica enunciativa, da apresentação de uma voz representativa, substitui o esperaria encontrá-la. Concordamos com a avaliação histórica de Beverley:
problema da mimésis e da representação, que faz da narrativa transcultural
O testemunho estava intimamente ligado às redes internacionais de solida-
um realismo, que propõe objetos e não sujeitos, como o testemunho o faz. riedade em apoio de movimentos revolucionários ou lutas que revolviam
A importância da forma e da formalização na síntese realista (mimética), em torno dos direitos humanos, do apartheid, e da democratização; mas foi
transcultural, é reduzida ao mínimo, substituída, por exemplo, por um também uma maneira de testar as contradições e limites dos projetos revolu-
simples gravador, ou pelo registro documental – uma reprodução mecâ- cionários e reformistas estruturados ainda em parte em torno de suposições
sobre o papel das vanguardas culturais.93
nica, editada pelo autor paratextual. A aproximação entre as duas serve no
entanto para detectarmos um projeto comum, que situa o testemunho na Mas a suposta morte do testemunho (ele perdera sua força de estra-
mesma linhagem da narrativa transcultural, ao mesmo tempo nos força nhamento, o ostranenie dos formalistas russos, nós nos acostumamos com
a localizar as diferenças essenciais entre elas. Portanto, não se pode negar o testemunho [sic]), que, em dado momento, quando ele ainda era vivo,
a existência no testemunho dessa identificação de tipo estrutural com o dera lugar a uma revisão dos preconceitos da elite vanguardista, provém
dispositivo, ligada a um certo heroísmo etnográfico. É preciso no entanto ainda de um preconceito dessa vanguarda cultural, da qual Beverley não
explicitá-la, e não escondê-la por detrás de um purismo político qualquer. deixa de fazer parte. O “desejo chamado testemunho” pode ter sido um
Em vez de configurar uma espécie de “museu” etnográfico de oralidades desejo (estético, desinteressado) volúvel especificamente “latino-ameri-
autênticas mumificadas pelo narrador-museólogo, conforme descrição canista”, na acepção de Alberto Moreiras, o que não implica que o teste-
de Neil Larsen da narrativa transcultural,90 no testemunho, a meu ver, o munho tenha morrido. Ele perdeu o seu poder de estranhamento para o
sujeito paratextual não esconde o seu projeto e o seu “interesse”, explici- latino-americanista, mas isso não altera nada com relação ao seu objeto
tados enquanto tais, e que não devem ser confundidos com o projeto e de desejo. Afinal o próprio Beverley reconhece: “não são apenas os nossos
o “interesse” do sujeito testemunhal. A oralidade testemunhal propõe sua objetivos que contam em relação ao testemunho [!!]”.94
própria síntese emancipatória e sua própria formalização, sua própria visão O que fazer assim com a histriônica reprovação de Georg Gugelberger
de mundo, que o gestor registra e edita, de forma transparente, dizendo à “apropriação” midiática de Rigoberta Menchú, que contaminara a “nossa”
que o está fazendo. A noção de coalizão (Laclau e Mouffe), que pressupõe Rigoberta, fazendo dela uma personagem de novela mexicana, espantando-
diferenças essenciais, ao mesmo tempo que afinidades estratégicas con- se com o que ela “virou”?
tingentes não menos essenciais, implica em uma aquisição teórica impor-
Recentemente o jornal chileno La Epoca imprimiu o seguinte anúncio matri-
tante para se pensar o testemunho. Mas ela não deve servir para esconder monial: “A prêmio Nobel da Paz, a guatemalteca Rigoberta Menchú, está feliz
o investimento do gestor e o do leitor, a nível da estrutura do testemunho, de haver contraído matrimônio e espera procriar [sic] dois filhos com seu
e um sistema figurativo-representativo-identificatório sutil mas poderoso, esposo Angel Francisco Canil... Menchú disse estar ‘muito contente’ de haver
produzido pela narrativa testemunhal. se casado com alguém do seu mesmo grupo étnico, um companheiro de luta a
quem definiu como ‘um gordinho encantador, carinhoso e simpático...’ Tudo
Diante de dificuldades deste tipo, John Beverley decreta, em gesto que
soava tão familiar, exatamente como o final de uma telenovela. O que aconte-
lembra uma Aufhebung hegeliana, a superação do testemunho: que a polí- cera com o nosso “ícone” com um segredo?95
tica de solidariedade já era, que estamos agora escrevendo o epitáfio do tes-
temunho,91 que o “desejo chamado testemunho” evanesceu. O epitáfio e seu 92 Walter Benjamin. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (primeira versão).
Obras escolhidas, volume I. Magia e Técnica, arte e Política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São
diagnóstico são sintomas no entanto de uma insidiosa “estetização da polí-
Paulo: Brasiliense, 1994, 7ª ed. 1994, p. 196.
93 John Beverley, “The Real Thing”, loc. cit., idem.
90 Ibidem, p. 59. 94 John Beverley. “The Real Thing”, loc. cit., p. 282.
91 John Beverley. “The Real Thing”, loc. cit., p. 281. 95 Georg M. Gugelberger (ed.). The Real Thing. New York: Routledge, 1996. p. 1.

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Mas, afinal de contas, não se tratava aqui de uma voz comunitária, e a espécie insidiosa de modo de produção, o modo de produção intelectual,
escolha do matrimônio e da procriação, ainda mais salvaguardado o prin- mas que no fundo não se distingue muito da expansão incorporativa colo-
cípio da identidade étnica, não significaria a continuidade de etnias mino- nial, e seu braço acadêmico-midiático. Será que o “desejo” do intelectual
ritárias? É certo que esta escolha havia sido explicitamente excluída ante- se identifica ao desejo do capital, que por sua vez se confunde com seu
riormente em favor da opção pelo ativismo solitário, a vocação missionária próprio limite: é exatamente aquilo que resiste a ele e por isso pretexta a sua
que pressupunha o sacrifício da felicidade individual em favor da causa expansão? Rigoberta deveria então haver-nos “rejeitado” para permanecer
coletiva. Mas dando-se o devido desconto, deveríamos convir que não há ativamente prática (como limite que nos limita, margem não absorvível
nada de tão grave nesse happy ending kitsch. No entanto, esta proposta de do capital), mas, pelo contrário, ela nos aceitou – embora casando-se com
felicidade familiar, que apaga o seu potencial Unheimlich transgressivo outro – e por isso a desprezamos.
anterior, contraria o desejo (do) intelectual. Permanece o sentimento de Tudo não passa de um pequeno drama passional, e ao que parece não
decepção: Rigoberta não tem nada a esconder, ela é afinal de contas igual a teríamos saído nunca do desejo do intelectual. Chegamos, assim, ao último
todos nós, com os mesmos desejos, igualmente burgueses (nós que somos fio nesta teia de problemas e questões que compõem a cena proposta no
todos mais ou menos burgueses, mais ou menos casados, mais ou menos início deste ensaio: o Nobel de Rigoberta Menchú. A disposição restitutiva
com filhos). E nós só podemos admitir como nossa representante heroica que revelamos inicialmente (o pedido de “desculpas” do Ocidente, o Nobel,
– pois na verdade somos nós os representados – nesta prática política, da as ressonâncias da mídia) em toda a sua generalidade propriamente repre-
qual participamos em solidariedade, aquela que é irredutivelmente dife- sentativa (Rigoberta como sinédoque dos povos dizimados na colonização,
rente de nós. Sua semelhança equivale a uma queda do pedestal exemplar, recipiente de uma restituição que corresponde a uma “culpa” não especí-
daí a nossa decepção. Afinal, não pudemos confiar nela, ela nos traiu. fica, ocidental), encontra aqui uma forma curiosa: o fantasma amoroso que
O cenário da traição ou da decepção, é claro, deve ser lido sintomati- duplica imaginariamente o seu objeto, e o constrói à imagem de si mesmo,
camente, remetendo ao registro amoroso, que Beverley resgata não sem enquanto objeto dessemelhante e impossível, puro obstáculo.
autoironia ao comparar Rigoberta à dama intocável do amor cortês, objeto A farsa do drama conjugal, na leitura irônica de Beverley, confirma o
impossível, que se confunde com o obstáculo, ou seja, o real lacaniano.96 diagnóstico em larga escala da culturalização “latino-americanista”, como
Não deixa de haver, portanto, algo de curioso neste desejo de Midas que produção de saber sobre a América Latina no interior da máquina univer-
contamina tudo o que toca, e na negatividade (no sentido da dialética nega- sitária norte-americana. O traço sintomático do latino-americanismo se
tiva, ou da teologia negativa) dessa prática política do “segredo” que só é encontra na disposição ciclotímica que oscila entre a euforia e a decepção,
efetiva enquanto invisível, ou cuja efetividade coexiste praticamente com o que se apropria e rejeita, que ama para desprezar, e que ao final reproduz
momento de sua neutralização, e que transforma Rigoberta em resto ocioso os mecanismos de objetivação consagrados pela tradição colonial, tendo
para o intelectual deleuziano à procura de fluxos desterritorializados, ou como novidade a consciência crítica aguçada da exterioridade absoluta do
novos objetos “puros”, ostranenie, food for thought, ainda não apropriados seu objeto de desejo – das Ding, na terminologia lacaniana, emprestada de
pela máquina espetacular do capital? A prática seria este fulgor efêmero, Heidegger. É possível situar, no entanto, em todo esse extenso desenvolvi-
fogo-fátuo, que duraria o instante do seu vislumbrar pelo intelectual? Esta- mento testemunhal, a historicidade de um gênero que teria repercussões
ríamos assim perigosamente próximos do excedente ao modo de produção imensas não só para os Estados Unidos, mas para a América Latina e para o
medieval e capitalista e ao processo da colonização, em que Beverley loca- mundo em geral: a construção do modelo identitário para a literatura. É em
lizara inicialmente o papel do testemunho. Ter-se-ia produzido assim uma torno da fala de Rigoberta e do desejo que ela explicita, com todas as rami-
ficações de compensação vitimária que ela contém, que se estabelece para o
96 John Beverley. “The Real Thing”, loc. cit., p. 266, 277. Para a noção de Real, em Lacan, ver
principalmente o seminário XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (sobre o
mundo o molde abrangente de uma inclusão pela cultura, segundo a expres-
trauma), e o VII, A ética da psicanálise (sobre o amor cortês). são que se consagrará com a força que conhecemos nos anos a seguir. Os

132 133
elementos estruturais dessa operação da inclusão identitária, fixados pelo nais, linkadas com tecnologias globais, mesmo quando persistem ainda
modelo de Rigoberta são: “o deslocamento do sujeito-mestre da narrativa”,97 vestígios da estrutura colonial na produção das formas culturalizadas de
e “da centralidade dos intelectuais e o que eles consideram como cultura – inclusão. Vivemos um momento eufórico de naturalização do modelo, em
incluindo a própria literatura”.98 É nesse lugar que uma desconstrução do que desaparece praticamente a perspectiva crítica, à medida que a inclusão
gênero testemunho deverá sempre ser acompanhada do reconhecimento identitária acaba constituindo o grosso das possibilidades progressistas de
da potência embutida nele: o encontro com o Real do trauma, assim como politização da cultura.
concebido por Lacan, o encontro com estas experiências do corpo que sofre Cabe retomar o programa crítico mediante a historicização da ope-
e que tem fome,99 com algo que resiste à simbolização da narrativa, e que ração identitária em seu momento. É o ensinamento que o testemunho de
apesar de tudo, apesar dela própria, a narrativa revela. Essa desconstrução Rigoberta ainda tem para nós, hoje em dia.
deverá estar atenta aos operadores estabelecidos pela crítica do gênero tete-
munho: os segredos do sujeito testemunhal, como os de Rigoberta, seus
silêncios encenados, o martírio e a tortura de seu irmão que ela ficcionaliza
para esconder e assim mais profundamente revelar a morte e a tortura de
seu irmão que realmente aconteceu;100 a importância dos dêiticos a indiciar
este corpo, esta sede, esta fome como modos de enunciação do real.
A extensão que as formas de inclusão identitária obterá nos anos
seguintes nos permite, no entanto, desentranhar elementos bastante dife-
rentes dos estabelecidos pela crítica do testemunho, tal qual ela se desdo-
brou nos Estados Unidos, nos anos 1980-1990, como analisei aqui. Embora
a matriz seja a mesma, desaparece o pathós culpado das formulações
“latino-americanistas”, nas produções localistas ou estritamente nacio-

97 John Beverley, “The Real Thing”, loc. cit., p. 267.


98 Ibidem, p. 272.
99 Ibidem, p. 274.
100 Segundo entrevistas realizadas pelo antropólogo americano David Stoll que fazia suas pes-
quisas na região em que Rigoberta Menchú vivia, entre 1988 e 1989, mais ou menos dez anos
depois do período em que transcorreram os eventos relatados pelo seu testemunho, seria
impossível que ela tivesse testemunhado a morte de seu irmão, como ela descreve no seu livro.
Ela teria estado em outro lugar na época, e ele não teria sido queimado em público e diante da
sua família, como descreve Rigoberta, mas fuzilado, em outra data, e sem testemunhas (John
Beverley, “Introducción”. John Beverley, e Hugo Achugar [eds.]. La voz del otro: testimonio,
subalternidad y verdad narrativa, loc. cit., p. 14. Tratar-se-ia, para Stoll, de uma “invenção
literária”. Ninguém nunca pôs em questão, no entanto, a veracidade da tortura e da execução
de seu irmão pelo exército guatemalteco. Em uma linda passagem em seu artigo de 1996, “The
Real Thing” (loc. cit., p. 275, 276), Beverley relaciona esta “mentira”, ou “invenção” ao relato do
psicanalista Dori Laub sobre a testemunha da insurreição em Auschwitz, gravada no Arquivo
de Vídeos de Testemunhos do Holocausto de Yale, que “mentira” ou se “enganara” sobre fatos
históricos posteriormente comprovados da insurreição. No testemunho do trauma não há
mentira, mas o relato da verdade da descoberta da verdade do que aconteceu tal qual vivido
pelo sujeito, e segundo as possibilidades do sujeito de lembrar e continuar sobre-vivendo com
esta lembrança (Shoshana Felman e Dori Laub. Testimony. Crises of witnessing in Literature,
Psychoanalysis and History. New York: Routledge, 1992, p. 60-62).

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capítulo 3
O sujeito carcerário

Trancavam a porta e deixavam os cachorros avançar nos presos. Horrorizante.


Você imagina os cachorros naquela situação, sangue pra todo lado, barulho
de tiro, grito, de paulada nas grades, eles ficaram loucos. Pareciam que esta-
vam dopados. Os presos tentavam estourar a porta e os PMs dando tiro na
direção deles. Teve um companheiro que o cachorro mordeu o testículo dele
e saiu arrancando...Cena horrorizante. Maior cena horrorizante mesmo. Veio
um PM e executou ele.
Eu chorava, em pânico. Eu só pensava, vai chegar a minha vez, agora vai ser eu.1

Gás! Gás lacrimogêneo! – berrou Rogério Piassa.


Respirei e prendi a respiração, comecei a trepar no catre, tentando alcançar
a janela. Marcelo apareceu e puxou minha mão, tentando escapar do gás. Os
policiais iniciaram intenso tiroteio para dentro do xadrez. Marcelo foi atin-
gido no peito e no pescoço. Sangue esguichava para todos os lados. Fiquei
todo molhado pelo sangue que jorrava do pescoço dele. Rogério Piassa tom-
bou atingido por uma rajada de metralhadora que lhe costurou o corpo, da
barriga até a cabeça. Minha camisa foi atravessada por uma bala; passei a mão
no local e só senti um calor. Isso me tranquilizou, porque sabia que ferimen-
tos a bala sempre são dolorosos. Então, senti que algo perfurou minha perna,
como mil agulhas. Caí no chão ferido. Respirei fundo e prendi a respiração.
Dois outros presos feridos caíram por cima de mim e fiquei ali, com a cabeça
grudada ao solo, sentindo o cheiro agridoce de sangue, fingindo estar morto.2

Estes dois trechos são tirados de dois testemunhos de sobreviventes do


massacre ocorrido em 2 de outubro de 1992, na Casa de Detenção de São
Paulo, o Carandiru, no qual, segundo as estatísticas oficiais, 111 presos foram

1 Sobrevivente Andre du rap. Do massacre do Carandiru. Coordenação editorial: Bruno Zeni.


São Paulo: Labortexto editorial, 2002, p. 25.
2 Hosmany Ramos. “Pavilhão 9”. Pavilhão 9. Paixão e morte no Carandiru. São Paulo: Geração
Editorial, 2001, p. 257.

137
executados a sangue frio por tropas de elite da Polícia Militar. A justifica- PMDB – o partido do governador – “não pode ser prejudicado por conta de
tiva alegada para a invasão ilegal do Pavilhão 9 da Casa de Detenção foi alguns marginais arruaceiros”.4
controlar a rebelião que acontecia na prisão. O Pavilhão 9 tinha na época O nefando episódio da crônica paulistana demonstrou claramente que
2.075 presos, e era o pavilhão reservado a réus primários, a maioria deles a população carcerária brasileira vive de fato sob um estado de exceção per-
menores de 21 anos. Dos 111 mortos, 84 esperavam julgamento, e de acordo manente, completamente fora do regime regular de cidadania que é seu
com a constituição brasileira deveriam fazê-lo em liberdade, o que signi- direito constitucional. As costumeiras execuções sumárias, a prática da tor-
fica basicamente que nenhum deles deveria estar lá no momento em que tura, a superlotação de celas, as condições de vida e higiene absolutamente
ocorreu o massacre. O que ocorreu em 2 de outubro de 1992 é o resultado, insalubres (falta de ar, luz, alimentação), com disseminação epidêmica de
portanto, de uma série de atos ilegais perpetrados por um Estado que acha HIV e tuberculose, a prisão ilegal por tempo indeterminado em carceragens
que “bandido bom e bandido morto”. Ao que tudo indica, uma pequena policiais, a falta de acesso à assistência legal,5 configuram um quadro de tal
briga entre dois grupos de presos foi o que originou o massacre, com a abuso de direitos humanos que comprovam a trágica constatação de que o
absoluta cumplicidade, ou a iniciativa, das autoridades, presentes à porta massacre de 1992 constituiu apenas a ponta do iceberg.
da prisão durante todo o incidente – testemunhado pelos próprios presos, O que este “pequeno” genocídio tem de especial, e o que o diferencia
pela TV, à medida que os acontecimentos transcorriam. Muitos aspectos de outros, como o dos grupos da guerrilha no Araguaia ou o assassinato
do massacre permanecem obscuros até hoje: testemunhas policiais alegam de prisioneiros políticos durante o regime militar? Ou, mais perto de nós,
que encontraram presos mortos quando invadiram o pavilhão, enquanto o massacre de meninos de rua da Candelária, ou o de Vigário Geral, de
que, segundo os próprios presos, ninguém havia sido morto na luta entre 1993, e assim por diante? Evidentemente há muito pouco em comum entre
facções antes da invasão policial. Outro contencioso é a circunstância do a repressão militar a grupos guerrilheiros, a ação de grupos de extermínio
abandono dos guardas do Pavilhão, excluindo toda e qualquer testemunha compostos de policiais insatisfeitos com o modelo de segurança “leniente”
oficial do massacre.3 Todos estes diferendos giram em torno da motivação defendido no governo de Leonel Brizola, e a ação da Polícia Militar pau-
para o uso da força militar, apenas justificável, aos olhos da opinião pública, lista acionada pelo seu governador. De fato, todos estes assassinatos cole-
por uma rebelião de presos que desafiasse o controle dos guardas da pri- tivos precisam ser devidamente estudados, e a configuração particular de
são. São questões sem dúvida periféricas, mas que revelam de fato muita cada um deles – e da situação prisional brasileira em especial – articulada
coisa sobre o funcionamento do sistema penitenciário brasileiro, e expli- ao contexto maior dos abusos de direitos humanos no Brasil. Claramente,
cam, pelo menos em parte, a histeria em torno do problema da segurança no entanto, o que diferencia o massacre do Carandiru dos outros, além da
pública que grassa hoje em dia no Brasil. invenção tecnológica peculiar a este tipo de extermínio, que precisa sem
A causa imediata do uso excessivo da força militar, que extrapola qual- dúvida ser levada em conta, é o fato de que há uma série de registros sub-
quer medida “justificável” na época, mesmo para um país conhecido por jetivos e/ou artísticos, testemunhais ou não, do que ocorreu; é o fato, em
violações a direitos humanos, está sem dúvida ligada a interesses políticos suma, de um certo número de textos e obras de arte sobre o massacre terem
em torno das eleições estaduais, que ocorreriam no dia seguinte ao massa- sido produzidos, e serem lidos ou vistos em larga escala, alguns até tendo-
cre. As câmeras de TV captaram o momento em que o secretário de segu- se tornado bastante populares e de grande sucesso comercial.
rança do governador Fleury, o promotor Pedro Franco, deu ordens ao chefe
4 “O promotor Pedro Franco brada em alto em bom som: ‘Coronel Ubiratan, o senhor está no
das operações da polícia militar, o Coronel Ubiratan Guimarães, para fazer
comando das operações. Faça o que achar melhor. Se o juiz autorizar, e se necessitar invadir
o que fosse necessário “para sufocar urgentemente esta bagunça”, porque o o Pavilhão, está autorizado. Amanhã será dia de votação e o PMDB não pode sair prejudicado
por conta de alguns marginais arruaceiros. Sufoque urgentemente a bagunça!” (Hosmany
Ramos. “Pavilhão 9”, loc. cit., p. 246).
3 Drauzio Varella. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999; 2002, vigésima 5 Loïc Wacquant. As prisões da miséria. Tradução: André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
impressão, p. 283. Editor, 2001, p. 11.

138 139
Esta multiplicação de registros inverte o programa de planejamento Xavier chamou de “cinema-Ong”.7 No rescaldo do sucesso cinematográ-
do massacre, no qual o que salta aos olhos é o fato de que ninguém deve- fico, Babenco dirigiu em 2005 pela TV Globo – que não poderia ficar de
ria ter lhe sobrevivido, ou melhor, o que não é a mesma coisa, que ele não fora deste novo quinhão do mercado segmentado de imagens – uma série
deveria ter sido testemunhado por ninguém. Como pode ser inferido da de 12 episódios, Carandiru, Outras histórias, ponto em que a prisão passara
quantidade de medidas preventivas tomadas pelos policiais militares, todos a configurar no Brasil um estilo de estetização criminal. O modelo colo-
encapuzados quando da invasão do pavilhão, a energia elétrica cortada, cado em funcionamento aqui é o da veiculação característica de relatos na
ou o fato de todos os guardas haverem sido evacuados antes da entrada do cultura contemporânea: livro, filme, série televisiva, obedecendo ao padrão
contingente de policiais militares, ou simplesmente ainda o fato de todo e estabelecido para a circulação de subprodutos audiovisuais, que multipli-
qualquer preso achado vivo haver sido sistematicamente assassinado pelos cam e potencializam a projeção sempre mais restrita da matéria literária.
invasores. Portanto, contra qualquer expectativa, uma improbabilidade O que há de notável, no caso, no entanto, é a ramificação literária do
estatística ocorrera: alguns presos sobreviveram, e, sobreviventes, decidi- livro de Varella e do massacre em si. Assim, em 2001, um outro médico
ram ou se viram forçados a ainda prestar testemunho sobre o ocorrido. É – Hosmany Ramos, um ex-cirurgião plástico, assistente de Ivo Pitanguy,
a proliferação de relatos sobre o massacre do Carandiru que o torna um sentenciado a 56 anos de prisão por homicídio, contrabando e sequestro –
acontecimento único na história recente da violência urbana brasileira. publicou, em sua terceira coletânea de ficção centrada na prisão, o testemu-
O massacre foi o tema explícito de um certo número de obras de arte, nho de um sobrevivente do massacre, Milton Marques Viana, que conheceu
a começar pela instalação 111, de Nuno Ramos (1993),6 e a de Lygia Pape, o escritor em 1995 e pediu-lhe para escrever a sua história. Em 2002, André
Carandiru (2001), seguida pela canção “Diário de um detento”, do Racio- du rap – um outro sobrevivente, um poeta/rapper, réu primário, acusado
nais MCs, com letras do então preso Jocenir, com música de Mano Brown. O de homicídio, que inconstitucionalmente esperava julgamento na prisão
videoclipe da canção recebeu o prêmio de aclamação popular da MTV bra- – publicou um livro-testemunho sobre sua vida antes, durante e depois de
sileira, e o CD em que foi lançada, Sobrevivendo no inferno, vendeu 500.000 sua prisão, com uma ênfase especial no massacre. O livro foi escrito em
cópias e representou uma virada na história do rap brasileiro, tornando colaboração com Bruno Zeni, um jornalista formado em Comunicação na
os Racionais MCs o acontecimento mais radical no pop brasileiro contem- USP. Zeni baseou o seu livro em uma entrevista gravada de 4 horas com
porâneo – projetando a voz das favelas e das periferias no mainstream da André du rap, combinando-a com uma seleção de cartas escritas na prisão
circulação comercial de música e abrindo um novo nicho na segmentação e letras de rap escritas por André. O projeto de escrever o livro foi conce-
do mercado musical hegemônico da MPB. bido no primeiro dia do julgamento do Coronel Ubiratan, quando Zeni e
Foi apenas em 1999 que saiu o primeiro texto escrito que trata dire- André du rap se encontraram e planejaram o livro, com o objetivo explí-
tamente do massacre do Carandiru: Estação Carandiru, um best-seller de cito de “dar rosto aos 111 [presos assassinados] e contar suas histórias”,8 em
autoria do médico Drauzio Varella, reunindo pequenas vinhetas sobre a contraste nítido com a abordagem sensacionalista dos jornais, que tendia
vida dos presos, ouvidos pelo autor durante os mais de 10 anos (na época a transformá-los em estatística. O mesmo traço está presente no relato de
da escrita do livro) em que trabalhou como médico voluntário na prisão, Milton Marques Viana, narrado por Hosmany Ramos, que inclui a lista
e cujos 3 últimos capítulos são um relato do massacre contado de segunda de nomes dos presos assassinados, dando-lhes um enterro, uma lápide ou
mão, a partir do testemunho de um preso. O livro foi adaptado para o epitáfio apropriado, o reverso das fotos (terríveis) que o mesmo livro inclui
cinema por Hector Babenco, tornou-se um sucesso de bilheteria em 2003, ao final da “estória” e na quarta capa do livro.
foi representante insosso do Brasil no festival de Cannes e uma malograda
tentativa de projetar no mercado externo cinematográfico o que Ismail
7 Ismail cunhou essa expressão por volta de 2003. Por exemplo, na entrevista com Alcino Leite
Neto, Na Ilustrada, Folha de S. Paulo, de 22/11/2003, “Produção brasileira atual é ‘cinema-ONG’”.
6 A capa deste livro é uma das imagens que compõem a instalação. 8 Sobrevivente André du rap. Do massacre do Carandiru, loc. cit., p. 204.

140 141
Foi, portanto, com a esperança de dar início a um projeto ambicioso – o de [...] são campos de concentração, senão piores, iguais aos que os nazistas usa-
dar rosto aos 111 e contar suas histórias – que fui ao julgamento do coronel ram para massacrar os judeus na 2ª Guerra Mundial. São verdadeiros depósi-
Ubiratan Guimarães naquela quarta-feira e conheci André du rap, sobrevi- tos de seres humanos tratados como animais.14
vente do Massacre. Me apresentei como jornalista e lhe contei do meu inte-
resse sobre o assunto. André me disse que tinha vontade de escrever um livro O imperativo ético de contar, alerta contra a eventualidade sempre à
sobre o Massacre. Trocamos números de telefone. Este livro começava a ser espreita de uma repetição do massacre, lembra a famosa repetição ador-
escrito naquele momento.9 niana do imperativo categórico de Kant, no final da Dialética Negativa:
Os testemunhos têm outros traços em comum. Claramente nestes “organizar seus pensamentos e ações a fim de que Auschwitz não se repita,
dois fica evidente que prestar testemunho é um imperativo para os sobrevi- para que nada de semelhante jamais aconteça”.15
ventes. André du rap, por exemplo, testemunha no julgamento do coronel Elaborando a hipótese sobre a compulsão repetitiva na experiência
Ubiratan, como disse, discorre longamente sobre isso. Alertado por outros do trauma, Jacques Lacan diz que “o real é aquilo que sempre retorna ao
sobreviventes sobre o perigo de sair do anonimato e falar sobre o que vira, mesmo lugar”.16 Assim, é impressionante observar a maneira pela qual,
ele afirma repetidamente: “Alguém tem de falar [...], o que nós passamos no testemunho de Milton Marques (transcrito por Hosmany Ramos), a
ninguém mais passou. [...] Mas eu sinto que eu tenho que contar o que catástrofe prestes a ocorrer anuncia-se como repetição de uma catástrofe
aconteceu”,10 sentindo-se parcialmente seguro por já se encontrar então em anterior. Quando enxerga através da janela da cela três homens engravata-
liberdade, enquanto outros sobreviventes ainda estavam presos. (“Eles con- dos – os juízes corregedores –, sente que já os conhecia, reconhecendo-os
tinuam presos, estavam com medo de serem mortos dentro da cadeia.”) A talvez de um noticiário da TV. O que imediatamente o faz sentir-se seguro,
razão para prestar testemunho é também bastante clara: “Eu quero falar a já que “todos sabíamos que a polícia jamais invadiria um presídio sem a
verdade, contar a minha história para ela não se repetir”.11 Ou um pouco concordância e anuência do juiz corregedor”.17 Mas a impressão de segu-
mais adiante: “Minha intenção é alertar a sociedade do que pode aconte- rança desaparece instantaneamente quando se lembra da morte de Franz
cer. Que o que aconteceu pode acontecer de novo. Um novo massacre.”12 Holzwarth, o advogado criminalista que aceitou substituir três reféns em
Da mesma forma, Milton Marques Viana, na introdução ao testemunho, uma rebelião na Delegacia de Polícia de Jacareí, em 14 de fevereiro de 1981,
assinada por ele, que emoldura a sua narrativa, escreve: “Senti-me na obri- e que foi assassinado com os cinco presos que escapavam em um carro de
gação de contar minha versão. Não para criticar o sistema, mas para alertar fuga, apesar da palavra dada em contrário, alguns segundos antes, pelo juiz
futuras gerações e prevenir novos massacres”.13 A transposição para o con- corregedor Orlando Pistorezzi. Milton liga a televisão e vê de perto a cara
texto do holocausto judaico, a comparação com os Lager nazistas, inscrita do juiz fora da prisão, e observa que ele se parece com o juiz de Jacareí:
insistentemente por praticamente todos os escritos recentes vindos da pri- “Observo que o juiz é parecido com o juiz Pistorezzi, de Jacareí. Imagino
são, é quase automática, apesar da evidente diferença entre os dois tipos de que todos eles sejam parecidos”.18 O ajuntamento de toda a força policial,
violência. A analogia não é casual, haja vista por exemplo um dado histó- como se em uma “preparação de guerra”, fá-lo temer o pior: “Tento imagi-
rico: a fonte do projeto arquitetônico do complexo prisional de Bangu, no
Rio de Janeiro, são de fato os campos de concentração nazistas. Assim, não
é de espantar que Jocenir escreva sobre as prisões brasileiras:
14 Jocenir. Diário de um detento: o livro. São Paulo: Labortexto Editorial, 2001, p. 17-18.
15 Theodor Adorno. Negative Dialectics. Tradução: E. B. Ashton. New York: Continuum, 1990,
9 Hosmany Ramos. “Pavilhão 9”, loc. cit., p. 261-162. p. 365.
10 Sobrevivente André du rap. Do massacre do Carandiru, loc. cit., p. 103. 16 Jacques Lacan. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trad. M.D. Magno. Rio de
11 Ibidem, p.104. Janeiro: ed. Zahar, 1988, p. 52.
12 Ibidem, p.106. 17 Hosmany Ramos. “Pavilhão 9”, loc. cit., p. 244.
13 Hosmany Ramos. “Pavilhão 9”, loc. cit., p. 230. 18 Ibidem, p. 245.

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nar que tudo aquilo não passa de um sonho. Esfrego as vistas e sinto que é O psicanalista e sobrevivente do holocausto Dori Laub descreve o
real. Estou mesmo acordado?” 19 acontecimento traumático como “uma armadilha em um destino, que não
Para André du rap, o fato de que o massacre tenha ocorrido no dia pode ser conhecido, não pode ser contado, mas apenas pode ser repetido.”
de seu aniversário solicita uma dupla leitura dos acontecimentos do dia: 22
A armadilha só pode ser desfeita pela transferência ou transmissão do
em primeiro lugar, como um terrível presente do destino, e em segundo, acontecimento por meio da construção do relato, seja através de um tra-
como um verdadeiro presente de vida, como se a vida lhe tivesse sido dada tamento terapêutico, seja pela escuta testemunhal. Um dos aspectos mais
pela segunda vez. Uma vítima de PTSD (Post-Traumatic Stress Disorder), impressionantes dos testemunhos prisionais é a maneira pela qual a tes-
ele continuava tendo pesadelos com o massacre quando da escrita do livro, temunha precária dos fatos transcorridos, a reconstituição necessária da
retornando repetidamente às cenas terríveis daquele dia: “Às vezes eu me verdade do acontecimento, é transformada em testemunho pela própria
vejo naquele dia, lembro-me de como começou, um amigo de cela falando, testemunha, em uma estrutura circular segundo a qual é o próprio ato de
alguém dizendo: – Ô, André, hoje é seu aniversário, mano! Segunda-feira prestar testemunho que a torna capaz de testemunhar. Assim, André du rap
eu vou embora, vou mandar um presente pra você, de lá de fora».20 A afirma: “Mas eu não tenho vergonha de ser ex-presidiário, não. É a minha
memória do trauma do massacre contém, ao mesmo tempo, a possibili- história. Acho que é por isso que essa história deve ser contada da maneira
dade de um presente de aniversário, que liga o interior da cadeia à liberdade que aconteceu, porque é a história de cada um, ninguém se livra dela, nin-
possível lá fora. O presente é necessariamente dado por uma outra pessoa, guém tem outra pra contar”.23 É aqui, através do testemunho, que a objeti-
alguém fora da prisão. É apenas através de uma perlaboração da memória, vação carcerária pode ser revertida em uma possibilidade subjetivizante.
encarnada pelo testemunho que escreve, que André conseguirá libertar-se É o que pode ser inferido de trechos como este: “A partir do momento em
da compulsão de repetição do passado. que fui preso, eu me tornei quem? Não o André, mas o bandido. Aquele
Temas que elaboram subjetivamente a compulsão da história de se suposto bandido que matou, aquele suposto bandido que roubou. E eu não
repetir e produzir novos massacres, produzindo uma saída. tive direito de defesa. Por quê? Por eu ser pobre, preto e morar na periferia.
Da mesma forma, as narrativas concentram-se frequentemente na Não tinha advogado, não tinha dinheiro”.24
morte de amigos, inclusive de alguns que salvaram a vida do sobrevivente. É o aspecto de produtividade da chacina, ou seja, a maneira pela qual
Poderia ter sido eu, eles dizem, mas não fui eu quem morri, por nenhuma ela produz uma série de efeitos, e que está ligado a um elemento constitutivo
razão identificável, por uma estranha espécie de fatalidade. A relação entre da violência, ao subjetivar, no caso, a experiência do preso criando o espaço
aquele que morreu e o sobrevivente que narra a sua história é a de alteri- de visibilidade para a situação prisional. Foucault, em “A vida dos homens
zação: poderia ter sido eu, o que morreu é outro que não eu. Milton Viana infames”, fala de algo semelhante, quando descreve o momento fulgurante
toca em seu corpo para assegurar-se que está vivo: “Minha camisa foi atra- em que uma subjetividade obscura é brevemente iluminada pelo encon-
vessada por uma bala; passei a mão no local e só senti um calor. Isso me trão com o poder. Nos pequenos fragmentos de vida, estes “poemas-vidas”
tranquilizou, porque sabia que ferimentos a bala sempre são dolorosos”,21 ou “existências-relâmpagos” de pessoas absolutamente anônimas – loucos,
conforme a primeira citação com que iniciei este capítulo. Todos estes sediciosos, sodomitas, estorvos sociais –, descritos pelo poder monárquico
momentos de desdobramento de si mesmo são por sua vez pastichados no (o texto deveria ser o prefácio a uma coletânea de textos de arquivo), são
julgamento do coronel Ubiratan, pela duplicação imaginária da morte a retirados do anonimato de suas vidas pelo poder que por um instante fugi-
facadas dos presos realmente mortos no massacre do Carandiru. dio se interessa por eles, iluminando-os, falando deles. “O que os retira da

22 Shoshana Felman, e Dori Laub. Testimony. Crises of witnessing in Literature, Psychoanalysis


19 Ibidem, idem. and History. New York: Routledge, 1992, p. 69.
20 Sobrevivente Andre du rap. Do massacre do Carandiru, loc. cit., p. 26. 23 Sobrevivente Andre du rap. Do massacre do Carandiru, loc. cit., p. 106.
21 Hosmany Ramos. “Pavilhão 9”, loc. cit., p. 257. 24 Idem, p. 106-107.

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noite aonde eles poderiam, e talvez para sempre deveriam, permanecer, é E é precisamente como auctor que o médico Drauzio Varella intervém
o encontro com o poder: sem este solavanco nenhuma palavra sem dúvida no final de seu livro, e dispensa a versão dos guardas e dos policiais do que
estaria aqui para lembrar-lhes o fugitivo trajeto”.25 É precisamente o mesmo ocorrera no massacre, autorizando a versão dos presos: “Ouvi apenas os pre-
efeito que o massacre tem na vida destas pessoas, que são catapultadas sos. Segundo eles, tudo aconteceu conforme está relatado a seguir”.28 O regis-
repentinamente pela violência e pela morte à visibilidade em que se consti- tro em que os três últimos capítulos é escrito é claramente distinto do resto
tuem em sujeitos de sua própria experiência e objeto visível que se inscreve do livro. Enquanto a voz narrativa do texto, em geral, recorre ao tom neutro
na superfície das imagens distribuídas e consumidas. e leve de um contador de causos e anedotas, reminiscente da narração cro-
As testemunhas do massacre são os que sobreviveram a ele. É aqui que nística, estes últimos capítulos impressionam pela secura e isenção. Drauzio
se situa a articulação indissolúvel entre a questão da sobrevivência, isto é, Varella simplesmente reconstitui os fatos que não testemunhou, mas ouviu
da posteridade do massacre, e o aspecto legal e judicial do ato de testemu- de alguém que os viveu, procurando reconstruir o mais objetivamente pos-
nhar, que é inscrito, desde o início, na figura histórica da testemunha judi- sível, como se fora uma testemunha em juízo, a ordem dos acontecimentos,
cial. É precisamente esta articulação intrínseca entre a forma narrativa do como e quando tudo ocorreu. Mais testis (terceira parte em juízo) do que
testemunho e a testemunha em juízo que é tornada clara, por exemplo, pelo supertestes, e sem dúvida auctor, autoridade conferida ao relato dos presos,
duplo papel de André du rap como testemunha da acusação no julgamento Drauzio Varella tem uma função legitimamente em todas as narrativas que
do coronel Ubiratan, enquanto sobrevivente improvável de um massacre. saem da Carandiru, e cuja série o seu livro abre e programa.
Este sentido jurídico é um dos contidos na dupla etimologia da palavra É a articulação destas três funções – de testis, superstes e auctor – que
testemunho, desentranhada por Émile Benveniste e resgatada pelo filósofo compõe o painel do testemunho carcerário brasileiro recente, em torno do
italiano Giorgio Agamben, mas da qual descarta precisamente a metade massacre do Carandiru. Além dos textos que já mencionei, alguns outros que
jurídica: do latim testis, “a terceira parte entre duas partes em litígio, em um poderiam ser listados aqui são: Memórias de um sobrevivente de Luiz Alberto
julgamento ou conflito legal”; e supertestes, “aquele que viveu algo, passou Mendes (2001), Diário de um detento: o livro, de Jocenir (2001), e Enjaulado.
por um acontecimento, e é capaz de testemunhar sobre ele”.26 É a ligação O amargo relato de um condenado pelo sistema penal, de Pedro Paulo Negrini
entre sobreviver à violência do massacre e a função jurídica de testemunhar (2002). Em 2001 a Editora Madras, de São Paulo, publica Letras de Liberdade,
sobre esta violência que precisa ser devidamente entendida aqui. A esta com 15 histórias escritas pelos próprios detentos, a partir de um concurso
dupla função, é necessário acrescentar uma terceira: a de autoria, também do qual participaram 12.000 internos, e de onde saíram 345 textos.29 O novo
deslindada por Benveniste e igualmente utilizada por Agamben, o auctor. sucesso editorial, com 12.000 exemplares vendidos, consagra um gênero que
“Em latim, autor” – escreve Agamben – “significava originalmente aquele desconhecíamos no Brasil: a literatura escrita por presos sobre a prisão. Um
que intervém no ato de um menor (ou no ato de qualquer um que não é dos autores de Letras de Liberdade, Humberto Rodrigues, lança em 2001 o seu
capaz de completar um ato jurídico válido), a fim de outorgar-lhe o com- Vidas do Carandiru: histórias reais. E temos ainda Cela forte mulher (2003),
plemento de validação de que ele necessita”.27 de Antonio Carlos Prado, única exploração de todos os textos sobre a prisão
feminina. Ou, um pouco diferentemente, mas ocupando o mesmo nicho edi-

25 Michel Foucault. “La vie des hommes infâmes”. Dits et écrits II, Paris: Gallimard, col. 28 Drauzio Varella. Estação Carandiru, loc. cit., p. 285.
« quarto », 2001, p. 240.
29 Luiz Alberto Mendes. Memórias de um sobrevivente. São Paulo: Companhia das Letras, 2001;
26 Émile Benveniste. O vocabulário das instituições indo-européias. Vol. II. Campinas : ed. da Jocenir. Diário de um detento: o livro. São Paulo: Labortexto, 2001; Humberto Rodrigues.
Unicamp, 1991, p. 277-278 ; Giorgio Agamben. O que resta de Auschwitz. Trad. Selvino Ass- Vidas do Carandiru: histórias reais. São Paulo: Geração editorial, 2001; Pedro Paulo Negrini.
mann. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 27. Sobre Agamben ver o capítulo 1, “Sobre viver (Gior- Enjaulado. O amargo relato de um condenado pelo sistema penal. São Paulo: Gryphus, 2002;
gio Agamben e Primo Levi)”. Ferréz. Capão pecado. São Paulo: Labortexto Editorial, 2000, 1ª ed. ; Ferréz. Manual Prático
27 Ibidem, p. 149-150. Em Benveniste a etimologia é estudada em O vocabulário das instituições do ódio. São Paulo: Objetiva, 2003; Letras de Liberdade. São Paulo: Editora Madras, 2001;
indo-européias, loc. cit., p. 150-152. Antonio Carlos Prado. Cela forte. São Paulo: Labortexto Editorial, 2003.

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torial, com uma vertente que se autonomiza rapidamente, também editado imagem e memória do que ali se viveu e dos que ali viveram. Os efeitos dos
pela Labortexto, temos Capão pecado de Férrez (2000), e Manual prático do dois filmes são no entanto bastante diferentes. A transposição cinematográ-
ódio (2003), já pela Editora Objetiva, sobre a sua vida nos subúrbios de São fica do livro traduz em formato naturalista e espetacular as cenas do massa-
Paulo, e formatando a marca de uma estilização forte “marginal”, um modo cre, como no livro de Varella, acrescidas ao resto da narrativa, mas aqui com
de registro, um tema, uma subjetivação identitária, um estilo de roupas.30 O uma finalidade inversa. Enquanto que no livro de Drauzio Varella autori-
boom editorial aparece vinculado a um projeto de impacto e de curta dura- zava-se a versão litigiosa dos presos, no filme de Hector Babenco a mesma
ção da Labortexto editorial, sediada em São Paulo, que se especializou neste autorização é transformada em amplificação grandiloquente, reminiscente
nicho de mercado mas que logo fechou, atestando, quem sabe, a transforma- dos filmes de catástrofe hollywoodianos. Por outro lado, o Prisioneiro da
ção do foco especializado em um nicho bem mais disperso e disseminado no Grade de Ferro inscreve o motivo reflexivo – os “próprios” presos, o olhar
mainstream, que outras editoras passaram a ocupar. “deles mesmos” – que marca a injunção de uma nova episteme “inclusiva” na
Em 2003, paralelamente ao filme de Hector Babenco, surge o docu- representação identitária que precisa ser entendida.
mentário de Paulo Sacramento Prisioneiro da grade de ferro, resultado de Assim, é nos três capítulos finais de Estação Carandiru, de Drauzio
um workshop de cinema realizado no Carandiru, onde os próprios prisio- Varella, mais do que no resto do livro – ou nas declarações que o autor deu
neiros filmam seu cotidiano – não mais filtrado pelos olhos exteriores de quando da exibição do filme –, que se encontra o ponto alto do projeto, men-
visitantes, antropólogos, cientistas sociais –, concluindo um ciclo de mani- cionado no início do livro, de atestar sobre a humanidade dos presos: “Neste
festações que marcam não apenas um fenômeno de mercado, mas também livro, procuro mostrar que a perda da liberdade e a restrição do espaço físico
um espaço inusitado no cenário de representações brasileiras: o de uma não conduzem à barbárie, ao contrário do que muitos pensam”.31 É destes
representação carcerária nos seus próprios termos. A contraposição entre o capítulos que saem os relatos prisionais que serão adiante publicados, escri-
filme de ficção e o documentário, baseados essencialmente sobre os mesmos tos pelos próprios presos, e não mais mediados por Varella. É aqui, portanto,
fatos e o mesmo tema, é significativa. Ambos incorporam o plano célebre da mais do que em outras partes, que ocorre não só a tentativa de reconstituir
implosão da Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru, ocorrida em 8 de a “linguagem” e a enunciação dos presos, mas algo como a subjetivação da
dezembro de 2002, um pouco depois do aniversário de 10 anos do massacre, população carcerária: Drauzio Varella é interpelado – para usar em uma
e como que a celebrar, em velho estilo brasileiro, pela destruição de símbo- acepção especial o conceito althusseriano –, como a autoridade que é, a
los, a destruição dos fatos que suscitaram os símbolos, num procedimento autorizar a versão dos prisioneiros do que ocorreu. É esta autorização que
característico em que memória e desmemória estão fundidos. O cinema da permitirá aos presos tornarem-se adiante sujeitos de suas próprias estórias.
subjetivação carcerária parte da imagem da destruição da prisão onde se deu O traço desta função subjetivizante é inscrito sintaticamente pelo
o maior massacre carcerário da história brasileira, como que a dizer que a pequeno desnível ou intervalo entre o relato do massacre e a escrita cro-
afirmação de um sujeito devesse partir da destruição do mecanismo mesmo nística do resto do livro. Esta mesma função autorizante está inscrita sis-
que o destruíra como objeto e causara o massacre. O resíduo do massacre tematicamente, com variantes e especificidades, em todos os textos que
agora destruído enquanto patrimônio arquitetônico deve sobreviver como enumerei antes: seja na função do transcritor (ou editor) do testemunho,
seja sob a forma de prefácios ou apresentações – como se pode observar,
30 Ferréz rapidamente multiplica os papéis explicitados no primeiro romance, Capão pecado,
centrado na representação territorializada da periferia em que vive e trabalha, o Capão exemplarmente, no caso de Letras de Liberdade, em que cada narrativa é
redondo, transformando o mote em movimento, coletivo (da literatura marginal), como acompanhada da apresentação de uma pessoa de visibilidade pública, que
editor, blogueiro, produtor cultural, rapper, empresário (dono da 1dasul, especializada em
roupas de juventude, que importa e adapta a moda norte-americana hip-hop para o Brasil), funciona ali como “padrinho” do estreante – “menor”, in-fans –, retirando-o
tudo focalizado na produção de autoestima para os jovens pobres da periferia paulistana, e do silêncio criminal e conferindo-lhe a maioridade cidadã e a voz literária.
na cunhagem identitária de um tipo, que repete o estereótipo da marginalidade e o libera de
si mesmo. Ver a respeito o meu prefácio, “Território-Ferréz”, à tradução argentina de Manual
prático do ódio (Trad. Lucía Tennina. Buenos Aires: Ediciones Corregidor, 2012). 31 Drauzio Varella. Estação Carandiru, loc. cit., p. 10.

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É aqui que a função essencial da escuta está claramente inscrita. Teó- textos, algo que não era até então uma prática corrente no Brasil –, aparece
ricos do testemunho, seja dos sobreviventes de campos de concentração pela primeira vez agora.
nazistas ou de sobreviventes hispano-americanos de atrocidades perpe- Por que agora e não antes? O que ocorre agora é que a binaridade
tradas por governos autoritários, apontaram com insistência a dependên- interna ao próprio testemunho, a exterioridade intrínseca ao depoimento
cia essencial do gênero testemunhal do gesto de escuta que se posiciona histórico sobre a prisão, reaparece na divisão entre prisão e sociedade civil.
diante de uma fala ou da memória dela. O que pode ser descrito estru- Um diagnóstico deste tipo justificaria que se fizesse a genealogia do tes-
turalmente como uma dualidade estrutural ou diferença interna. No caso temunho no Brasil no contexto da violência urbana por este viés. Salvo
do testemunho concentracionário de Primo Levi, a alteridade interna se engano, a primeira tentativa neste sentido foi a de Zuenir Ventura em
manifesta pela disjunção, hiato ou fissura daquilo que Primo Levi chama Cidade partida (1995), realizado após o Massacre de Vigário Geral (de 1993),
de a testemunha “autêntica”, ou seja, os mortos que não estão mais aqui, que e como reação direta a ele, registrando um engajamento da sociedade civil
não sobreviveram, e a memória deles, a enunciação do sobrevivente, neces- no combate à violência e estabelecendo um modelo de intervenção terri-
sariamente inautêntica e postiça. No caso do testemunho hispano-ameri- torializada em problemas sociais, através da configuração de uma ética da
cano, a alteridade interna se dá entre voz que enuncia e mão que escreve. Organização-Não-Governamental – as ONGs, que passariam a partir então
É esta também, como vimos no capítulo anterior, a função do que Miguel a definir todo um campo de trabalho sobre a justiça social no Brasil. Zuenir
Barnet, o autor do primeiro testemunho latino-americano – a Autobiogra- estrutura o seu livro em torno da entrevista com um comandante do trá-
fia de un cimarrón [Autobiografia de um escravo fugido] – nomeou a função fico, Flávio Negão, explicitando na forma entrevistador/entrevistado, jor-
do “gestor”, isto é, o transcritor, tradutor, ou editor do testemunho oral, de nalista letrado e traficante iletrado, a dualidade do próprio Rio, colocada
quem se espera um exercício de ascese e despersonalização radical, a fim no título da obra. A instalação da sutura desta dualidade, entre jornalista e
de tornar-se o espaço vazio onde se configura a voz que deve ser ouvida, e informante, como resolução da divisão política, modula o mote da política
que o testemunho transpõe. assistencial e da colaboração entre segmentos sociais que gerará o modelo
O ato de ouvir é o que define a decisão de Hosmany Ramos de escre- de funcionamento de ONGs, de que o livro produz uma espécie de modelo
ver o relato do massacre de Milton Marques Viana, ou a de Bruno Zeni ou programa. O que os relatos prisionais contemporâneos fazem com rela-
de transcrever as fitas de suas entrevistas com André du rap, suas cartas ção ao Massacre de 1992 do Carandiru, Zuenir faz, alguns anos antes, com o
e letras de rap. É enquanto tradução de uma escuta ativa que o testemu- Massacre de Vigário Geral. Evidentemente há, entretempos, uma invenção
nho deve ser, antes de mais nada, entendido. O que torna possível o ato de formal notável: a entrevista e o testemunho têm especificidades formais e
prestar testemunho, em cada caso, é a presença de um ouvinte ou auditor, histórico-sociais que precisam ser estudadas. O que ambos instituem, no
aquele que aceita abrigar a voz da testemunha e encarna o espaço ocupado entanto, é um dispositivo de autorrepresentação da criminalidade e dos
pela tradução desta voz, repercutida no próprio silêncio. presos, que passam a escrever eles próprios as suas próprias histórias de vida
Atenhamo-nos um pouco ainda sobre esta bipolaridade interna, estru- – autorizados por uma mediação “próxima” –, que mantêm a integridade
tural, contida em alguns dos testemunhos carcerários brasileiros recentes do seu discurso, configurando-o no formato de um veículo visível e audível.
que venho descrevendo. Neles há uma parceria entre o sobrevivente e O surgimento de testemunhos carcerários no Brasil se situa portanto
alguém que transcreve ou traduz o testemunho oral que lhe foi prestado. no contexto de uma mudança na episteme da representação político-cultu-
Esse não é caso de todos os testemunhos – não é o caso, por exemplo, do ral, como modelo de produção de identidades coletivas internacionaliza-
mais bem-sucedido literariamente, Memórias de um sobrevivente, de Luiz das, a partir de uma nova proposta de mediação. Em vez do procedimento
Alberto Mendes –, mas é recorrente o suficiente para chamar a atenção. A clássico da representação por uma exterioridade ligada ao paradigma do
diferença interna, característica da forma do testemunho, como foi codifi- intelectual nacional como porta-voz da consciência política popular, que
cada na América Latina Hispânica – que constitui a novidade formal destes formalizava o substrato popular em uma obra de cunho universal, análoga

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à ação dos órgãos públicos do Estado sobre os problemas sociais, o que A novidade que ocorre no boom do Carandiru é que aparece agora
temos aqui é a produção de uma figura coletiva traduzida por um antropó- algo que não existia antes, e que não estava compreendido em nenhuma
logo (cientista social, universitário, jornalista) que funciona como “gestor”, das três categorias enumeradas por Marcos Luis Bretas: o depoimento do
em um veículo que mantém intacto os elementos legíveis de singularidade preso comum. Ou seja: desaparece a diferença sempre implícita em todos
coletiva presentes na enunciação que transpõe, transcreve ou edita. É aqui, os depoimentos que historicamente tomaram como base a prisão, entre a
portanto, que a perspectiva de uma passagem entre cultura letrada e oral, enunciação letrada e a prisão, explicitada de forma mais aguda no momento
informante e saber universitário ou jornalístico, se solidifica enquanto pos- em que as duas parecem mais próximas, mas onde apesar de tudo subsiste
sibilidade de subjetivação de grupos sem inscrição anterior no universo a divisão, na dicotomia entre prisioneiro político e prisioneiro comum. De
escrito, de legitimidade política, no contexto de uma reconfiguração em forma sintomática, todos os grande depoimentos sobre a prisão, de Dos-
escala mundial do paradigma da política. É preciso portanto entender a toiévski a Graciliano Ramos, contêm uma revelação do caráter comum do
novidade contida nestes testemunhos da prisão. sofrimento e do status essencial da pena dos criminosos comuns.
Partamos, antes de mais nada, da classificação dos depoimentos de Da dicotomia entre crime político e crime comum, preso político e
prisão estabelecida por Marcos Luiz Bretas, e expandindo-a para abarcar preso comum, dá testemunho William da Silva Lima em Quatrocentos con-
o período posterior ao estudado por ele (de 1850-1910). Para ele há três tra um. Uma história do Comando Vermelho, de 1991. O texto – quem sabe
tipos de depoimentos prisionais: 1) o depoimento de reformadores juristas o primeiro escrito por um criminoso de direito comum no Brasil – narra
ou médicos, situados em torno da Casa de Correção do Rio de Janeiro, a fundação do Comando Vermelho, nas prisões do regime militar.32 Publi-
fundada em 1850 – a primeira da América Latina – e modelada a partir do cado pela primeira vez pelo ISER (Instituto de Estudos da Religião), uma
Panóptico de Jeremy Bentham, incorporada ao Complexo prisional Frei velha ONG católica ligada à defesa dos direitos humanos, na Editora Vozes,
Caneca e implodida (ela também) em 13 de março de 2010; 2) o depoi- o livro antecipa um traço identitário – a subjetivação carcerária –que se
mento de prisioneiros políticos que surge com a República, cujos maio- materializaria com o boom do Carandiru, 10 anos depois. Não por acaso,
res exemplos serão as Memórias do Cárcere (1953) de Graciliano Ramos, a narrativa de William da Silva Lima sobre o nascimento da “falange ver-
sobre as prisões do Estado Novo – que transcorrem em parte também na melha”, como foi batizada pelo aparelho de segurança, surgiu no cárcere
mesma Frei Caneca – e os depoimentos de ex-guerrilheiros ou presos polí- da ditadura militar da Ilha Grande (o Instituto Penal Cândido Mendes),
ticos durante a ditadura militar, como os de Fernando Gabeira (O que é isso nos anos 1970, da convivência entre presos políticos e criminosos comuns
companheiro?, de 1979) ou Alfredo Sirkis (Os carbonários, de 1980); nesta na mesma prisão. Ambos tinham sido enquadrados pela Lei de Segurança
chave seria preciso abrir uma subcategoria, no contexto da ditadura militar Nacional, a forma encontrada pela ditadura de negar a existência de crime
brasileira, de relatos da tortura, como os de Luiz Roberto Salinas Fortes, político no Brasil, que assim politizava o crime comum, ao colocá-lo sob
Retrato calado (1988), ou o de Renato Tapajós, Em câmara lenta (1977), que o signo do estado de exceção e de uma intervenção direta, identificável,
do poder. O tratamento privilegiado dos filhos da classe média era ques-
adquirem especial importância no momento da instalação da Comissão da
tionado por aqueles que afinal tinham sido enquadrados precisamente na
Verdade no Governo de Dilma Roussef, uma presidente que foi torturada,
mesma lei, e que haviam cometido os mesmos crimes, “principalmente
como não devemos nos esquecer; e 3) os depoimentos de jornalistas como
Ernesto Senna (Através do cárcere, de 1907), João do Rio (sete reportagens
32 Veja-se a respeito deste personagem notável o documentário-entrevista, realizado por Caco
escritas em 1905 e depois incorporadas em A alma encantadora das ruas) de Souza, Senhora Liberdade (2004). Há algumas adaptações cinematográficas. Quase dois
e Orestes Barbosa (Na prisão, de 1922). Destes, é notável o depoimento de irmãos (2004), de Lúcia Murat, com roteiro de Paulo Lins e Lúcia Murat, é em parte uma
adaptação do romance. Há ainda Quatrocentos contra um – Uma história do crime organi-
Orestes Barbosa, preso por dois períodos de 36 e 52 dias em 1921, e que se zado, de Caco de Souza (2010). O motivo penal vem rendendo muitas incursões cinemato-
situa a meio caminho entre o relato de um visitante exterior e de um preso. gráficas, todas carregadas de uma profunda ambiguidade entre a denúncia e a estetização
fascinada da criminalidade. Ver, por exemplo, Salve geral, de Sérgio Rezende (2009).

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assalto a bancos”.33 O “coletivo”, o “pessoal da Lei”, como eram chamados os crime o ato que cometeu e o levara à prisão, e sim de alguém que cometeu
90 presos enquadrados na LSN, isolados do resto, era cindido por uma visão um crime comum, em princípio não questionado pelo estado de direito,
estratégica oposta da situação: os presos políticos defendiam a separação muda o foco do relato – que passa a se concentrar no que há de excep-
dos outros e o estabelecimento do status de criminosos políticos, enquanto cional no destino de um criminoso comum, e do que pode haver de inte-
que os presos comuns defendiam a integração dos dois grupos, o “contato resse humano no crime e no criminoso que o cometeu. O próprio caráter
com a massa”. William da Silva entende que a situação foi evidentemente político das ações cometidas por militantes de organizações guerrilheiras
desfavorável para os presos comuns, que foram aos poucos desaparecendo, passou a ser repensado, podendo ser consideradas, com o recuo dos anos,
mortos, enquanto que os presos políticos foram eventualmente anistiados. crimes de direito comum.
O regime do privilégio diagnosticado no dispositivo prisional, com evi- Mas em que consiste a representação de presos, ou qual é o interesse
dentes implicações de extração de classe econômica, estabelece o domínio de representá-los? Talvez devamos partir mais uma vez dos depoimentos
de uma linguagem jurídica dos direitos, que os presos comuns aprendem históricos para delinear em seguida uma hipótese sobre o desdobramento
com os presos políticos e incorporam em seu próprio discurso. Da troca contemporâneo. Marco Antonio Bretas avança a seguinte tese sobre o papel
de experiências, os presos comuns se apropriaram da retórica dos direitos da representação das prisões nestes depoimentos no final do século XIX:
humanos e de um princípio de disciplina coletiva, que inicialmente con-
Em uma sociedade que experimenta rápidas mudanças devido ao desapa-
sistia em proibir atos de violência de preso contra preso, constituindo um recimento da escravidão e o aumento da imigração, as prisões parecem um
código de ética e um critério organizativo, decalcado do modelo da organi- bom lugar para colocar os mal adaptados, deslocar a angústia da sociedade, e
zação do Partido e da militância, que teve longo curso no desenvolvimento distinguir aqueles acostumados ao regime prisional daqueles que sofreram os
de um modelo de “justiça da rua”, se desdobrando na lógica da ocupação rigores da tortura da nova ciência (a criminologia, os aportes de Lombroso)
e institucional.35
faccionalizada dos morros e do narcotráfico.
O livro de William, com prefácio de Rubem César Fernandes, secretá- Em outras palavras, o que está em jogo aqui é o processo de “natu-
rio-executivo das ONGs ISER e Viva Rio, marca o surgimento da represen- ralização” dos selvagens e do seu mundo aos olhos do público. No con-
tação prisional brasileira a partir do problema criminal, do direito de cida- texto atual, conviria perguntarmo-nos se o que o testemunho prisional faz
dania daquele que praticou um crime, foi julgado por isso e está preso sob a não é exatamente desnaturalizar, não mais o selvagem, mas a pobreza e
responsabilidade do Estado. A reivindicação do direito exige uma conver- a desigualdade social sistêmica da sociedade brasileira, vistas em registro
são “do bandido em autor”,34 que as narrativas narram. De modo recorrente, marginal, demoníaco e violento, através do telescópio poderoso da mídia
os relatos contêm uma conversão do crime ao trabalho intelectual, pelo e seu público de classe média. O desaparecimento da exterioridade estru-
aprendizado da leitura, e da convivência com os livros, veiculada por uma tural dos depoimentos clássicos sobre a prisão atesta, antes da mais nada,
relação exterior com um professor ou professora, em função transferencial, o fato de que a prisão consiste em uma dramatização da violência e do
por meio de uma atividade epistolar, que vai mobilizar a tradução do crime terror generalizados a que estão submetidos os moradores de periferias das
em escrita do crime. É o que parece descrever, por exemplo, o Bildungsro- grandes cidades brasileiras hoje em dia, e o fato de que estes verdadeiros
man de Luiz Alberto Mendes, Memórias de um sobrevivente, escrito em depósitos de pobres serem modelos reduzidos do que ocorre fora da prisão.
registro dostoievskiano. Basicamente, é apenas na prisão que a operação anunciada pelas notí-
O fato de termos diante dos olhos não o depoimento de um prisioneiro cias da mídia impressa, televisiva ou eletrônica, de criminalizar a pobreza –
político, que questiona o princípio do direito (de exceção) que considerara i.e., de tornar os pobres criminosos, de moralizar e socializar a desigualdade
33 William da Silva Lima. Quatrocentos contra um. Uma história do comando vermelho. Rio de 35 Marco Antonio Bretas. “What the eyes can’t see: Stories from Rio de Janeiro’s prisons” in: Sal-
Janeiro: Labortexto, 2001, 2ª ed. , p. 67. vatore, Ricardo D., e Aguirre, Carlos. The Birth of the Penitentiary in Latin America. Austin:
34 Ibidem, p. 15. University of Texas Press, 1996, p. 118.

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social –, é completamente efetuada. Chamando as coisas pelos nomes devi- grosso dos recursos energéticos remanescentes do planeta.40 Entende-se mal,
dos, as prisões brasileiras são verdadeiros depósitos humanos, ou “campos portanto, as queixas de que o remédio para o problema da desordem brasi-
de concentração para pobres”, na expressão de Loïc Wacquant.36 A popula- leira, o chamado “estado paralelo”, fruto de uma administração “frouxa”, seria
ção carcerária brasileira é de 514.582 presos (dados de dezembro de 2011), o recrudescimento do estado policial, quando se sabe que, precisamente, a
sendo de 180.059 só em São Paulo, tendo sido registrado um aumento da “penalização neoliberal” é resultado de uma drástica diminuição da atuação
ordem de 72% do número total de presos, entre 2000 e 2006, no período de do Estado em termos dos serviços que presta à sociedade.41
maior acirramento do problema prisional.37 Em dezembro de 2007, o déficit Os massacres produzem uma dívida social e geram um campo de
consolidado do sistema penal brasileiro era de 147.179.38 Diante de cifras produção cultural, um interesse mercadológico, etc. A chacina da favela
espantosas como estas, que indicam, por um lado, o aprisionamento maciço carioca Vigário Geral, por exemplo, produziu a instalação de ONGs, do pro-
e crescente da população urbana pobre brasileira, sem que isso modifique o jeto educacional pela música, artes cênicas e artes em geral: os Affroreggaes
quadro de criminalidade, e por outro, a insuficiência da medida, inócua em de José Junior. O massacre do Carandiru gerou toda uma série de ativida-
termos quantitativos – é impressionante o apoio generalizado na população des assistenciais, dentre as quais podemos ressaltar as oficinas literárias na
brasileira à medida de redução da maioridade penal. prisões, fomentando uma agitação cultural que se espraiou para os grande
O crescimento rápido da população carcerária brasileira confirma o núcleos urbanos brasileiros. É evidente que esta série de massacres gerou
diagnóstico de uma penalização da pobreza em larga escala, em uma ver- uma nova configuração social das antigas favelas e periferias, a partir da
dadeira ditadura sobre os pobres, como escreve Loïc Wacquant.39 Trata-se de intervenção da sociedade civil.
um esforço coordenado de disciplinamento da miséria, para falar como Fou- É neste contexto que é preciso pensar os relatos testemunhais de pre-
cault, que integra o sistema penitenciário em uma rede maior, da qual fazem sos como processo de subjetivação, i.e., possibilidade de constituição como
parte as periferias, bairros pobres das capitais e favelas, e que inclui uma polí- sujeitos, de uma população antes anômica, que só passou a existir a partir
tica de encarceramento e extermínio das classes populares. O sistema pri- do acontecimento prisional que lhe conferiu essa visibilidade equívoca. O
sional brasileiro exercita um experimento laboratorial de gestão da pobreza massacre tem nesse sentido uma função ontológica, constitutiva. O pro-
brasileira, desdobrada em larga escala na administração dos espaços de fave- cesso, no entanto, está longe de ser unívoco: podemos discernir ao menos
las, renomeadas “comunidades”, a partir da intervenção dos projetos sociais três ordens de representações dele oriundas. Em primeiro lugar, os teste-
desenvolvidos por ONGs ou projetos governamentais, ou composições das munhos indiciam uma substituição de gestores do problema carcerário,
duas. É esta ligação entre vida na periferia e prisões que o hip-hop estabelece, análogo à terceirização da administração de prisões a que assistimos nos
à medida que se disseminou o programa estabelecido pelos Racionais MC’s países do primeiro mundo. O sistema prisional público tende a dividir as
de dramatizar musicalmente a vida das populações marginalizadas. atenções com as precárias e descontínuas políticas identitárias segmenta-
Neste sentido soa profundamente adequado o diagnóstico de Mike rizadas, a cargo frequentemente de Organizações Não-Governamentais
Davis, de que nos encontramos diante de um mundo gerido imperialmente
que estão longe de substituir a função do Estado no “serviço” da pobreza
em que megafavelas, situadas mundialmente em cidades falidas, constituem
urbana brasileira. Em segundo lugar, configura-se um quadro de vitimiza-
zonas de “instabilidade” do ponto de vista de nossos gestores, adjacentes ao
ção por parte da opinião pública, que ressente o recuo de seu direito de ir e
36 Loïc Wacquant. As prisões da miséria. Tradução: André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
vir diante do aumento de taxas de criminalidade e considera o próprio con-
Editor, 2001, p. 11. ceito de “direito humano”, ou de direito de presos – do qual o testemunho
37 Dados do Infopen: http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE- carcerário seria uma expressão importante –, um privilégio inadmissível,
94C6840068B1624D28407509CPTBRNN.htm (Acessado em 30/05/2012).
38 Cf. “População carcerária brasileira (quinquênio 2044-2007). Evolução e prognósticos”, 40 Mike Davis. Planeta favela. Trad. Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo editorial, 2006; Paulo
obtido no InfoPen. Eduardo Arantes. Extinção. São Paulo: Boitempo editorial, 2007, p. 300.
39 Loïc Wacquant. As prisões da miséria, loc. cit., p. 10. 41 Ibidem., p. 7.

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índice maior da frouxidão de nossas leis, que atribuem direitos a presos tarde, o coronel foi eventualmente acusado de homicídio e condenado a
e não à população trabalhadora e legal. Neste sentido, como veremos, a 632 anos por 102 das 111 mortes (seis anos por cada homicídio e vinte anos
representação prisional exacerba o modelo securitário vigente, que ela vem por cinco tentativas de homicídio). No ano seguinte, durante o trâmite do
a confirmar e a justificar. Em terceiro lugar, confirma-se uma estetização recurso da sentença de sua condenação, foi eleito deputado estadual por
vigorosa da criminalidade, com estilização comportamental e desenvolvi- São Paulo, devido à celebridade obtida por sua atuação no massacre (cf. a
mento de modelos e modas juvenis. escolha lúgubre, embora por ele negada, do número 14.111 como número de
Rigorosamente, portanto, em uma avaliação sóbria, retrospectiva, legenda, em referência ao número de mortos). Já como deputado, o recurso
posso discernir um legado profundamente contraditório do massacre e do de sua sentença condenatória foi julgado pelo Órgão Especial do Tribunal
boom testemunhal originado por ele. Por um lado, foi o momento em que de Justiça em 15 de fevereiro de 2006 (cinco anos após o julgamento), que
o público em grande escala deixou de perceber esses seres humanos “invi- reconheceu um “equívoco” na sentença, o que acabou fazendo com que o
síveis” à sociedade como algo que deveria permanecer como tal: invisível, réu fosse absolvido. Em 9 de setembro de 2006, quando se candidatava à
quando não morto – esse é o elemento constitutivo da subjetivação, de visi- reeleição, foi assassinado, ao que tudo indica por sua amante, em crime
bilização, e vocalização de uma enunciação carcerária; e por outro, em sen- aparentemente “passional”. Como deputado, teve papel importante nas
tido simétrico inverso, a articulação de uma representação pública em torno discussões sobre o “direito” à arma durante o referendo sobre o desarma-
dos temas fortes da segurança pública, que resultou na fragorosa derrota, mento em 2005, junto com o Deputado Federal Luiz Antônio Fleury Filho
mais do que tudo simbólica, do referendo das armas em 2005 – o massacre – governador à época do massacre e, em última análise, instância decisória
do Carandiru, em suma, fortaleceu os temas da representação securitária. da invasão da polícia militar naquela ocasião, como vimos –, os dois inte-
A história do Coronel Ubiratan Guimarães, comandante da opera- grando com outros deputados a chamada “bancada da bala”.
ção do massacre e até hoje a única pessoa julgada por ele, é, nesse sen- Em resumo, o massacre não apenas subjetivou o preso, constituindo
tido, exemplar desta segunda ordem de efeitos.42 Já no ano após o massacre, um espaço importante de reivindicação de direitos; instituindo o testemu-
ele seria saudado como herói nacional pelo público na parada militar de nho carcerário no Brasil, mas estimulou a representação política militari-
7 de setembro, mostrando uma evidente segmentação nacional em torno zante, com grande apelo de votos, e cujo mote notável é o fortalecimento
dos temas da segurança e da violência. Em 2001, portanto nove anos mais do aparelho de segurança policial como solução para todos os problemas
brasileiros. Portanto, houve uma dupla subjetivação: a do preso e a da
42 No momento em que revejo as provas deste livro (em abril de 2013) se conclui o primeiro representação policial/política, e um espaço de lobismo forte do aparelho
julgamento de policiais acusados pelo massacre do Carandiru. Vinte e um anos após o inci- policial/militar de segurança; além de, é preciso não esquecer, numa zona
dente, 26 dos policiais que participaram do massacre, membros do 1oo Batalhão de Choque
das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (a ROTA), acusados de terem assassinado 15 detentos,
cada vez mais ambígua entre a criminalidade e o discurso da reivindicação
foram julgados, dos quais 23 considerados culpados por júri popular, e condenados a 156 anos de direitos, articular a formação do Primeiro Comando da Capital (PCC).
de reclusão. Outros três júris ainda ocorrerão, julgando 56 policiais militares acusados tam- Explica-se assim o efeito inverso ao pretendido pelas frequentes rebe-
bém de participar do massacre. A Anistia Internacional aprovou a condenação, ressaltando
o atraso de sua realização e o não julgamento das autoridades responsáveis pela ordem do liões em estabelecimentos penitenciários: ao invés de chamar a atenção para
massacre: o governador e o secretário de segurança do estado de São Paulo. O testemunho a calamidade que ocorre dentro das prisões, insufla a justificativa de endure-
de acusação do perito criminal Osvaldo Negrini Neto, que fez a análise pericial do local do
massacre, é elucidador: o local foi devidamente limpo pelos policiais após o massacre, de cimento, ou simplesmente o “respeito”, das regras do sistema carcerário. É no
forma a encobrir provas de culpa dos policiais envolvidos, mas as marcas de balas nas paredes entanto emblemático que os avanços legais no que toca ao direito dos presos
das celas comprovam que os detentos fechados em suas celas foram executados, desarmados
e sem resistência. Espera-se que a advogada de defesa entre com um recurso, e quem sabe ocorram vagarosamente, mas sempre a reboque de rebeliões graves. Assim,
peça a anulação do julgamento, o que, somado à morosidade do processo judicial brasileiro, a elementar realização de um censo carcerário brasileiro, instrumento essen-
à possibilidade de que o recurso leve ao Supremo Tribunal Federal, o que pode levar até 10
anos, e ao fato de que os réus, por direito, esperam o trânsito do julgado em liberdade, faz
cial para o controle de penas e para o conhecimento de fato da realidade
com que possivelmente nenhum dos réus passe um dia sequer na prisão. carcerária brasileira, ocorreu apenas recentemente, e de forma ainda tímida

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e incompleta (apenas os sistemas de São Paulo, Rio de Janeiro e Sergipe são capítulo 4
incluídos). Anunciada nos jornais de 19 de março de 2007, a iniciativa é sem
O encontro e a festa (Hermano Vianna)
dúvida consequência das duas rebeliões organizadas pelo PCC em São Paulo
em 2006.43 O que confirma terrivelmente a eficácia tática desta ONG do crime,
cuja estratégia tem analogias com a das negociações sindicais.
Dostoiévski, que conhecia bastante bem as prisões, costumava dizer que
cada país tem a prisão que merece. O Brasil não poderia escapar a esta regra.
Em um país com um estrito código duplo – onde há uma lei para os
pobres e outra para os ricos – as prisões são microcosmos dos subúrbios,
favelas e periferias das grandes cidades, onde a compartimentalização dos
guetos é literalmente realizada, e os pobres estão precisamente empilhados
em prisões superpovoadas, como grandes depósitos de “vida nua” con- Não exagero ao afirmar que as duas teses de Hermano Vianna, O mundo
forme a expressão cunhada por Walter Benjamin. Lembremo-nos da frase funk carioca (1988) e O mistério do samba (1995), renovaram profundamente
de Foucault: “A prisão é o único lugar onde o poder pode se manifestar o debate sobre música popular brasileira quando apareceram. A utiliza-
puramente em suas dimensões mais excessivas e justificar-se como poder ção do instrumental da antropologia na reflexão sobre a música permite
moral”.44 As representações carcerárias, que visam a representar positiva- o desentranhamento preciso e circunstanciado dos processos sociais da
mente a realidade prisional, mostram um mundo setorizado, um experi- gênese heterogênea da música popular brasileira. Na retomada dos dois pro-
mento laboratorial classificatório, que tem na prisão a sua execução mais jetos, contida no primeiro anexo de O mistério do samba, Hermano restabe-
aperfeiçoada. William da Silva Lima descreve as prisões como “depósito lece retrospectivamente uma coerência entre os livros pelo viés do conceito
de carne humana” e produz um diagnóstico preciso do efeito perverso da de transculturação, cunhado pelo antropólogo cubano Fernando Ortiz.1 No
exclusão da prisão do mundo civil: “isso vai refletir na própria sociedade, livro sobre o funk ele tentara examinar a maneira pela qual uma música
isso tem um retorno, quando se joga uma bola ela volta”.45 norte-americana fora adotada nos subúrbios cariocas, com resultados abso-
lutamente diferentes de seu uso nos EUA.2 Já em O mistério do samba, ele
43 O Sistema Integrado de População Carcerária (SIPC), foi criado mediante a Resolução n. 33, analisara a fabricação (invenção ou construção) eminentemente artificial do
de 10 de abril de 2007, do Conselho Nacional de Justiça, presidido pela Ministra Ellen Gracie. samba “autêntico” como símbolo da identidade nacional, a partir de uma
Conforme escreve Lílian Matsuura na Revista Consultor Jurídico, de 19 de março de 2007:
“Nele constam informações cruzadas entre o Judiciário e órgãos responsáveis pela adminis- 1 A noção é exposta em Contrapunteo cubano del tabaco y del azúcar (1940), que faz para a
tração penitenciária dos estados de Sergipe, São Paulo e Rio de Janeiro. Através desse banco cultura cubana o que Casa Grande e Senzala fez para o Brasil. Explica-se, portanto, de muitas
de dados, é possível saber quais as reais condições de cada detento, como a condenação e a maneiras a sua presença no livro de Hermano. A oposição clássica entre uma cultura hierar-
previsão para ser libertado. O objetivo do trabalho é observar a preservação dos direitos de quizante e dependente do sistema escravista (o engenho de açúcar) e uma cultura associativa
cada detento, reeducá-los, diminuir a reincidência que hoje é de 60% e oferecer oportunida- e horizontalizante (a do tabaco) – com favorecimento da última, onde se encontraria fórmula
des para inserir os egressos no mercado de trabalho. [...] No Sistema Integrado de População de uma cultura nacional mestiça – é essencial para a compreensão da cultura cubana. O
Carcerária constam dados do detento como: faixa etária, sexo, cor, escolaridade, estado civil, conceito de transculturação descreve o “processo transitivo de uma cultura à outra”, sem ser
naturalidade e nacionalidade, além da condenação e previsão de saída. Além de audiências e uma simples troca de uma por outra (neste sentido, se opõe ao conceito norte-americano de
benefícios a que tem direito. [...] As principais queixas vêm de presos que ficam detidos por acculturation). A transculturação é um processo não linear que implica que tanto a cultura
mais tempo do que previsto na sentença, de condenados que não têm progressão de pena adotada quanto a original são transformadas. De forma análoga a Gilberto Freyre, o conceito
atualizada, daqueles que não têm qualificação profissional e dos egressos que não conseguem implica em uma transposição da metáfora genético-sexual: “No final, como bem sustenta a
entrar para o mercado de trabalho. A criação desse sistema também pretende reunir dados escola de Malinowski [que prefacia o livro], em todo o abraço de culturas sucede o mesmo
para descobrir quais as principais motivações para rebeliões e motins.” que na cópula dos indivíduos: a criatura sempre tem algo dos dois progenitores, mas também
44 Michel Foucault. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2000, é distinta de cada um dos dois” (Fernando Ortiz. Contrapunteo cubano del tabaco y del azú-
15ª ed. , p. 82-85. car. La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 1991, p. 90).
45 Senhora Liberdade, de Caco de Souza (2004). 2 Hermano Vianna. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995, p. 173.

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“tradição secular de contatos”, portanto, também transculturais, entre diver- Raízes do Brasil, de um lado, e do samba como símbolo da cultura nacional
sos grupos sociais, notadamente entre a elite e músicos populares.3 do outro. Acontecimento que não tem nada de repentino ou novo, satu-
A leitura enfatiza o caráter construtivista, fabricado, radicalmente inau- rado de uma história de contatos entre elite (inclusive musical) e músicos
têntico, das formas culturais: tudo é empréstimo, bricolagem, “redes coo- populares que precede de muito a esta “noitada de violão”, e que sem dúvida
perativas”, diria Howard Becker, um antropólogo caro a Hermano. Tanto continuará ocorrendo depois, mas que encontra neste momento específico
na forma local do funk carioca, “importado” de Nova York e DJficado nos uma espécie de símbolo, emblema, ou alegoria, frisará Hermano, “no sen-
bailes do Rio, quanto na forma clássica do nacional-popular que é o samba. tido carnavalesco da palavra”:6
As naturalizações, nacionalizações, ou racializações cristalizam a posteriori Talvez tenha sido isso o que mais me atraiu nessa esquecida noitada de samba:
processos complexos, arbitrários e fortuitos, estabilizando suas origens e, o fato de poder ter sido esquecida, de ser apenas um encontro a mais, rele-
frequentemente – como no caso do “samba de morro” carioca –, reinven- gado à terrível banalidade de um acontecimento qualquer, desses que nunca
tando-as retrospectivamente. É desta reinvenção que tratará O mistério do passarão à História.7
samba. E é precisamente a banalidade deste acontecimento perfeitamente
Sem discordar desta leitura, parece-me, no entanto, que o projeto anódino que interessa, ao demonstrar, de fato, a importância e a constância
comum é outro. Ou, quem sabe, seria esta apenas uma outra maneira de destes contatos entre intelectuais de elite e músicos populares, a valorização
dizer a mesma coisa. Tratam-se, a meu ver, de dois livros sobre o aconteci- de coisas brasileiras etc., que serão os personagens principais da invenção
mento. No primeiro: o baile funk dos subúrbios do Rio de Janeiro, a festa de do samba. Apenas o fato de ser perfeitamente comum, propriamente qual-
puro gasto improdutivo, parêntese excessivo à “vida séria”, que não “serve” quer, explicaria o lapso do esquecimento, comprovando paradoxalmente,
para nada, não produz sentido ou identidade, não tem função, não “resiste” pela irrelevância, a profunda relevância, para a história da constituição do
a nada, nem tampouco é programada por qualquer megaplano imperia- samba, desta sistemática tradição de contatos, tema estruturante do livro.
lista. “[O]s bailes, em sua maioria, quase não podem ser diferenciados uns Algo que lembra a hipótese de Borges sobre o nacionalismo: o que é verda-
dos outros: tocam as mesmas músicas, têm o mesmo ritmo, a mesma ‘eco- deiramente nativo prescinde de cor local, o que explica a ausência de came-
nomia’ de intensidade e animação”.4 Em O mistério do samba, por outro los no Alcorão.8 O encontro, um de muitos, “descoberto” e reconstituído
lado, o modelo, ou padrão (pattern, no jargão antropológico), é o encontro, pelo pesquisador atento, não tem absolutamente nada de excepcional, e
que revela em sua multiplicidade a identidade cultural brasileira. “O livro a descoberta não descobre propriamente nada que lá antes não estivesse,
está construído em torno de um único acontecimento, o encontro entre jazendo invisivelmente nesta importância desimportante.
sambistas e intelectuais descrito acima”.5 Trata-se do encontro ocorrido em O baile, em O mundo funk carioca, ou o encontro, em O mistério do
1926, no Catete, em que Sérgio Buarque de Hollanda, Prudente de Moraes
samba, constituem o que Marcel Mauss chama de fato social total,9 mas
Neto, Luciano Gallet, e talvez Heitor Villa-Lobos, levaram o pernambu-
cano Gilberto Freyre, então em visita ao Rio de Janeiro, para uma “noitada 6 Ibidem, p. 20.
de violão” com Pixinguinha, Donga e Patrício Teixeira. Encontro, por- 7 Ibidem, p. 36.
tanto, que une estratos da elite pensante branca e erudita e músicos negros 8 “Encontrei dias atrás uma curiosa confirmação de que o verdadeiro nativo costuma e pode
prescindir da cor local; encontrei esta confirmação na História do declínio e queda do império
pobres; momento anterior, de gestação, daquilo que se consagrará nos anos romano de Gibbon. Gibbon observa que no livro árabe por excelência, o Alcorão, não há
1930 – portanto apenas alguns anos mais tarde – sob a forma conhecida, camelos; creio que se houvesse qualquer dúvida sobre a autenticidade do Alcorão, bastaria
esta ausência de camelos para provar que é árabe” (Jorge Luis Borges. “El escritor argentino y
“demiúrgica” (dirá Francisco de Oliveira), de Casa-Grande & Senzala e de
la tradición”, in Discusion (1932). Prosa Completa, vol. 1. Barcelona/Buenos Aires: Bruguera/
Emecé, 1985, p. 221).
3 Ibidem, idem.
9 O conceito é formulado no Ensaio sobre a dádiva. Na explicação de Lévi-Strauss: “... O social
4 Ibidem, p. 95. só é real quando integrado em um sistema”. O procedimento sociológico consiste em analisar
5 Ibidem, p. 35. e abstrair os dados, mas é preciso, em seguida, recompor a totalidade dos fatores em jogo. Não

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relido e modificado por Hermano: um sob a forma da série, e o outro sob da violência: briga das galeras, às vezes seguida de morte (embora Hermano
a da variação. No baile funk, o modelo é a série: a “eterna repetição do nunca tenha visto nada parecido em sua pesquisa).14 É sempre a homoge-
mesmo”,10 que a cada semana leva os dançarinos do funk a vir aos mesmos neização que pode ser interrompida pela heterogeneidade da briga, ou vice-
locais, encontrar-se com os mesmos amigos, dançar as mesmas coreogra- versa: a heterogeneidade dos grupos e indivíduos pode ser temporariamente
fias, ao ritmo de praticamente as mesmas músicas, por um prazer quase fundida em massa, criando-se o que Elias Canetti chama de “descarga”.15
inútil, se não fora a “utilidade” do encontro dos amigos, o prazer da “socia- Esta heterogeneidade/homogeneidade do objeto corresponde a uma
bilidade”, como dirá Hermano, citando Simmel. E no caso do samba, o que perspectiva metodológica análoga. O pesquisador é sistematicamente
estrutura o livro é a variação, no sentido musical do termo: o encontro de cético a respeito de respostas já prontas, inclusive as suas, que são paula-
elite e populares, de brasileiros e estrangeiros, de brancos e negros, consiste tinamente examinadas e refutadas à luz do campo. Os bailes têm “muitas
na matriz ou modelo constitutivo do samba como símbolo da identidade contradições”, conclui Hermano.16 De fato, o DJ é uma figura central no
nacional, e será objeto, ao longo do livro, de tantas outras variações deste baile, mas nem tanto, já que “uma minoria presta realmente atenção ao que
encontro, que repetem a sua estrutura básica, modificando ou modulando o DJ está fazendo”.17 As pessoas frequentam o baile não propriamente pela
alguns elementos, mas mantendo essencialmente a mesma configuração. música, mas pelo ambiente. Não há fetiche de colecionador de discos: há
Ambos os estudos partem da premissa básica da heterogeneidade cons- como que uma quase indiferença à música em si, o essencial é que ela seja
titutiva das sociedades complexas, conceito colhido por Hermano de seu boa para dançar.18 No que toca às roupas e à coreografia, idêntica complexi-
mestre Gilberto Velho. Enquanto que nas sociedades simples “os indivíduos dade. O modelo de indumentária é o surfista de classe média, mas as dan-
participam de uma única visão de mundo, de uma única matriz cultural”,11 ças imitam as piruetas de Michael Jackson. Os bailes não produzem pro-
nas sociedades complexas há “coexistência, harmoniosa ou não, de uma priamente uma identidade de grupo: as pessoas saem dos bailes depois dos
pluralidade de tradições cujas bases podem ser ocupacionais, étnicas, reli- fins de semana e continuam suas vidas absolutamente desligadas de funk.
giosas, etc.”12 Mas as coisas não são tão simples, protocolo programático da O puro divertimento é sempre assombrado pelo perigo da deflagração de
complexidade do objeto: há uma tensão curiosa entre a heterogeneidade violência, mas esta violência tampouco explica integralmente o baile, que
do complexo e uma tendência interna à homogeneização. A festa tradicio- de maneira nenhuma se reduz a ela, como queriam (e ainda querem, às
nal, tal qual estudada por Durkheim, por exemplo, é um “importante fator vezes) as autoridades e a mídia carioca. A maior parte dos funkeiros sente-
de homogeneização da sociedade, colocando de lado as diferenças e enfa- se inclusive insultada quando se diz que o baile que frequenta é violento.
tizando o sentimento de unidade”,13 mas já a festa metropolitana contem- A violência é a “parte podre dessa suculenta maçã que é o baile”, e não
porânea, caso dos bailes funk, é necessariamente atravessada por fluxos de pode ser extirpada:19 é impossível haver um sem o outro. Há sexualidade e
sociabilidades distintas, e não unificáveis. Nos bailes a tendência à homo- erotização das danças, mas este elemento tampouco determina o que seja
geneização do ritmo, do som cada vez mais intenso e alto, das coreografias o baile. Há drogas, como em qualquer lugar, mas nada além da medida:
que levam os funkeiros ao delírio, é constantemente espreitada pelo perigo poucas vezes Hermano observou uso ostensivo de droga em bailes.
A tese frankfurtiana também não funciona: não há “complô da indús-
se pode compreender o fato social a partir de apenas um aspecto da sociedade; no entanto, é tria fonográfica multinacional que deseja impor o consumo de música
verdade que o fato social não pode consistir na simples recomposição de aspectos descontí-
nuos, mas deve ser apreendido em uma experiência singular concreta (Claude Lévi-Strauss.
Introduction to the Work of Marcel Mauss. Trad. Felicity Baker. London: Routledge & Kegan 14 Ibidem, p. 84-89.
Paul 1987, p. 25-26). 15 Ibidem, p. 60-61.
10 Hermano Vianna. O mundo funk carioca. Rio de Janeiro: Zahar, 1988, p. 106. 16 Ibidem, p. 106.
11 Gilberto Velho e Eduardo Viveiros de Castro apud Hermano Vianna, ibidem, p. 65. 17 Ibidem, p. 94.
12 Gilberto Velho apud HermanoVianna , ibidem, p. 65. 18 Ibidem, p. 104.
13 Ibidem, p. 64-65. 19 Ibidem, p. 89.

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negra norte-americana nos subúrbios do Rio”.20 Os bailes demonstram, pelo les não é nenhuma transgressão. Gestos eróticos mais ousados são veiculados
contrário, que a indústria cultural não apenas homogeneiza, mas é capaz de pela publicidade no horário nobre da televisão.26
produzir diferenças inelutáveis, conforme seus produtos são utilizados por O baile é, portanto, “puro gasto de energia”. Mas tampouco é avesso ao
grupos culturais diferentes.21 Como explicar um imperialismo que expor- “espírito do capitalismo”, já que pode-se perfeitamente ganhar (e ganha-se)
tasse os comportamentos de uma minoria marginalizada nos próprios muito dinheiro nos bailes (contraposição à tese durkheimiana/batailliana
Estados Unidos,22 e que, na verdade, não vendesse disco quase nenhum (o da inutilidade absoluta, do puro desperdício da festa). Observe-se como a
consumo de discos era restrito às equipes e DJs, frequentadores não com- obediência à regra da complexidade (obediência à regra da desobediên-
pravam discos)? A “importação” não obedece aos parâmetros conhecidos cia) e da heterogenia é implacável. Esgueirando-se no intervalo de todas as
e estudados: os objetos de consumo da indústria cultural entram no Brasil definições, identidades e sentidos, sistematicamente negando todos os pre-
pelas classes médias cariocas e paulistas, sendo em seguida “exportados” conceitos teóricos sobre o seu objeto, o pesquisador afirma afinal: “A festa é
para o resto do Brasil, via TV Globo. Ora, nada disso ocorre: a pesquisa excesso, em todos os sentidos, para não fazer sentido nenhum”.27
como um todo é pautada pela constatação surpreendente de que no Grande
Rio, na época (1985-1987), eram realizados em torno de 700 bailes todos os ***
fins de semana, nos quais se calculava a presença de mais ou menos um
A mesma isomorfia entre objeto heterogêneo e heterogeneidade meto-
milhão de funkeiros, sem que na zona sul do Rio se tivesse a mínima ideia
dológica aparece em O mistério do samba. O processo narrado pelo livro,
do que fosse o fenômeno.23 “O hip-hop corta as etapas e intermediários.
de transformação “misteriosa” de uma cultura subalterna local – o samba
A importação cultural é feita diretamente e o modelo escolhido para ser
nascido no centro da cidade do Rio de Janeiro – em símbolo da nacionali-
‘copiado’ nada tem a ver com o modelo ‘new wave’ venerado pelos surfistas
dade, pode ser resumido da seguinte maneira:
zona-sulistas”.24 O hip-hop carioca é fruto de “contatos clandestinos” entre
duas culturas diferentes, o que só se tornou possível mediante novas tecno- a invenção do samba como música nacional foi um processo que envolveu
logias de informação e de transporte que driblam os canais hegemônicos muitos grupos sociais diferentes. O samba não se transformou em música
nacional através de um grupo social ou étnico específico, atuando dentro de
dos meios de comunicação. um território específico (o “morro”). Muitos grupos e indivíduos (negros,
Não há portanto “controle” “imperialista” do consumo cultural. Pelo ciganos, baianos, cariocas, intelectuais, políticos, folcloristas, compositores
contrário, a existência destes bailes é um ato de desobediência às determi- eruditos, franceses, milionários, poetas – e até mesmo um embaixador norte
nações do consumo. Mas desobediência “inconsequente”, que não “resiste” -americano) participaram, com maior ou menor tenacidade, de sua “fixação”
como gênero musical e de sua nacionalização. Os dois processos não podem
a nada, que não forma “identidades” contestatárias de grupo, nem muito
ser separados. Nunca existiu um samba pronto, “autêntico”, depois transfor-
menos étnicas. “Quem está louco de alegria não está interessado em produ- mado em música nacional. O samba, como estilo musical, vai sendo criado
zir definições sociológicas ou princípios de identidade”.25 Conclusão: concomitantemente à sua nacionalização.28
Nos bailes, nenhuma regra social é contestada. Não existe nenhuma inversão A primeira parte do trecho retoma os temas clássicos da heterogenei-
de papéis ou valores, como dizem haver no carnaval. Quais são os valores
dade constitutiva brasileira, e aproveita, resumindo temas desdobrados no
dominantes da “nossa” sociedade? Até a liberalidade sexual que se vê nos bai-
livro, para desmistificar muitas crenças, como a de que o “samba de morro”
20 Ibidem, p. 101. nascera no morro e só posteriormente “descera” para a cidade e a de que
21 Ibidem, p. 108. o samba fora criação basicamente das classes negras e pobres, havendo
22 Ibidem, p. 103.
23 Ibidem, p. 13. 26 Ibidem, p.106.
24 Ibidem, p. 103. 27 Ibidem, p. 108.
25 Ibidem, p. 108. 28 Hermano Vianna. O mistério do samba, loc. cit., p. 151.

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quando muito apropriação pelas classes altas e brancas. Não: o samba é Na miscigenação ocorre um “precário equilíbrio dos antagonismos”, que
criação radicalmente coletiva, resultado de vastas “redes cooperativas”, permite a convivência pacífica e intensa das diferenças constitutivas em
como diria Becker, de que participaram muitos grupos e indivíduos. Mas a uma medida sutil a meio caminho entre a proximidade e a distância. Nem
questão não para aí. Se atentarmos para a parte final do trecho observare- propriamente dissolvidas em “uma nova figura”, nem distantes a ponto de
mos que o cerne do problema se encontra em outro lugar: o livro descreve, se configurarem autonomamente.
na verdade, dois processos distintos, mas inseparáveis: o do simultâneo A singularidade luso-brasileira, a “plasticidade” tolerante e empática
nascimento do samba e sua paralela transformação em música nacional. A da colonização portuguesa, sua maior abertura à diferença e à indefinição,
diferença dos “muitos grupos sociais”, a heterogeneidade dos participantes, reside no fato de ela achar uma medida ótima entre a distância e a fusão
coexiste e é irresistivelmente ligada a um processo de homogeneização e integral, que permite que as diferenças constitutivas ao mesmo tempo
unificação, que simboliza a diversidade nacional, “fixando”-a, e associando interajam sem se dissolverem integralmente. Se as diferenças se afastam
inelutavelmente uma forma artística (um ethos, uma atitude...) à nacionali- em demasia e deixam de interagir ocorre o perigo multicultural de uma
dade. Portanto, dois processos constitutivos, contraditórios e fundidos em segmentação minoritária (associada por Gilberto Freyre, na época, à pro-
um: de heterogeneidade e homogeneidade. paganda alemã), uma precipitação indesejável a ser evitada. É paradoxal-
A proposição da convivência intensa e pacífica entre heterogeneidade mente o isolamento colonial brasileiro, rompido pela abertura dos portos
e homogeneidade parte, na verdade, de Gilberto Freyre. É de fato o modelo e pela chegada da família real, que determinará a dissolução da forma mis-
étnico culturalista freyriano que estrutura o livro, ao fornecer pela primeira cigenada (dissolvida) das diferenças na liga típica entre casa-grande e sen-
vez, segundo Hermano, o mote do mistério do samba como símbolo da zala – tema de Sobrados e mucambos. A re-europeização do Brasil destrói
cultura brasileira. Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala terá antes de o “equilíbrio dos antagonismos”, a fusão aristocrática parcial mas sempre
mais ninguém realizado a “façanha” de valorizar e imprimir caráter positivo fecunda da casa-grande com a senzala, e inicia um processo de gradual
ao que era antes desprezado, descobrindo a singularidade brasileira preci- ilhamento e exclusão do lado pobre do binômio: os “mucambos, gradual-
samente naquilo que o evolucionismo geneticista e a eugenia do século XIX mente expulsos para zonas cada vez mais longínquas e insalubres”.32 Ciclo
havia visto como a fórmula mesma da degenerescência e explicação para o de proximidade e separação que se repetirá no momento precário e fugidio
nosso atraso irredutível: a miscigenação.29 A mestiçagem é precisamente o em que o “encontro” entre grupos sociais distintos, que dá origem ao samba
homogêneo heterogêneo. A operação realizada por Freyre retoma a trans- carioca, é possibilitado pela estrutura permeável e mista das moradias do
posição da categoria étnica para a cultura, mas positiva as “coisas brasi- centro do Rio de Janeiro (os cortiços, etc.), e que “subitamente” já não o é
leiras”, como positivara o mestiço, o mulato, o moreno, identificando-os mais, após a série de reformas urbanísticas “sanitarizantes” por que passa
a nós e ao que é nosso. Vejamos como define a mestiçagem Ricardo Ben- a cidade no início do século XX, espalhando os habitantes da cidade: os
zaquem de Araújo, em uma fórmula importante para Hermano: ela é um pobres são expulsos para os morros e subúrbios e os ricos mudam-se para
“processo no qual as propriedades singulares de cada um desses povos não a orla marítima (Copacabana, Ipanema, Leblon, etc.). Ciclo que, mais uma
se dissolveriam para dar lugar a uma nova figura”.30 O que Hermano para- vez, se repetirá a cada vez que a cultura brasileira reproduzir-se a si própria,
fraseia nos seguintes termos: “A dissolução no arco-íris de todas as raças a cada vez que ela (re)criar o que a notabiliza, e que, como tal, não tem
não significa o apagar das diferenças, mas sim o convívio, sem separação absolutamente nada de repentino, ou de súbito.
entre diferenças, com infinitas possibilidades de combinações entre elas”.31 Freyre considera uma felicidade não termos no Brasil uma “poesia
africana” como a norte-americana, “poesia crispada quase sempre em ati-
29 Ibidem, p. 63. Embora, como em tudo o mais, Machado tenha visto antes. Cf. o Pestana de “Um
homem célebre”. Sobre isso veja-se o essencial “Machado-maxixe”, de José Miguel Wisnik.
30 Benjaquem de Araújo apud Hermano Vianna. O mistério do samba, loc. cit., p. 87.
31 Ibidem, p. 91. 32 Ricardo Benzaquem de Araújo apud HermanoVianna, ibidem, p. 89.

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tude de defesa ou de agressão”.33 Aqui cristaliza-se o paradoxo freyriano: Tudo se reduz assim a encontrar a justa e difícil “medida” entre a diver-
a diferença luso-brasileira, sua peculiar abertura e inclusão de diferenças, sidade necessária e criativa e a perigosa entropia do homogêneo. Gilberto
seu caráter essencialmente indefinido, define-se por uma única e sistemá- Freyre, explica Hermano, é fundamentalmente antientrópico, programa-
tica exclusão: a exclusão do excludente.34 Daí a preferência pela dissolução ticamente avesso a qualquer estabilização marmórea que fixasse a cultura,
das tradições culturais étnicas singulares (a poesia negra ou ameríndia) em bloqueando a sua constante metamorfose.37 Nesta definição indefinida, em
uma tradição mulata, que se definiria pela indefinição, radicalmente amorfa que tudo o que permanece é a impermanência, onde o mesmo é a meta-
e aberta à perpétua absorção de outras culturas. O paradigma assimilacio- morfose, portanto, o perigo entrópico aparece dos dois lados da equação:
nista defendido por Freyre consiste, portanto, precisamente na escolha de o excesso de homogeneidade e o excesso de heterogeneidade podem pro-
um modelo cultural homogêneo como símbolo do Brasil, onde as hetero- duzir uma indesejável marmorização cultural. De um lado, a desordem do
geneidades fossem tensionadas pela coexistência umas com as outras, não excesso heterogêneo: o ilhamento multiculturalista; e de outro, a desordem
sendo, no entanto, desejável (ou permissível) que elas se individualizassem simétrica do excesso homogêneo: a mesmice mulata. “O elogio da mes-
em tradições autônomas. tiçagem não pode deixar de estabelecer algum diálogo com esse (quase)
A discussão é antiga, e remete ao balancear equívoco entre o mesmo e todo-poderoso ‘paradigma’ da diferença”.38 Diálogo, no entanto, ma non
o outro. A diferença mestiça é espreitada pelo perigo da mesmice, ao rejeitar troppo: a fórmula da inconstância constante parece assombrada pelo perigo
as diferenças distanciadas e não dissolvidas. A defesa etnográfica do “afas- da deflagração da violência da heterogeneidade, que a liga da dissolução
tamento diferencial” das culturas (indígenas e outras), como “reservas” de equilibrada mas pacífica dos antagonismos precisa excluir.
diferença, consiste em ver na manutenção desta ilhas de singularidades um
A heterogeneidade é primeira. A homogeneidade é um projeto, uma tendên-
requisito essencial à criatividade social da humanidade, permitindo “saltos” cia (fortalecida artificialmente), um acontecimento raro, sempre às voltas
evolutivos a um mundo do contrário reduzido a um “gênero de vida único”, com uma provável rebelião da heterogeneidade (no caso brasileiro, Sobrados
petrificado.35 Embora, mais uma vez, o espaçamento das diferenças ilhadas e mucambos pode ser pensado como uma dessas “rebeliões”). Gilberto Freyre
em reservas oculte as zonas porosas de contato – precisamente o contato que teme a tendência exclusivista da heterogeneidade e acaba correndo o risco de
inventar uma homogeneidade (elogiada, não paradoxalmente, por ser aberta
interessa a Hermano e à tradição matricial do samba – em que as singula- e indefinida, podendo abarcar qualquer diferença) também exclusivista.39
ridades se multiplicam e dividem, produzindo-se e desfazendo-se, em um
processo de criatividade destrutiva, essencialmente violenta. É mais uma vez Há um privilégio do heterogêneo sobre o homogêneo. A heterogenei-
a violência das zonas intermediárias, da proximidade que não é nem fusão dade é principal e a homogeneidade um acidente raro, um projeto (nacio-
(dissolução) nem afastamento, mas ocupação do mesmo espaço, superposi- nal) inventado ou imaginado (Hermano elabora a noção de “comunidade
ção, que a fórmula parece tentar escamotear. O tema, no entanto, se presta a imaginada” de Benedict Anderson): um acontecimento. Mas é a homoge-
uma tradução em termos da lei da entropia: todo sistema tem uma parcela neidade que faz com que as diferenças interajam, que coloca “em contato
de desordem embutida nele. À medida que a desordem aumenta, mais o mundos que pareciam separados”.40 Sem ela, portanto, não há sociedade,
sistema se torna homogêneo, aproximando-se de um equilíbrio mortuário. ou realidade. É a homogeneidade que sistematiza ou simboliza as dife-
A heterogeneidade está ligada à ordem sistemática, essencial para a criativi- renças. O que não quer dizer que as heterogeneidades constitutivas não
dade, e para que o “sistema possa produzir algo de interessante”.36 37 Hermano cita aqui uma passagem do belo texto de Eduardo Viveiros de Castro “O mármore
e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem”, que parte da dicotomia estabelecida por
Vieira, no Sermão do Espírito Santo (1657), entre as culturas que são como estátuas de már-
33 Ibidem, p. 91. more (as europeias), e as que são como estátuas de murta (as indígenas).
34 Ibidem, p. 148. 38 Ibidem, p. 150-151.
35 Claude Lévi-Strauss apud HermanoVianna, ibidem, p. 150. 39 Ibidem, p. 151.
36 Ibidem, p. 150. 40 Ibidem, p. 155.

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sejam elas próprias também construções simbólicas. Este é o reparo sutil afirmando, ao mesmo tempo, que é este o problema inescapável que estru-
que Hermano faz à transculturação de Ortiz: não esquecer que as culturas tura a música brasileira como um todo.
transculturadas e reciprocamente alteradas são elas próprias, desde sem-
pre, e de antemão, misturadas, não existindo nenhuma cultura pura “ante- ***
rior” ao processo de mistura. Neste sentido, toda cultura é originalmente Toda cultura se constitui no ponto sutil em que a heterogeneidade se
transculturada: fabricação inautêntica. Ou autenticamente inautêntica. homogeniza, precariamente afastando o perigo da diferença rebelde que
Tensão e contradição constitutiva que retornará constantemente à cul- move e inicia o processo, e sempre o assombra como ameaça de disso-
tura brasileira sob a forma de polêmicas que deliberam sobre o ponto legí- ciação e distância, permeando-o de cabo a rabo. Os “mediadores trans-
timo da pureza da mistura ou da pura impureza estrutural da cultura que culturais” são as figuras que “encarnam” este duplo papel de homogêneo/
tudo pode assimilar, mas até um certo ponto. Onde a pura mistura extra- heterogêneo, pondo em contato os mundos diferentes no acontecimento,
pola e transgride os limites estreitos de uma brasilidade essencialmente sendo eles próprios, ao mesmo tempo, diferentes e homogêneos a cada
reconstruída? Hermano palmilha esta repetida polêmica que retoma sem- contexto homogêneo que interligam. São eles, portanto, que efetuam a
pre a matriz da construção retrospectiva de uma autenticidade do samba síntese assintética ao realizar no acontecimento improvável a união do
“de morro”, e que não é do morro. Assim, nos exemplos mais acabados da heterogêneo e do homogêneo.43
modernidade musical brasileira – de Carmen Miranda a Tom Jobim, Cae- A mediação, no entanto, não é nunca um processo pacífico, ou nunca
tano Veloso e Gilberto Gil, chegando até o rock brasileiro nos anos 1980 e exclusivamente um processo pacífico, ao contrário do que poderia, quem
aos blocos afro-baianos – houve sempre crise de identidade e acusações de sabe, imaginar Freyre, ou pelo menos o Freyre tal qual reconstruído por
não brasilidade, americanização, jazzificação, ou alienação (cf. o capítulo Hermano.44 A heterogeneidade está para a violência assim como a paci-
“Lugar nenhum”). Todos os debates são argutamente reduzidos por Her- ficação está para a homogeneidade. Lembremo-nos da premissa básica
mano a sua matriz inicial: a autenticidade é um falso problema verdadeiro, sobre as sociedades complexas, formulada por Gilberto Velho: nelas há
cuja cena originária é posta pelo “samba de morro” – que apenas alguns “coexistência, harmoniosa ou não, de uma pluralidade de tradições cujas
anos após a sua criação já reconstruía retrospectivamente a sua falsa pureza bases podem ser ocupacionais, étnicas, religiosas, etc.” (meu itálico).45 No
como argumento de autenticação e demonstração de sua singularidade.41 entanto, parece-me que Hermano oculta ou minimiza este aspecto não har-
A apologia do falso originário, a retomada da “linha evolutiva” ou a acusa- monioso da coexistência de tradições plurais, por assim dizer, extirpando
ção de falsidade com relação a um modelo de pureza igualmente inventada “a parte podre da maçã”. É portanto em torno da questão da violência ou da
constituem algumas faces de um falso problema, que é preciso transcender, pacificidade da mediação que se realiza uma pequena torção em Gilberto
mas que permanece verdadeiro na medida em que se coloque a questão Freyre, no Gilberto Freyre de Hermano, ou no Brasil de Gilberto Freyre tal
da música popular brasileira. Apesar de falso, o problema continua a ser qual reconstruído por Hermano.
colocado nestes termos: Paulinho da Viola se queixará sempre, com razão,
da perda do vínculo comunitário que caracterizava até há pouco tempo 43 Sobre tudo isso ver: “À quoi reconnaît-on le structuralisme?”, de Gilles Deleuze. Ou, sobre
os mediadores, o ensaio do mesmo autor, citado por Hermano, “Les intercesseurs”; além da
a relação entre sambistas, etc.42 Um dos méritos do livro consiste preci- coletânea editada por Gilberto Velho e Karina Kuschnir, Mediação, cultura e política.
samente em deslocar de maneira irrefutável o problema da autenticidade, 44 Sou testemunha, a propósito, de uma experiência curiosa. Certa vez, escrevendo um artigo
sobre Gilberto Freyre, reli Casa-Grande & Senzala inteiro procurando as marcas dessa “paci-
ficação”, e encontrei, para minha “decepção” e surpresa, um livro implacável sobre a discrimi-
nação racial, onde abundam descrições de tortura de escravos, etc. Que apenas um lado da
41 “Mas o fato é que a luta pela preservação do autêntico ganha mesmo terreno logo depois da equação tenha sido mantido – o lado da harmonização – é uma operação da qual sem dúvida
formação das primeiras escolas de samba. E a ‘autenticidade’ ganha apoio oficial” (Ibidem, não está inocente o próprio Freyre, o que é até certo ponto compreensível. Mas é menos com-
p. 124). preensível que esta idealização epigonal retrospectiva seja perpetuada, às vezes, até hoje em dia.
42 Ibidem, p. 123. 45 Gilberto Velho apud Hermano Vianna. O mundo funk carioca, loc. cit., p. 65.

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Senão, vejamos. Hermano sabe mais do que ninguém do problema, estrangeiros: Franz Boas e Gilberto Freyre; Blaise Cendrars e os modernis-
e afirma, de fato, logo de início, que não pretende negar a existência da vio- tas; Darius Milhaud e a música popular brasileira; a fusão sem síntese entre
lência no encontro, ou de encontros violentos que mancham a “tradição cosmopolitismo e regionalismo e entre cultura popular e erudita, em Freyre,
secular de contatos” pacíficos que define a cultura brasileira: etc. Os personagens se multiplicam: Noel, Afonso Arinos, Mário Reis...
A construção da fórmula do encontro “intenso e pacífico” dos grupos
Pretendo mostrar como a transformação do samba em música nacional não
foi um acontecimento repentino, indo da repressão à louvação em menos de heterogêneos como forma da brasilidade é expressa por estes mediadores, e
uma década, mas sim o coroamento de uma tradição secular de contatos (o pela tradição do encontro, que homogeneiza as diferenças ao fixar a forma
encontro descrito acima é apenas um exemplo) entre vários grupos sociais de uma cultura popular brasileira. Mas sem excluir a violência e a repressão
na tentativa de inventar a identidade e a cultura popular brasileiras. Não é – embora, de fato, nada disso ocorra no encontro descrito e em nenhum
minha intenção negar a existência da repressão a determinados aspectos
dessa cultura popular (ou dessas culturas populares), mas apenas mostrar dos encontros estudados no livro. A afirmação enfática de Hermano parece
como a repressão convivia com outros tipos de interação social, alguns deles neste ponto um pouco com uma denegação, no sentido freudiano do
até mesmo contrários à repressão.46 termo: “não é minha intenção negar a existência da repressão a determi-
nados aspectos dessa cultura popular (ou dessas culturas populares), mas
O projeto do livro é limitado. Não nega a existência da violência, tão
apenas mostrar como a repressão convivia com outros tipos de interação
somente afirma a coexistência da violência com outra coisa, com outras for-
social, alguns deles até mesmo contrários à repressão”. Ou, no final do livro,
mas de interação social: a louvação, por exemplo. O “mistério” que Her-
reafirmando mais uma vez o caráter colaborativo, coletivo, do processo de
mano expressamente não pretende desvendar consiste precisamente nesta
construção do símbolo brasileiro, em que necessariamente atuam vários
transformação nada repentina, nem quem sabe misteriosa, de uma tradi-
grupos e não apenas, por exemplo, os negros:
ção vilipendiada, reprimida, violentada, em símbolo mais do que aceito,
louvado, motivo de orgulho, de brasilidade.47 O que teria ocorrido? Como Não estou querendo negar o importantíssimo papel dos afro-brasileiros na
explicar esta translação tão radical? A explicação encontra-se no encon- invenção do samba. Também (reafirmo uma vez mais) não quero negar a
existência de uma forte repressão à cultura popular afro-brasileira, repressão
tro como símbolo, ou exemplo, de uma “tradição secular de contatos”, que influenciou decisivamente a história do samba. Minha intenção é ape-
que teriam no complexo casa-grande e senzala o seu primeiro modelo. A nas complexificar esse debate, mostrando como, ao lado da repressão, outros
identidade brasileira tal qual expressa na cultura popular, e no samba em laços uniram membros da elite brasileira e das classes populares, possibili-
particular, seria o coroamento desta tradição do encontro – formulada por tando uma definição da nossa nacionalidade (da qual o samba é apenas um
dos aspectos) centrada em torno do conceito de “miscigenação”.48
“mediadores transculturais”, como por exemplo todos aqueles presentes no
encontro do Catete: os “demiurgos” Sérgio Buarque de Hollanda e Gilberto A heterogeneidade/homogeneidade, violência/harmonia do processo
Freyre; Gallet e Villa-Lobos, tradutores eruditos da forma musical popu- de construção aparece sob a égide da “complexificação” e da teoria das
lar; Prudente de Moraes Netto, neto de presidente, cicerone ou propiciador sociedades complexas. Tudo bem: o trânsito misterioso entre vilipendiação
contumaz destas noitadas; e ainda, do outro lado da equação, Pixinguinha, e louvação, desprezo e orgulho, paralelamente à generalização da “distabui-
Donga, Patrício Teixeira, músicos populares que completam a síntese “bra- zação” da forma-samba, é o objeto do livro. É este, de fato, o mistério do
sileira” pelo viés negro e pobre. Mas não só estes. O livro variará o tema em título. Portanto, não caberia excluir a repressão, e a influência da violência,
todas as suas formas e tons: os encontros estimulantes dos e com outsiders como momento anterior à louvação e à nacionalização. Um pouco adiante,
a mesma complexidade social será confirmada pelo paralelo teórico:
46 Hermano Vianna. O mistério do samba, loc. cit., p. 34.
47 “O Brasil foi talvez o primeiro país no qual se tentou, com relativo sucesso, a fundamentação
da ‘nacionalidade’ no orgulho de ser mestiço e em símbolos culturais populares-urbanos”
(Ibidem, p. 152). 48 Ibidem, p. 152.

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O discurso da homogeneidade mestiça, criado no Brasil através de um longo que é muito mais vital e terrível do que o livro deixa entrever. Qual seria a
processo de negociação, que atinge seu clímax nos anos 30, tornou determi- utilidade de, nesta altura dos tempos, não exatamente negar, mas ocultar
nados “atos decisivos” possíveis e aceitos (como, por exemplo, o desfile de
(negar dizendo que não nega) a violência como, pelo menos, um elemento
escola de samba com patrocínio do Estado), inventando uma nova maneira
de lidar com os problemas da heterogeneidade étnica e do confronto erudito/ igualmente importante na constituição destes contatos quanto à pacifici-
popular. Essa nova maneira não exclui todas as outras possíveis formas de dade “harmônica” do encontro? Onde estaria aqui a dimensão não menos
lidar com os mesmos problemas. O racismo continua existindo; uma enorme importante do desencontro, da violência, da dor, de um ou outro genocídio
e bem policiada distância continua separando a elite das camadas populares; que povoam de maneira não desimportante a história do Brasil, e que, de
o repúdio pela cultura popular continua dominando o “gosto artístico” de
vários grupos da elite. Ao mesmo tempo, outros grupos dessa elite valorizam fato, a história das relações raciais contemporâneas não deixam de frisar?50
o popular e combatem o racismo. Essa multiplicidade de visões de mundo, É verdade que Hermano em nenhum momento nega a violência, e a
estilos de vida, políticas/práticas sociais contrastantes e discursos contraditó- repressão da cultura negra. Ele o diz expressamente. Mas estas inscrições
rios é uma característica incontornável da complexidade social.49 denegativas, na verdade escassas, não fazem mais do que aumentar ainda
Nada, portanto, mudou. Tudo, ou quase tudo, continua como antes: a mais o fosso da realidade que a síntese homogeneadora da cultura brasi-
mesma violência e repressão, o mesmo racismo, o mesmo repúdio, apesar leira parece querer ocultar. A leitura que faz da matriz freyriana do Brasil
da forma-samba e sua celebração dos contatos pacíficos. Entretanto aposte- do samba é arguta o suficiente para se dizer tão somente o estudo do pro-
mos nesta nova maneira, que não exclui nada, inclusive não exclui a inter- cesso de construção do samba como símbolo da nacionalidade, como um
pretação violenta da mestiçagem. O paradigma da complexidade define- antropólogo leria um mito, ou seja, em nenhum momento pretendendo
se pela noção de “coexistência”, “ao mesmo tempo”, de “visões de mundo” refutá-lo no confronto com o real. Esse é o mito que nós brasileiros nos
contrastantes, pela inclusão nunca exclusiva da multiplicidade em um contamos uns aos outros, explica ele. Neste sentido diríamos que o que
mesmo espaço-tempo, de vários mundos em um mundo. A premissa do ele realiza aqui é uma paciente genealogia do mito ou do símbolo, este é
pesquisador é claramente marcada: o que descrevo aqui não exclui outras o termo que utiliza.51 Mas não teríamos outros mitos a nos contar? E qual
visões. Trata-se de apenas “uma” visão, de “uma nova visão”. Não nego as seria o interesse de repetir agora, mais uma vez, este mito, e não outro?
outras, como a que demonstra a violência, a repressão como constitutiva do Aqui parece-me que Hermano desrespeitou o protocolo estrito da comple-
“encontro” entre grupos sociais distintos, a começar pela violência e repres- xidade que no entanto pauta programaticamente o seu estudo. Tudo bem,
são contra negros, cuja “contribuição” (é a palavra de Freyre), por outro concede ele: Gilberto Freyre corre “o risco de inventar uma homogeneidade
lado, é inegável. Longe de mim afirmar aqui que não haja racismo, que (elogiada, não paradoxalmente, por ser aberta e indefinida, podendo abar-
a distância “bem policiada” entre elite e camadas populares não continue car qualquer diferença) também exclusivista”.52 Risco de carregar demais o
existindo, apesar do samba e das possibilidades de encontro que ele atua- lado homogêneo da equação heterogêneo/homogêneo. Homogeneidade,
liza. “Ao mesmo tempo” – tudo depende de aceitarmos a chance da coexis- por certo “paradoxal” – Hermano comete aqui um lapso – já que aberta
tência complexa – existe uma outra visão, uma outra maneira da própria
elite lidar com as diferenças, que não só não é violenta, como passa pela
louvação, pelo orgulho. 50 Ver, por exemplo, dentre outros, os estudos de Lilia Moritz Schwarz.
51 Peter Fry, na revisão de seu artigo seminal “Feijoada e soul food 25 anos depois”, um dos pon-
No entanto, o problema é que a “nova” visão, a “outra” visão, neste tos de partida do livro de Hermano, diz algo de análogo a respeito do mito da “democracia
escopo limitado a que pretende o projeto do livro, não tem absolutamente racial”: “Vista dessa maneira, a democracia racial é um mito no sentido antropológico do
nada de nova, e de outra, e, hoje em dia (ou em 1995), constitui precisamente termo: uma afirmação ritualizada de princípios considerados fundamentais à constituição da
ordem social. E, como todos os mitos e leis, não deixa de ser contrariado com uma frequência
a mesma velha visão, a defesa homogênea e pacificadora de uma cultura lamentável (Peter Fry, “Feijoada e soul food 25 anos depois”. Neide Esterci; Peter Fry, e Miriam
Goldenberg (orgs.) Fazendo antropologia no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p. 52).
49 Ibidem, p. 154. 52 Hermano Vianna. O mistério do samba, loc. cit., p. 151.

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à diferença e indefinida. Mas não estaremos honrando em nada o projeto produzir a graça e a dança, entre, por cima ou por baixo, das identidades,
freyriano ao homologar este risco da homogeneidade. “entre a mesmice e a desgraça, entre o monstruoso e o sublime”.55 O Brasil,
e o samba carioca em particular, poderiam fornecer elementos para se pen-
Em sociedades complexas, projetos homogeneizadores existem simultanea-
mente a projetos heterogeneizadores, não estando necessariamente em opo- sar esta cultura permeável à heterogeneidade constitutiva das diferenças,
sição entre si, e adquirindo – cada um deles – maior ou menor relevância mas sem ceder à tentação da lógica identitária, oposicional, separatista, da
dependendo de inúmeros fatores históricos, políticos, sociais, culturais.53 luta entre heterogeneidades distanciadas em ilhas de diferença. Gilberto
Freyre fornece, de fato, a senha de uma solução “brasileira” para a questão.
Explica-se desta forma o sucesso e a relevância do projeto homogenei-
Podemos até admitir que em Freyre tudo isso seja compreensível.
zador freyriano. Ele existe ao mesmo tempo que outros projetos heteroge-
Mas é menos compreensível que Hermano não perceba que justamente
neizadores, talvez de menor sucesso, sem dúvida de menos interesse para
no paradoxo freyriano da exclusão do excludente, na abertura a todas as
Hermano no livro que acabamos de ler. Nova afirmação da heterogenei-
diferenças exceto à diferença excludente, esconde-se o mesmo problema
dade complexa, desta vez para explicar a coexistência da homogeneidade
do limite entre o falso autêntico brasileiro (a “falsa baiana”) e seus outros
com a heterogeneidade, e, assim, aparar as arestas, aliviar as tensões e con-
estrangeiros, das repetidas polêmicas sobre o samba e a música popular
tradições, que possam porventura aparecer entre projeto heterogeneizador
brasileira. Será que justamente o multiculturalismo não coexiste no Brasil
e homogeneizador. Não há oposição, não há violência. Ou seja: há lugar
com estas outras interpretações homogeneizantes que Hermano privilegia,
para tudo. Não pretendo explicar a totalidade da realidade, mas apenas dar
e será que ele não será, como todas as outras interpretações, devidamente
conta de uma parte – a parte do encontro pacífico, da submissão freyriana
absorvido pela síntese assintética da cultura brasileira? Ou quem sabe não
(tal qual lida por mim) da heterogeneidade à homogeneidade. Não pre-
seja esta mais a maneira brasileira de lidar com estas sínteses violentas,
tendo, de maneira nenhuma, insinuar que esta seja a única maneira de ver
quem sabe nos aproximamos de algo diferente, de uma heterogeneidade
as coisas – complexidade oblige –, mas assim pelo menos ficamos tranqui-
não absorvível, não homogeneizável? Deveremos negar a cidadania bra-
los, e devidamente... pacificados.
sileira aos membros do movimento negro brasileiro que partem de pre-
O livro contém uma polêmica não inteiramente explicitada com o mul-
missas identitárias mais rígidas, que frisam a violência da miscigenação,
ticulturalismo, ou com a submissão exagerada do Brasil à premissa hetero-
que entreveem na história que nos contamos do sincretismo uma tradição
geneizadora, da segmentarização minoritária – contida, por exemplo, na
imperdoavelmente violenta? O que fazer com os Racionais MCs, ou com os
análise norte-americana das relações raciais, contraposta emblematica-
programas estéticos violentamente separatistas de alguns rappers brasilei-
mente à canção “Americanos”, de Caetano Veloso. A singularidade brasi-
ros? Dizer que eles não têm lugar na síntese brasileira? Porque limitarmos
leira estaria contida nesta “graça” misteriosa (Caetano chama de “segredo”),
desta maneira o que seja o Brasil, definindo o que não deveria ser definido,
com que dançamos indefinidamente, driblando as identidades constituí-
e inclusive retrocedendo com relação à própria formulação de Freyre, tão
das, ao contrário da cultura norte-americana, em que “branco é branco,
preto é preto (e a mulata não é a tal), bicha é bicha, macho é macho, mulher 55 Caetano retornará ao tema racial em “O herói” (2006). Se o poema-manifesto “Americanos”
fora inserido na canção miscigenante de Michael Jackson, “Black or white” (“it don’t matter
é mulher, e dinheiro é dinheiro”.54 O rígido princípio aristotélico de identi- if you are black or white”), “O herói” retoma o motivo racial a partir do molde separatista do
dade (de não contradição), convertido em mote ocidental da “nova ordem hip-hop. A canção incorpora elementos rítmicos e o canto falado do hip-hop. É narrada em
mundial”, que legitima direitos, mas também os violenta, é oposto a uma primeira pessoa, por um personagem baseado em Mano Brown, que declara: “eu sou uma
legião de ex-mulatos, quero ser negro cem por cento”, e se coloca na posição de “fomentar
ambiguidade brasileira, em que a falta de direitos e de cidadania poderia, o ódio racial”. Tudo isso é, no entanto, redimido, por uma reconversão messiânica, ocorrida
quem sabe (Caetano é rigorosamente ambíguo, muito mais que Hermano), “durante a dança, depois do fim do medo e da esperança”, com a descoberta de ter se tornado
aquilo mesmo que olhara com desdém, momento de reversão em que se constrói verdadei-
ramente o herói que afirma: “eu sou o homem cordial que vim para afirmar a democracia
53 Ibidem, p. 155. racial.” Sobre Mano Brown e o hip-hop ver o capítulo 6, “A violência como figura (O Rap do
54 Ibidem, p. 147. Pequeno Príncipe)”.

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notável no momento em que surgiu? É preciso antes de mais nada abrir-se integram essencialmente o acontecimento-baile, tematizava-se de fato uma
à possibilidade da violência da falta de sentido, não obrigar que as coisas heterogeneidade real. Submeter as suspeitas preconcebidas e interpretações
se conformem imediatamente ao sentido preeestabelecido de uma socie- homogeneizantes à prova dos nove da pesquisa de campo – é esta a lição
dade e cultura que tendem “a perseverar no seu próprio ser” (para retomar imensa da antropologia (do amor, da escrita, da poesia, da música). Mas
a fórmula espinosiana, tal qual transcrita por Viveiros de Castro56), e que na tese sobre o encontro, o nacional-popular obriga a uma dieta de sen-
precisam de alguma maneira ser conservados. tido: tudo deve fazer sentido. Assim descolamos do real, e desrespeitamos a
heterogeneidade principial, que teoricamente programaria a pesquisa. Todo
*** o contrário, portanto, ocorre com a tese de 1988, que se propõe programa-
A tese de 1995 parece retroceder com relação à de 1988, ao delinear o ticamente a subverter as categorias clássicas de objeto, autenticidade, infor-
contorno de um objeto – o encontro – cristalizado como tradição a ser pre- mante, observação participante, etc. Apenas um exemplo para terminar:
servada, e, como tal, não admitindo o acréscimo, a violência de uma nova logo na primeira página, a “primeira cena” propõe uma espécie de falsa cena
interpretação. O paradigma do encontro não pode ser um paradigma histó- originária (e cena originária da falsidade) da antropologia: o antropólogo
rico, “marmorizado” nostalgicamente no tempo, o que implica em um tra- pesquisando o funk carioca presenteia o amigo e informante DJ Malboro
tamento simples do problema da autenticidade – categoria que, por outro com uma bateria eletrônica, extrapolando assim qualquer limite aceitável
lado, o livro minuciosamente desconstrói. É preciso que o encontro seja da participação em seu objeto de estudo, ao alterá-lo, por assim dizer, de
atualizável, que possamos “mexer” nele, já que o que o caracteriza é preci- maneira “definitiva”. (Esta é sem dúvida mais uma história que o pesquisa-
samente a violência heterogênea do real. Foi isso sem qualquer dúvida que dor se conta: uma ilusão do acontecimento.) A comparação, feita pelo orien-
experimentaram os gaiatos presentes no encontro de 1926, no Catete. Em O tador Gilberto Velho, entre o gesto e “dar um rifle para um chefe indígena”,57
mistério do samba sentimos falta da salutar reticência a todos os preconcei- dá, no entanto, a justa medida da transgressão. O gesto não é apenas icono-
tos metodológicos, esta verdadeira hibridez de abordagens, contida em O clasta, mas contém uma eventual ameaça de morte do objeto antropológico.
mundo funk carioca. Argumentarão, sem dúvida, e com razão, que os proje- A morte literalizada pela possibilidade de violência mecânica e serializada
tos são diferentes, e que o samba desenha um motivo histórico, submetido do rifle contém simbolicamente, do ponto de vista da antropologia clássica,
a variações no tempo, para retomar esta metáfora musical. Mas, precisa- o drama da constituição de seu objeto.58 É no entanto esta intervenção por
mente, a vitalidade do samba, como de qualquer forma cultural – Hermano assim dizer originária que desenha a especificidade de um novo objeto de
sabe disso melhor do que ninguém – reside na possibilidade de absorver pesquisa (o funk carioca), poroso e infinitamente aberto a interferências,
novos modos e formas, inclusive formas violentas que rejeitam radicalmente que se define mesmo por esta abertura e constante absorção inautêntica de
a forma tradicional da homogeneização absorvente. A variação enquanto novas formas, e traduções de si mesmo em outros. É desta morte iminente
leitura retrospectiva deverá sempre, no presente, admitir a possibilidade que ele vive, é isto que define a sua alegre vida.
da errância do motivo, que transgride os limites da repetição, situando-se
necessariamente – condição da vida – no limite de sua dissolução. Reto- 57 Hermano Vianna. O mundo funk carioca, loc. cit., p. 9.
mar a “linha evolutiva” freyriana (se isso é possível ou desejável) implica- 58 O objeto se constitui na precariedade de sua decomposição iminente, para a qual contribui
o próprio antropólogo, que o destrói involuntariamente, ou pelo menos modifica-o irreme-
ria, necessariamente, em não marmorizar a cultura brasileira, fechando-a a diavelmente, no mesmo gesto de construí-lo, por uma necessidade, digamos, epistemologi-
heterogeneidades indesejáveis. Na tese sobre a festa que não faz sentido, em camente trágica. Cf. a cena famosa de Tristes Trópicos, “Aula de escrever”, em que a escrita é
supostamente introduzida entre os Nambikwara (“a escrita havia portanto feito a sua apari-
que todos os vetores possíveis de diferenças violentas e alegres fazem parte e ção entre os Nambikwara...”), que traçam linhas sinuosas em papéis, imitando o gesto que
viram o antropólogo fazer (Claude Lévi-Strauss. Tristes Tropiques. Pris: Plon, 1955, p. 353).
Por outro lado, muito mais cético quanto à possibilidade deste “incidente extraordinário” (da
56 Eduardo Viveiros de Castro. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify, introdução da escrita na tribo “ainda na idade da pedra” pelo antropólogo), ver o ensaio de
2002, p. 195. Jacques Derrida “A violência da letra: de Lévi-Strauss a Rousseau” em Da Gramatologia.

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capítulo 5
Marcinho VP como personagem

Para Julio Ramos

É em torno do monstro que toda a problemática da anomalia vai se


desenrolar. [...] O monstro, da Idade Média ao século XVIII [...] é essen-
cialmente o misto. É o misto de dois reinos, o reino animal e o reino
humano: o homem com cabeça de boi, o homem com pés de ave – mons-
tros. É a mistura de duas espécies [...]: o porco com cabeça de carneiro é
um monstro. É o misto de dois indivíduos: o que tem duas cabeças e um
corpo, o que tem dois corpos e uma cabeça é um monstro. É um misto
de dois sexos: quem é ao mesmo tempo homem e mulher é um monstro.
É um misto de vida e morte: o feto que vem à luz com uma morfologia
tal que não pode viver, mas que apesar dos pesares consegue sobreviver
alguns minutos, ou alguns dias, é um monstro.1

O assassinato de Marcio Amaro de Oliveira, o Marcinho VP (não confundi-lo


com o seu homônimo, Marcio Nepomuceno, atualmente preso no presídio
de segurança máxima de Catanduvas, Paraná), no dia 28 de julho de 2003,
em Bangu III, dois meses após a publicação de sua biografia, o romance-re-
portagem Abusado: O dono do morro Dona Marta (2003), de Caco Barcellos
– tudo indica, como consequência da publicação –, é a última de uma série
de interpelações midiáticas, políticas e estéticas sofridas pelo traficante ao
longo de sua vida. A morte suscita questões profundas sobre ética jornalís-
tica, sobre os perigos bem reais da criminalização/estetização de imagens
de marginalidade e sobre as condições de (im)possibilidade de constituição
de novos sujeitos no cenário cultural brasileiro contemporâneo. O último
ato parece ter sido narrado pelo jornalista Francisco Alves Filho, de Isto é,
ao diagnosticar no “final previsível” o episódio terminal da transformação

1 Michel Foucault. Os anormais. Curso no Collège de France (1974-1974). Tradução: Eduardo


Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 78-79.

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de Marcinho VP em personagem (Isto é, n. 1766, 6/8/2003). O jornalista “otário” para sua mãe4 – do anonimato relativo de um pequeno marginal à
historia no artigo as tentativas de VP de “mudar o roteiro normalmente visibilidade de um “marginal midiático”, na expressão de Ivana Bentes: 1)
destinado aos bandidos do morro”, em seus diversos contatos com a classe em fevereiro de 1996, a contratação de seus serviços e do de seus comanda-
média intelectual e artística, na criação do papel de traficante-pensador, dos como seguranças para a equipe de filmagem do videoclipe de Michael
com ideias de esquerda (o mote da favelania, cunhado por ele, etc.). Mas Jackson “They don’t care about us”, dirigido por Spike Lee e ambientado na
toda esta ficcionalização, conclui ele, o “papel de Robin Hood” que “criou favela Santa Marta; 2) a entrevista dada por ele na madrugada do dia das fil-
para si” – de fato uma criação da elite “bem-nascida” – não deve nos enga- magens a três jornalistas dos três maiores jornais cariocas: O Globo, Jornal
nar: trata-se de um bandido como outro qualquer. Extirpado, finalmente, do Brasil e O Dia, sob condição de anonimato, mas publicada nos três jor-
do verniz da ficcionalização intelectual (o roteiro, o papel, a criação do per- nais no dia seguinte com a revelação da sua identidade, à sua revelia, e con-
sonagem) do bandido bonzinho pela denúncia desmistificadora, temos o siderada uma afronta à polícia carioca, desencadeando uma caçada policial
monstro frio, com “seus assassinatos”; o criminoso desestetizado, um dos infernal que acabaria com a sua prisão oito dias depois; 3) o envolvimento
lados do binômio da produção midiática da violência e do medo da violên- com o documentarista e filho de banqueiro João Moreira Salles, que o
cia. A estetização dos bem-nascidos é corresponsável pela criação do per- conhecera por ocasião das filmagens de Notícias de uma guerra particular,
sonagem, mas a responsabilidade maior recai mesmo sobre o criminoso, entrevistara-o para o documentário (mas, ao contrário dos jornalistas, não
que é irredutivelmente culpado pela vida que escolheu (o personagem que o incluíra no filme), iniciando-se aí uma amizade que culminaria com a
coproduziu), e afinal o levou à morte como quase todos os envolvidos no oferta do diretor de dar-lhe uma mesada caso ele decidisse abandonar o
narcotráfico. O jornalismo de denúncia, solidário com o veredicto policial, tráfico para escrever a história de sua vida. Esta relação entre o filho de ban-
desqualifica a aposta intelectual na pequena margem de diferença que pos- queiro e o criminoso seria o pivô de uma crise política na área de segurança
sibilitaria a reintegração do traficante, reduzindo-o ao que supostamente do então governador Anthony Garotinho, acirrando o conflito na cúpula
nunca deixara de ser e à sua essência criminal. O resultado é que, entre uma do governo entre o Secretário de Segurança Josias Quintal e o Coordenador
estética glamourizante e outra criminalizante, avançamos muito pouco na de Segurança, Justiça, Defesa Civil e Cidadania, o professor Luiz Eduardo
reflexão sobre as mediações atuais entre a margem (a marginalidade, os Soares, e servindo como pretexto para exonerar Luiz Eduardo de seu cargo;
“mal-nascidos”) e o centro, a objetivação de imagens estetizadas e crimi- e, por último, 4) a publicação do romance-reportagem de Caco Barcellos
nalizadas dos meios da comunicação e a falta de meios de constituir novos sobre a sua vida, que, apesar das precauções tomadas (utilização de codi-
sujeitos (mediadores) na cultura brasileira contemporânea. nomes para designar o protagonista e os personagens ainda vivos, etc.),
Quatro fatos interligados catapultaram este traficante de porte médio, acaba confirmando um dos medos confessos do jornalista (“não quero
chefe do tráfico na favela Santa Marta, na zona sul do Rio de Janeiro – um ser instrumento da morte de ninguém”5). VP é transformado na primeira
“nada”, dirá Caco Barcellos;2 um mero “cover”,3 segundo Hélio Luz, ou um vítima do narcotráfico posterior à publicação do livro, completando a lista
interminável de mortes descritas no interior do livro, dentre as quais cinco
(Uê, Faquir, Tibau, Kito Belo e Jaquinho) ocorridas durante o processo de
2 Na entrevista concedida ao site vivafavela, logo após a publicação de Abusado, Caco Barcellos
afirmou, em resposta ao entrevistador que lhe pedira para comparar Marcinho VP “às ações
revisão editorial, além da de Caju, já quando o livro se encontrava em fase
atuais dos traficantes, que estão fazendo o que querem na cidade”: ele é “um nada” (www. de produção, e portanto não incluída.
vivafavela.com.br: “Pra lá de abusado”; 14/7/2003).
A ideia de escrever um livro sobre a vida de Marcinho VP está no cerne
3 Quando de sua repentina notoriedade, após a publicação da entrevista bombástica no Jornal
do Brasil, O Globo e O Dia, o subsecretário Hélio Luz teria duvidado “da veracidade das dos dois últimos acontecimentos. Havia basicamente dois projetos para-
declarações de VP por considerá-lo um ‘cover’, um farsante, visto pela polícia não como dono
do morro, mas sim um traficante de terceiro escalão. 4 “Meu filho é apenas um otário nesse meio”, diz Josefa Amaro de Oliveira. Jornal do Brasil,
– Ele é um camelô do pó – disse Hélio Luz” (Caco Barcellos. Abusado. O dono do morro Dona 26/4/2000.
Marta. São Paulo: editora Record, 2003, p. 354). 5 Caco Barcellos. Abusado, loc. cit., p. 460.

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lelos e coexistentes para o livro. O primeiro surgiu no contato com João que os dois projetos poderiam ter se confundido, e sem dúvida eram um
Moreira Salles, a quem Marcinho mencionara pela primeira vez a von- só na cabeça de VP. Como veremos adiante, é justamente em torno deste
tade de escrever ele próprio “um livro sobre a sua própria vida na favela” problema da propriedade da vida de que trata o livro que se travará a última
– episódio contado por Salles a Luiz Eduardo Soares no primeiro encon- discussão entre biógrafo e biografado, quando o último estava já na prisão
tro dos dois para discutir a relação do documentarista com Marcinho, e e o livro fora concluído. Prevalecerá, no entanto, a expropriação da fala, a
narrado em discurso indireto pelo último em seu livro.6 O outro projeto, despeito da vontade de Marcinho falar e do jornalista de registrar essa fala
de que Caco Barcellos escrevesse o livro, surge no segundo encontro entre – filtrada mais uma vez, como nos outros três episódios, mas agora pelo
VP e Barcellos,7 desdobrando a proposta inicial de que este escrevesse uma jornalismo investigativo.
reportagem sobre a violência policial no morro, nos moldes de seu livro Os quatro episódios são interpelações, no sentido althusseriano da
anterior Rota 66.8 Barcellos aceita a proposta apenas em parte, optando por palavra, que põem Marcinho VP no circuito midiático, constituindo-o
contar não a história de Marcinho, mas a de sua quadrilha, “pela ótica dos como sujeito dentro do campo da mídia. Lembremo-nos um instante do
moradores do morro, dos criminosos e da maioria honesta”.9 Em meio a mecanismo, como é descrito por Althusser: a ideologia constitui “indiví-
tantas obras (o documentário de Moreira Salles, o livro de Luiz Eduardo duos concretos em sujeitos”.11 A referência judicial/policial inerente ao
Soares e os de Caco Barcellos), a obra abortada e perdida é a que o próprio termo interpelação (Althusser lembra que a polícia “interpela” os suspei-
Marcinho escreveria, e que lograria, quem sabe, restituir finalmente a sua tos12) codifica o instante insignificante e cotidiano em que, por exemplo,
própria enunciação,10 e não apenas a sua “ótica” (?). Não resta dúvida de respondemos a um chamado na rua, reconhecendo que o chamado se dirige
a nós e a mais ninguém (“ei, você aí”, escreve Althusser, exatamente como
6 Luiz Eduardo Soares. Meu casaco de general. Quinhentos dias no front da segurança pública do
Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 446. Luiz Eduardo Soares recons- na marchinha de carnaval). Estamos sempre/já dentro da ideologia (inclu-
titui no final de seu livro a conversa com João Moreira Salles, que lhe narra o relacionamento sive, e sobretudo, aqueles que se consideram fora dela), pré-inscritos no
com Marcinho, que lhe falara um dia do sonho de escrever um livro sobre sua própria vida.
Note-se as diversas enunciações superpostas (a “armadura”) na reconstituição desta con-
simbólico, diria Lacan. Prova disso é a cena de “Sobre o narcisismo: uma
versa, e os diversos níveis narrativos que filtram a fala de Marcinho, como as proverbiais cai- introdução” de Freud, resumida por Althusser, que narra a forma pela qual
xas chinesas, uma dentro da outra. “Aos poucos, João conseguiu atravessar a armadura com
que o estigma parece cercar o criminoso. Foi ouvido a sério por Marcio e aprendeu a ouvi-lo.
os pais projetam expectativas sobre seus filhos muito antes de eles nas-
Deu-se conta de que aquele moço tinha inteligência e sensibilidade para ser um cidadão esti- cerem, emprestando-lhes uma identidade preestabelecida, um nome (o
mado, respeitado, culto e influente, se a vida não o tivesse capturado numa dessas armadilhas nome do pai).13 O que configura a poderosa ideologia familiar, que, jun-
a que os meninos pobres estão sujeitos no Brasil, particularmente nos morros do Rio. Passou-
lhe alguns livros. Marcio leu Camus e Machado de Assis, e pediu mais. Queria saber por que tamente com a escola (versão atualizada da igreja), constituem as formas
seria importante aprender francês. E discutiu A peste como um leitor maduro. Com o tempo, modernas de dominação ideológica (i.e., voluntária, e não violenta). Sem
João conquistou a confiança de Marcio e pôde lhe falar com franqueza: a vida no crime era
um equívoco terrível, uma tragédia. As visões triunfalistas e autocomplacentes de Marcio entrar nos meandros da crítica à noção althusseriana de ideologia (seu eco-
não passavam de racionalizações ingênuas, de fantasias. Com seu talento, sua potencialidade nomicismo e reducionismo classista; a universalidade abstrata da categoria
intelectual, Marcio teria ainda tempo de recomeçar, reconstruir a vida, estudar, reintegrar-se
à sociedade. Era preciso abandonar o tráfico, imediatamente. João disse tudo isso a Marcio
de estrutura a que remete; a exterioridade entre infra e superestrutura, e
com emoção e serenidade. Marcio ouviu com respeito. Um dia, confessou que sonhava tor- o caráter passivo, secundário da reflexão sobre a cultura; a postulação de
nar-se escritor e escrever um livro sobre sua própria vida” (Luiz Eduardo Soares. Meu casaco uma ciência isenta das armadilhas da ideologia), parece-me que ela ainda
de general, loc. cit., p. 446).
7 “Tenho uma proposta. Quero que você escreva um livro sobre a história da minha vida”
(Caco Barcellos. Abusado, loc. cit., p. 459). 11 Louis Althusser. Aparelhos ideológicos de estado. Tradução de Walter José Evangelista e Maria
8 Ibidem, p. 455. Laura Viveiro de Castro. São Paulo: Graal, 1998, 7ª ed., p. 93.
9 Ibidem, p. 467. 12 Ibidem, p. 96.
10 Para o conceito de enunciação, ver os ensaios clássicos de Benveniste, em “O homem na 13 A referência é sem dúvida lacaniana. Sobre a relação entre Althusser e Lacan, ver, sobretudo,
língua”. Problemas de linguística geral I. Trad. Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri. o ensaio “Freud e Lacan”. (Louis Althusser. Lenin and Philosophy and Other essays by Louis
Campinas: Pontes, 2005, 5ª ed. Althusser. New York: Monthly Review Press, 1971.)

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nos seja útil hoje em dia, enquanto descrição formal do dispositivo de intervalo entre as duas partes da cidade partida de Zuenir Ventura. Cumpre
constituição de sujeitos. Com a condição de que a constituição concreta entender qual é este papel e como ele é construído. Este trabalho percor-
do sujeito pelos dispositivos constituintes acomode uma margem de ação rerá, portanto, uma trilha que lembra algo do método Stanislavski: a cons-
do sujeito que agencia a si próprio no mesmo momento em que é produ- trução da personagem.
zido pelo dispositivo.14 Basta, por exemplo, trocar a palavra “ideologia” pela
palavra “mídia” na famosa descrição da constituição circular da ideologia I
pelo sujeito e do sujeito pela ideologia para termos uma lúcida análise da
constituição identificatória de sujeitos na e pela interpelação midiática: “a O primeiro episódio, as filmagens do clipe de Michael Jackson, contém
categoria de sujeito é constitutiva de toda mídia, mas, ao mesmo tempo e uma lição perversa sobre o problema da visibilidade/invisibilidade da misé-
imediatamente, acrescentamos que a categoria de sujeito não é constitutiva ria brasileira. Já antes das filmagens, observa-se, por exemplo, pela maté-
de toda mídia, uma vez que toda mídia tem por função (é o que a define) ria assinada por Paulo Mussoi no Jornal do Brasil cuja chamada é “Favela
“constituir” indivíduos concretos em sujeitos”.15 escolhida por Michael Jackson alinha miséria, violência, superpopulação
Em suma, nos quatro episódios, Marcinho VP é menos do que um e recebe um único serviço público: energia elétrica” (JB, 11/2/1996), que o
coadjuvante marginal (ou um marginal coadjuvante): é um espaço vazio, jornalista parece descrever a favela Santa Marta para leitores apresentados a
um silêncio, apesar do muito que gostava de falar, e de seus “declaratórios”.16 ela pela primeira vez. A matéria constitui uma pequena crônica da precarie-
A deturpação ou dublagem de sua enunciação pelo dispositivo que o cons- dade e improbabilidade essencial da vida na favela (“ilogicidade” é o termo
titui o faz encarnar um papel de fato já pronto para ele, antes mesmo de ele utilizado pelo jornalista): sua situação topográfica – incrustada em um
aparecer no cenário que o tomou como protagonista. A surdez, os “esque- morro da zona sul do Rio de Janeiro, com inclinação de 60° –, sua altíssima
cimentos, lapsos da fala, equívocos na ação, superstições e erros” sistêmicos densidade demográfica, o um sistema de distribuição de água feito de canos
da mídia são perfeitamente diagnosticáveis, configurando uma espécie de de PVC improvisados, e sua população amedrontada – não pelo narcotrá-
Psicopatologia da vida midiática, e tornando o “desconhecimento” a forma fico, mas pela violência policial. O abandono da sociedade civil é demons-
por excelência da relação de mediação com o tráfico. O papel – no sen- trado pelo único serviço público oferecido à comunidade: a eletricidade.
tido teatral, televisivo e cinematográfico da palavra – quase nada tem a ver Ao mesmo tempo, a comunidade parece funcionar dentro de uma certa
com Marcinho VP (um “nada”, como diz Caco Barcellos), mas tem muito normalidade urbana: há pequenas vendas em pontos estratégicos do morro
a ver com a construção midiática do espaço do crime, do narcotráfico e e habitantes simpáticos que poderiam viver em qualquer outro bairro da
da pobreza, ou seja, da (in)segurança da cidade do Rio de Janeiro, neste cidade. A escolha da produção de Spike Lee por este cenário, e nenhum
outro, para a filmagem do clipe, literalmente revela a favela para os leitores
14 Ver, a respeito, dentre uma série de ensaios contemporâneos que retornam à noção de inter- e telespectadores da mídia escrita e televisiva, ocultada na plenitude de sua
pelação, aproveitando dela certos aspectos e rejeitando outros, o de Julio Ramos sobre o
testemunho cubano do escravo Juan Francisco Manzano, “La ley es otra: literatura y consti- evidência escancarada aos cariocas perplexos e surpreendidos pelo óbvio. O
tuición del sujeto jurídico” (Paradojas de las letras. Quito: Universidad Andina Simon Boli- léxico fenomenológico do desvelamento não deve ocultar a simplicidade da
var, 1996) ou, para uma discussão teórica, o primeiro capítulo de Male Subjectivity at the
Margins, “The Dominant Fiction”, de Kaja Silverman (Male Subjectivity at the Margins. New
questão para que aponta: é a câmera de Spike Lee quem subjetiva o morro,
York: Routledge, 1992). personificando-o em seu protagonista maior: o chefe do tráfico.17
15 Louis Althusser. Aparelhos ideológicos de estado, loc. cit., p. 93.
16 Caco Barcellos compara a qualidade dos depoimentos de Marcinho VP com a dos outros 17 O conceito de subjetivação situa-se no contexto do trabalho de Michel Foucault. No ensaio
personagens do livro: “Ele, do ponto de vista de objeto do livro, foi uma dificuldade. A histó- tardio “O sujeito e o poder”, Foucault repensa retrospectivamente o sentido de sua trajetória,
ria dele é fantástica, mas como depoimento pra minha técnica de trabalho, foi o mais difícil, contrariando a expectativa segundo a qual a sua obra consistiria na análise do fenômeno do
menos rentável [sic]. A palavra não é adequada, mas foi o que menos gerou produção para poder. O que ele sempre procurara fazer fora “criar uma história dos diferentes modos pelos
mim. Porque ele é muito discursivo, ele é muito bom para os analistas, que adoram declara- quais, em nossa cultura, os seres humanos tornam-se sujeitos” (Michel Foucault. “O sujeito
tório” (“Pra lá de abusado”, loc. cit.). e o poder”. Paul Rabinow e Hubert Dreyfus. Michel Foucault. Uma trajetória filosófica. Para

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O enredo é conhecido: é o olhar estrangeiro que descortina o Brasil percebido e perdido.20 A cidade, realmente representada, é percebida pelos
aos brasileiros. O gosto na boca dos brasileiros, no entanto, é acridoce, ape- representantes do governo e pela população, no mesmo instante em que é
sar do sovado da fórmula, na verdade constitutiva da identidade nacio- perdida, surrupiada pelo primeiro aventureiro que passa, em uma tragi-
nal (ver, por exemplo, Antonio Candido, Flora Süssekind). Embora não comédia estritamente colonial. As matérias dos jornais escandalizam ao
se deva negligenciar o seu potencial de denúncia, é a espetacularização e ressaltar a autoridade de Marcinho VP, que autoriza as filmagens,21 e a orga-
exotização da miséria que interessa propriamente a Spike Lee. Ou melhor, nização administrativa do narcotráfico em moldes empresariais. De fato, as
em processos que não têm nada de “puros”, a denúncia é absolutamente negociações entre o comando do tráfico do Dona Marta e a produção de
inseparável da espetacularização. O clipe, estruturado em torno da oposi- Spike Lee, intermediadas pela Skylight e coordenadas por Kátia Lund – a
ção entre fundo (“backdrop”) miserável e mudo e proscênio pop musical, mesma que codirigirá alguns anos depois, com Fernando Meirelles, Cidade
reproduz em sua estrutura interna a estranheza provocada naqueles para de Deus –, haviam se iniciado um mês antes das filmagens. Um morador
quem esta miséria é familiar embora estranha, segundo os ritos imaginá- entrevistado pelo jornalista compara a autorização protetora do chefe do
rios da Unheimlich.18 O que dizer então de exportá-la? São conhecidos os tráfico, contratada e paga pela produção americana, ao ritual de vistos de
chamados favela-tours da Rocinha,19 que fascinam os turistas. São menos entrada e saída do país: “o Itamaraty não tem que dar a permissão para um
conhecidas as interpelações subjetivantes de ONGs nacionais e interna- estrangeiro entrar no país, por que o dono da boca não faria a mesma coisa
cionais, que constituem sujeitos locais, passando ao largo dos canais polí- com o morro?” (JB, 13/2/1996). Nada de mais apropriado, na verdade, em se
ticos tradicionais de mediação. Aqui, sem dúvida estão combinados um tratando da estadia de estrangeiros.
pouco dos dois ingredientes. Do ponto de vista dos canais competentes, no O pagamento por serviços de segurança, análogo ao pagamento da
entanto, há indignação contra a perda do monopólio constituinte. O melin- taxa do visto de entrada, remunera a relação espúria, na verdade formali-
dre vem, diz o discurso, do fato de não se tratar da produção de quaisquer zando a realidade de fato da administração e controle do morro. A com-
imagens, mas de imagens da alta circulação, com a função de representar o petição ou espelhamento oficial/paraoficial se explicita quando o Secretá-
Brasil “lá fora”. Os protestos contra a filmagem, como os vindos do então rio de Segurança, em tom jocoso, chama a produção “alienígena” de Spike
Secretário de Indústria, Comércio e Turismo, Ronaldo Cézar Coelho, ou do Lee de “otária”: a polícia faria a segurança de graça, afirma ele. Ele poderia
Ministro do Esporte, Pelé, contêm a marca insidiosa da má consciência: as ter levado Spike Lee a qualquer favela que quisesse, gratuitamente.22 Sem
imagens não são adequadas para divulgar o Brasil lá fora, mas parecem ser perceber, a competição trai a equiparação ou a equivalência: duas presta-
boas o suficiente para que convivamos com elas todos os dias. Lição clássica doras de serviço competem por um cliente, mas a oficial oferece o dife-
de psicanálise lacaniana: o real traumático aparece enquanto imagem como rencial dos serviços públicos gratuitos. A (in)segurança carioca mostra
encontro perdido; é convertido em imagem que o real é simultaneamente a pequena ferida narcísica pela voz de seu representante administrativo,
que mal esconde a enorme ferida narcísica da imagem da miséria afixada
como mercadoria exportável. O representante superior da burocracia do
Estado, o governador Marcello Alencar, indigna-se, e declara a sua firme
além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução: Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1995, p. 231). Basicamente ele estudara em sua obra três modos de
subjetivação/objetivação: a objetivação da ciência, constitutindo o sujeito do discurso, do 20 Jacques Lacan. Le Séminaire Livre XI. Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse.
trabalho ou da vida (As palavras e as coisas); a objetivação como resultado das “práticas divi- Paris: Seuil, 1973, p. 53-55.
soras”: o louco e o são (História da loucura), o doente e o sadio (O nascimento da clínica), os 21 JB, 12/2/1996, “ Tráfico mandou no clipe. Acordo com Marcinho VP envolveu pagamento em
criminosos e os “bons meninos” (Vigiar e punir). E finalmente, a maneira pela qual um ser dinheiro em troca de autorização para filmagens e segurança para Jackson”.
humano torna a si próprio sujeito (sobretudo História da sexualidade, volume II e III).
22 “Hélio Luz, ao saber da afirmação de Spike Lee, disse que o cineasta americano revelou-se
18 Ver a respeito o ensaio de Freud “O estranho”. um ‘otário’: ‘Se ele tivesse recorrido a mim e pedisse autorização para fazer filmagens, eu o
19 Percival de Souza. Narcoditadura. O caso Tim Lopes, crime organizado e jornalismo investiga- levaria a qualquer favela do Rio. Faria tudo gratuitamente. Pagou a um cara que julgava ser
tivo no Brasil. São Paulo: Labortexto Editorial, 2002, p. 63. um grande traficante, mas que na verdade é um camelô do tráfico’, disse Luz” (JB, 13/2/1996).

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decisão de “livrar a favela dos criminosos” utilizando “medidas duras” (JB, americano da liberação na Segunda Guerra Mundial, e evoca, retrospecti-
13/2/1996). O artigo do New York Times (11/2/1996) intitulado “O Rio se vamente, outras repetições contemporâneas (Bósnia, Afeganistão, Iraque).
aborrece com os planos de Michael Jackson filmar a favela” dá mais deta- A liberação dos déspotas locais pela subjetivação artística funciona exata-
lhes sobre a comédia de erros e revela que Marcello Alencar via a questão mente como as liberações militares. A legitimidade da liberação precisa, no
da cobrança de maneira um pouco diferente: segundo ele, a produção de entanto, ser comprovada pela recepção positiva, confirmando que os ame-
Michael Jackson devia pagar pelo “direito de filmar” (e não pela segurança), ricanos são “queridos”. O artigo termina com a declaração do presidente da
e oferecia auxílio legal aos residentes do Dona Marta para reivindicar o Associação dos Moradores do Santa Marta, José Luis de Oliveira:
direito. Direito de imagem versus prestação de serviços, direito dos resi-
“O governo tentou intervir para impedir que ele filmasse a miséria das pes-
dentes versus relação contratual com o traficante. O Estado corre atrás do soas aqui”, acrescentou o sr. Oliveira. Ele olhou um momento para o outro
prejuízo e resolve afirmar um assistencialismo chinfrim de salvaguarda dos lado e abanou a cabeça, recorrendo ao inglês do título do clipe para provar o
direitos dos favelados. Spike Lee espicaça o amor próprio dos brasileiros seu argumento: “They really don’t care about us”, ele disse.
e chama o país de “banana republic”, irritado, em bom americano, com a
Cena clássica de interpelação: o clipe dubla a fala do representante
restrição à liberdade de ir e vir (o laissez-faire e laissez-aller) da parte do
dos moradores da favela. Ao citar o título do clipe e da canção, em inglês,
governo (e não do prestador de serviços, o traficante) e ao direito de filmar,
para “provar o seu argumento”, acrescentando-lhe o cunho de realidade
entendido como liberdade de expressão e de imprensa, inscrito na primeira
(“really”), ele concretiza a letra, exatamente como na cena narrada por
emenda à Constituição americana. A liberdade da iniciativa privada (dire-
Althusser (alguém bate à porta, perguntamos: “quem é?”, e a pessoa do
tor, produtora, traficante), é atravancada pelos obstáculos do poder público
outro lado responde: “sou eu”;23 assim entra o sujeito na linguagem, como
que entulham o espaço público de entraves desnecessários e arcaicos. A
a pessoa no cômodo). Duplo movimento de realização da letra da canção
territorialidade atual dos bairros pobres e favelas do Rio de Janeiro mos-
(José Luis de Oliveira se apropria da enunciação pop), e de abstratificação
tra-se nas iniciais do Comando Vermelho, inscritas em letras garrafais no
do sujeito-citação (a letra se apropria dele); o sujeito cita a canção e é citado
campo de futebol, onde desce de helicóptero o astro pop transnacional. Há
por ela, que o coloca em circulação.
medo colonial e racista de contaminação de um lado: Michael Jackson (o
A conquista do direito de ver representada a miséria do Santa Marta,
“enluvado”) desce com uma máscara negra para protegê-lo da epidemia de
resultado de uma negociação em que a favela teve parte ativa na “disputa
conjuntivite que grassava no Rio. Mas por outro lado, parece ser o próprio
pela hegemonia de representações da cidade do Rio de Janeiro”,24 crista-
Michael Jackson o portador de um vírus: a jornalista Diana Jean Schemo
liza as possibilidades de constituição de cidadania oferecidas pelo episó-
acredita – imagino que equivocadamente – que o empinador de pipa de 13
dio. Tomada em fogo cruzado no meio da exploração e exportação de duas
anos Wendell Liberado de Farias tinha conhecimento das acusações judi-
imagens-clichê do Rio:25 a visibilidade da miséria e da fome (a objetivação
ciais de pedofilia contra Jackson que transcorriam nos EUA, pelo fato de
de Spike Lee) versus a visibilidade turística da cidade cartão-postal (a obje-
ele afirmar, quando perguntado se gostava do cantor: “Não, eu gosto de
tivação da administração do prefeito Cesar Maia), e sem se identificar com
meninas, não meninos. Mas gosto da música dele”!
nenhuma das duas, a favela emerge como possibilidade do surgimento de
O New York Times contrasta a perspectiva negativa das autoridades
uma cidadania residual, resultado da diferença da disputa entre as duas.
oficiais com a mais do que entusiástica dos moradores do Dona Marta,
Estas marchas e contramarchas, situadas no entrechoque dos diversos
em estratégia binária típica do jornal, estruturado segundo os moldes da
representação da totalidade política por intermédio do sistema bipartidá- 23 Louis Althusser Aparelhos ideológicos de estado, loc. cit., p. 95.
rio da democracia americana. A jornalista preocupa-se em demonstrar que 24 Karl Erik Schøllhammer e Micael Herschmann. “As cidades visíveis do Rio”. Lugar comum.
Estudos de mídia, cultura e democracia. NEPCOM/Escola de Comunicação da UFRJ, n° 1,
os moradores pobres “gostam” da vinda de Michael Jackson, e o querem. março 1997, p. 11.
A descida de helicóptero repete em miniatura a imagem do desembarque 25 Ibidem, idem.

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regimes de visibilidade que disputam a representação da favela, produ- na disputa pelo controle das imagens, ao mesmo tempo sendo constituído
zem como efeito inesperado, marginal (no duplo sentido da palavra), uma (pela produção de Spike Lee, pela mídia, etc.), mas constituindo-se a si pró-
subjetividade favelada, retirando a favela da invisibilidade escancarada e prio como agenciador dos projetos de sua comunidade.28
escandalosa a que é submetida na vida cotidiana da cidade carioca.
Como resumem Karl Erik Schøllhammer e Micael Herschmann: II
Ele [o favelado] não parece identificar-se nem com o olhar paternalista (e
Tal desfaçatez não ficaria, no entanto, sem troco. A contrapartida viria logo
muitas vezes hipócrita) dos homens públicos que administram esta cidade
nem com o olhar “ávido de cenas chocantes” da indústria cultural. Apenas no segundo acontecimento: o da entrevista “concedida” aos repórteres de
desfrutam, temporariamente, da insólita atenção pública, como um dos raros O Globo, Jornal do Brasil e O Dia. Caco Barcellos chama o “furo” dos repór-
momentos em que se tornam objeto de interesse e preocupação dos gover- teres do esquema de segurança do Dona Marta montado por Marcinho VP,
nantes. É como se sua única alternativa fosse aceitar transitar nesse jogo de no fim de semana das filmagens do clipe, de “invasão dos inimigos”, quase
estereótipos, sabendo que o importante é garantir alguma visibilidade social,
pois, na condição de anônimos/invisíveis e marginalizados, esta se constitui-
tão nefasta quanto a dos policiais.29 O episódio situa-se em uma cronolo-
ria no primeiro passo para a reivindicação da cidadania.26 gia incerta: a entrevista ocorreu na madrugada do dia das filmagens e foi
divulgada no dia seguinte. Barcellos reconstitui detalhadamente o contexto
O cálculo desta visibilidade arrancada ao controle do espaço da mídia, da entrevista, restituindo, inicialmente, a fala de Marcinho VP em sua lite-
que oscila entre diversas interpelações sem se identificar propriamente ralidade, para depois demonstrar as adulterações impressionantes por que
com nenhuma, que aceita ser objeto de interesses fascinados e falsificado- passará ao ser editada para publicação por cada jornal.
res, com o objetivo de obter os proverbiais “15 minutos”, é que, apesar de A produção de Spike Lee interditara o morro aos jornalistas durante a
tudo, apesar das apropriações pouco éticas de que são objeto, há um resí- filmagem, autenticidade oblige. A perspectiva é tipicamente etnográfica: é
duo de benefício qualquer, que interessa enquanto “primeiro passo” rumo preciso capturar as imagens dos nativos em toda a sua pureza e naturalidade,
à favelania, como diria Marcinho VP. sem manipulação local – a manipulação devendo ser exclusividade da pro-
O que o episódio teve de escandaloso e ameaçador, aos olhos das autori- dução transnacional do clipe. Imagens não contaminadas ainda pelo olhar
dades oficiais, foi o fato de o tráfico negociar diretamente com a produção de sobre o olhar que olha. As precauções foram, no entanto, em vão. De fato, é
Spike Lee,27 driblando as mediações administrativas oficiais e constituindo- o olhar de Michael Jackson, ou o próprio Michael Jackson, quem magnetiza
se como sujeito de direito – legítimo embora ilícito –, uma das instâncias o olhar dos brasileiros, é ele que é em si espetacular, e torna visível tudo o
que negociavam a hegemonia do controle das imagens da favela (a produção que olha. Participam do megaespetáculo, indiferentemente, os moradores
do clipe, os órgãos de segurança, a administração municipal e estadual, a da favela e de outras vizinhas, a polícia, os repórteres das redes de televisão:
mídia). A representação da favela é o resultado de um jogo de forças hete-
Na última hora, o que era para ser uma filmagem das cenas naturais da favela
rogêneas, comprovando cabalmente a crise por que passa o paradigma da
havia se transformado num megaespetáculo. Nos céus, helicópteros da polí-
imagem de uma nação unificada, subordinada ao poder do estado, ao fazer cia, das televisões e da equipe de filmagem se revezavam para registrar as
surgir, da diferença entre forças, identidades minoritárias na cultura brasi- cenas da multidão de moradores e agregados dos morros vizinhos, que ocu-
leira. A análise clássica althusseriana da interpelação não permitiria enten-
28 Caco Barcellos narra o empenho de Marcinho VP em que Spike Lee escolhesse a Santa Marta
der a parte ativa que o “representante” da favela (Marcinho VP) teve nesta como cenário do clipe, vencendo a Rocinha, que disputava com ela o espaço. “Empolgado,
negociação, ao calcular pragmaticamente o benefício possível para a favela [Marcinho VP] convenceu seus homens de que o clipe era importante porque mostraria para
o mundo as condições miseráveis da vida de suas famílias. Mesmo antes de saber qual seria
o morro escolhido pelos americanos, exigiu o empenho de todos para transformar as grava-
26 Ibidem, p. 18-19. ções de Jackson num grande evento comunitário, como marca da chegada de sua geração ao
27 Aldair Rocha. Cidade cerzida. A costura da cidadania no morro Santa Marta. Rio de Janeiro: poder da favela” (Caco Barcellos. Abusado, loc. cit., p. 327).
Relume Dumará, 2000, p. 24. 29 Ibidem, p. 338.

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pava lajes, telhados, janelas e qualquer espaço possível. Todos queriam ver de que merece morrer. No final da entrevista os três se reuniram para verificar
perto Michael Jackson.30 as respostas, uma vez que não levavam gravador, e este ponto da entrevista
Os jornalistas dos três jornais, acompanhados de seus respectivos havia gerado dúvida. Apenas Nelito Fernandes, pelo sim pelo não, preferiu
fotógrafos, conseguem entrar incógnitos na favela na sexta-feira, mas são não pôr nada, o que motivara inclusive críticas de seus colegas e superio-
descobertos após algumas horas. Eles negociam então com Marcinho VP a res, diante do furo dos jornais competidores. A deformação semântica, de
sua permanência, e ele, contrariando as ordens expressas da Skylight, acaba responsabilidade estrita dos jornalistas, terá, no entanto, um altíssimo custo
cedendo. Os três propõem uma entrevista. Marcinho hesita, e afinal aceita, para Marcinho VP, peça essencial da construção da personagem monstruosa
mas com a condição de que sua identidade não seja revelada. Os jornalistas do traficante “assassino frio e vaidoso” (chamada do JB), transformando-o,
dão a “palavra de honra” de que a publicariam sem identificar o seu nome instantaneamente, no traficante mais procurado pela polícia.
e sem dizer que ele era o dono da boca.31 Para garantir o segredo Marcinho As falsificações não pararam aí: O Dia colocou no título da entrevista
faz ameaças. A negociação de cada jornalista com seu editor de redação a frase “O tráfico está pronto para a guerra”, que Marcinho VP não disse-
é delicada, mas em parte a pressão do “furo”, em parte a da competição ra.36 Compare-se com as declarações de Marcinho VP, reconstruídas por
com os outros jornais, acaba determinando a decisão dos três de ignorar o Caco Barcellos:
acordo com o traficante. Um dos jornalistas (Nelito Fernandes, de O Globo) Eu sou um cara de harmonia. Sou um profissional no meu trabalho. Eu me
se arrependerá retrospectivamente, considerando questões de ética jorna- sinto preocupado e não poderoso. Quero paz no meu morro e não quero que
lística e do respeito dos direitos das fontes.32 No momento, no entanto, pre- ninguém venha tomá-lo. Não sou um Robin Hood, sei que faço o errado.
Acho que os pobres das favelas representam hoje um novo Quilombo dos
valeceu a posição do editor: “Não tem acordo com bandido, Nelito. Ou a Palmares, a encarnação de Zumbi, e somos perseguidos injustamente. Quero
gente dá o nome dele ou eu não publico a entrevista”.33 passar a todos os jovens – do movimento ou não – a ideia de justiça social.
A edição das palavras de Marcinho VP foi muito além da correção dos Como sou nascido e criado no morro e ajudo os mais necessitados, acabo
erros de português, o corte das gírias e a alteração do seu jeito de falar. Em reconhecido pelo meu trabalho. Eu gosto de guerrear, mas quando é necessá-
rio. Se for preciso não posso pensar duas vezes.37
um ponto, que decidiria definitivamente o destino da representação pública
de Marcinho, houve falsificação absoluta do que fora dito. Quando pergun- As críticas à política de extermínio da polícia, a referência, por exem-
tado se usava drogas, a frase: “Não fumo, não bebo. Eu só fumo o mato plo, à camisa entregue por ele a Spike Lee com o nome dos 23 meninos de
certo”,34 foi transformada por Silvio Barsetti (de O Dia) em: “Nunca fiz isso. 14 a 18 anos, soldados do tráfico, mortos pela polícia fora de confrontos38
Eu não cheiro, não fumo, não bebo. Só mato o certo” (grifo meu). Na ver- – não mencionada, diga-se de passagem, por nenhum jornalista –, aca-
são de Marcelo Moreira do JB, ela sofreria distorção ainda maior: “Eu não bam se transformando, na manchete de O Globo, em desafio à ação poli-
bebo, não fumo e não cheiro. Meu único vício é matar, mas só mato quem cial: “Traficante comanda a segurança e desafia a polícia”. O Globo omite
merece morrer”, (grifo meu).35 O substantivo “mato” (maconha) é transposto a “palavra de honra” do jornalista, mas menciona a ameaça do traficante:
no verbo “matar”; o adjetivo “certo”, na expressão “mato certo” (i.e., não um “se colocarem meu nome nas reportagens, compro o endereço de vocês e
mato qualquer), transforma-se em afirmação da morte do que é “certo”, do mando buscar”.39 O Jornal do Brasil enfatiza o tema do poder de Marcinho
VP, sua propriedade do morro, cunhando a expressão famosa (reutilizada
30 Ibidem, p. 347. por Caco Barcellos no título de seu livro), “dono do Dona Marta”, e prosse-
31 Ibidem, p. 342.
32 Ibidem, p. 358. 36 Ibidem, p. 349.
33 Ibidem, p. 347. 37 Ibidem, p. 344.
34 Ibidem, p. 343. 38 Ibidem, p. 346.
35 Ibidem, p. 351. 39 Ibidem, p. 349.

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gue com a criação peculiar da figura híbrida do justiceiro social e assassino Está explicitado o programa do jornalismo de denúncia: a revelação
vaidoso: “líder do tráfico na favela saúda Michael Jackson, protesta contra a iluminista da verdade, como forma de forçar os poderes públicos a agi-
desigualdade social e revela ser um assassino frio e vaidoso”.40 rem, fazendo-os acordarem de sua inércia sonambúlica e frequentemente
A explicação de Marcelo Moreira sobre a adulteração do “mato certo” corrupta (quer dizer, sócia). Colaboração exemplar, característica da socie-
é reveladora: ele poderia ter sido influenciado pelo depoimento de um dade democrática: a verdade jornalística, a “justiça” policial, e o veredicto
bêbado que ouvira na favela, que matara a mulher a mando de Marcinho judicial, um provocando o outro, em legítimo checks and balances. Esta cir-
VP. “A gente não quis exagerar em nada, não teve leviandade nenhuma, culação bem oleada das funções públicas só pode operar no estado livre
sabe por quê? Não precisava ele falar. Eu já sabia que ele era violento. Só de direito – a referência “política”, a contrario, da juíza, é a repressão do
que naquele momento eu acho que ele não falou isso” (grifo meu).41 Simples período militar. Exalta-se a “astúcia” dos jornalistas, que colaboram para o
deslocamento, mas interpretação válida dos fatos. A adulteração é veros- funcionamento da democracia. A juíza não para, no entanto, aí: quer que
símil, alterou-se um detalhe, mas manteve-se a verdade de fundo, que o os jornalistas deem um passo além da denúncia, e convoca-os para “iden-
jornalista podia detectar por observações contextuais. O jornalista profere tificar” o traficante. Os três se negam, com medo das represálias de Marci-
um veredicto sumário, ditado por uma verdade preconcebida, que não pre- nho VP, caso ele fugisse da prisão. Marcelo Moreira dribla astuciosamente
cisa ser provada, mas que tem efeito de verdade. E devastador. Nova cena a injunção da juíza, dizendo-lhe que o preso era “muito parecido”, mas que
de interpelação: o acusado não precisa, na verdade, falar, tudo já foi dito no não dava para reconhecê-lo.44
seu lugar, pelo dispositivo da representação jornalística da violência que o Apesar da recusa de identificação ou reconhecimento de VP, o epi-
preconcebe. O ventriloquismo jornalístico dubla a enunciação do entrevis- sódio ilustra exemplarmente a articulação da instituição encarregada de
tado, e o dispositivo judicial-policial fala mais alto, cobrindo a sua voz; a administrar a justiça com a encarregada de produzir informação, a curiosa
informação inverídica, mas semelhante à verdade (vero-semelhante), julga, junção entre tribunal e jornal em torno de uma lógica punitiva, estam-
e ajuda a prender o criminoso assassino frio e vaidoso que fabricara. pada nos elogios rasgados da juíza à função democrática do jornalismo.
A entrevista desencadeou a abertura de um inquérito por tráfico No entanto, estes enunciados de informação, dotados de valor de verdade
de drogas, formação de quadrilha e apologia do crime, na Delegacia de (“clareados”, como disse Denise Frossard), que produzem efeitos policiais
Repressão a Entorpecentes.42 Iniciou-se então uma caçada policial verti- e jurídicos inapeláveis, fogem inteiramente às regras mais elementares da
ginosa, com a ocupação imediata do Santa Marta, que acabaria por pren- formação do discurso da verdade. É tudo “verossímil”, como explicou o
der Marcinho VP alguns dias depois. No processo, a juíza Denise Frossard jornalista Marcelo Moreira, o mesmo que declarou que Marcinho VP era
explica que as peças do processo foram encontradas na entrevista: “parecido” consigo mesmo. Mas a verossimilhança faz as vezes de verdade,
produz efeitos judiciais irrecorríveis, sem jamais ser submetida a qualquer
É de se louvar o trabalho da imprensa, em especial dos jornais O Globo, Jornal
do Brasil e O Dia, que com suas reportagens por ocasião da visita do pop-star verificação. A função do jornalismo é rigorosamente semelhante ao papel
Michael Jackson conseguiram entrevistar o chefe do tráfico do morro Dona do perito-testemunha, convocado em juízo para decidir da “responsabili-
Marta, e com isso teve início o inquérito cujas peças servem de informações
presentes ao processo. É a astúcia do jornalista numa imprensa livre e democrá- naquele momento falou que precisava me condenar. Tanto é que foi a Denise Frossard que era
tica que faz clarear a verdade, fazendo renascer os brios dos homens públicos.43 a que me julgou, que era a juíza do jogo do bicho, e ela que me julgou, quer dizer, e uma das
pessoas que me julgou foi ela, e fui condenado em cima de um pensamento político, do que
eu falei, não fui condenado em cima do que realmente tinha acontecido”. O que determinou a
40 Ibidem, idem.
prisão e o veredicto, portanto, não são os crimes cometidos pelo traficante (“o que realmente
41 Ibidem, p. 351. tinha acontecido”), mas duas questões de natureza política, em um julgamento eminente-
42 Ibidem, p. 351. mente político, no mau sentido da palavra: a vontade da classe governamental, e o pensamento
43 Ibidem, p. 359. Na CPI do narcotráfico (24/04/2000), Marcinho VP dirá o seguinte sobre esta libertário de Marcinho VP. O interpelado não é julgado por fatos: é a posição de onde fala que
prisão: “E eu tinha consciência totalmente que ia ser condenado, eu não fui condenado em a cena penal coloca, que está em juízo, é essa instância e nada mais que deve ser punida.
cima do que eu fazia, tinha consciência que eu ia ser condenado em cima da política que 44 Caco Barcellos. Abusado, loc. cit., p. 359.

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dade penal” dos réus-limites, tal qual descrito por Foucault.45 É ele quem pela imprensa. Depois, quem sabe, talvez, eventualmente, em tese, alguma
intervém diretamente no espaço penal sobre a conduta e o comportamento providência.49
de pessoas, apresentando um discurso regido pela lógica científica da ver- Não resta dúvida de que cabe à mídia, enquanto elemento constitutivo
dade, decidindo peremptoriamente sobre a normalidade ou anormalidade das mediações do espaço público, o papel essencialmente iluminista (i.e.,
do réu (no caso do perito-psiquiatra), ou fornecendo provas que legitimam crítico) de tornar visível (“des-escamotear”) a verdade, e desta forma acionar
versões dos fatos.46 Podemos, de fato, traduzir quase literalmente as coloca- as instâncias governamentais, que eventualmente podem se transformar em
ções de Foucault sobre a interface do dispositivo médico-legal, em termos políticas públicas (as “providências”). Ao identificar-se, no entanto, com a
da colaboração que vemos funcionando hoje em dia no Brasil, no disposi- lógica punitiva da crônica policial e com os trâmites do processo judicial –
tivo legal-policial-midiático. Embora tenha, no caso acima, se recusado a ou seja, ao reconhecer ou identificar crimes e criminosos escamoteados pelo
dar o último passo no sentido da colaboração com a instituição policial- dispositivo judicial-policial, opondo à inércia corrupta e arcaica da justiça
judicial – o reconhecimento do preso – outras vezes, como na matéria de do Estado a eficácia “justiceira” da iniciativa privada –, o jornalismo de
Feira das Drogas de Tim Lopes (Jornal Nacional, da TV Globo, 3/08/2001), fato criminaliza e estigmatiza sujeitos e espaços coletivos ligados à pobreza
o jornalismo foi diretamente responsável pela identificação de suspeitos.47 urbana. Ao mesmo tempo, não é menos verdade que o jornalismo de denún-
Percival de Souza, não por acaso um repórter policial,48 descreve assim o cia, ao divulgar chacinas e abusos flagrantes de direitos humanos, tem sido
programa do jornalismo de denúncia: direta ou indiretamente responsável pelas grandes intervenções recentes de
O jornalismo investigativo tem sido responsável em grande parte pelo movi- políticas governamentais no Brasil. É ele quem tem aberto espaços para o
mento que leva as verdades a não serem escamoteadas. Primeiro, a denúncia surgimento de novas subjetividades, dando visibilidade a práticas culturais
excluídas, desde, é claro, que estas se adequem às regras de aceitabilidade
45 Michel Foucault. Os anormais, loc. cit., p. 3-32. e à estereotipação das representações estipuladas pela mídia. Basicamente,
46 Cf. Michel Foucault. A verdade e as formas jurídicas. Tradução: Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Nau Editora, 1999.
a mídia que identifica e ajuda a punir os criminosos, forçando a polícia a
47 O Jornal Nacional (TV Globo, 22/08/2001) anuncia a primeira prisão de um traficante como agir, é a mesma que os transforma em pop stars, premiando-os com ima-
consequência da exibição da reportagem Feirão das drogas (de 17/08/2001), cinco dias após a gens vendáveis e anunciando seus CDs e performances.50 Ou, como resume
exibição da reportagem: “Preso traficante do feirão de drogas. Luciano José Alves, de 21 anos,
aparece na imagem, de gorro, vendendo drogas, no Conjunto do Alemão. Mais 11 traficantes
Micael Herschmann, “a mesma mídia que demoniza é aquela que também
estão sendo procurados”. Outra edição do Jornal Nacional (19/12/2001) anuncia o prêmio Esso abre espaços nos jornais e programas de televisão”.51 Mas é preciso ir além
Especial ganho pelos jornalistas Flavio Fachel, Tim Lopes, Tyndaro Menezes e Renata Lyra
do simples diagnóstico da profunda ambiguidade da mídia. Ao punir, reco-
da TV Globo, pela série de reportagens “Feira de drogas”, e explica que “depois que as ima-
gens foram ao ar, o comando da polícia do Rio deu ordens para que todos os traficantes que nhecendo criminosos, ou ao premiá-los, transformando-os em “intelectuais
apareciam nas reportagens fossem presos. Mas em quatro meses de investigação, os policiais orgânicos”, ao fazê-los transitar entre os cadernos policiais e os cadernos
conseguiram prender três criminosos. E um já conseguiu fugir”. O que conseguiu fugir fora
Ratinho (Renato Souza de Paula), ironicamente um dos traficantes que participará da execu- culturais dos jornais,52 a mídia não consegue atravessar o espelho de suas
ção de Tim Lopes no ano seguinte (2/06/2002). (Aparentemente o jornalista não fora reco-
nhecido como sendo o autor de “Feira das drogas” quando concluía outra reportagem sobre
49 Percival de Souza. Narcoditadura. O caso Tim Lopes, crime organizado e jornalismo investiga-
bailes funk, na Vila Cruzeiro, mas apenas como jornalista.) Quando de sua prisão, após o
tivo no Brasil, loc. cit., p. 61.
assassinato de Tim, a edição de 10/06/ 2002 retoma o tema: “Onze traficantes que apareceram
nas imagens de Tim foram identificados. Ratinho estava entre eles. É o homem que está lim- 50 No Brasil, os videoclipes de MV Bill, “Soldado do morro”, ou “Traficando informação”. Nos
pando um fuzil Ruger, durante o feirão de drogas”. O mesmo tipo de identificação é descrito Estados Unidos, o gangsta rap, capitalizando encima da estética do tráfico e da marginali-
em outra ocasião, na edição de 9/12/2002: “Traficante mostrado no Jornal Nacional foi preso dade. Ou o exemplo recente do ex-traficante 50 cent, que vendeu seis milhões de cópias de
no Rio”. Onze dias depois da reportagem, ele foi preso, e o mesmo Jornal Nacional noticia a seu CD de estreia “Get Rich or Die Tryin”.
proeza, comprovando a eficácia “justiceira” da mídia. 51 Micael Herschmann. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2000, p. 89.
48 Observe-se o curioso da fórmula: “repórter policial” é o jornalista que cobre matérias ligadas 52 Micael Herschmann faz uma admirável análise quantitativa da representação do funk na
à criminalidade, à justiça e à polícia, ou é um “repórter-policial”, ou seja, um curioso híbrído mídia carioca entre os anos 1990, portanto antes do “Arrastão” exibido pelo Fantástico em
de policial e repórter? 18/10/1992, e 1996. A pesquisa demonstra o trânsito do funk entre os cadernos culturais dos

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próprias fabricações. Ela permanece refém de uma lógica especular ima- cial-judicial-midiático. Tanto a mídia quanto o tribunal de rua funcionam
ginária, estruturada segundo as polaridades conhecidas – mesmo/outro, segundo uma lógica imediatista, identificando e punindo culpados, subs-
demonização/glamourização –, vendendo imagens consumíveis de alteri- tituindo o reconhecimento moralista do culpado aos diagnósticos sociais
dades estetizadas e violentas. A irresistível superficialidade destas imagens, em profundidade, e tomando como responsáveis meros bodes expiatórios
cuja produção e circulação é submetida inteiramente à lógica do consumo e amplamente substituíveis, culpados de violência, e tratados de maneira
da venda de “verdades”, é sintomática de um movimento em larga escala de igualmente violenta pela sociedade que se vinga ao puni-los.
loteamento e privatização do espaço público. No caso de Marcinho VP terá prevalecido o veredicto do editor de O
Não deixa de ser terrível a ironia de que exatamente este mesmo dis- Globo, César Seabra: “Fui eu que fiz o [Marcinho] VP ficar famoso. Se não
positivo de reconhecimento e identificação será utilizado contra o próprio fosse por mim, ele não seria ninguém”.55 Ou então, o outro lado da moeda,
Tim Lopes, e terminará com o seu julgamento e execução pelo traficante a versão da traição da “palavra de honra” da mídia, a lógica da traíra (“Te
Elias Maluco quando realizava uma outra pesquisa de jornalismo investiga- engulo antes que tu me engula”), diagnosticada pela personagem Mãe
tivo sobre bailes funk na Vila Cruzeiro. O fato de não ter sido reconhecido Brava, de Abusado. Ou, como dirá a personagem Luz, repetindo mais uma
como o realizador da matéria “Feira das Drogas”, mas sim como informante vez a interpelação de Michael Jackson/Spike Lee: “Eles não se preocupam
da polícia, e, após confissão, como repórter, não deixa de expor a associação com a gente”.56
automática das duas instâncias.53 O voyeurismo da exibição do submundo
“escandaloso” do comércio de drogas em plena luz do dia, ao lado de uma III
escola, no “furo” de reportagem, expõe de forma explícita a identificação da
mídia com a lógica punitiva da polícia, a estetização do medo e da violência O terceiro episódio, o da mesada de 1.000 dólares oferecida por João Moreira
como motor de venda de imagens da “verdade”, produtora de um simulacro Salles a Marcinho VP por três meses, quando ele fugira do Rio de Janeiro, é
de justiça imediata. É a mesma espetaculização que pautará a cobertura das narrado por Luiz Eduardo Soares em seu livro Meu casaco de general. Em
investigações sobre o julgamento e execução do jornalista no Complexo do dezembro de 1999, Luiz Eduardo, o coordenador de segurança do governa-
Alemão e a caçada pelos culpados.54 A despeito da tragédia terrível – um dor Anthony Garotinho, foi contactado por João Moreira Salles através de
desdobramento heroico do jornalismo “justiceiro”, em meio a uma justiça Rubem César Fernandes (coordenador do Viva Rio). O motivo fora o receio
de estado morosa e corrupta –, é preciso olhar o problema com isenção. da parte de Moreira Salles de sofrer chantagens de pessoas pouco escrupulo-
Não basta opor moralisticamente o tribunal legítimo aos tribunais de rua, sas, que pudessem dispor da informação, deturpada e descontextualizada, de
a ilegitimidade do julgamento e da execução sumária com requintes de que ele vinha enviando uma bolsa mensal a VP, na época na Argentina, com a
crueldade levada a cabo pelo traficante ao juízo legítimo do dispositivo poli- finalidade de ele escrever um livro sobre a sua vida. O receio aumentara após
indícios de que seu telefone fora grampeado pela polícia. No encontro com
jornais (100% em 1990) aos cadernos policiais (92,8% em 1992), até chegar a um equilíbrio Soares, Moreira Salles conta como conhecera Marcinho em 1998, quando da
precário em 1996 (56% nos cadernos policiais; 44% nos cadernos culturais) (Ibidem, p. 94). filmagem do documentário Notícias de uma Guerra Particular, como filmara
53 Jornal Nacional, 10/06/2002: “Os traficantes presos ontem contaram que Tim Lopes foi con- uma entrevista de duas horas com o traficante, mas não a utilizara em seu
fundido inicialmente com um X-9, que na linguagem do tráfico quer dizer informante da
polícia. Tim disse que era repórter. Ainda segundo os bandidos, em nenhum momento Tim documentário, e sobretudo como ele vira em Marcinho “inteligência e sensi-
foi identificado como autor da reportagem sobre a feira das drogas. Mesmo assim, Ratinho bilidade para ser um cidadão estimado, respeitado, culto e influente, se a vida
[Renato Souza de Paula, que aparecera na reportagem e fora preso após a sua exibição] foi o
que mais pressionou para que Tim fosse assassinado”.
não o tivesse capturado numa dessas armadilhas a que meninos pobres estão
54 Cf. o livro de Percival de Souza, Narcoditadura. O crime Tim Lopes, crime organizado e jor-
nalismo investigativo no Brasil, exemplo de uma heroização sentimental e quase messiânica
da figura do jornalista investigativo, em um livro típico de jornalismo investigativo, que se 55 Caco Barcellos. Abusado, loc. cit., p. 360.
identifica inteiramente com a lógica punitiva policial. 56 Ibidem, p. 354.

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sujeitos no Brasil”.57 Luiz Eduardo destaca a capacidade de “ver” por detrás Nova surdez do dispositivo jornalístico. Desta vez, o objeto da interpe-
da “armadura” monstruosa do criminoso, e o aprendizado de “ouvir” a sério, lação é o diretor e filho de banqueiro, de alguma maneira contaminado, no
furando a distância do preconceito, como instrumentais nesta aproximação. imaginário jornalístico, pelo contato criminalizante com o traficante. Por
A partir daí, começa a amizade entre o diretor e o traficante. Vários encontros uma casualidade nada casual, Luiz Eduardo Soares também aparecia como
se sucedem; Moreira Salles oferece cursos de história da arte no Dona Marta, coadjuvante de Marcinho VP nesta mesma edição de O Globo. Ele fora con-
doa livros ao traficante, discute sobre A peste de Camus. Eventualmente surge vocado por um jornalista do mesmo jornal uns dias antes para intervir na
a promessa da bolsa para a realização de um “testemunho” sobre a sua vida, situação por que passava a mãe de Marcinho e suas duas irmãs, vítimas
caso ele decidisse deixar o crime. de ameaças de policiais e de traficantes de uma facção inimiga da de seu
A saída bolada por Luiz Eduardo para evitar a chantagem foi divulgar filho,60 visitara-as, e preparara um esquema de proteção para as três. É fácil
o mais rápido possível o fato à imprensa. Antes, no entanto, consultaram imaginar como a combinação das duas notícias produzirá uma terceira na
o coronel Josias Quintal, secretário de segurança, com quem Luiz Eduardo cabeça de um leitor preconceituoso: tratamento VIP para a família do tra-
tinha uma relação conflituosa. O coronel confirma a opinião de advoga- ficante sedutor e violento que fascinara a elite intelectual e bancária, com
dos especialistas consultados sobre a questão, de que não havia em princí- direito a atenções especiais do Coordenador da Secretaria de Segurança,
pio problema nenhum no pagamento da bolsa a Marcinho. O problema é enquanto nós... Privilégio em cima de privilégio: tratamento de cidadania
colocado pela lei em termos do direito assegurado de compra de um livro, para traficante, e descaso para com o cidadão honesto, leitor do jornal – é
o fato de ele não ter sido ainda escrito não sendo aparentemente impor- para isso que serve a polícia carioca!
tante: “segundo as leis brasileiras, é lícito comprar um livro, independente- Nos dias que se seguiram, as opiniões a respeito da legalidade das
mente de quem seja o autor”.58 A notícia afinal saiu na edição de domingo, remessas de dinheiro a Marcinho se dividiram, e Luiz Eduardo Soares foi
27/2/2000, de O Globo, ocupando a manchete da primeira página “Dona interpelado como representante da defesa de Moreira Salles. A sua posição
Marta, onde a cidade partida se encontra”. Vejamos a análise da edição da repousava em uma duplicidade fundamental, talvez contendo o cerne do
notícia feita por Luiz Eduardo: viés “híbrido” de seu programa de segurança na coordenação da Secreta-
ria de segurança de Garotinho (e posteriormente do Ministério de Lula):
Em certo sentido, não importava muito o que João dissesse. A edição valorizava
a arrogância provocadora e rebelde do criminoso, que bancava o Robin Hood ao mesmo tempo punir e prevenir, desenvolver uma estratégia ao mesmo
urbano, o herói popular violento e assustador. João passava para o segundo tempo humanista e não contemporizante com a criminalidade.61 A avalia-
plano. No segundo caderno, as fotos sugeriam uma conexão simbólica pro- ção positiva do gesto de Moreira Salles, por um lado, não interferia com a
blemática. Enquanto Marcio olhava diretamente para a câmera, fitando os disposição de cumprir os deveres ligados a sua função, e fazer tudo para
olhos de quem o via, João estava de lado, inclinado em direção à fotomonta-
gem, com um olhar atento e admirado, quase devocional. O documentarista prender o criminoso, por outro. Garotinho intervém no debate introdu-
era o coadjuvante; Marcio, o protagonista. Moço culto e refinado se encanta zindo uma nota irônica que ele aproveitará mais adiante, capitalizando o
por bandido glamourizado – parecia este o sentido da saga. Em bom portu- lado “filho de banqueiro” da história: “Não há diferença entre um ban-
guês: deslumbramento ingênuo do rapaz mimado e rico pelo traficante feroz queiro de bicho e um banqueiro de dinheiro, no que diz respeito à lei”.62
com discurso social (meu itálico).59
Garotinho, para carregar mais nas tintas, confunde intencionalmente os
crimes dos dois Marcinhos VPs, atribuindo a Marcio Amaro de Oliveira os
57 Luiz Eduardo Soares. Meu casaco de general. Quinhentos anos no front da segurança pública
do Rio de Janeiro, loc. cit., p. 446.
58 Ibidem, p. 448. Observe-se que do ponto de vista legal Moreira Salles seria tratado como um 60 Ibidem, idem.
editor que dá um adiantamento a um escritor contratado para escrever um livro. “Comprar 61 Esta duplicidade é convertida em coexistência “híbrida”, contraditória, de dois programas
um livro”, no caso, significa comprar o tempo do escritor, pagando-lhe um salário para que epistemológico-políticos em “Uma interpretação do Brasil para contextualizar a violência”:
ele escreva o livro. ao mesmo tempo abraçar o pensamento crítico e a prática engajada, liberal.
59 Ibidem, p. 450. 62 Ibidem, p. 452-452.

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crimes de Marcio Nepomuceno, na época já na prisão e considerado efe- Moreira Salles, iria procurar alguém que não conhecia, que não vivenciou e
tivamente “um dos criminosos mais violentos do país”.63 O Coronel Josias nem participou na elaboração do documentário, para lhe dar mil dólares por
mês pelo simples fato de ter sido um preso que saiu, alguém que estava preso
Quintal, esquecendo-se providencialmente de que tivera anteriormente
e fugiu, e foi para um outro país e ter uma bolsa. Existe aí...
conhecimento da ajuda de Moreira Salles, e que na ocasião a aprovara,
aproveita a deixa para detonar as críticas contra o Coordenador de Segu- Marcinho VP – O senhor se engana. O senhor está colocando uma coisa com a
outra. Uma coisa é distinta da outra. O documentário foi uma coisa. Em cima
rança. As manchetes dos jornais de 29/02/2000 já fabricam a crise na área
do documentário ele teve a oportunidade de ver que existia problema social
de segurança do governo. O JB, por exemplo, diz em manchete: “Crise racha e ele teve a oportunidade de parar pra conversar. Nas oportunidades que a
cúpula da Segurança; Josias Quintal ataca Luiz Eduardo”.64 A de O Dia cita gente teve de conversar depois desse documentário, depois desse documen-
a frase bombástica do secretário: “Isso tudo é uma palhaçada”, referindo-se tário pronto, que eu até gravei uma imagem. Ele teve a oportunidade de ver
à relação entre Moreira Salles e Marcinho VP, e acaba identificando, por que estava lidando com uma pessoa que é povo que nem ele. Porque o senhor
está dividindo as classes, a ideia dele não foi dividir as classes, foi lidar com
contaminação, o Coordenador de Segurança ao gesto de Moreira Salles. problema igual de ser humano pra ser humano. Por isso houve essa necessi-
Tudo isso culminará com a exoneração de Luiz Eduardo Soares, dade no coração dele.66
durante uma entrevista do RJ-TV, no dia 17 de março. No total, o governa-
dor apresentará três versões para as razões da exoneração: 1) os conflitos Precaução em distinguir, em não “colocar uma coisa com a outra”, com
entre o coordenador e o secretário Josias Quintal;65 2) Luiz Eduardo Soares relação às interpretações conspiratórias sobre as motivações de Salles, e,
desrespeitara a hierarquia institucional, em um incidente ocorrido antes do paralelamente, postulação programática de uma recusa fundamental de
carnaval em que se evidenciara a conivência da polícia com o narcotráfico, “dividir as classes”. Importância da oportunidade da conversa, e o tempo da
ao convocar o Ministério Público e não seguir os caminhos de praxe, pas- descoberta. Ao contrário do deputado que “divide as classes”, Salles achara
sando por cima do secretário Josias Quintal; e por último 3) a solidariedade o ser humano Marcinho VP, o ponto de igualdade entre todos os seres
para com o gesto de Moreira Salles. Na nota, em que ocultava os nomes humanos, “povo que nem ele”. Não há simples ingenuidade na observação
próprios para proteger-se contra um eventual processo judicial, insinuava de Marcinho: há reconhecimento sincero e surpreso da improvável possi-
que existiam vínculos escusos entre Soares, Moreira Salles e os traficantes, bilidade de aproximação entre desiguais, no contexto da mais abissal desi-
sugerindo uma aliança entre o capital financeiro, através do filho do ban- gualdade. Marcinho aponta uma motivação interior para a aproximação
queiro, e o tráfico, acobertado pelo Coordenador de Segurança. do diretor: uma necessidade do coração. A manchete de O Globo, quando
Por causa desta mesada, João Moreira Salles será acusado e conde- de seu depoimento à CPI, percorre uma figura oposta: a pose. “VP posa de
nado por “favorecimento pessoal”, e sofrerá pena de multa e realização de oprimido mas protege opressores: A tentativa do traficante Marcinho VP
serviços comunitários. É notável como, um mês depois, após a sua prisão, de usar a CPI do Narcotráfico como palco político não deu certo. Ele tentou
quando Marcinho VP foi interrogado pela CPI do narcotráfico (27/4/2000), fazer um discurso ideológico em defesa de pobres e bandidos dos morros,
o grosso da investigação se concentrará exatamente no mistério da relação mas se desmoralizou ao negar à CPI os nomes dos barões do tráfico que,
entre o traficante e o filho do banqueiro. As perguntas do deputado Robson segundo ele, estariam fora das favelas”; “Marcinho VP é desmascarado na
Tuma e suas respostas são reveladores. Por exemplo: CPI: Bandido discursa dizendo estar ao lado do povo mas não dá nomes
de chefões do tráfico” (O Globo, 28/04/2000). Os motivos do desmascara-
Robson Tuma – Eu vou encerrar, mas antes de encerrar eu vou fazer mais uma
mento e da desmoralização retomam o mote da restituição iluminista da
pergunta, mas dizendo: me causa grande estranheza saber que alguém, João
verdade da informação e da função desmistificadora do jornalismo, aqui
articulado ao inquérito parlamentar. A eles estão opostos a máscara, a pose,
63 Ibidem, p. 453.
64 Ibidem, idem. 66 Gravação da entrevista da testemunha Marcio Amaro de Oliveira à Comissão Parlamentar de
65 Ibidem, p. 467. Inquérito do narcotráfico (27/04/2000), obtida na Câmara dos Deputados, Brasília.

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o palco e o falso discurso politizado, motivos teatrais ligados à falsidade, capa das responsabilizações individuais. A fragilidade do suposto desmas-
que cumpre ao dispositivo parlamentar-jornalístico desmascarar. A repor- caramento de seu discurso efetuado pelos parlamentares, segundo o qual a
tagem contém, no entanto, uma ambiguidade fundamental: ao mesmo verdadeira coerência com uma posição “ideológica” (i.e., politizada) seria
tempo em que esclarece e desmistifica, glamouriza e endossa o personagem revelar os nomes dos chefões do narcotráfico (como se alguém esperasse
do ex-traficante boa pinta e charmoso.67 que uma pessoa destinada às prisões brasileiras pudesse revelar o nome de
Por um lado, a jornalista Monica Torres Maia se empenha em descons- quem quer que seja), contrasta com uma estetização flagrante que a foto,
truir o depoimento de Marcinho, procurando contradições e confrontan- e a citação da canção, escancaram. O diagnóstico do “uso” da CPI como
do-o a um critério de coerência de comportamento. A foto, no entanto, diz “palco político” desqualifica a discussão sobre política social que Marcinho
outra coisa: Marcinho aparece ao lado do relator Moroni Torgan, ambos efetivamente tentou propor. Certo seria falar o certo: ou seja, nomear os
com dedo em riste, em um curioso espelhamento: o relator sério, indig- matutos “financistas”. O resto é teatro, pose. O “uso” escandaloso consiste
nado, pontificante, e Marcinho com um meio sorriso na boca, em meio simplesmente no fato de Marcinho falar – algo como um escravo ousar
a um de seus “declaratórios”. O traficante imita o gesto do político, e não dirigir a palavra a seu amo. Para tal, Marcinho imita os gestos de seu inter-
deixa de dar o seu pequeno show. A foto da primeira página ainda é mais locutor, e abusa da paciência dos parlamentares, por não saber o seu lugar.68
impressionante: Torgan fala ao microfone, e aponta o dedo para baixo, Uma simples olhada no depoimento de Marcinho VP à CPI comprovaria a
enquanto que, ao lado, Marcinho ri, com o braço levantado e o punho pertinência e o interesse de uma série de colocações políticas feitas pelo ex-
fechado, em sinal de vitória. Os dois dançam uma pequena pantomima, traficante – uma reflexão sobre o lugar de onde fala (o narcotráfico, a droga,
com gestos opostos e complementares. Perguntado por Torgan sobre os a desigualdade social), situada no lugar da própria representação política
“financistas” que usam os pobres da favela (explica-se a verossimilhança (a CPI) – que literalmente não são ouvidas nem pelos parlamentares que o
conspiratória do argumento Moreira Salles), Marcinho despista, expli- interpelam, nem pelos jornalistas que cobrem a matéria. A cobertura gla-
cando não poder dizer-lhe quem são, ou que eles estão “em algum lugar”. E mourizante e demonizante da mídia, impressionantemente redutora em
cita a canção da Legião Urbana: “É como canta o Renato Russo, ‘na favela, o sua estetização do crime, e a desqualificação fácil das contradições do cri-
cenário, a miséria está por todo o lado’. ” (O Globo, 28/04/2000). O subter- minoso, dão um triste depoimento sobre o estado do jornalismo brasileiro.
fúgio estético da citação da letra de Renato Russo desarma a interpelação Como escreve Rubem César Fernandes, em crônica a respeito da discussão
do interrogatório, apimentando a cena, e incorporando o dado simpático, ética sobre a “ajuda” de João Moreira Salles:
como ocultamento da verdade (Marcinho “protege” os matutos). A letra,
A bandidagem movimenta-se com desenvoltura e acinte na sociedade, seja
no entanto, revela a miséria coletiva – enquanto a “verdade” oculta-a, sob a
no morro ou no asfalto, na planície ou no planalto; chega a ser homenageada
nas colunas sociais, mas não tem a legitimidade da pessoa humana no espaço
67 Exemplar da sedução exercida por Marcinho é a coluna de Marilene Felinto, “Da favelania
à filosofia espírito de porco” que opõe dois improváveis pares de opostos: Marcinho VP e
público legal. Curva-se e cobre o rosto diante das câmeras. Bandido que fala
Olavo de Carvalho: “De novo o traficante Marcinho VP (aquele que recebeu uma bolsa do em público, de cara limpa, ao invés de limitar-se à confissão encapuzada. É
documentarista João Salles para escrever um livro), que é boa pinta, fala direito, tem lá um um escândalo (O Globo, 13/05/2000).
discurso articulado em defesa dos pobres e prega a favelania, movimento pela conscienti-
zação dos favelados. Uma amiga minha olhou bem para a cara dele na TV, falando à CPI do Após a prisão, o silêncio torna-se quase completo.69 Com ela, ocorre
Narcotráfico, e disse: nossa! O cara é bonito, gostoso! Que tempos, que país! Mas traficante
manda cortar as mãos de criancinhas, queimar com cigarro. Mata gente inocente, rouba, o instantâneo desaparecimento de VP da mídia, e a focalização integral na
assalta, estupra, só causa danos à sociedade. Não fosse isso, era o caso de namorar bandido»
(Folha de São Paulo, 02/05/2000.) É evidente que a adversativa “realista” acrescida à declara- 68 Sobre a imitação do amo na enunciação do escravo, ver o ensaio de Julio Ramos (loc. cit., 1996).
ção pura e simples do desejo diante da imagem sexy de Marcinho esconde a causa inconfessa: 69 Uma exceção curiosa é a seguinte matéria do JB (26/02/2001), intitulada “De Foucault a
é precisamente pelo fato de ele supostamente matar e mandar cortar a mão de criancinha que Marcinho VP”: “Em visita recente à Penitenciária de segurança máxima Laércio Pelegrino, a
ele é bonito e gostoso. Assim opera o ciclo estético da fantasia: o glamour do perigo sexy é Bangu I, na Zona Oeste do Rio, o secretário de Justiça e Direitos Humanos, João Luiz Pinaud,
descartado pela intervenção do princípio de realidade (“não fosse isso, era o caso de namorar recebeu do presidiário Marcio Amaro do Amaral, o Marcinho VP, o livro Vigiar e Punir,
bandido”), mas algo permanece... história da violência nas prisões, do pensador francês Michel Foucault. O estudioso, morto

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“colaboração” do filho do banqueiro. O que interessa e o que vende jornal possibilidade de contato. Marcinho VP, em outros tempos, seria uma figura
e revista é o drama da elite, o “resto” só é matéria de notícia na medida em clássica do mediador,71 circulando entre dois mundos, um híbrido, uma
que cruze eventualmente o foco dos seus interesses, e o drama protagoni- mistura, mas agora é um criminoso.72 O que ocorreu entretempos?
zado por ela. A configuração clássica do favor sempre comprovara, a contrario, a
Mas o que esta relação entre o traficante e o filho de banqueiro parece exceção à regra essencialmente exclusionária do sistema social brasileiro,
dramatizar? Fica claro que todas estas instâncias – o aparelho político, a demonstrando a permeabilidade estamental de uma sociedade na verdade
polícia, grande parte da opinião pública, a mídia – tendem a recusar qual- rigidamente segregada, e comprovando a sua “plasticidade”.73 E foi a par-
quer possibilidade de mediação entre classes, criminalizando os canais de tir deste vínculo possível que se criaram as formas mais notáveis da cul-
contato entre elas. Efetivamente tocamos em uma especificidade contem- tura brasileira, como o maxixe, no final do século XIX, resultado de gran-
porânea do tema do “encontro”, ou da impossibilidade dele.70 A figura tra- des mediações históricas entre estratos musicais e sociais distintos. Foram
dicional da colaboração entre classes no Brasil fora a instituição do “favor”, estes contatos maravilhosamente estetizados que produziram a imagem de
responsável pelo trânsito possível entre segmentos estanques, cujo trata- uma cultura onde eles eram não só possíveis, mas continham a cifra de
mento em Machado de Assis, por Roberto Schwarz, é bastante conhecido. uma especificidade brasileira. O que estaria ocorrendo, no entanto, agora,
Ora, o ambiente ilícito em que os contatos entre classes passam a se dar no quando esta “mediação quase universal” parece faltar, ou melhor, quando,
contexto do crime-negócio (na expressão de Alba Zaluar), e a estetização ao ser encarnada pela mídia, o que ela dramatiza é a impossível mediação
do crime que ronda este contato, introduz elementos novos na equação entre classes, estetizando o crime (a pose, o roteiro, o palco) e criminali-
clássica do “favor”, à brasileira, erguendo, por um lado, um abismo entre zando a estética (a bolsa de Moreira Salles para que Marcinho escrevesse o
segmentos, tornando impossível uma brecha qualquer que possibilite o livro)? Enquanto a ideologia do favor amaciava e ocultava as relações vio-
trânsito entre eles, mas, por outro, envolvendo a distância de fascínio esté- lentas de produção (a relação senhor-escravo), a sua criminalização/este-
tico, e introduzindo um componente permissivo e transgressivo na (im) tização contemporânea capitaliza precisamente a violência, que passa das
relações de produção às da reprodução estética. Violência ocultada, versus
há 16 anos, escreveu sobre a evolução do sistema penitenciário no mundo desde o século violência espetacularizada, o narcotráfico consiste numa rede de trabalho
18, quando, na Europa, os condenados eram supliciados, os corpos esquartejados e expostos. (o comércio ilegal de drogas), situada no entrechoque intensamente esteti-
Foucault constatou a substituição gradativa, no discurso oficial sobre o encarceramento, do
conceito de castigo pelo de recuperação social. Mas só no discurso. O estudo de Foucault
zado/criminalizado entre favela (os moradores, os traficantes) e asfalto (o
revelou, em 1975, o fracasso do modelo penitenciário contemporâneo, ao menos no que se
refere à proposta de recuperação dos apenados. Marcinho VP, que controlou na década de 90 71 Para uma análise da figura do mediador do ponto de vista da antropologia, ver a coletânea
o tráfico de drogas no Morro Dona Marta, em Botafogo, pegou de empréstimo as palavras de editada por Gilberto Velho, Mediação, Cultura e Política. Sobre a mediação ver o capítulo 8
Foucault para mandar um recado à autoridade. ‘Se há um desafio político global em torno da “Mediação e inclusão”.
prisão, este não é saber se ela será ou não corretiva; se os juízes, os psiquiatras ou os psicólogos 72 Lembremo-nos, a título de contraexemplo, da figura de Sinhô, “traço de união”, “o Rei do
exercerão nela mais poder que os administradores e guardas; na verdade ele está na alterna- samba”, conforme o título da crônica de Manuel Bandeira “O enterro de Sinhô”, rebatizada
tiva prisão ou algo diferente de prisão’, escreveu o pensador. Pinaud disse que já lera o livro e “Sinhô, traço de união”.
optou por deixá-lo na biblioteca de Bangu 1, a menor e mais bem vigiada penitenciária do Rio, 73 Lembremo-nos por um instante da hipótese de Schwarz em Ao vencedor as batatas. Ali ele
onde vivem 46 homens acusados de integrar a cúpula do crime organizado no Rio.” Tanto o estuda a figura do “agregado” nos primeiros romances de Machado. O que ocorrera na socie-
empréstimo das palavras de Foucault, a apropriação do discurso erudito como autorização da dade brasileira da colônia fora a produção de três classes: o proprietário, o escravo e o homem
enunciação do preso, quanto a recusa do livro pelo Secretário de Justiça e Direitos Humanos livre, na verdade dependente, cuja figura é caricaturada no romance machadiano pelo agre-
parecem repetir um balé previsível, cujo funcionamento já descrevemos várias vezes: a dubla- gado. Enquanto “mediação quase universal”, o “favor” atenua e adoça a violência da rela-
gem da voz do marginal falante, mas em última análise sem voz, e a surdez do dispositivo que ção produtiva necessariamente violenta entre produtores e escravos (Roberto Schwarz. Ao
escuta sem escutar, que na verdade rejeita qualquer contato com o ex-traficante, e abandona o vencedor as batatas. São Paulo: Duas cidades, 1977, p. 16). Daí a especificidade da sociedade
marginal à margem (o secretário generosamente deixa o livro na Biblioteca do presídio). brasileira colonial: se no capitalismo liberal europeu a mediação universal é o trabalho, aqui
70 Lembremos que é esta figura do encontro que fora escolhida por Hermano Vianna, na esteira é o favor, enquanto configuração ideológica, passível de representação estética, que oculta e
de Gilberto Freyre, como matriz da invenção brasileira do samba nos primeiros anos do século revela as relações produtivas reais, já que estas não são apresentáveis, pois envolvem a escra-
XX, no Rio de Janeiro. vidão, e são objeto de profunda má consciência.

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sistema de produção e distribuição, os consumidores, a polícia, a justiça, a Ele é a pessoa consciente, preocupado com o Rio, que vê neste livro a pos-
mídia). E estetizado não só pelo asfalto. O comércio de drogas oferece um sibilidade de conscientizar sobre o Rio. Não resta dúvida de que é a inter-
plano de carreira para a população pobre,74 e proporciona a esta população pelação estética do professor de história da arte, erudito conversador sobre
acesso imediato e fácil aos bens de consumo, do contrário inacessíveis, na A peste de Camus, diretor renomado de documentários, que constitui Mar-
rígida estratificação social das cidades brasileiras. Ele percorre um cami- cinho VP como narrador de sua própria vida. O projeto autoral precisa ser
nho sinuoso que atravessa as estruturas clássicas de produção e reprodução, autorizado pelo esteta que sabe ouvir e ver, o homem consciente que cons-
mundo do trabalho e universo estético (mídia, bens de consumo), comu- cientiza Marcinho VP sobre o valor de sua vida, inaugurando nele a ideia
nicando pelo viés ilegal e criminal estamentos separados por um abismo de ser escritor, para narrá-la. Esta é a aposta de Moreira Salles: desenvolver
social. O resultado não configura mais uma ideologia, representação inver- em Marcinho a consciência da importância e do valor de sua vida, como
tida, camera obscura (Marx e Engels) das relações de produção e da divisão maneira de fazer o traficante mudar de vida. Opor a vontade de narrar à
do trabalho, mas representação violenta, mortal e real da divisão social em vontade de poder. Quem sabe não seja enquanto filho de banqueiro que
larga escala. O fato de que a estética e o trabalho, indiferentemente, matem, Moreira Salles avalize o projeto autoral – o que o move é a avaliação polí-
diz duas ou três coisas sobre o estado de coisas atualmente no Brasil. tico-estética da potência deste menino pobre e talentoso, que poderia ter
sido escritor, não fora “a armadilha a que os meninos pobres estão sujeitos
IV no Brasil”.76 Reverter portanto a sujeição à pobreza, transformando Marci-
nho no sujeito de sua própria história. Em um trecho da entrevista com ele,
VP narra da seguinte forma, na CPI do Narcotráfico, o início da amizade filmada por Moreira Salles, Marcinho falava de seu projeto de vida:
com João Moreira Salles e o surgimento da ideia de escrever o livro sobre
Minha luta será sempre pelo povo. Eu queria fazer filosofia, ser professor.
sua vida:
Aqui, para não ser morto, você tem de tomar uma atitude. E hoje eu não estou
Foi a primeira pessoa que demonstrou ser realmente uma pessoa consciente, morto. Não tem jeito [...]. Não existe possibilidade do morro sem tráfico. Ou
uma pessoa que realmente estava preocupada com o futuro do Rio de Janeiro. você é traficante ou escravo do capitalismo. O povo brasileiro é totalmente
Porque você... Somos pessoas de parâmetros diferentes, é como se fosse uma omisso, escravo. Aqui, a escravidão continua pela necessidade. O escravo é
ponta e outra ponta. E essa condição nossa... E ele tinha preocupação de que- o mesmo. As correntes é que são diferentes. Eu quero conscientizar o meu
rer um Rio de Janeiro melhor e eu tinha a preocupação de querer um Rio de povo de que não pode continuar assim. Eles têm que brigar. Brigar é uma
Janeiro melhor. E essa condição... Quando ele sabia que eu estava fora, a situa- necessidade para que os seus filhos tenham uma vida melhor. Não estou aqui
ção dele foi: Márcio, você... acho que... uma ideia é você escrever esse livro, por dinheiro, por poder, mas para dar paz para uma comunidade sofrida [...].
porque esse livro vai conscientizar as pessoas da realidade que está tendo o Existe muita arma, muita revolta, a coisa é bárbara. Só a revolta do povo vai
Rio de Janeiro.75 fazer com que as outras gerações sejam melhores. Me irrita essa condição do
povo de aceitar a miséria, de achar isso normal. Como eu vou conseguir falar
Há algo de comovente no fato de que a “primeira pessoa” que parece disso, sendo tratado como bandido? (O Dia, 30/04/00)
ver e ouvir Marcinho VP, seja precisamente o instrumento para que ele con-
Não resta dúvida de que a sua representação das coisas é problemá-
ceba o projeto de escrever em primeira pessoa o testemunho de sua vida,
tica: por exemplo, a confusão entre a “luta” “armada” “pelo povo”, como
“para conscientizar as pessoas da realidade que está tendo o Rio de Janeiro”.
expressão de revolta social, e a guerra entre Comando Vermelho e Ter-
ceiro Comando, ou a guerra entre as facções e a polícia. Ou a alternativa
74 Luke Dowdney. Crianças do tráfico. Um estudo de caso de crianças em violência armada orga-
nizada no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003; Otávio Cruz Neto; Marcelo Rasga altamente duvidosa: revolta e libertação através do tráfico ou escravidão
Moreira; Luiz Fernando Mazzei Sucena. Nem soldados, nem inocentes. Juventude e tráfico de ao capitalismo, quando sabemos que não há nada de mais “capitalista” do
drogas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2001.
75 Gravação da entrevista da testemunha Marcio Amaro de Oliveira à Comissão Parlamentar de
Inquérito do narcotráfico (27/04/2000), loc. cit.. 76 Luiz Eduardo Soares. Meu casaco de general, loc. cit., p. 446.

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que o tráfico, inteiramente pautado pelas regras estritas do crime-negócio. O tema da soberania do poder do chefe do tráfico que espelha o poder
Também há autocomplacência explícita nas afirmações: “Não estou aqui tanto ou mais paralelo do extermínio policial, já que ambos têm direito de
por dinheiro, por poder, mas para dar paz para uma comunidade sofrida”, vida e de morte sobre a população,79 tem lá sua sedução. O fato de o reverso
que apontaria no mínimo para um programa paradoxal de paz mediante da soberania ser o princípio de morte certa, de que matar e morrer sejam
a guerra. Caco Barcellos descreve admiravelmente em Abusado a clivagem equações absolutamente contínuas no regime soberano do tráfico, é colo-
poderosa e estrutural em Marcinho entre o poder do tráfico, a injunção de cado como condição de vida (“Aqui, para não ser morto, você tem de tomar
seus amigos e familiares de continuar chefiando-o, e a vontade de narrar, uma atitude. E hoje eu não estou morto”), uma vida que é mínima diferença
e mudar de vida. Este é o drama impressionante que ocupará os últimos com relação à morte, limite que separa o hoje do amanhã. O tráfico e o tra-
anos de sua vida fora da prisão (e provavelmente dentro dela). Neste caso balho de traficante são uma “necessidade”, no contexto de continuidade da
prevaleceu, como sabemos, a vontade de poder (e) morrer; mas, de todo escravidão brasileira, apenas com “correntes diferentes” – diagnóstico com
modo, é difícil avaliar se jamais houve uma chance real de que ele aban- o qual concordam, em grandes linhas, certas vertentes das ciências sociais
donasse a chefia do tráfico. Os repetidos anúncios do “fim da carreira de brasileiras. Quando transformada em denúncia politizada, a soberania se
bandido”, sobretudo sob a pressão da namorada de classe média artística, comunica com uma potência do discurso, que o leva a considerar o valor
a personagem Luana,77 marcam uma espécie de quadro terminal, como se, e a necessidade de falar, a função pedagógica da enunciação, e o obstáculo
desde o momento em que adquiriu repentina visibilidade, ele não parasse do não reconhecimento por conta do estigma de bandido. A contradição
de terminar a sua carreira criminosa. Acompanhamos, no livro, as diver- ética matricial a que tudo está submetido é mais ou menos esta: a enun-
sas tentativas, hesitações e tergiversações, marchas e contramarchas, que ciação da vida de bandido pode conscientizar as pessoas sobre a miséria e
quanto mais o levam para longe mais reconduzem-no direto ao centro do apontar outras soluções para ela que não a bandidagem – a primeira destas
comando, embora de forma cada vez mais degradada, cada vez mais excên- soluções, no caso, sendo encarnada pela própria enunciação, na conversão
trica, até a falência completa no final. Do ponto de vista do negócio estrito, do narrador. Ou, outra versão da mesma contradição, pelo viés contrário: é
um líder altamente simbolizado como Marcinho VP era mais um entrave a mesma autoridade de bandido-chefe que lhe permite conscientizar sobre
do que um adianto. Ao contrário do comércio legal, o comércio ilegal é a escravidão voluntária e diagnosticar a aceitação passiva da miséria, que,
prejudicado pela publicidade, pelo menos a curto prazo. Todo o projeto por outro lado, desautoriza a sua fala e impede-a de ser ouvida. Um lado
de visibilização da miséria do Dona Marta, desde a “descida” de Michael da equação aponta para a resolução paradoxal, mas possível, do dilema (o
Jackson, teve consequências nefastas para as vendas de maconha e cocaína, destino de narrar), e o outro para a sua insolubilidade, condenando-o, ou
como demonstra Caco Barcellos, pois despertou os brios do aparelho de a não ser ouvido, ou a manter a sua autoridade de bandido (abandonando
segurança, provocando a imediata (e repetida, eventualmente perma- o projeto de narrar). Autoridade no morro, ou autoria da história de sua
nente) ocupação policial da favela. Os problemas com o alto comando do vida, esta seria uma das formas finais do dilema, definindo o lugar de uma
Comando Vermelho começam cedo, e recrudescem quando VP encampa mistura ou contradição que ele não conseguirá resolver.
um programa de diálogo contínuo morro-cidade, procurando a articula-
a pretensão utópica de se tornar uma espécie de embaixador do tráfico no Rio de Janeiro”
ção com intelectuais polêmicos do asfalto, como o romancista Paulo Lins, e (Ibidem, p. 410).
músicos como Marcelo Yuca, e Mano Brown.78 79 Em outro trecho da entrevista filmada por Moreira Salles, ele explica: “João (responde o
traficante referindo-se a João Salles), tenho poder quase que total dentro do morro. Tenho
poder de matar uma pessoa. O poder que eu tenho existe em pelo menos 400 favelas do
77 Caco Barcellos. Abusado, loc. cit., p. 389, 426. Rio. Existem pelo menos 400 pessoas iguais a mim”. E mais adiante, falando sobre a política
78 “Os contatos com os intelectuais também repercutiram entre os comandantes de outros de extermínio da polícia: “A polícia vem numa atitude de extermínio. Morreu muita gente
comandos ligados ao Comando Vermelho. Não chegavam a condená-lo, mas ajudavam a comigo. No mínimo, 40 pessoas. Eu tenho oito tiros no corpo. Dessas 40 pessoas, 80% delas
difundir o seu apelido de Poeta e a crença de que o chefe da Santa Marta era um ‘doidão’ que morreram exterminadas. Somente 20% foram mortas trocando tiros com a polícia [...] A
matava pouco, desprezava dinheiro, defendia ideias que consideravam esquisitas e que tinha missão da polícia é exterminar o bandido, não é simplesmente prender” (O Dia, 30/04/00).

214 215
A discussão ética sobre a feitura do livro de Caco Barcellos, temati- grave ainda, e profeticamente lúgubre, são as reticências sobre os perigos
zada por ele no interior do texto, percorre paradoxos análogos: Barcellos da notoriedade. Bandidos conhecidos no Brasil (Lúcio Flávio, Meio-Quilo,
não aceita a proposta de escrever um livro sobre VP, pois entende que um Bolado, Brasileirinho) são em geral todos mortos.84 Escrever um livro, por-
projeto como este necessariamente envolveria uma defesa de sua carreira tanto, sobre um bandido ou sobre sua quadrilha – a diferença estabelecida
no crime, explicando-a por um processo de exclusão social. Questão do por Barcellos, na verdade, é bastante tênue – para denunciar um problema
difícil registro de onde escrever: como situar-se em um lugar isento, que (“acho que a sociedade precisa conhecer melhor a vida de vocês”)85, pode
não defenda nem acuse, quando o assunto tratado é o narcotráfico? O pro- se confundir com o próprio problema denunciado, quem sabe até aguçá-lo.
jeto modificado de escrever sobre a sua quadrilha, e não sobre Marcinho, é O título Abusado. O dono do Dona Marta refere-se claramente a Marcinho
pautado por uma metodologia ética, cujos critérios devem governar a pes- VP, já que cita a manchete da famosa matéria do Jornal do Brasil: é ele o pro-
quisa: Barcellos não pode saber nada nem sobre as atividades futuras, nem tagonista do livro, é ele sem qualquer sombra de dúvida o foco da narrativa,
sobre as presentes da quadrilha, já que desta forma ele se tornaria imedia- embora ela se detenha sobre uma série de outros personagens secundá-
tamente cúmplice – apenas o passado pode ser objeto dos depoimentos.80 A rios. Como tal, o livro é tributário da ambígua produção midiática da aura
diferença entre as três instâncias, no entanto, é fluida e dinâmica, e frequen- criminalizante/estetizante que foi construída para VP e que ele construiu
temente difícil de estabelecer. O que consiste numa variante moral de um para si próprio. Ele explora de bom grado, e é parte integrante desta cons-
problema clássico de temporalidade da enunciação.81 Um crime que ocorra trução. O protagonista do livro, representado na capa romantizada como
no momento em que os depoimentos estão sendo tomados deve solicitar traficante-guerrilheiro encapuzado em alto contraste, é claramente identi-
de Barcellos uma intervenção imediata, do contrário ele se torna omisso,82 ficado como Marcinho. Mesmo que a foto não seja dele.
mas uma intervenção como esta o transformaria em um agente da justiça Apesar de um pouco injusta, é inevitável a observação sobre a apre-
do Estado, e literalmente impediria a realização da pesquisa. Como distin- sentação gráfica impecável, a embalagem de luxo, e o produto caro e de
guir a cumplicidade, ou acobertamento, da coleta de dados em situações alta qualidade para falar de realidade tão pobre. Em carta à revista Isto é,
limites, em cenas como as em que Barcellos esteve muito perto da polícia, esclarecendo um mal-entendido produzido pelo jornalista Francisco Alves
na caçada final por Marcinho? O que distingue a testemunha do presente Filho, que dera a entender que seis assassinatos haviam ocorrido como
de um depoente do passado? consequência da publicação do livro (Isto é, 1766), a editora Luciana Vil-
Ou ainda o que ocorre na fase de conclusão do livro, quando as mor- las-Boas defende o seu produto e o seu escritor contra quaisquer respon-
tes em cascata de membros da quadrilha/personagens iam sendo narra- sabilizações subsequentes. Ela esclarece que VP fora executado porque as
das à medida que ocorriam – tornando o livro literalmente interminável, autoridades carcerárias não haviam lido o livro, e aproveita para anunciar
como se o presente o mordesse pela cauda, forçando-o a ser incorporado que, na próxima edição, incluirá um posfácio explicando a execução de
ao passado, em uma espécie de obra aberta do narcotráfico carioca.83 Mais VP.86 Momento terrível em que o jornalismo de denúncia se confunde com
o anúncio publicitário, e a cumplicidade entre a denúncia e o crime denun-
80 Ibidem, p. 461.
81 Cf. a distinção de Benveniste entre história, como relato de acontecimentos passados, e discurso,
como enunciação que supõe “um locutor e um auditor, e, no primeiro, a intenção de influenciar 84 Ibidem, p. 460.
o outro de alguma maneira” (Émile Benveniste. Problemas de linguística geral, vol. 1, loc. cit., 85 Ibidem, idem.
p. 247-259). Assim como todo o problema da enunciação e da deixis, isto é, todas as marcas da
86 “Se as autoridades e agentes penitenciários tivessem lido o livro de Caco Barcellos, por inte-
situação de discurso (os pronomes pessoais, eu, tu, você; os advérbios aqui, agora, etc.).
resse profissional que fosse, a vida de Marcinho seria poupada, pois saberiam que pôr dois
82 Caco Barcellos. Abusado, loc. cit., p. 462. inimigos fidagais [referência a Ronaldo Pinto Lima e Silva, provável assassino de VP, e o
83 Barcellos declara que os editores tiveram de “sequestrar” o livro dele para que este fosse ter- personagem Claudinho em Abusado] em um mesmo pavilhão penitenciário não permitiria
minado. Já quando entrou na gráfica, morreu o Caju, cuja história o livro conta, mas cuja outro final para essa história. A próxima edição de Abusado trará um “posfácio” do autor
morte teve de ficar de fora. Além dele, morreram Faquir, Timbau e Uê, cujas mortes ainda com uma avaliação de seu relacionamento com Marcinho VP e do significado de mais essa
puderam ser incluídas no livro (“Pra lá de abusado”, loc. cit.) execução sumária dentro de uma cadeia do estado do Rio” (Isto é 1767, Cartas, 13/8/2003).

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ciado torna-se literalmente indecidível: o “livro-tiro”87, a “história de vida”, tância jornalística é suficiente para prová-lo. No entanto, é certo que Abu-
tira a vida de seu protagonista, e vende mais livros para explicar como isso sado coloca uma série de perguntas que não querem calar.
ocorreu. Não há inocência nem neutralidade possível neste caso, e o dilema É verdade que o livro não julga: ele não participa da lógica do escân-
exposto por Barcellos assume um caráter meramente perfunctório. dalo espetacularizado da punição policial-jornalística descrito acima. Mas
Diga-se a seu favor, no entanto, que o livro contém uma crítica articu- não é menos verdade que ele não deixa de identificar e reconhecer, preci-
lada e poderosa às representações da violência: literalmente nenhum dos samente como os dispositivos que vimos acima. Seria um efeito inevitá-
bondes, tentativas de tomada de morro, ou assalto violento, executados por vel da literatura colada no real, e portanto, aspecto intrínseco ao gênero
Marcinho VP, são bem-sucedidos. Quando o são, o sucesso é duvidoso, romance-reportagem? Talvez pudéssemos responder a esta pergunta colo-
mais resultado de habilidade ou astúcia, e não da própria ação violenta, que cando uma outra. A execução de Marcinho em Bangu 3, tudo indica que
é mostrada pelo que ela é: uma gigantesca máquina de matar e ferir. Não há por Ronaldo Pinto Lima e Silva (o Claudinho do romance), um ex-sócio e
aqui qualquer eficácia produtiva que glamourizaria a violência, mas expo- rival na liderança da boca do Dona Marta, e a mando de seu homônimo,
sição do real da morte pela combinação nefasta da política de extermínio Marcinho VP, Marcio Nepomuceno – mas isso não tem a mínima impor-
da polícia com a guerra entre facções do tráfico. tância –, leva a repensar a relação entre histórias de vida e a vida de quem
Mas o mesmo não pode ser dito de uma série de outras decisões de as histórias são contadas. E é este problema justamente que é abordado no
Barcellos. Por exemplo, a solução de adotar codinomes para as personagens diálogo entre Barcellos e VP, já depois do livro concluído, narrado por Bar-
vivas e nomes verdadeiros para os mortos fracassa rotundamente: Juliano cellos na entrevista a Caros Amigos. Quando perguntado por Sérgio Souza
VP (codinome de Marcinho VP no livro) é uma máscara bastante frágil, que sobre se encontrara com VP, depois do livro, Barcellos responde:
mais revela do que oculta. Qual é, na verdade, a função do codinome, se o Não, ele me ligou, pressionando para ler o livro. Queria ler antes de ir para a
livro como um todo, do título à capa, à estrutura e ao conteúdo, situa-se gráfica. E eu disse: “Não posso te dar para ler porque o livro passa a ser seu.
dentro do sistema do fascínio por Marcinho VP? Proteger o seu autor (e não Você não vai concordar com muita coisa, vai querer mudar, e aí já não é mais
a personagem) contra eventuais processos judiciais. Os parentes de mortos meu o livro, é o seu livro. Eu acho que você deve fazer o seu livro, tem de ser
assim”. E ele: “Porra, mas não é a minha vida que tá aí?” Eu disse que era: “Mas
revoltam-se com a inclusão no livro de nomes verídicos e histórias não é complicado, nós combinamos que eu faria um livro e você o seu.”89
autorizadas, sentem-se estigmatizados e perseguidos pela vida dos bandi-
dos mortos, e questionam as versões utilizadas pelo jornalista.88 Os nomes, A vida narrada na história de vida, biografia romanceada, romance-re-
e sobretudo os sobrenomes mantidos – os mesmos das pessoas ainda vivas portagem, embora “rigorosamente não ficção”, é de quem? De quem é a pro-
– marcam-nas em suas vidas. Além disso, o livro tem um rico encarte de priedade desta vida que o livro conta, retirando-a da reserva relativa de vida
fotos coloridas, com ampla galeria de personagens identificados por seus do vivente? O livro, de fato, sendo sobre a vida de Marcinho, não seria dele,
nomes e imagens. Onde esta representação do crime e dos criminosos se como ele argumenta com o jornalista? O que quer dizer Barcellos quando
distingue da do repórter policial, e o jornalista responsável e eticamente explica que mostrar o livro a Marcinho o faria perdê-lo como por um passe
antenado se diferencia do agente punitivo que identifica e reconhece os de mágica? De quem é a vida nomeada por sobrenomes, representada por
culpados, ajudando a prendê-los? Obviamente, o projeto de Barcellos não fotos, que identificam pessoas e famílias, que o livro retoma, reinscreve e
pode ser confundido com o do reconhecimento policial: o registro em que recria na tessitura de seu corpo? Existe um ponto em que a liberdade de
o livro é escrito é ágil e isento, pouco afeito a moralismos piegas. Todos expressão e da investigação jornalística esbarra na questão grave da pro-
sabemos que as intenções de Barcellos não eram estas; sua histórica mili- priedade destas vidas narradas, que o jornalismo livremente expressa, e
cujo produto final leva a assinatura do jornalista.
87 Caco Barcellos, “Pra lá de abusado”, loc. cit.
88 Leia-se, a respeito, as entrevistas com Xininha e Sonia Belo, respectivamente a irmã e a viúva 89 Caco Barcellos. “Um mergulho no tráfico”. Entrevista a Caros Amigos, ano VII, número 76,
de Kito Belo, personagem do livro (“Paz aparente”, www.vivafavela.com.br). julho 2003, p. 37.

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Talvez a pergunta colocada nestes termos seja excessivamente vaga, e capítulo 6
pudéssemos reformulá-la em termos de uma ética da representação, e de
A violência como figura
uma dívida ou pagamento devido às pessoas, locais, e situações referentes
que inspiram romances deste tipo. É o que a categoria jurídica de “direito (o Rap do Pequeno Príncipe)
de imagem” procura pensar, estabelecendo uma espécie de copyright sobre
a vida, apesar dos complicados e insolúveis meandros legais que ela ins-
taura. E é o objetivo do que Paulo Lins chama “arte social”: não “esquecer”
a realidade que serviu de base para o verossímil da ficção, saldar a dívida
para com elas de qualquer maneira que seja. O “pagamento” deverá ocor-
rer não necessariamente a indivíduos, mas às comunidades em que vivem
estes personagens de carne e osso, por meio de projetos sociais e culturais.90
O que retoma a inserção possível e poderosa da mídia e da ficção no pro-
cesso de visibilização de novas cidadanias. É, à sua maneira, o que quer As biografias paralelas de Helinho e Garnizé estruturam o documentário
dizer o desafio lançado pelos moradores do Dona Marta que acusam Caco O Rap do Pequeno Príncipe contra as almas sebosas (2000), de Paulo Caldas
Barcellos de nunca ter mostrado a cara na favela, e que gostariam de ver se e Marcelo Luna, estabelecendo um vínculo analógico entre violência real
ele teria coragem de fazê-lo agora. O que está em jogo aqui não é o rigor da e simbólica que nos fornece uma chave para entender a representação da
pesquisa, a fidelidade a fatos investigados, mas a autorização de representar violência contemporânea brasileira. Quais são os pontos de contato entre
vidas, o direito de fazê-lo, e a dívida para com aqueles que tiveram suas a vida do justiceiro Helinho (Hélio José Muniz Filho), 21 anos, apelidado
vidas representadas. “Pequeno Príncipe” (a relação ao mesmo tempo irônica e sincera com Saint
Parece que Marcinho não gostara do livro que lera, e que estava escre- Exupéry é um dos achados do motivo), condenado a 150 anos de prisão por
vendo um outro – aquele que sempre planejara escrever, e que fora a ori-
65 homicídios (ou 44, segundo o delegado entrevistado no documentário)
gem do que Caco Barcellos assinara – para mostrar a sua versão das coi-
em 1998, e executado na prisão por três presos em 4 de janeiro de 2001,
sas, segundo confidenciara a um amigo pelo telefone.91 Outros dizem que
após a conclusão do documentário; e Garnizé (José Alexandre de Oliveira),
sua morte já estava jurada, que aconteceria de qualquer maneira, mais dia
percussionista de Faces do subúrbio, um grupo de rap/hip-hop baseado em
menos dia, e que o livro, na verdade, fora uma tentativa malograda de se
Recife, formado em 1996, com dois CDs lançados na época,1 e que dirigia um
defender diante dos chefes do Comando Vermelho. A verdade, é claro, e
programa de educação comunitária para crianças pobres em Camaragibe,
como não poderia deixar de ser, nunca saberemos.
um subúrbio de Recife? O filme estabelece o nexo analógico entre o rap e
*** o hip-hop – linguagens musicais violentas, produzidas por negros norte-a-
mericanos, adaptadas e transformadas em vernáculo internacional raciali-
Ao ser preso, em 24 de abril de 2000, Marcinho VP respondeu a algu-
zado e radicalizado de culturas minoritárias pelo mundo – e os assassinatos
mas perguntas da jornalista Vera Araújo. Entre elas, há uma declaração que
violentos, literais, de um justiceiro da cidade-dormitório pernambucana,
nos interessa especialmente: “Vocês (da imprensa) me fizeram um mons-
Camaragibe. O documentário se organiza em torno da possibilidade de
tro” (O Globo, 25/04/2000).
estabelecer uma junção entre estas duas linhas opostas e análogas, através
90 Paulo Lins, “Dos perigos do sucesso” (www.vivafavela.com.br).
91 “‘Nem o próprio Marcinho VP acreditava no livro. Ele mesmo disse que não era nada daquilo, 1 Faces do subúrbio (1997); relançado em 1998, pela produtora, MZA; e Como é triste de olhar
e estava querendo se defender. Ele estava começando a escrever a versão dele dessa história (2000). A canção “Almas sebosas” que o grupo canta no filme é incluída no CD Como é triste
toda. O livro era para ir de encontro ao Abusado, era a resposta dele a esse livro. Eu ouvi dele, de olhar. Perito em rima (2005) aparece com uma outra configuração e já não conta com
pelo telefone’, conta o amigo” (“Paz aparente”, loc. cit.). Garnizé, que começa a tocar com Marcelo Yuka.

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do engajamento de movimentos sociais da sociedade civil, em uma forma criminosos nordestinos “virtuosos” como Lampião e Antônio Silvino, uma
de militância cultural que possibilita a conversão da violência criminal e/ou tradição legendária altamente estetizada pelo folclore, é negada pelo Dele-
justiceira em arte – encarnada pelo músico e ativista Garnizé. O paralelo é gado Especial de Polícia de Pernambuco, João Veiga Filho, entrevistado no
construído em torno de alguns elementos que fornecem a chave estrutural documentário. O que não retira e até reforça a suspeita de que Helinho
da sintaxe justapositiva do filme, no qual a junção entre planos ou temas seria a versão atualizada do mesmo fenômeno de justiça local.2 O retrato
é fornecida invariavelmente por uma palavra ou motivo mencionado no heroico do justiceiro, lido pela chave de uma pós-modernidade oportu-
plano anterior, em um encadeamento associativo e analógico. nista, que “estetiza” a violência e a periferia, será uma das linhas “críticas”
Helinho e Garnizé são ambos naturais de Camaragibe e se conheciam. da leitura universitária do filme.3
Helinho matou uma vez uma “alma sebosa” que havia roubado Garnizé de Segundo os diretores Paulo Caldas e Marcelo Luna, o ponto de partida
seu salário do mês. Vindos do mesmo lugar, vivendo existências paralelas, do filme foi a necessidade urgente de registrar a história de Helinho, que
eles mostram uma dupla face, negativa e positiva, do abandono, degrada- se encontrava na prisão e corria o risco iminente de ser morto – como de
ção e exclusão dos subúrbios, periferias e favelas brasileiras. Garnizé é o fato o foi, após a conclusão do filme. O motivo da moral do justiceiro e
que Helinho poderia ter se tornado se tivesse tido a possibilidade (se tivesse suas implicações pernambucanas, nordestinas e brasileiras é, portanto, a
tido educação, como Malcom X, como observa Garnizé). Ele consiste em célula temática de onde parte o filme. A ideia de propor a figura de Garnizé
uma potência ou virtualidade de Helinho, e Helinho uma potência ou vir- como um espelho do justiceiro ocorreu-lhes após já terem gravado mais
tualidade de Garnizé. Helinho seria perfeitamente “ressocializável”, afirma de 100 horas de entrevistas com Helinho na prisão. Os diretores precisa-
Garnizé, expressando assim o programa pedagógico que pauta o filme. vam de um contraponto “positivo” para contar essa história da violência
Helinho só estudou até a quinta série, afirma no material não utilizado do “justa”, o que os levou a escolher Garnizé, por ser um artista com um pro-
filme: se tivesse estudado mais não teria se tornado justiceiro. jeto pedagógico em sua comunidade.4 O que sublinha o paralelo de duas
Helinho e Garnizé emblematizam dois tipos de justiça, e, cada um a seu “práticas” de justiça: a educação e a música como veículo de aprendizado,
modo, dois tipos de herói e de heroísmo. O recurso ao formato representa- e o crime justiceiro como forma de justiça possível em um mundo em que
tivo, simbólico, indicia o modelo didático que estrutura o filme. Um sim- o poder público oferece um simulacro inócuo de justiça. O filme apresenta
boliza o justiçamento como procedimento de “limpeza” direta, imediata, da um diagnóstico e um programa de solução para as aporias da violência
sujeira moral da sociedade, e o outro uma justiça simbólica, mediatizada, brasileira: no Brasil falta educação (“a educação no Brasil está em terceiro
que contém o seu próprio método de transformação direta da sociedade plano. Falta educação. A educação é a base de tudo”); se houvesse educação
pela via pedagógica. Uma das escolhas estilísticas mais polêmicas do filme
é o tom neutro, quase hagiográfico, da representação do justiceiro. Helinho 2 No material bruto não aproveitado na versão final do documentário, perguntado pelos dire-
tores sobre o que achava de Lampião, Helinho afirma que só admirava o herói do cangaço em
justifica seus homicídios como atos de justiça, pelos quais sempre recusou parte, por ele matar “muita gente inocente”: ele matava “pai de família, dono de cercado” [...]
receber dinheiro; não se arrepende, diz que se fosse solto voltaria a matar, “dono de fazenda”. “mulher”, “criança”. Ao contrário, ele, Helinho, só matara “ladrão safado”.
não vê em suma nada de errado em sua limpeza de “almas sebosas” – ladrão, Lampião se vivo seria um “fã” seu. “Ninguém sabia que eu era, podia ser, o espírito dele que
estava incorporado no meu corpo”. (Material bruto de O Rap do Pequeno Príncipe, Raccord
assaltante, safado, traficante –, expressão polêmica, popularizada pelo pro- produções, 2000).
grama policial do radialista Cardinot da rádio pernambucana, apresentado 3 Cf. Angela Prysthon e Sofia Zanforlin, “O Recife pós-moderno: a estetização da periferia”
(2001) (Disponível em: http://galaxy.intercom.org.br:8180/dspace/bitstream/1904/4975/1/
no documentário. “Alma sebosa, alma sebosa, não aguentamos mais”, diz o
NP13ZANFORLIN.pdf. Acessado em 04/06/2012); Fábio Rocha “Estética contemporânea
refrão do rap. Razão pela qual é considerado um herói pela população de da periferia no documentário nacional: estudo sobre O Rap do Pequeno Príncipe contra
seu bairro, Jardim Primavera, que organiza um abaixo assinado com 3.500 as Almas Sebosas” (2008) (Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/ci/article/
view/7488. Acessado em 04/06/2012).
assinaturas exigindo a sua soltura, lido por um alto-falante em um carro 4 Entrevista concedida a Kleber Mendonça Filho, publicada originalmente em Cinemascopio e
que circula por ruas vazias. A filiação do justiceiro à linhagem nobre de disponível em: http://www2.uol.com.br/JC/_1999/1305/cc1305a.htm. Acessado em 20/04/2013.

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haveria justiça, e um justiceiro como Helinho seria desnecessário; e a solu- ricana, transplantados para a paisagem ensolarada e desértica do subúr-
ção, uma equação entre música e educação, enunciada literalmente pelo bio recifense: grafite, piercing, tatuagem, estilo de roupas, skating, break
percussionista Garnizé, por meio de uma analogia: a percussão é a base do dance, além dos ícones do movimento negro norte-americano, Malcom X e
som, “como a educação” é a base da sociedade. Martin Luther King, ou revolucionário, Che Guevara. Todos estes elemen-
Se a educação é a base que falta, seria possível fundamentar a solução tos ilustrativos se traduzem na sintaxe heterogênea do documentário. Ao
do problema da justiça por meio da pedagogia político-musical que a base introduzi-los no filme, fazendo da música a chave de sua sintaxe, o filme
percussiva apresenta. O programa da sublimação da violência pela música imita a pedagogia de Garnizé, participando ele próprio de uma militância
consiste em uma transformação da mesma energia em uma outra coisa. cultural, divulgando o trabalho social e musical de Garnizé, amplificado
Garnizé, em um material não utilizado na versão final do filme, condena o em uma estética: a estética da periferia, que o filme inaugura no Brasil.
justiçamento de Helinho, como “um lado errôneo da vida”, mas ao mesmo Esta linguagem heterogênea global, no entanto, não é simplesmente
tempo diz que ele “tem tudo a ver com a música”; que era preciso “continuar” importada ou copiada pelo local: ela é ao mesmo tempo global (ou nacio-
o que Helinho faz, mas “de outro jeito”. O que lhe permite introduzir o seu nal) e local, tem uma origem dupla e simultânea. O método é ainda aqui
trabalho de “conscientização” de jovens pela música. No encontro filmado analógico: articulam-se as semelhanças entre motivos (imagéticos, rítmi-
entre os dois na cadeia, e não aproveitado no filme, percebe-se a mútua cos) associados ou fundidos. O documentário de Paulo Caldas e Marcelo
admiração e respeito que um sente pelo outro, o justiceiro e o músico pop, Luna apresenta, pela voz de Garnizé, uma leitura nordestina – ou especi-
dois heróis a seu modo, que se espelham. A mesma coisa de outro modo, a ficamente pernambucana – da cultura brasileira e mundial, que retoma os
passagem entre uma e outra forma de vida pode se dar de diversas manei- motivos do Manifesto Regionalista (1926) de Gilberto Freyre e as atualiza-
ras, o que o filme evoca ou deixa sugerido como um processo de conversão: ções estilhaçadas contemporâneas, no campo musical, de Chico Science.
por exemplo, a música ou o músico que critica o funcionamento da justiça, Pernambuco ou Recife são vistos como focos cosmopolitas, irradiadores
usando de uma forma artística violenta, podem ser criminalizados: os inte-
de cultura, numa conexão direta com o mundo, saltando o processamento
grantes da banda Faces do subúrbio foram presos pela polícia em um show
mediador nacional via Rio de Janeiro. Assim, o primeiro rapper brasileiro é
em 1997, em Recife – que Helinho assistiu da plateia –, por cantar o rap
Nelson Triunfo, um músico nascido na cidade pernambucana de Triunfo, e
considerado subversivo “Homens fardados”, e o próprio Garnizé quase não
que vive hoje em dia em São Paulo. Ocorre também a afirmação da isono-
conseguiu sair da prisão quando foi visitar Helinho durante as filmagens do
mia rítmica do rap e da embolada, um padrão internacional e o outro local
documentário: os carcereiros consideraram que ele deveria estar preso. Ou
e tradicional, como antídoto à acusação de importação de mão única. O
uma outra conversão, de natureza moral: Helinho, ele próprio, fora na sua
que sugere uma questão musicológica: a recorrência dos ritmos contramé-
adolescência uma “alma sebosa”, até descobrir a missão de justiceiro que
tricos nos repertórios musicais das culturas não europeias. Garnizé cita
limpa a sociedade delas.
Chico Science, o fundador recifense do Mangue Beat, que no início dos
É este mote que vai ser transformado em argumento do filme, que
anos 1990 colocou a cultura nordestina na vanguarda cultural brasileira,
transporta para a sua sintaxe a referência imagética e rítmica do rap/hip-hop
abrindo o campo para músicos da sua geração como Lenine e Zeca Baleiro.
como vernáculo estético internacional de denúncia e conscientização da
periferia. O hip-hop não é uma “metáfora” – ele traduz e diz diretamente a A leitura localista que Garnizé faz da história brasileira do rap atualiza as
realidade do subúrbio, é a sua expressão: “Somos acostumados com a vio- estratégias do modernismo e da antropofagia, defendendo um argumento
lência”, diz o rap de Faces do subúrbio.5 O discurso cancional é expandido polêmico que se opõe ao diagnóstico de importação (absorção, “degluti-
por meio dos desdobramentos identificáveis da cultura negra norte-ame- ção”) generalizada, propondo uma leitura em rede da cultura, a partir de

5 No material bruto do documentário, Helinho diz sobre o Faces do subúrbio que “cada parte corda, explicando que não faz um “rap metáfora”. Helinho fala diante de Garnizé como diante
da música que vocês cantam tem a ver com a realidade lá fora [fora da prisão]”. Garnizé con- de um ídolo.

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conexões horizontais ou links, associações e analogias, indo e vindo através Embora o termo “subúrbio” descreva semântica e topograficamente
de culturas e nacionalidades distintas, mixando as fronteiras geopolíticas. a mesma coisa que o seu cognato inglês nos Estados Unidos, sociologica-
E a fronteira que o filme fixa é antes de mais nada a do subúrbio, como mente o subúrbio brasileiro inverte a topografia das cidades norte-ame-
pano de fundo para todo o panorama cultural ali descortinado: Camara- ricanas. Os subúrbios das cidades norte-americanas são enclaves de alto
gibe, uma cidade dormitório, localizada a 16 quilômetros de Recife, com poder aquisitivo, enquanto que no Brasil são anéis favelizados que separam
uma população de, na época, cerca de 128.000 habitantes (segundo o censo (ou unem) a cidade ao campo, em uma topografia característica. Os subúr-
de 2001). O censo de 1991 mostrava uma retrato assustador: 61% da popula- bios brasileiros são bairros formados de moradias informais ou favelas pla-
ção vivia abaixo dos padrões de pobreza, quase toda baseada na economia nas, “comunidades”, como são agora designadas, que chegam a proporções
informal, com 80% de todas as casas sem esgoto adequado ou sistema sani- gigantescas em uma cidade como São Paulo, com altos índices de desem-
tário, quase todas sem eletricidade. É uma das zonas de grande atuação do prego (o chamado mercado informal) e de criminalidade. O acesso das
bolsa-família. Mais ou menos 10% da população é atendida pelo programa periferias brasileiras aos confortos municipais básicos da cidadania urbana
de transferência de renda implantado pelo PT em 2003.6 O documentário – água, eletricidade, esgoto, lixo, proteção policial – é em geral precário.
explora a representação do cotidiano de Camaragibe – o pagode, a pelada, o O documentário de Paulo Caldas e Marcelo Luna tem, neste sentido, uma
comércio de frutas e legumes – para indiciar o seu reverso. A calma pacata função de diagnóstico e denúncia. A segunda sequência do documentário
quase bucólica da cidade-dormitório esconde as suas mazelas, conforme o – um travelling manual em câmera subjetiva, filmado da perspectiva de um
diz Garnizé: o desemprego sistêmico e a violência. habitante local tossindo e com respiração ofegante, simulando uma fuga da
polícia em uma corrida por passagens labirínticas e apertadas e entre fun-
periferia dos de casas que parecem abandonadas – dá uma boa ideia da topografia
de um tipo característico de periferia brasileira.
Uma das questões cruciais do documentário é a construção da categoria de A periferia surge como objeto de estudo no campo da arquitetura e
periferia, designação que passou a identificar um novo território urbano, urbanismo na década de 1970, a partir do momento em que os loteamentos
que traduz e ressignifica a antiga “favela”, e “subúrbio” – inscrito no nome em áreas suburbanas tendo em vista a habitação de mão de obra indus-
da banda de Garnizé, Faces do subúrbio –, transformando-os em programa trial, valorizada pelo poder público nos anos 1950 e 1960, começam a ser
político e estilo. O filme registra a tradução entre os termos, marcando a vistos como um problema.7 A periferia passa a ser pensada como espaço
construção do novo padrão de localismo cultural, que será adiante repli- marcado pela segregação, constituído por padrões variáveis de interven-
cado e multiplicado, como marca da produção local, política e comercial de ção do Estado e de clandestinidade, a partir da prática da autoconstrução
imagens. O filme funda no Brasil a estética da periferia, isto é, um conjunto de moradias, que acaba determinando o deslocamento da população mais
de referências audiovisuais reconhecíveis do território da pobreza brasi- pobre para áreas carentes de serviços urbanos, em assentamentos cada vez
leira estetizada – mural de rua, piercing, grafite, rap, hip-hop, skating, break mais distantes da cidade. É na mesma época, precisamente nos anos 1970,
dance e afins –, importados da cultura norte-americana da marginalidade que surgem os movimentos sociais urbanos, formados a partir de organi-
globalizada, buscando um filão transnacional de politização de imagens zações populares de bairro.8 A periferia surge então como lugar de pro-
identitárias e seus ícones, que o filme transforma em leitmotiv forte.
7 Giselle Tanaka. Periferia: conceito, práticas e discursos. Práticas sociais e processos urbanos na
metrópole de São Paulo. Dissertação de Metrado apresentada à Faculdade de Arquitetura e
6 A população atual da cidade (estimativa IBGE de 2006) é de 150.354 habitantes. O número Urbanismo da Universidade de São Paulo, 2006, p. 49. Sobre a política habitacional no Rio de
de atendidos pelo bolsa-família é de 15.934 pessoas. Vale lembrar que a renda média familiar Janeiro nos anos 1960, e a remoção das favelas situadas no interior da zona Sul para o subúr-
por pessoa deve ser de até R$120,00 para ser atendido. Informações: http://www.camaragibe. bio, dentre as quais a Cidade de Deus, ver Alba Zaluzar. A máquina e a revolta. As organizações
pe.gov.br/seas/bolsa_familia.php; e: http://www.camaragibe.pe.gov.br/index.php/aspectos- populares e o significado da pobreza. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2000, 2ª ed., p. 64-86.
demograficos#. Acessados em 4/06/2012. 8 Ibidem, p. 98.

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dução de sujeitos coletivos políticos a partir da construção de identidades dicada.13 O termo torna-se a designação comum das ocupações informais
que tematizam as condições objetivas de vida no bairro,9 formuladas em brasileiras apenas a partir dos anos 1950, e estará intimamente associado às
uma visão antagonista, politizada, de construção coletiva, materializada representações musicais do samba.
em lutas específicas.10 A proposição estético-política da periferia contrapõe-se termo a termo
A nova periferia questiona os termos bipolares com que o espaço à tradicional iconografia da favela, da mesma maneira que o hip-hop e o
urbano vem sendo pensado – invariavelmente dividido entre centro/peri- rap se opõem ao samba. A nova topografia da pobreza brasileira atualiza a
feria, favela/asfalto, cidade formal/cidade informal, cidade legal/cidade ile- antiga favela, modificando-a e ressignificando os seus emblemas. Enquanto
gal –, e tende a ver a relação entre polos como constituída por uma gama a cultura das favelas cariocas teve a sua gênese em uma longa tradição de
de relações complexas: há informalidade na cidade formal, assim como há contatos entre grupos sociais heterogêneos, numa figura que Hermano
formalidade na cidade informal; a cidade informal nem sempre sendo defi- Vianna chamou de “encontro”, 14 o modelo periférico – que tem como
nida pela falta ou pelo abandono.11 Tudo indica que o molde que formata matriz a cidade de São Paulo –, inversamente, configura a pobreza como
estas bipolaridades seja ainda remanescente da teoria estrutural dualista do território da separação. Se o samba, como a miscigenação, enfeixa a forma
Brasil, que precisaria ser substituída por modelos de reflexão menos estan- de um delicado e produtivo “equilíbrio de antagonismos” – nas palavras de
ques, definindo espaços sociais mais porosos e imbricados.12 Gilberto Freyre, tão destacadas por Ricardo Benzaquem – em uma homo-
A periferia se insere na longa tradição de representações heterotópicas geneidade que não destrói a heterogeneidade, que convive pacificamente
da pobreza brasileira, cristalizada pela favela carioca. É nos anos 1920 que com as diferenças, o que a periferia traz seria o desequilíbrio dos antago-
esta se torna um problema, a “lepra da estética”, na terminologia higienista nismos, transformado em crispação, guerra e intolerância entre heterogê-
da época, que surge de pequenos loteamentos no morro da Providência, neos.15 A periferia consolida o processo de “ilhamento” do lado pobre do
situado atrás da Estação Central do Brasil, no final do século XIX – em binômio formativo canavieiro, em um distanciamento cada vez maior, que
já fora intuído por Gilberto Freyre em Sobrados e mucambos (1936).
seguida batizado de morro da Favela, com a afluência dos soldados oriun-
É exatamente o que Mano Brown, o cantor dos Racionais MC’s, quer
dos da Campanha de Canudos, que reclamavam o seu soldo. O morro foi
dizer quando afirma, numa sequência ao vivo do documentário, em um
assim denominado pelos soldados, que encontraram lá o arbusto “favella”, o
show do grupo, que o “Brasil é um gueto gigante”. Mano Brown sugere
mesmo das proximidades do arraial sertanejo, esta primeira versão da hete-
ali uma paradoxal junção da separação (o gueto), segundo a qual todas
rotopia da pobreza brasileira. Adiante, no “bota abaixo”, com a expulsão da
as separações periféricas, todas as exclusões urbanas, se uniriam em uma
população pobre da capital dos cortiços coletivos do centro da cidade por
mesma periferia, juntando todo o Brasil. O modelo inverte a proposição
medidas higienistas, inicia-se o padrão de ocupação informal dos morros
do samba: se o samba se encarnava na figura do mestiço, enquanto homo-
da cidade, incentivada e estigmatizada pelo poder público, que a vê como
gêneo heterogêneo,16 a unificação das favelas seria, ao contrário, uma hete-
doença que infecta o “corpo urbano” e que, como tal, precisava ser erra-
13 A expressão de “lepra da esthetica” é cunhada pelo médico sanitarista, engenheiro e jorna-
lista, João Augusto Mattos Pimenta, em 1926. Para tudo isso, ver o artigo de Lícia Valladares.
9 Ibidem, p. 95. “A gênese das favelas. A produção anterior às ciências sociais”. Revista Brasileira de Ciências
10 Ibidem, p. 102. Sociais, vol. 15, número 44, outubro de 2000.
11 Thaís Troncon Rosa. “Favelas, periferias: uma reflexão sobre conceitos e dicotomias”. GT 01. A 14 Sobre Hermano Vianna e Gilberto Freyre, ver o Capítulo 4, “O encontro e a festa (Hermano
cidade nas ciências sociais: teoria, pesquisa e contexto, setembro de 2009. Disponível em: http:// Vianna)”. O que faço aqui e retomar os termos da hipótese de Hermano Vianna desenvolvida
www.scribd.com/doc/57028348/ROSA-Thais-Troncon-Favelas-e-Periferias-uma-reflexao-sobre em O mistério Vianna (1995), e que analiso no capítulo indicado.
-conceitos-e-dicotomias. Acessado em 04/06/2012; Jaílson de Souza e Silva. “Sobre (a) vivên- 15 Gilberto Freyre. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1964, décima
cia dos moradores dos espaços populares”. Disponível em: http://www.iets.org.br/biblioteca/ primeira edição, volume 1, p. 73; Ricardo Benzaquem de Araújo. Guerra e paz . Casa-Grande
Sobre_a_vivencia_dos_moradores_dos_espacos_populares.pdf. Acessado em 04/06/2012. & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. São Paulo: Editora 34, 1994, p. 43-73.
12 Alba Zaluar e Marcos Alvito. Um século de favela. Rio de Janeiro: ed. FGV, 2003, p. 13. 16 Remeto para tudo isso mais uma vez ao Capítulo 4, “O encontro e a festa (Hermano Vianna)”.

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rogeneidade homogênea – mas uma heterogeneidade segmentada, insular, ximidade entre favelas e bairros nobres na tradicional topografia urbana
encarnada no negro, e não no mulato e no mestiço. Caetano Veloso, na can- da pobreza brasileira. A lista de bairros de São Paulo saudados por Mano
ção “O herói”, de 2006, atento à transposição, escreve: “Já fui mulato, eu sou Brown na canção, a que são acrescentados outros bairros de favelas do Bra-
uma legião de ex-mulatos/ quero ser negro 100% americano/ sul-africano”. sil, acompanha a câmera aérea panorâmica da periferia de casas da perife-
A “separação nítida entre as raças” corresponde à topologia de uma cidade ria de São Paulo, com os prédios da cidade ao fundo, construindo um Brasil
separada e segregada sob a forma de um gueto universalizável, e tomando fundido pelo rap, a “trilha sonora do gueto”.
a forma de uma antinação nacional internacionalizada. Essencialmente, o Os Racionais MC’s são um dos desdobramentos mais interessantes na
que se trata aqui é a contraposição entre a unificação nacional do samba e música popular brasileira dos últimos vinte anos, introduzindo uma nota
a unificação disjuntiva, antinacional, globalizada, “crítica” do hip-hop, que negativa e dissonante na MPB. O seu primeiro CD, Holocausto urbano, é
constrói a imagem simétrica, inversa à do samba, de uma periferia unida de 1990. O seu quarto CD, Sobrevivendo no inferno, de 1997, vendeu um
do Brasil inteiro, composta de uma população excluída, pobre e negra, fun- milhão de discos, apesar (e por causa) de recusar qualquer participação na
dida umbilicalmente pela realidade da miséria – que a música e a poesia, o grande mídia, e ganhou o prêmio da MTV pelo videoclipe “Diário de um
hip-hop e o rap expressam e unificam. detento”, canção que o filme apresenta em uma performance ao vivo. O rap
“Eu vou mandar um salve para as comunidades do outro lado dos de Mano Brown, baseado na letra do poeta/escritor Jocenir, narra o infame
muros. As grades nunca vão prender o nosso pensamento”, diz Mano massacre do 2 de outubro de 1992, quando policiais militares mataram 111
Brown, formulando o programa de uma unificação de todas as periferias presos na maior prisão da América Latina, a Casa de Detenção de S. Paulo,
brasileiras pobres através do rap, e situando com precisão o espaço urbano o Carandiru.17
contemporâneo dos enclaves murados. A sequência do documentário que É do mesmo CD a canção “Periferia é periferia”, que coloca o motivo
apresenta os Racionais MC’s intercala tomadas do encontro de membros dos periférico no mapa musical:
dois grupos de rap, os Racionais MC’s e o Faces do subúrbio, em uma laje de
Este lugar é um pesadelo periférico
Capão redondo, periferia da zona sul paulistana – onde mora e milita Mano Fica no pico numérico de população
Brown –, comendo, deslocadamente, a comida típica pernambucana, carne- De dia a pivetada a caminho da escola
seca com mandioca, e uma cena de estúdio filmada no programa policial de À noite vão dormir enquanto os manos “decola”
rádio Cardinot, da rádio de Pernambuco, que eles parecem ouvir. Sendo São Na farinha... hã! Na pedra... hã!
Usando droga de monte, que merda! há!
Paulo também a maior cidade nordestina do Brasil, a carne-seca com man- Eu sinto pena da família desses cara!
dioca não deixa de ser uma comida local: a comida teria cumprido o mesmo Eu sinto pena, ele quer mas ele não para!
trajeto que o rap, na leitura localista da genealogia brasileira da forma musi- Um exemplo muito ruim pros moleque.
cal que o filme desenvolve. Os membros dos Racionais MC’s falam, os de
A canção contém uma crônica do cotidiano da periferia de S. Paulo,
Faces do subúrbio ouvem, indicando o desenrolar de uma pedagogia. Mano
com o diagnóstico da mazela social da adicção (a “farinha”, cocaína; a
Brown nomeia os três bairros na Zona Sul de São Paulo – Jardim Ângela,
“pedra”, o crack) que devasta os territórios da pobreza no Brasil e no
Parque Santo Antônio e Capão Redondo – que tiveram, por três anos con-
mundo, veiculando um programa antidrogas e o projeto de produzir exem-
secutivos, o índice de homicídios mais alto do mundo.
plos positivos, “pros moleque”, que o rap e o hip-hop tomam para si.
Estes bairros de periferia de São Paulo, indicados pelo rapper com a
O filme produz um novo paradigma de política urbana, baseado na
mão desde o observatório da laje no Capão Redondo, são todos “um ao
ampliação e projeção de uma pequena cidade de subúrbio nordestina sobre
lado do outro”, sublinhando a proximidade entre guetos excluídos, separa-
o país inteiro, juntando as duas pontas de Camaragibe e Capão Redondo,
dos do resto da cidade, mas invadindo-a, como um interior excluído que
exclui o interior incluído dos bairros ricos, espelhando e invertendo a pro- 17 Sobre a literatura prisional ver o capítulo 3, “O sujeito carcerário”.

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Pernambuco e São Paulo. O procedimento é característico das ciências delegado com quem fala ao telefone, também negro, não tivesse suas cre-
sociais, do nacional-popular, e se manifesta na música. Afinal, o que faz denciais de delegado e vereador, seria preso também. “É racismo, é por-
Gilberto Freyre senão projetar a estrutura social do engenho nordestino que o homem é preto”. O radialismo policial, replicado pela televisão, em
sobre o Brasil, como modelo para se interpretar as relações raciais no país? escala ampliada, em toda uma série de programas policiais, é representado
Ou: o que faz Florestan Fernandes senão projetar as fazendas de café do como veículo instantâneo e direto de reivindicação e concessão de direi-
interior de S. Paulo sobre o Brasil, para entender o mesmo problema, che- tos, transformando denúncias em ação efetiva.
gando a conclusões inversas às de Freyre?18 Ou o que faz o samba, a que A conversa dos integrantes dos Racionais MC’s e do Faces do subúrbio
não é necessário aplicar o adjetivo de “carioca”, conforme demonstra a lei- versa sobre o rap como novo veículo de conscientização no Brasil, con-
tura que dele faz Hermano Vianna, senão projetar o Rio de Janeiro e suas tendo o relato da luta entre “nós” – i.e. os pobres e negros brasileiros – e
favelas sobre o Brasil, seguindo o mesmo procedimento de Casa Grande “eles” – i.e. os ricos, retratados como inteligentes e extremamente aptos a
& Senzala? O Rap do Pequeno Príncipe contra as almas sebosas demonstra “nos” roubar. Neste conflito claramente delineado, os ricos estão protegidos
que o Brasil não é, quem sabe, muito mais do que uma imensa Camaragibe. em suas casas pela riqueza, enquanto o resto está exposto à marginaliza-
Ao sublinhar a pergunta que não quer calar: e se, uma vez subtraídos os ção e à pobreza. Mano Brown parece um pouco reticente para com essa
bairros exclusivos, os condomínios fechados de ricos, protegidos por vastos representação classista do problema que coloca a causa na opressão dos
muros e cercas eletrificadas, guardadas por policias privadas e por sistemas poderosos que constroem a realidade em que vivemos, e prefere se con-
de segurança, o que sobra do Brasil for uma periferia infinita, limitada pelo centrar num diagnóstico racial sobre a questão da violência: a falta de soli-
espaço rural virtualmente abandonado? A generalização dos subúrbios dariedade entre negros no Brasil. A guerra que existe é entre nós mesmos,
pobres, resultado da extrema concentração populacional em alguns pou- de negros contra negros. “Não tá na nossa cultura um ajudar o outro.” O
cos centros urbanos, ao mesmo tempo próximos e distantes deles, deixados fenômeno começou, explica ele, muito cedo, na África, com a venda de
pelo Estado à deriva, constitui sem qualquer dúvida então um importante escravos negros por outros negros. A leitura da violência é uma leitura his-
modelo para se pensar o Brasil. tórico-genealógica: ela se inicia com a escravidão na África e é interna aos
próprios negros. A causa da violência essencialmente racial teria um viés
raça moral: a traição entre negros e o racismo internalizado, que introjeta contra
si mesmo o racismo dos brancos.19 A justaposição entre o show de rádio
A cena no estúdio da rádio do Programa Cardinot é intercalada com toma- policial e a fala de Mano Brown sugere que a violência é, antes de mais
das dos dois grupos de rap, em silêncio, criando a impressão de que se nada, uma violência de negros pobres contra si mesmos.
ouve no Capão Redondo o show da rádio pernambucana, sugerindo uma A ênfase no tema racial se cristaliza na leitura do Brasil como um “gueto”,
dupla unificação das periferias: pelo radialismo policial e pelo rap, e uma com todas as suas implicações da história do racismo e da segregação racial,
relação entre duas utilizações da mídia, com duas propostas de discussão que o termo traz para o Brasil atual – desde a referência à solução final
e intervenção sobre a justiça. Na cena do Programa Cardinot, vemos a judaica da Segunda Guerra Mundial (O gueto de Varsóvia...) à representa-
convidada do show de rádio descrever o abuso cometido por um policial ção de “Projetos habitacionais” norte-americanos (os Projects). A afirmação
civil. O apresentador convoca ao telefone o delegado encarregado da ope- é provocadora: o Brasil é o país que formulou a ideologia da “democracia
ração e ameaça expor o problema à corregedoria da polícia. O radialismo racial”, e sempre se orgulhou de ser pouco (ou quase não racista [sic]), ou
policial funciona como uma corregedoria de fato da sociedade civil, que pelo menos por encarnar práticas excludentes “mais humanas” por oposi-
suplementa e faz funcionar o moroso e cúmplice poder público. Cardinot ção às encontradas em outros países. A separação do gueto, versão hiperbó-
arrisca uma interpretação: a mulher foi abusada porque era negra. Se o
19 Esta é a tese famosa desenvolvida de modo inaugural por Franz Fanon, em Peau noire, mas-
18 Florestan Fernandes. A integração do negro na sociedade de classes, volumes 1 e 2. ques blancs (Paris: Seuil, 1971).

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lica e historicizada da segregação da periferia, é afirmada como identidade Este tema foi (e é) objeto de um debate intenso na academia e nos
coletiva, revertendo o anátema biopolítico racista em programa identitário órgãos do governo brasileiros, à medida em que as ciências sociais, os movi-
biopolítico-artístico. Neste sentido, a racialização aparentemente obsessiva mentos sociais e os políticos se alinham em torno de campos antagônicos:
de todas as relações sociais corresponde a uma necessidade estratégica de um campo vê as cotas como uma importação norte-americana de uma
reinserir a raça num discurso denegatório da categoria de raça, como é prá- divisão racial binária, que achata as nuances raciais mais fluidas da confi-
tica corrente no Brasil. O racismo solicita uma proposição racializada para guração racial brasileira. Este campo, em geral, liga-se à figura produzida
o problema racial, que a denegação do gênero – “não há raças no Brasil” no modernismo, originada em última análise em Mário de Andrade, de um
– não resolve. A proposição reverte a racialização negativa racista em afir- encontro de múltiplas raças, que, apesar da perspectiva mítica e utópica que
mação identitária. Desta maneira, a proposição permanece biopolítica, mas caracteriza a figura, pode ainda formatar um horizonte melhor para polí-
com o sentido invertido da proposição racista.20 A estratégia é a mesma ticas raciais brasileiras do que uma importação estrangeira. Os integrantes
da proposição freyriana de afirmar a miscigenação que o eugenismo havia deste campo argumentam que um sistema de cotas contém uma contra-
eleito como explicação para o atraso brasileiro, mudando-lhe o sentido.21 A dição lógica, implícita, à medida em que procura corrigir o racismo por
separação periférica e racial precisa ser revertida em universalidade nacio- meio de identificações raciais que são em si racistas de origem. A política
nal-internacional da separação. Um país que esconde o seu racismo precisa de cotas é vista assim como contendo a falha estrutural de querer estabele-
receber na cara uma resposta racializada a este racismo. cer a igualdade através da implementação da desigualdade, desrespeitando
Essa autoimagem foi testada na época (2000), quando políticas de cotas assim o princípio constitucional republicano, que prescreve a igualdade de
raciais começaram a ser discutidas e implementadas em larga escala pelas todos. Qual é a utilidade de sublinhar uma guerra simbólica entre as raças,
instituições públicas de ensino superior, desde a implementação inaugural lutando por direitos distribuídos segundo categorias racistas? O mesmo
de quotas raciais no vestibular da UERJ em 2003. O documentário sintetiza argumento é aplicado ao trabalho que tenta pensar a política de identidades
a discussão antecipando-se à generalização da polêmica e seus desdobra- no Brasil. Do outro lado do debate, temos um grande espectro de posições
mentos jurídicos. Os argumentos a favor ou contra as cotas devem eventual- que incluem segmentos do Movimento Negro e pesquisadores especiali-
mente defrontar-se com o fato de que o Brasil é um país racialmente misto, zados, que fundamentam a sua condenação da marginalização racial bra-
embora racista, e com perspectivas radicalizadas como a dos Racionais MC’s sileira em estudos estatísticos, sobre índices comparativos de concentra-
e de segmentos do Movimento Negro Unificado ou do Educaafro, que sub- ção de renda e Indicadores de Desenvolvimento Humano (IDH) por raça e
linham a herança determinante das categorias raciais e de classe na consti- etnicidade, e que demonstram a persistência de clamorosas desigualdades
tuição de políticas públicas excludentes, originadas na escravidão de negros, sociais no Brasil, que afligem especialmente as populações negras, pardas e
cujo legado negativo o Brasil ainda está longe de elaborar ou dirimir. indígenas. Não se descura da importância do legado da valorização da mes-
tiçagem como fator de formação étnica brasileira, mas salienta-se a neces-
20 É algo semelhante que descreve Foucault sobre os movimentos de resistência ao biopoder. sidade de ultrapassar esse marco para a localização das mazelas sociais
Neles “a vida como objeto de luta foi tomada de alguma forma ao pé da letra e voltada contra da desigualdade, que não se resumem a um simples reconhecimento da
o sistema que tentava controlá-la”. (Michel Foucault. História da sexualidade I. A Vontade de
saber. Trad. Maria Thereza Albuquerque e J.A. Guilhon de Albuquerque. Rio de Janeiro: Ed.
importância do legado cultural de etnicidades discriminadas, que funcio-
Graal, 1977, p. 136.) Sobre o biopoder, ver a Introdução e o capítulo 1, “Sobre viver (Giorgio nam como uma pálida compensação para desigualdades socioeconômicas
Agamben e Primo Levi)”.
brutais. Daí a ênfase na adoção de políticas públicas de ação afirmativa
21 Casa Grande & Senzala tem como intuito programático uma “retificação” da perspectiva
antropogeográfica sobre a “sociedade brasileira”, os “alarmistas da mistura de raças ou da no ensino superior que visam a corrigir práticas históricas da segregação
malignidade dos trópicos”. A sociedade brasileira é “um dos povos modernos mais despresti- oficial e não oficial, explícita e disfarçada, mas praticada sistematicamente
giados na sua eugenia”, mas esse desprestígio se deve ao problema alimentício da colonização
e não à “miscibilidade”, que Freyre vê como “vantagem” única da colonização portuguesa,
desde sempre. A hipótese de uma “guerra” entre etnias – levantada como
ponto que os eugenistas não viram. Gilberto Freyre. Casa-Grande & Senzala, loc. cit., p. 56, 57. horizonte possível da implementação em larga escala de políticas públicas

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de ação afirmativa – parece um freio fantasmático ao adensamento de uma põe a ser uma música negra para negros e se torna a música universalmente
política de direitos civis consequente, e de um exame rigoroso das matrizes apreciada pelos meninos brancos de classe média, que idolatram os ídolos
da desigualdade brasileira.22 negros e suas falas, que denunciam um racismo que é inseparável dos meni-
À medida que leituras racializadas do Brasil sublinham uma polari- nos brancos que a consomem. O resultado do processo é sem dúvida uma
dade em torno de linhas de classe e cor, e que a música politizada como a cultura marcada por cortes e contradições inconciliáveis, ao mesmo tempo
dos Racionais MC’s substitui a imagem generosa e conciliadora do samba, cada vez mais misturada e segmentada, com o nivelamento que a moda pro-
por uma perspectiva radicalmente antagonística da sociedade brasileira, duz, ao transformar uma estilização desenhada para produzir autoestima
tornam-se mais e mais disseminadas as leituras cultural-nacionalistas do identitária para jovens negros em modelo de integração social para jovens
Brasil, opostas a estas. Estas devem confrontar eventualmente a opção de de todas as faixas da sociedade, indiferente de cor, credo e classe.
recusar as expressões de cultura negra que recusam o modelo da miscige- É preciso então não simplificar a questão. O hip-hop e o rap propõem,
nação, para fora do escopo da brasilidade, ou aceitá-las finalmente como ao mesmo tempo, um discurso racializado sobre a exclusão negra e uma
uma parte legítima e íntegra do Brasil. Não deixa de haver algo de irônico mercadoria estética, atingindo novos nichos de um mercado fonográfico
em expelir para fora do Brasil posições políticas tomadas por negros, repe- segmentado e global. Eles são bem mais do que uma simples racialização
tindo-se assim um estigma da importação que tem sua origem na própria importada, em um país que precisa rever criticamente a proposição sobre
formação do Brasil, construído em grande medida pela mão de obra de a “democracia racial” como um mito eficaz, produtor de uma imagem
escravos importados da África. melhor de país. Trata-se antes de mais nada de uma estratégia político-esté-
O dilema é tanto mais complicado pelo fato de que a racialização das tica internacional, que responde, invertendo-lhe o sentido, a práticas igual-
políticas sociais vem empacotada em veículos altamente estetizados: canção, mente internacionais, históricas e excludentes, originadas na escravidão.
ídolos pop, grafite, dança, movimentos artísticos, e que a dureza da proposi- A tecnologia musical do sampling – que atualiza a “fusão” (fusion) como
ção antagonística é estetizada em ritmo, melodia, poesia e imagem visual. O termo descritivo do procedimento generalizado na música, dos emprés-
que transforma os objetos de reivindicação e conscientização em artefatos timos, trocas, traduções, adaptações, associações – descreve precisamente
ligados à disseminação de estilos de juventude, transformando a política em a relação entretecida por este vernáculo musical internacional com as rea-
moda. O separatismo político e racial assinala a emergência de um estilo lidades locais em que se insere mundo afora, unificando as separações, a
negro de vestir e a disseminação de registros de fala, gíria e gesto em video- trilha universal dos guetos, que deixam, pelo mesmo gesto, instantanea-
clipes e revistas dedicadas à cultura negra, produzindo um novo nicho no mente, ou começam, instantaneamente, a deixar de sê-los.
mercado de classe média. A política é um objeto de consumo. O rap se pro-
ambivalências da justiça
22 O debate é extensamente representado por publicações de ambos os lados. Deter-me-ei
aqui em seus desdobramentos mais recentes, citando apenas algumas publicações: Peter A figura ambivalente do justiceiro Helinho, criminoso e herói, sugere uma
Fry; Yvonne Maggie; Marcos Chor Maio; Simone Monteiro, Ricardo Ventura Santos (orgs.).
Divisões perigosas. Políticas raciais no Brasil contemporâneo; Peter Fry. A persistência da raça.
zona cinzenta da justiça, sobre a qual valeria a pena refletir. Idolatrado pela
Ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África austral. Do outro lado, um dos estudos estatís- sua comunidade, objeto de uma petição que exigia a sua libertação da pri-
ticos pioneiros de Marcelo J.P. Paixão, Desenvolvimento humano e relações raciais. Além disso, são, ele expressa uma revolta violenta contra a inoperância da justiça local,
ainda ligado a Marcelo Paixão, consulte-se o site do Laboratório de Análises Econômicas, His-
tóricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (LAESER) dirigido por ele, http://www.laeser. indiciando-lhe uma crise que toca na essência mesma do poder público,
ie.ufrj.br. Ou a coletânea organizada por Marilene de Paula e Rosana Heringer. Caminhos envolvendo a lei, a polícia, a prisão, os criminosos – com ramificações pro-
convergentes. Estado e sociedade na superação das desigualdades raciais no Brasil. No campo
específico da discussão sobre raça e cultura veja-se: Joel Zito Araújo. A negação do Brasil. O fundas e complexas, que atingem a estrutura mesma da sociedade brasileira.
negro na telenovela brasileira, o documentário e o livro; Sílvia Ramos (org.) Mídia e racismo; O documentário formula um diagnóstico sobre a inépcia e corrup-
Liv Sovik. Aqui ninguém é branco. Tentando sustentar um fascinante meio termo culturalista
entre as duas posições veja-se Antonio Risério. A utopia brasileira e os movimentos negros. ção do poder público, colocado, por exemplo, na boca de Helinho, em um

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material não utilizado pelo filme: “eles [os policiais] só querem dinheiro”, Helinho, o Pequeno Príncipe, fornece como que o esquema transcenden-
repetindo a opinião mais disseminada e comum sobre o Estado e o espaço tal (no sentido kantiano do termo), a sua forma purificada: o menino que
público brasileiros. Helinho queria ser policial, conforme afirma no mate- pratica o bem ao executar o mal, cometendo homicídios justificados pelas
rial não utilizado, mas não poderia sê-lo porque, de posse do revólver e e para as “pessoas de bem”, executando, por assim dizer, o crime delas, por
da farda, mataria sem parar, e seria naturalmente expulso da instituição! elas, no lugar delas. É a sua existência que permite a sobrevivência de uma
Esta fantasia é sem dúvida sintomática. Em Helinho as marcas da pureza lei formal inócua; é a lei formal que exige o seu complemento real e infor-
– ele não bebia, não usava drogas, vivia apenas para o trabalho e para a mal, em uma complementaridade estrita e perversa.
mulher, era bom filho, recusava-se a ser pago pelo justiçamento – coexis- A generalização desta zona cinzenta, representada no filme, envolve
tem de maneira enigmática com uma pulsão de matar como prática da jus- os seguintes elementos: um sistema legal inepto e/ou moroso, conjugado
tiça imediata. Ele integra uma estirpe de heróis da justiça comunitária em a uma doutrina formalista de direitos civis implementada apenas seletiva-
revolta contra a injustiça pública. As suas marcas de pureza instauram uma mente; a criminalização da pobreza, combinada com a exclusão literal das
intervenção comunitarista, e não pública, que se opõe enfaticamente à cor- populações mais pobres dos serviços regulares prestados pelo Estado, da lei
rupção generalizada do poder público. A aporia que supõe, de uma violên- e do conforto legítimo, monopolizados em larga escala pelos ricos, e a ope-
cia pura e imediata, é simetricamente inversa à da privatização da justiça, rosidade do crime organizado que fornece emprego à polícia e o judiciário
essencialmente impura e cheia de compromissos. Em termos gerais, ele se (o famoso “arrego”) – substituída, na configuração paradigmática do Rio
insurge contra as diversas formas, simétricas inversas ao que ele representa, de Janeiro, pelo seu inverso: a milícia que erradica o tráfico nos bairros de
de privatização do poder público, e suas múltiplas encarnações de violência periferia e favelas, impondo-lhes uma rede de proteção e segurança, em um
“justificada”. Ao privatizar-se, a justiça se insurge contra a justiça pública, dispositivo criminal intimamente ligado ao poder público.
inócua e morosa, incapaz de satisfazer as exigências imediatas de punição, No filme, as duas figuras complementares da justiça oficial – o velho
ao mesmo tempo em que se enreda nas malhas da ilegalidade pública, com e caricato delegado de polícia, o Delegado Especial de Polícia de Pernam-
a qual se confunde e de que não pode constitutivamente se dissociar.23 A buco, com seus óculos escuros que o protegem da realidade social que é
exigência popular sempre renovada de oficialização da pena de morte (os suposto administrar; e o jovem recém-formado advogado criminalista,
“autos de resistência”...) em um país em que execuções extrajudiciais são com seu terno vincado, citando monocordicamente a constituição – cons-
extensamente praticadas todos os dias pela polícia, matadores e grupos de tituem a dupla face de um sistema judicial-policial arcaico e inócuo. A
extermínio, demonstra, sem dúvida, um lado do problema: que uma lei filmagem ressalta a importância dos símbolos da justiça: o foro, a estátua
humanista e formal coexiste, de maneira mais ou menos acomodada, com diante das escadarias pomposas, o quadro da alegoria da justiça vendada,
uma lei informal, real e brutal, que se sobrepõe à lei formal. De tudo isso, o delegado de óculos escuros, parecendo querer se ocultar, citando o nome
enorme de seu cargo, que indicia um aparelho policial burocratizado, e o
23 Seria preciso deter-se sobre esta figura da privatização da justiça pública localizando o seu jovem criminalista diante do mogno escuro dos móveis da sala de julga-
rastro de violência crua na história do Brasil. Suas origens remontam, me parece, aos soldados
de Canudos, e ao rito da “charqueada” dos sobreviventes do arraial, denunciada por Euclides; mento, que se assemelha estranhamente a uma igreja, em que o oficiante
passando pela instituição do esquadrão da morte, composto de policiais em segunda ou ter- seria a lei ausente.
ceira jornada de trabalho, e os diversos grupos de extermínio, nos anos 1960; ao massacre dos
111 presos da Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru, em 1992, e à aprovação universal A fala de ambos repousa sobre um conceito puramente abstrato de jus-
dos policiais militares como heróis após o massacre, renovado em 2001, quando o coronel tiça. O delegado opõe ao fenômeno do justiceiro uma reprovação de ordem
Ubiratan Guimarães, o militar encarregado da operação, foi considerado culpado pelo júri,
mas ovacionado no dia seguinte em uma parada militar como herói nacional; até o assassi- moral e classista: o apoio popular a Helinho é um “contrassenso”; a expres-
nato de crianças de rua, que “perturbavam” o comércio, por um grupo de extermínio com- são “almas sebosas” pertence a uma linguagem inculta e marginal (“sem
posto por policiais à paisana, no massacre da Candelária; e a chacina de Vigário Geral (ambas
em 1993); ao massacre de Eldorado de Carajás (1996); encerrando, com chave de ouro, com as
nível, de marginal, para marginal”). Ele não seria uma “pessoa de bem, uma
milícias do Rio de Janeiro. pessoa séria”: “você acha que um homem, um ser humano, que comete essa

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gama de homicídios, nessa quantidade, é uma pessoa de bem?” De um lado bem”, que na equação brasileira precisa sempre do mal: o justiceiro, ban-
teríamos um mundo marginal, do qual fazem parte o justiceiro, as almas dido e herói, como seu fundamento essencial, sua verdade implícita.
sebosas que executa, e toda a população que se beneficia de seus serviços, Por oposição ao poder público falido, temos uma série de outras figu-
admira-o, assina petições a seu favor; de outro teríamos um universo moral ras ligadas à sociedade civil que pleiteiam o seu quinhão da questão da
composto de “pessoas de bem” obedientes às leis e à ordem, que não usam justiça e propõem o seu próprio roteiro para tratar do problema da vio-
a expressão “alma sebosa”. Uma vez realizada a operação de subtração, o lência. Esse universo é composto, segundo o documentário, pelos diver-
domínio policial se reduz a um conjunto vazio de pessoas – que, suspeita- sos segmentos da mídia: os shows policiais de rádio (e tv) – representados
se, sejam as mesmas que assinaram a petição para a soltura de Helinho, e pelo Programa Cardinot, como vimos –, o jornalismo criminal impresso e
que não se sentem protegidas pela polícia que o delegado representa. O os enlatados de tv, consumidos pelos entrevistados no filme, afetando de
que sobra na equação é o bem abstrato, a forma do bem, um Brasil moral e alguma maneira as suas vidas.
formal, literalmente inexistente, que tem a espessura dos óculos preconcei- Todas as formas de mídia se caracterizam por um apelo à ação ime-
tuosos com que o delegado olha o mundo. diata, segundo o paradoxo característico: é a mídia, a mediação tecnológica
Do outro lado temos o jovem advogado criminalista, Edmundo Trin- da cultura de massas, que demanda a anulação da mediação, afirmando
dade, porta-voz da letra da lei: “a nossa constituição diz que todos são iguais a imediação do ato puro, aquele mesmo que o puro assassino “do bem”,
perante a lei, independente de sexo, raça, cor, etc.”. No entanto, como con- o Pequeno Príncipe, realiza. A saturação de imagens da mídia produz
ciliar este dado com a realidade brasileira da desigualdade, da pobreza, das um processo de dessensibilização ou de anestesia de sentimentos que se
favelas, em que 80% da população brasileira é desfavorecida?, pergunta-se exprime na demanda pela justiça imediata ou na atividade fria do assassi-
o jovem prócer. A resposta é que os desfavorecidos não têm acesso à justiça nato. Já vimos como o documentário sugere uma união do Brasil periférico
por não terem acesso à informação jurídica. Logo, se todos soubéssemos dos pela mídia radiofônica, e o apelo por uma justiça direta, não mediatizada,
nossos direitos, todos os teríamos. Resolvido o acesso à informação resolve- encarnada pelo programa policial, de altíssimo apelo popular, que vem a
ríamos o problema da desigualdade! Ter direito é saber seus direitos.24 suprir e substituir a lacuna do poder público, fornecendo um simulacro
Tanto o discurso do policial sobre o bem (as “pessoas de bem”), quanto de satisfação particular. Há também o depoimento da repórter fotográfica
o do advogado sobre o acesso à informação, repousam sobre uma verdade criminalística da Folha de Pernambuco, Ana Clarice Almeida, que afirma
formal, que se comunica apenas tenuemente com a realidade policial e jurí- que “gosta da morte”, que acha “interessante o corpo por dentro”, mas que
dica que pretendem representar. Para ambos a forma não se distingue da ao mesmo tempo fica penalizada com o sofrimento das mães de meni-
realidade. A mediação do poder público – o campo do direito e da polícia – nos assassinados. O documentário fixa neste ponto planos fotográficos de
permanece ineficaz, não media e não representa nada. O resultado é o abis- cadáveres e de mães em desespero. Talvez a maneira mais radical com que
sal divórcio entre as duas instâncias e o mundo da justiça concreta, onde esta exigência de imediação se manifesta seja na recepção “inspiradora”
prevalece a ação do justiceiro, que propõe uma justiça imediata, comunitá- dos enlatados norte-americanos importados, do tipo Steven Seagal. Tanto
ria, que prescinde da mediação pública, de fato acessível pelas “pessoas de Helinho quanto um dos meninos encapuzados, que formavam o grupo de
vingadores, exterminadores de “almas sebosas”, exprimem a sua relação
produtiva com as imagens da violência: “eu me inspiro na televisão, o que
24 Os documentários de Maria Augusta Ramos, Justiça (2004) e Juízo (2007) fazem precisa- eu vejo eu quero fazer”, diz o encapuzado. Ao mesmo tempo, pontuando a
mente o mesmo diagnóstico sobre o sistema judicial-policial brasileiro. Em especial, no pri-
meiro, evidencia-se o abismo que existe entre o formalismo do sistema jurídico brasileiro, diferença entre a imagem e a realidade, no lugar da morte: “mas ele nunca
que parece recém-saído da península ibérica de onde nos veio, composto de funcionários, morre e eu morro, né?” A sua fala é entrecortada por imagens de lutas típi-
juízes e advogados bem-intencionados, mas pairando em um mundo absolutamente divor-
ciado da realidade criminal e prisional brasileira, e sua multidão de pobres indigentes em cár-
cas televisivas. Ou Helinho (no material não aproveitado): “eu vejo aquilo
ceres superpovoados em delegacias, saturados de uma população literalmente sem direitos. e quero sair matando”.

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Há ainda uma outra forma de justiça que o documentário deixa suge- capítulo 7
rida: a justiça divina. As cenas da procissão à Virgem Maria, a primeira
Sabotage e a soberania
sequência do filme que mostra um homem se arrastando no chão, pagando
a sua promessa ao santo de sua devoção, a mãe de Helinho colocando a vida
de seu filho nas mãos de Deus, ou a identificação de Mano Brown de Jesus
Cristo com uma figura da justiça revolucionária – todos esses traços dese-
nham o fundo teológico-político, transcendente, do sistema simbólico que o
filme constrói. A esperança ou promessa de lei transcendente e justa, encar-
nada de um lado na pureza de um herói de Saint-Éxupéry transplantado
para Pernambuco, e de outro pela militância musical do percussionista de Contra quem devia nos proteger a grande muralha? Contra os povos
Faces do subúrbio, como forma imanente de uma justiça que se fundamenta do norte. [...] Lemos a respeito deles nos livros dos antigos; as cruelda-
des que praticam seguindo a sua natureza nos fazem suspirar em nossos
na hipótese de uma justiça divina ausente, que estrutura todo o edifício. pacíficos caramanchões. Nos quadros dos artistas, fiéis à verdade, vemos
A demanda por uma justiça transcendente, adiada e mediada no esses rostos da maldição: as bocarras escancaradas, as mandíbulas guar-
tempo, encarnada na figura modelizante de um Deus ausente, se contrapõe necidas de dentes muito afiados, os olhos apertados que já parecem
a uma forma de violência figurada, que está no cerne do movimento de cobiçar a presa que a bocarra vai esmagar e despedaçar. [...] O comando
existiu sem dúvida desde sempre, bem como a decisão de construir a
engajamento da sociedade civil no processo de conversão da violência em
muralha. Inocentes povos do norte que acreditam ter sido a sua causa!
linguagem, da violência real em violência simbólica, da periferia em esté-
Franz Kafka, Durante a construção da muralha da China
tica. É o que definirá o projeto de generalização figural da violência, encar-
nado na ação de “terrorismo cultural” dos Racionais MC’s, do assassinato O rapper paulista Sabotage, Mauro Mateus dos Santos, ex-gerente de
pela pena, como diria Ferréz, que desloca o modelo do homicídio para a tráfico da favela da Paz, zona sul de São Paulo, foi assassinado em 24 de
sua simbolização artística, sob a forma de canção, percussão, teatro, dança, janeiro de 2003, em um ajuste de contas entre traficantes, embora Sabotage
literatura, segundo o programa de “artificação” da violência. O documentá- tivesse abandonado definitivamente o tráfico alguns anos antes, ao iniciar
rio o Rap do Pequeno Príncipe contra as almas sebosas coloca esta gênese da a sua curta carreira musical.1 Na explicação de seu colega, também rapper,
figura da violência no centro de seu projeto, ao propor uma junção urdida Rappin’ Hood, justamente aquele que um belo dia o tirara do tráfico e o
na própria estrutura do filme entre violência real e violência simbólica, levara para a música: “O exemplo dele prova que o hip-hop salva, ele era
entre justiça justiceira e justiça mediada pela arte, como programa pedagó- um homem regenerado. O problema é que ele esqueceu o passado, mas o
gico para resolver as mazelas da desigualdade brasileira. passado não esqueceu dele”.2 Sua biografia encontra-se na encruzilhada de
uma história característica da pobreza brasileira. Como ele conta a Luara
Gonçalves: “Se o crime fosse bom, eu ainda teria meu tio aqui [ele cumpria
na época pena de 28 anos de prisão], meu irmão [foi assassinado no Mas-
sacre do Carandiru] e minha mãe [que morreu do coração por sofrer com
a prisão do filho]. Eu quero sair da favela pras minhas filhas crescerem sem
ver o que eu vi”. Em 2010, Sirlei Meneses da Silva foi condenado a 14 anos
1 Agradecimentos a Ferréz e Paulo Lins são devidos, pela ajuda na decodificação da letra de
Sabotage, assim como a Ivan Vale Ferreira, Tiago Barbini e Pedro Caldas, da 13 Produções,
que dirigiu o maravilhoso documentário Sabotage (de 2004).
2 Citado por Marina Amaral, no Especial Caros Amigos. Hip-hop hoje, p.19.

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pela morte de Sabotage, no Fórum Criminal de Barra Funda, embora o ressignificar a violência a que permanece intrinsecamente ligado, dela dis-
veredito tenha sido questionado pelo advogado de defesa deste último. Pelo sociando-se como veículo expressivo, passível de “salvar” alguns por meio
que se apurou, o homicídio teria sido uma vingança: Sirlei e Sabotage atua- da música, ao simbolizar a violência que veicula.
riam no tráfico na Favela da Paz. Sabotage, junto com um outro traficante A colaboração entre o ficcionista Marçal Aquino e o diretor de cinema
de sua quadrilha, Durval Xavier dos Santos (o “Binho”), teriam assassinado Beto Brant produz uma obra híbrida, que integra de maneira rigorosa
um comparsa de Sirlei, Nivaldo Pereira da Silva (o “Caçapa”).3 cinema e literatura, aclimatando ao Brasil o gênero policial, a partir de mode-
Um estudo sobre Sabotage deverá versar sobre a exemplaridade do seu los literários e cinematográficos brasileiros e norte-americanos (Rubem
“caso” de salvação e de morte, da possibilidade de salvação que a música, Fonseca, Dashiel Hammett, Raymond Chandler, Quentin Tarantino, Sam
especialmente o hip-hop, pode oferecer, daí o seu interesse – e de seu Peckinpah). Eles colaboram em pelo menos três filmes, Os matadores
reverso, quando a salvação fracassa (e ela frequentemente fracassa): a morte (1997), baseado no conto homônimo “Matadores”, originalmente incluído
inelutável, que assombra e estrutura o comércio de drogas nas periferias na coletânea Miss Danúbio e republicado em Famílias terrivelmente felizes;6
do Brasil. Para chegar a Sabotage, no entanto, será necessário atravessar os Ação entre amigos (1998), escrito diretamente para o cinema; e O invasor
filmes/textos de Marçal Aquino e Beto Brant. A justificativa desta incursão (2002), escrito simultaneamente como novela e como roteiro filmado, e
cinematográfica é justamente a participação de Sabotage no filme O inva- publicado em livro dividido em duas partes, como ambos.7
sor, de Beto Brant, como ator representando a si mesmo, como consultor de A obra de colaboração dos dois é inteiramente pautada pelo tema
“prosódia” na construção do personagem do matador Anísio, interpretado do estado de exceção. Talvez sejam eles os autores brasileiros que mais se
por Paulo Miklos, e como principal autor da trilha sonora premiada do interessam pelo tema na atualidade. É de Carl Schmitt a fórmula canônica
filme.4 O tema que une as duas preocupações deste ensaio é a soberania da da soberania: “Soberano é aquele que decide sobre a exceção”.8 Ou seja, a
violência de duas faces que estrutura atualmente o Brasil: uma violência soberania não se manifesta, paradoxalmente, no domínio da norma, ou do
estatal e outra particular (paraestatal, privada, criminal, etc.), compondo ordenamento do direito, mas na situação de exceção, e no monopólio da
um retrato equívoco e aparentemente sem solução em uma ruptura estru- decisão. E esta outra definição, de Michel Foucault: o direito de soberania
tural do preceito formulado por Max Weber sobre o “monopólio do uso é “fazer morrer ou deixar viver”.9 O soberano dispõe da vida e da morte
legítimo de força física em um dado território” (auto) conferido ao estado.5 de seus súditos, mas sua ação reside essencialmente em matar. Juntando
Entre as duas, o rap, que formaliza uma espécie de soberania estética, ao as duas definições, teríamos algo como: o soberano é aquele que decide se,
quando, e como matar seus súditos (situação da exceção), relegando as suas
3 “Assassino do rapper Sabotage é condenado a 14 anos de prisão”. O Estado de S. Paulo, vidas ao domínio da norma.
13/07/2010. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,assassino-do-ra- Tanto Schmitt quanto Foucault, no entanto, ao formular os termos
pper-sabotage-e-condenado-a-14-anos-de-prisao,580687,0.htm. Acessado em 01/02/2013.
contemporâneos para a discussão sobre a soberania, se remetem a Thomas
4 Sabotage ganhou o prêmio de melhor trilha sonora pelo filme O invasor nos festivais de Bra-
sília e de Recife, ambos em 2002. Hobbes, onde, de fato, encontramos, pela primeira vez, a junção estrutural
5 Eis a citação famosa de Weber: “Todo estado é fundado pela força”, disse Trotsky em Brest-Li-
tovsk. É verdade. Se não existisse nenhuma instituição social que conhecesse o uso da força, 6 Uma quarta colaboração, o roteiro do conto “Onze jantares”, também hoje incluído em Famí-
então o conceito de ‘estado’ seria eliminado, emergindo uma condição que seria designada lias terrivelmente felizes, nunca foi filmado.
como ‘anarquia’, no sentido específico da palavra. Claro, a força não é certamente o meio nor-
7 Ver a respeito das implicações deste tipo de escrita absolutamente híbrida, situada entre o
mal ou o único do estado – ninguém diz isso – mas é um meio específico do estado. Hoje a
cinema e a literatura, o ensaio de Vera Lúcia Follain de Figueiredo, “Mercado editorial e
relação entre o estado e a violência é extremamente íntimo [Weber pronunciou a conferência
cinema: a literatura nos bastidores”.
em 1918]. No passado, as mais variadas instituições – a começar com a família – conheceram o
uso de força física como inteiramente normal. Hoje, no entanto, temos que dizer que um estado 8 Carl Schmitt. Political Theology. Four Chapters on the Concept of Sovereignty. Tradução:
é uma comunidade que reivindica (com sucesso) o monopólio do uso legítimo de força física em George Schwab. Cambridge: MIT Press, 1985, p. 5.
um dado território”. Max Weber. “Politics as a Vocation”. In: Max Weber: Essays in Sociology. 9 Michel Foucault. Em defesa da sociedade. Tradução: Maria Ermantina Galvão. São Paulo:
H.H. Gerth e C. Wright Mills (orgs.). Nova York: Oxford University Press, 1958, p. 78. Martins Fontes, 1999; 2ª tiragem, 2000, p. 287.

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entre soberania e exceção. O poder “suficientemente grande” para garantir Ora, os três filmes resultantes da parceria de Marçal Aquino e Beto
a segurança dos contratantes da República (Commonwealth) utiliza, para Brant retratam quatro formas características da soberania brasileira, em três
fazer respeitar a lei, encerrando a “guerra de todos contra todos” que define momentos distintos: a soberania senhorial latifundiária em Os matadores; a
o direito natural, do expediente do “terror”.10 É o “terror de algum castigo”, soberania ditatorial militar em Ação entre amigos; a soberania empresarial
explica Hobbes, forma de atuação de um Estado coercitivo, a única garan- urbana e seu corolário e complemento, a soberania da rua e do tráfico, em
tia de que a lei, fundamentalmente a lei que garante a propriedade, será O invasor. Cada forma de soberania instituindo a sua fórmula específica de
respeitada.11 Sem terror ressurge rapidamente, e segundo uma necessidade segurança e a sua normalização específica do terror: a soberania senhorial
que responde à própria natureza passional humana, a “guerra de todos con- institui o matador profissional, espécie de avatar do jagunço, da literatura
tra todos” (bellum omnium contra omnes). Temos aqui basicamente uma oriunda de Minas Gerais;16 a soberania militar, o sistema da segurança para-
primeira forma da equação tautológica do poder soberano: é o “medo de lela exercida pelos DOI-Codis (Destacamento de Operações de Informações
morrer” a paixão que determina a instituição da lei,12 encerrando o estado do Centro de Operações de Defesa Interna), e a tortura institucionalizada;
de natureza, definido pelo perigo constante de invasões;13 e é o medo, ou a soberania empresarial, a indústria de segurança, sobretudo privada, que
melhor, o terror do castigo, que nos faz cumprir a lei instituída cuja finali- mobiliza hoje em dia, segundo estatística de Ib Teixeira, 10% do PIB brasi-
dade é precisamente encerrar o medo da morte.14 Medo e medo, dos dois leiro,17 e seu reverso complementar, o crime organizado e a lei do tráfico. O
lados da equação da exceção, medo antes e medo depois – eis a fórmula diagnóstico sobre o Brasil contido neles é de que aqui se produz uma zona
do poder tautológico da (in)segurança nacional: tememos a invasão que fronteiriça anômica e móvel (em cada obra, a fronteira deslocando-se para
caracteriza o estado natural de exceção generalizada, e para nos defender- o centro equívoco da trama), em que a lei se confunde com o estado de
mos dela instituímos o medo institucionalizado e o monopólio da exceção, exceção,18 a proteção com a invasão, a vingança pessoal com a justiça legal,
prerrogativa do “poder suficientemente grande”, cuja função precípua seria a violência com a significação, a polícia com o bandido, o crime organizado
supostamente nos proteger da invasão e evitar o medo, instaurando, na ver- com a lei, o amigo com o traidor, o sexo com a morte, o amor com o poder.
dade, a invasão como lei, e o medo da lei como norma.15 A partir deste diagnóstico são produzidas as figuras rigorosamente duplas
dos personagens dos textos/filmes – todos eles estruturados em torno de
10 Thomas Hobbes. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução flashbacks, esta forma narrativa também fronteiriça, a cavalo entre presente
de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 141.
e passado. A exceção a esta regra é, precisamente, o filme (e não a novela) Os
11 Ibidem, p. 123.
12 Ibidem, p. 111.
invasores – por razões que nos interessam particularmente, e de que tratare-
13 Ibidem, p. 108-109. mos adiante –, que substitui a polaridade subjetiva temporal pela polaridade
14 Ibidem, p. 141. invasor/estética da periferia, de um lado, e cultura privada do enclave forti-
15 A fábula de Kafka, “Durante a construção da muralha da China”, citada em epígrafe, modula
uma parábola análoga sobre a origem do trabalho, enquanto trabalho essencialmente defen-
sivo – construir uma gigantesca muralha supostamente para proteger os chineses da invasão contra o inimigo. Kafka trabalhou durante anos em um Instituto de Seguros contra Acidentes
dos povos bárbaros do norte, quando se sabe, é o que o narrador demonstra, que na verdade a de Trabalhadores e conhecia mais do que ninguém o problema da segurança.
construção fora determinada pelo “comando”, e o “comando existira, sem dúvida, desde sem-
16 Cf. de Antonio Candido, “Jagunços Mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa”, além do ensaio
pre”, portanto desde antes da própria invasão, ocorrida em um tempo imemorial, e cercada
de José Miguel Wisnik sobre “O famigerado” de Guimarães Rosa, a que remeto na nota 19
da mais profunda incerteza, a ponto de confundir-se com uma criação artística (Franz Kafka.
deste capítulo.
“Durante a construção da muralha da China”, in: Narrativas do espólio. Tradução Modesto
Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 83). É o comando quem determina a cons- 17 Ib Teixeira. A violência sem retoque. A alarmante contabilidade da violência. Rio de Janeiro:
trução da muralha, não a invasão que a suscita. Tudo parece apontar para a hipótese sugerida Editora Universidade, 2002, p.76.
pelo narrador em suas investigações de que a invasão é em si acontecimento construído pelo 18 Nunca é excessivo lembrar a máxima de Benjamin: “A tradição dos oprimidos nos ensina que
comando com a finalidade única de justificar a construção da muralha. Kafka descreve aqui ‘o estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral” (Walter Benjamin. “Parque
o funcionamento autorreferencial da lei soberana: a lei existe para nos assegurar contra um central”. Obras escolhidas III. Tradução: José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Bap-
inimigo cuja existência parece ter como finalidade única a sustentação da lei, como proteção tista. São Paulo: Brasiliense, 1994, 3ª ed., p. 226).

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ficado, do outro, para utilizar a expressão de Teresa Caldeira, em Cidade de noir e de máfia), ao mesmo tempo em que é exemplarmente obediente e
muros. Crime, segregação e cidadania em São Paulo. eficaz na execução de suas ordens. Os flashbacks que pontuam a espera dos
Em Os matadores – ambientado na divisa entre Mato Grosso do Sul dois revisitam a vida e as mortes provocadas pelo matador, revelando uma
e Paraguai, a mesma que nos brindou em 2006 com a epidemia bovina de estrutura repetitiva em cadeia, uma espécie de eterno retorno do cadáver,
aftosa –, filme rigorosamente bilíngue, que espacializa e idiomatiza a ambi- característica da anomia da exceção: os cadáveres revisitados produzidos
valência estrutural da fronteira, dois matadores profissionais, emprega- pelo matador (um sem-terra, um filho de juiz, etc.) acabam solicitando a
dos de um fazendeiro, esperam em um mal adaptado saloon dos Westerns morte do matador, que requer, por sua vez, a morte do matador do matador,
americanos por um terceiro matador (o mexicano/brasileiro Chico Díaz, e assim por diante. A transposição para o registro fílmico, e a atualização
no papel do paraguaio Múcio), que o fazendeiro ordenara que matassem, do jagunço mineiro, remetendo à grande tradição literária brasileira que
por seu envolvimento com a sua mulher.19 Os três matadores constituem representa o mandonismo e o arbítrio do campo brasileiro,20 é aqui remi-
uma tipologia do destino do profissional da morte: o velho pai de família, xada com referências cinematográfico-televisivas contemporâneas, produ-
já um pouco lento e acomodado, indiciando uma absoluta normalidade zindo um filme que visualmente lembra o padrão das novelas da TV Globo
burguesa da profissão; o jovem iniciante, que não passará em sua prova de (a atuação de Murilo Benício...): o interior do Brasil é inteiramente aberto
fogo iniciática – matar o velho, após este haver executado Múcio –, não se ao exterior da cultura hispânica, a cidadezinha de fronteira é destituída
tornando matador; e, finalmente, o próprio, o legendário matador para- de cores regionais e dialoga tanto com a cultura urbana latino-americana
guaio radicado no Brasil, cujas façanhas são contadas pelo velho ao jovem, como com a dos centros urbanos brasileiros (a trilha sonora sublinha a
segundo um rito narrativo estabelecido, enquanto esperam aquele que música instrumental local das guarânias e xamamés), e o registro do gênero
acaba nunca chegando, ao mesmo tempo objeto dos relatos e fim do relato: policial norte-americano retoma a discussão do parâmetro ético-social da
o matador que deve morrer, ação que interromperia o relato de sua vida, constituição política do Brasil, que caracteriza a tradição literária-cinema-
acrescentando o de sua morte. O foco da narrativa é claramente o matador tográfica brasileira, atualizando-a, mas retirando-lhe precisamente a gene-
ausente, figura ambígua de competência e traição, que mimetiza o senhor ralidade alegórica de envergadura nacional.
trepando com sua esposa (reminiscência do “fiel” guarda-costas dos filmes Ação entre amigos exuma o cadáver insepulto da tortura e da guerrilha
ocorridas durante o regime militar. Um grupo de amigos que se envolvera
19 Ambientado também na região da fronteira e abordando o universo dos contrabandistas, ver na guerrilha em 1971 descobre que o torturador que os torturara durante
também um outro conto de Marçal Aquino, “Renda-se, Bob Mendes, você está cercado”, em
O amor e outros objetos pontiagudos. Aqui é o velho contrabandista de nome híbrido (ameri- meses nas prisões do subterrâneo do regime, e que acreditavam morto,
cano-brasileiro-hispano-americano) que retorna ao lado de cá da fronteira brasileira depois havia na verdade simulado a sua morte e vivia confortavelmente em uma
de muitos anos, para ver, pela última vez, no necrotério, o corpo de seu filho morto. No conto
são desenhadas três figuras do quiproquó legal brasileiro: o velho policial amigo (simpático
cidade do interior de São Paulo. O amigo mais obcecado com o resgate da
e corrupto); o policial impoluto (e antipático) que acaba assassinado, em episódio ambíguo justiça, a quem o passado ainda assombrava diariamente, Miguel (Zecarlos
que provocara a fuga do contrabandista do Brasil; seu jovem sobrinho, figurando uma polícia Machado), é aquele cuja namorada, grávida de seu filho, fora morta durante
modernizada, que desentende dos antigos acordos e acomodações entre contravenção e justiça.
A visita à cidade de fronteira por razões afetivas suscita um impasse legal: criar-se um parên-
tese na lei para permitir a um pai ver o seu filho pela última vez, ou efetuar uma lei de estatuto 20 José Miguel Wisnik, em “O famigerado”, fala da equação do jagunço sertanejo rosiano, e seus
duvidoso, prendendo para fins de interrogatório o suspeito por um assassinato não resolvido avatares no malandro urbano, como figuras da “violência cordial” brasileira, que sintetizam a
pela polícia na época, e hoje sem dúvida prescrito. As figuras da acomodação da justiça são formação de um regime que transita entre a falta de lei (no campo) e a lei da falta (na cidade).
interpretadas pelo viés afetivo: familiar-geracional e amical. A volta deste lado da fronteira com Na equação ambivalente do termo “famigerado” deslindada por Guimarães Rosa no conto
o fim de ver o cadáver do menino, morto em episódio policial banal – um acidente de carro, em homônimo, encontramos já uma definição rigorosa da ressignificação da violência, e seu
um “racha” com amigos, marcando a repetição do drama legal na segunda geração – suscita a polivalente deslizamento de violência soberana em forma estética, tal qual configurada no
revisitação do assassinato do policial no passado, resolvendo, para o leitor, o que permanecera cenário urbano contemporâneo, como veremos adiante. “Famigerado” é, ao mesmo tempo
não resolvido pela justiça da época – quem o matara fora na verdade o policial cúmplice. O e de forma indissolúvel, “notável, célebre, famoso” – sentido original – e “mal-afamado, per-
contrabandista era, portanto, na verdade inocente; o culpado, o policial; o sobrinho, desejoso verso, obscuro”, por contaminação da expressão “famigerado malfeitor” (José Miguel Wisnik.
de implementar a letra de uma lei arbitrária, age sob o signo da vingança familiar. “O famigerado”. Sem receita. Ensaios e canções. São Paulo: Publifolha, 2004, p. 130).

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as sessões de tortura. O interrogatório extrajudicial a que é submetido o ex- sessões de tortura, no mesmo ciclo de exceções em cadeia que descrevemos
torturador, antes de ser executado por Miguel, acaba por desenterrar uma acima. São razões familiares simétricas opostas que fazem Miguel lembrar
verdade que permanecera oculta por 25 anos: a célula guerrilheira dos ami- e Elói querer esquecer o que ocorrera há 25 anos atrás. As relações familia-
gos fora delatada por um deles. Questionados por Miguel, os dois amigos res se sobrepõem às políticas e legais (a vingança é pessoal, “não tem nada
presentes à execução – o quarto, Osvaldão (Genésio de Barros), se recusara a ver com política”, explica-se Miguel), contrapondo o trágico arbítrio dos
a participar da vingança, e fora deixado em uma estação de ônibus – negam. ex-guerrilheiros ao eficaz arbítrio do aparato de segurança militar e confi-
Miguel conclui, por exclusão, que o traidor deveria ser Osvaldão, o que gurando uma soberania de dois lados.
explicaria o fato de ele não haver querido participar da vingança. Elói (Cacá A cena inicial do filme dá o tom: um plano aéreo de um helicóptero
Amaral) confessa afinal a Paulo (Carlos Meceni), na sequência, na camio- sobrevoando o mar, intercalado de flashes rapidíssimos em negativo de
nete, correndo ao encalço de Miguel, que partira só à estação para matar um assalto a banco de guerrilheiros – o mesmo que adiante veremos em
Osvaldão, que fora de fato ele quem traíra a célula dos amigos. A verdade flashback quando os amigos reunidos se deparam com a hipótese de que o
vergonhosa confessada, mantida em segredo durante 25 anos, e mais uma torturador estivesse vivo – e concluindo com um homem sendo jogado vivo
vez negada um pouco antes quando ele fora questionado por Miguel (“Você em alto mar, é um pesadelo, provavelmente recorrente, de Osvaldão. Sabe-
pensa que é fácil, fácil conviver com isso. Se eu tivesse dito naquela hora o se que esta conhecida técnica de “desaparecimento”, praticada extensamente
Miguel teria me matado, você viu como ele estava.”), no entanto, será mais pelo aparato de segurança argentino, foi seguramente, em pelo menos em
uma vez sepultada com o amigo: um pouco depois da confissão o carro des- uma ocasião, praticada também no Brasil: com alguns dos militantes do PC
liza por um barranco, e apenas Elói sobrevive. A verdade enunciada revela do B na guerrilha do Araguaia, aprisionados, executados, e em seguida leva-
entretanto uma culpa complexa: ele traíra os amigos para salvar o seu pai, dos “em aviões tripulados por equipes do Centro de Informações da Aero-
que o torturador prendera e ameaçava matar. Em troca de salvá-lo, o guer- náutica e joga[dos] no oceano”.22 O fato de justamente Osvaldão, o que até
rilheiro precisava informar ao torturador sobre o assalto ao banco que pla- hoje sofria de PTSD (Post-Traumatic Stress Disorder),23 acabar sendo o amigo
nejavam, e onde, como previsto, seriam todos presos. Ele traíra os amigos inocente assassinado por Miguel como delator, configura a suprema ironia
para salvar o pai; Miguel com isso acabara perdendo a namorada e seu filho. do arbítrio, que o filme explicita como chave secreta da injustiça humana.24
Um pai por uma mãe, poder-se-ia dizer, parafraseando o título do conto de
22 Ibidem, p. 457.
Machado de Assis. Esta é a lógica das trocas soberanas. 23 O pesadelo de Osvaldão tem claramente uma origem traumática. O problema foi objeto de
O “fantasma” do torturador exumado, enquanto figura da violên- estudos pela psicologia e pela psicanálise, no contexto dos chamados “distúrbios de stress
cia soberana da tortura (“estávamos em uma guerra”, justifica-se o tortu- pós-traumático” (Post-Traumatic Stress Disorder, PTSD), e que é constatado com frequên-
cia entre os sobreviventes dos campos de concentração nazistas. Leia-se a respeito, Trauma.
rador),21 declancha a lógica do ajuste de contas, no projeto de vingança Explorations in Memory, de Cathy Caruth,
pessoal também soberana, “entre amigos”. A tortura ilegal e o julgamento 24 O filme aborda um tema forte dos anos 1980 e 90 na América Latina, a alternativa entre o
sumário dos torturadores do regime militar são ironicamente repetidos no julgamento e/ou a anistia aos culpados por abusos de direitos humanos durante o regime de
exceção militar (em um dos diálogos do filme um dos amigos afirma: “Para mim acabou.
tempo presente com a execução sumária extrajudicial não só do torturador, Esse cara foi anistiado e nós também.” Ao que Miguel responde: “Eu não anistiei ele.”), à
mas do amigo, suposto delator – ironicamente, aquele que mais sofrera nas medida que as ditaduras do continente transitavam gradativamente para democracias ofi-
ciais, para retornar com força nos últimos anos no Brasil, quando volta à pauta a Lei da
anistia de 1979, como consequência da ação do OAB de 2008, questionando a inclusão dos
21 É a explicação historicamente utilizada para justificar a tortura de guerrilheiros, e não só, da crimes de estado (como tortura e desaparecimento) na Lei da anistia, considerados impres-
Operação Bandeirantes (Oban). Ela ecoa em profundidade a do próprio presidente Médici, critíveis, e com o estabelecimento da Comissão Nacional da Verdade (em 2011),com a finali-
dez anos depois de haver deixado a presidência: “Era uma guerra, depois da qual foi possível dade de investigar as violações a direitos humanos por agentes do estado. A discussão sobre
devolver a paz ao Brasil. Eu acabei com o terrorismo neste país. Se não aceitássemos a guerra, a responsabilidade retrospectiva remete ao modelo ético processual do pós-guerra europeu:
se não agíssemos drasticamente, até hoje teríamos o terrorismo” (Elio Gaspari. A ditadura a longa sequência de julgamentos de criminosos nazistas, pautada pelo critério de “crimes
escancarada. São Paulo: Companhia das Letras 2002, p. 17). Sobre a atualização dessa discus- contra a humanidade” – os 12 processos de Nuremberg, os que se seguiram na Alemanha, o
são ver Edson Teles e Vladimir Safatle (orgs). O que resta da ditadura. de Eichmann em Jerusalém, o de Barbi na França. Esta discussão materializou-se na América

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A peça do chileno Ariel Dorfman, The Death and the Maiden [A morte filha, e, afinal, com o colapso psicótico de um dos dois sócios, ocupando
e a donzela], adaptada para o cinema por Roman Polanski (1994), drama- um lugar na própria sociedade da construtora. A soberania empresarial
tizou a discussão continental, ao representar o juízo de exceção do médico é descrita com precisão pelo invasor Anísio, interpretado genialmente no
que supostamente torturara a protagonista Paulina (interpretada no cinema filme por Paulo Miklos: “Desde quando dono precisa explicar as coisas pra
por Sigourney Weaver) durante a ditadura, e que ela acreditara reconhecer empregado?... Dono pode tudo. Dono manda prender e manda matar”.26 A
anos depois em sua casa. Se no filme/peça, no entanto, a dimensão referen- novela registra com rigor a configuração de uma nova elite financeira, que
cial da verdade é suspensa – nunca se saberá se o médico era de fato quem a articula, em uma engenharia característica, a construtora ao governo – por
protagonista o acreditava ser –, em Ação entre amigos o torturador confessa, meio das concorrências fraudulentas –, à indústria da prostituição (o entre-
mas a verdade da justiça não é nem por isso restabelecida. Ao contrário, tenimento...), à polícia e ao crime organizado, i.e. à justiça ilegal. Na velha
uma vez suspensa a norma, instaura-se o domínio da anormalidade nor- sociedade de amigos formandos da escola de engenharia, o sócio majori-
mal, em que árbitro e arbítrio coincidem. É o que traduz de forma incisiva tário, oriundo da elite aristocrática (Estevão é filho de um juiz, de família
a cena final na estação de ônibus do interior: Osvaldão morto no chão, esti- paulistana quatrocentona de proprietários de plantação de café), é substi-
rado em uma poça de sangue, julgado culpado de delação e sumariamente tuído pela figura híbrida perfeitamente autogerada, e gerida – característica
executado por Miguel; o algoz, com a arma na mão, sendo preso pela polí- dos modernos enclaves fortificados –, do criminoso que é ao mesmo tempo
cia; o verdadeiro delator, Elói, que chega tarde demais, ferido no acidente segurança, que produz o risco, o medo, para vender a segurança contra a
de carro ocorrido no caminho. O longo close de seu choro desesperado e ameaça que ele mesmo representa, configurando de forma emblemática o
silencioso ao presenciar a cena terrível – o plano que encerra o filme – regis- que venho chamando de forma tautológica do poder soberano e de espaço
tra o drama íntimo e trágico de haver por duas vezes salvo a própria pele e a da in-segurança nacional. É o que denota, mais uma vez, Anísio, ao impor
de seu pai, a custo de silenciar sobre uma traição justificável, mas nem por aos dois sócios o seu serviço de segurança do prédio: “Vocês viram o que
isso menos vergonhosa, e confessável. A lógica da soberania não permite a aconteceu com o sócio de vocês”.27
cura da perlaboração e do luto da verdade: ao invés, encripta mais uma vez O modelo da progressiva crise psicótica de Ivan é sem dúvida Crime e
o silêncio insepulto de uma história que não quer ser contada.25 castigo, de Dostoiévski, que Marçal Aquino adaptará e atualizará, em 2004,
O invasor narra o plano de tomada de poder de dois sócios de uma em Nina (dirigido por Heitor Dahlia). A psicose de Ivan, na novela, se presta
empreiteira, Ivan e Alaor (Gilberto, no filme), via eliminação de um ter- a uma leitura psicanalítica. O relato focalizado em primeira pessoa narra a
ceiro sócio majoritário, Estevão. Para isso é necessária a contratação de re-emergência do real traumático28 do cadáver das vítimas, o sócio Estevão
um matador profissional, que acaba invadindo a vida dos contratantes,
inicialmente por meio de uma espécie de chantagem implícita, e ameaças 26 Marçal Aquino. O invasor. São Paulo: Geração Editorial, 2002, p. 190.
veladas, dentro do modelo brasileiro da “violência cordial”, e adiante pelo 27 Idem, p. 190.
envolvimento com a filha do sócio assassinado. Eventualmente, o mata- 28 O conceito de real vem de Jacques Lacan. Freud distingue duas formas de negação próprias
ao funcionamento psíquico: o recalque (Verdrängung), ligado à neurose, e a rejeição ou fora-
dor substitui o sócio assassinado, morando em sua casa, comendo a sua clusão (Verwerfung), ligada à psicose. O material negado retorna, na neurose, como auto-
matismo de repetição (Wiederholungszwang) a partir do qual o recalcado compulsivamente
nos assombra sob a forma do sintoma, do estranho, etc., enquanto que na psicose o não-
Latina em polêmicas sobre a justiça devida aos líderes dos antigos regimes militares, de onde simbolizado reemerge como alucinação. O recalque é circunstancial, enquanto a foraclusão é
emergirão distintas opções segundo países: a de anistia ampla no caso do Brasil (1979) – mas constitutiva, produzindo a diferenciação do inconsciente e do real. A emergência sob a forma
cujos fantasmas continuam nos assombrando; a de julgar os comandantes das sucessivas de delírio do que não pôde ser simbolizado pelo sujeito, o dado bruto de um significante pri-
juntas militares, na Argentina (1985); o indulto dos mesmos, ditado por Menem (1990); e, mário, reaparece no real da alucinação no surto psicótico, furando a ordem simbólica e pro-
mais recentemente, o julgamento de Pinochet. Ver a respeito Governos militares na América vocando a dissolução do sujeito. É assim que Lacan define a alucinação psicótica no seminário
Latina, de Osvaldo Coggiola. sobre a psicose (1956): “o que foi foracluído na ordem simbólica reemerge no real” (Jacques
25 Sobre a cripta como mecanismo contrário ao luto, ver o tratamento psicanalítico dado por Lacan. Le Séminaire Livre III. Les psychoses. Paris: Seuil, 1981, p. 22). Ver a respeito também,
Maria Torok e Nicolas Abraham, L’écorce et le noyau. “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. Mais tarde (1964), Lacan

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e sua mulher, na invasão do matador Anísio. O diagnóstico de “paranoia” é isto é, ocultando o nascimento e não a morte,32 cifra tanto mais fundamen-
mais aprofundado na novela do que no filme. Os cadáveres de Estevão e sua tal pelo fato de que sua mulher não pode ter filhos, o que determina uma
mulher, que assombram os dois sócios contratantes do homicídio (Alaor vê espécie de cadaverização da relação. O retorno da morte do pai, sob a forma
o terreno do canteiro de obra como uma “autópsia topográfica”),29 repetem digressiva que antecipa as brutais interferências alucinatórias do final, justa-
uma outra morte insepulta: a do pai suicida de Ivan, cuja vida pacata de mente no momento do suposto alívio de stress na trepada com a prostituta,
funcionário do Banco do Brasil ocultava um enigma cifrado no símbolo marca a ambiguidade do prazer/retorno compulsivo do enigma real estru-
de Asclépio, deus da medicina (a serpente enrolada no punhal),30 tatuado turante da morte do pai. O homicídio de Estevão e sua mulher, que deveria
no ombro do pai, que o filho descobre apenas quando o lava, ao prepará-lo selar uma nova sociedade de amigos – sem os entraves do escrúpulo moral
para o enterro.31 A irrupção compulsiva da memória do enigma contida em do sócio majoritário, que fora contra as articulações fraudulentas com o
sua morte surge logo no início da novela, após a contratação dos serviços de governo –, acaba selando o retorno irresistível do fantasma do casal assas-
Anísio, quando Mirna, a prostituta universitária com quem transa, no clube sinado, indiciado por Anísio, que deslancha o surto psicótico e a dissolução
exclusivo de garotas de programa de propriedade de Alaor e do delegado do personagem ao final da novela.
Norberto, lhe mostra uma tatuagem de dragão no púbis. A tatuagem oculta O retorno do real é Anísio, o invasor. Figura mista entre desejo e culpa
a cicatriz de uma cesariana, invertendo a cifra contida no segredo do pai, dos proprietários da construtora: culpa deles, e não de Anísio, que obje-
tiva-lhes a culpa; e desejo punitivo de interrompê-la, instaurando o real da
lei, que nunca ocorre (“bem-vindo ao pesadelo da realidade” diz a letra de
retomará a questão sublinhando a dimensão traumática do real enquanto algo que resiste à “Ninguém presta”, de Tolerância Zero, retomando a referência pop do filme
simbolização. À repetição do recalcado enquanto sintoma ou significante, que ele nomeia, a dos irmão Wachowski, Matrix, “bem-vindo ao deserto do real”, que será
partir da Física de Aristóteles, automaton, é oposta ao retorno do encontro traumático com
o real, a tuché (acidente, acaso), também a partir de Aristóteles. O encontro com o real do adiante retomado, por sua vez, em panfleto homônimo de Slavoj Zizek).
trauma é aquele ao qual inevitavelmente faltamos, que retorna como algo inassimilável ao Trata-se de um relato fóbico, como percebeu Paulo Miklos, que explica, no
sujeito, que insiste nele, mas a que ele estruturalmente resiste, além do automaton do sin-
toma, constituindo um furo na estrutura simbólica (Jacques Lacan. Le Séminaire Livre XI. Les Making of do filme, que, sem saber, se preparava para a construção do per-
quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1973, p. 54, 55). É a este texto sonagem quando, certa noite em casa, com sua mulher, filha e empregada,
de Lacan que toda a literatura recente sobre o trauma retornará (cf., por exemplo, Caruth ou
Felman e Laub). Ver a respeito as leituras de Slavoj Zizek e de Judith Butler. Hal Foster, em teve de enfrentar um rato, uma enorme ratazana. Ao final da perseguição,
um livro que nos interessa aqui particularmente, The Return of the Real, retomará o problema, conseguiu encurralá-lo em um canto, e viu o rato se eriçar e arreganhar os
identificando nas artes plásticas contemporâneas algo como um “ilusionismo traumático”. É
enquanto furo, por assim dizer, troumatique, que ele lerá, dentre outros, a indiferença do tran-
dentes. A maneira como o personagem Anísio se esgueira pelos espaços, diz
seunte que passa ao largo do carro capotado e incendiado, e da vítima empalada no poste de Paulo Miklos, se inspira no movimento de um rato pela casa.33 O filme tra-
telefone, na série de Andy Warhol, White Burning Car III (Hal Foster. The Return of the Real. duz algo desta figura irrepresentável da fobia foracluída por meio da câmera
Cambridge: The MIT Press 1996, p. 134); a arte abjeta de Mike Kelley ou de Andres Serrano, etc.
29 Marçal Aquino. O invasor, loc. cit., p. 41.
subjetiva focalizada em Anísio, em duas ocasiões: quando de sua contra-
30 “Meu pai tinha um símbolo tatuado no ombro esquerdo, um círculo, no interior do qual tação num bar de periferia – a primeira cena do filme –, e em seguida, no
havia uma serpente enrolada numa espécie de punhal. Uma coisa sinistra” (Ibidem, 22). Ver plano-sequência logo após o velório do casal assassinado, na primeira vez
a respeito nota de Henrique F. Cairus e Wilson Ribeiro Junior: “O símbolo de Asclépio e,
conseqüentemente, o da medicina, é uma serpente única enroscada em um bastão, sem asas
que Anísio aparece na construtora. Em ambos os planos, a câmera se subs-
de qualquer espécie. Este símbolo pode ser visto em moedas antigas, e não deve ser confun-
dido com o kerykeion (“caduceu”) de Hermes, deus dos viajantes, do comércio e dos ladrões, 32 Ibidem, p. 25.
formado por duas serpentes enlaçadas em um bastão encimado por duas asas” (Henrique 33 Da mesma forma, a comunicação entre Anísio e Marina, a filha do casal assassinado, se dá
F. Cairus e Wilson Ribeiro Junior. Textos hipocráticos. O doente, o médico e a doença. Rio de por intermédio de cachorros – o pastor alemão no primeiro encontro dos dois, fora do pré-
Janeiro, Editora Fiocruz, 2005, p. 16). A própria ambivalência deste símbolo equívoco, situado dio da construtora, e um pequeno poodle na sequência, com que Anísio presenteia Marina
entre a o deus da medicina e o dos ladrões, interessa ao relato, inscrevendo na cifra “sinistra” quando a visita pela primeira vez em sua casa. Anísio é de fato assimilado ao cachorro, ou
deste símbolo a duplicidade, ou a vida dupla do pai de Alaor. aos cachorros, em suas duas versões: a amedrontadora, fóbica, e a afetuosa, que já prepara o
31 Marçal Aquino. O invasor, loc. cit., p. 22. inicio da relação entre os dois.

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titui a Anísio e mostra a reação das pessoas a ele, mas o oculta por detrás da que a cultura dos enclaves fortificados constitutivamente exclui para fora de
objetiva, técnica reminiscente dos filmes de terror ou suspense.34 seus muros. O que leva a uma dupla figuração: a do bandido-charlatão, insi-
O tema do retorno compulsivo dos cadáveres, da traição em série, nuante encarnação da in-segurança urbana brasileira contemporânea; e sua
cujo funcionamento venho descrevendo nas outras parcerias entre Marçal estetização como arte hip-hop da periferia, que institui um novo padrão de
Aquino e Beto Brant, é lido no filme a partir do crivo do “desequilíbrio” gosto na cultura de juventude, introduzindo a forma irônica de uma justiça
de Ivan, desembocando em sua crise. A “paranoia” contém, no entanto, social compensatória pela via da arte, e seus objetos de consumo.
um tratamento do estado de exceção: sua suspeita cada vez mais forte de O que é apenas sugerido na novela, filtrado pela perspectiva subjeti-
que Gilberto planeja se ver livre dele, usando os serviços de Anísio, dando vada de Ivan, é inteiramente objetivado e estetizado no filme: o invasor,
sequência ao assassinato de Estevão e sua mulher. Gilberto liquidaria assim sua relação com Marina, sua relação com a cultura da periferia. O inva-
definitivamente todos os sócios, criando uma sociedade perfeita entre sor deixa de ser o irrepresentável objeto fóbico e se espacializa de forma
engenharia e segurança. O que impele Ivan a conseguir um revólver para impressionante na representação esquemática, não realista, de Paulo
se defender, e o conduz à crise final do surto: a descoberta de que Claudia Miklos; e, sobretudo, a cultura da periferia é explicitada por meio da pre-
(Malu Mader), sua namorada, era de fato contratada por Gilberto, a confis- sença do rap de Sabotage, que é trazido em pessoa por Anísio à constru-
são abortada à polícia (Ivan confessa a um policial cúmplice do delegado tora e comparece musicalmente na “viagem” de carro que fazem Anísio e
Norberto), fechando o circuito da parajustiça empresarial soberana, e con- Marina, atravessando São Paulo, e fazendo a passagem da área urbana de
fundindo definitivamente amor e poder, lei e exceção. O desdobramento casas de elite aos arranha-céus das grandes avenidas, à cultura de rua da
psicanalítico-subjetivo da novela é substituído por uma espacialização de zona sul da cidade.
objetos: a identificação do objeto fóbico ao fantasma foracluído da pobreza, Na sequência em que Anísio (Paulo Miklos) introduz a “coisa-em-
si”, o próprio Sabotage, na construtora, exigindo dos engenheiros “cinco
34 Ver, a respeito da câmara subjetiva, o ensaio de Christian Metz, “Images subjectives, sons
conto” para produzir o CD do músico, presenciamos literalmente uma inva-
subjectifs, ‘point de vue’”. Trata-se de uma tradução cinematográfica da técnica romanesca da
narrativa focalizada em um personagem. O exemplo canônico do procedimento foi a versão são estética do filme. O rapper, duplo estético do matador, interrompe a
cinematográfica do romance de Raymond Chandler, Lady in the Lake [A dama do lago], de narrativa introduzindo uma estranheza única no filme – estranheza da cor
Robert Montgomery (1946), filmado inteiramente do ponto de vista do detetive protago-
nista Philip Marlowe, que em nenhum momento era visto pelas câmeras, à maneira de um negra, dos gestos, da roupa, da linguagem, e abrindo o espaço do filme para
relato em primeira pessoa. O fracasso técnico do filme – pelo fato de o espectador precisar, uma ocupação ou contaminação intrusiva da cultura da periferia. A sim-
nem que seja uma vez, identificar visualmente o sujeito da visão para poder identificar-se
com ela (Christian Metz. “Images subjectives, Sons subjectifs, ‘Point de vue’”. Em L’énoncia- ples presença dele na construtora, e no filme, desdobrando e coletivizando
tion impersonnelle ou le site du film. Paris: Méridiens Klincksieck, 1991, p. 116) – é ao mesmo o objeto fóbico, é uma novidade cinematográfica que instaura um novo
tempo o que torna o filme interessante do ponto de vista experimental. No romance policial,
lembremo-nos dos romances de Agatha Christie Cinco horas e vinte e cinco e O assassinato de
patamar estético, ao trazer para dentro do cinema brasileiro uma figuração
Roger Ackroyd, focalizados na pessoa do assassino, mas com a omissão da memória do assas- rara da arte de periferia.
sinato (cf. Gérard Genette. Figures III. Paris: Seuil, 1972, p. 212). Em filmes de terror o pro- A transposição da novela para o filme é interessante neste ponto. Na
cedimento adotado sem este rigor programático é facilmente perceptível: o olhar da câmera
sobre a vítima de Drácula, seguindo-o pelo castelo, é constantemente assombrado pelo olhar novela, Anísio traz para a construtora “um mulato barrigudo”, Claudino,
do próprio Drácula, de forma, no limite, a fazer o olho da câmera encarnar o olho do vam- seu compadre, que, “desempregado havia meses e, como não achava traba-
piro, habitando todos os espaços vazios de sua habitação. Mesmo procedimento em Alien [O
oitavo passageiro], e tantos outros filmes de terror, quando o campo de visão do monstro é lho, planejava abrir um bar na periferia em que morava”, precisando para
adotado pela câmera que mira suas vítimas. O ângulo de visão da objetiva protege o sujeito isso de um “empréstimo” dos abonados engenheiros.35 Sabotage encarna e
do olhar, constituindo a visão assombrada de seu objeto a partir da inexpugnabilidade da
visão objetiva do monstro. Fórmula emblemática do esquema da representação: podemos estetiza a figura coletiva do mulato, do desemprego sistêmico, do morador
representar representações, representar a representação da representação, mas não podemos, de periferia, dos vínculos familiar-afetivos organizados em redes de amigos
por uma impossibilidade constitutiva, representar a representação no instante mesmo de
representar representações (ou representar a representação da representação, etc.). Impossi-
bilidade que assombra a literatura e o cinema autorreflexivo. 35 Marçal Aquino. O invasor, loc. cit., p. 91.

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(o compadrio), construindo, a partir da imposição “cordial” do emprés- Rio de Janeiro [na Barra da Tijuca], Los Angeles...),37 em enclaves fechados
timo, o projeto de produzir não mais um bar de periferia, mas um CD de e privados, com segurança também privada, perfeitamente protegidos do
rap, a forma musical por excelência da periferia. A chantagem do matador- exterior: os problemas de segurança são transferidos de fora para dentro,
segurança traduz com acuidade a figura da chantagem da violência como pelos “delitos praticados por ‘nossos filhos’”.38
cobrança de uma dívida social, a mesma que o rap ressignificará, sob a Sabotage é uma espécie de mancha sem função diegética no tecido nar-
forma de substituto estético para uma justiça social inexistente. rativo, instalando uma tripla intervenção no filme: visual, prosódico-linguís-
No plano que antecede à entrada de Sabotage na construtora, vemos tica e musical, trazendo para dentro da obra de Beto Brant uma linguagem
dois carros emparelhados e cruzados, o de Ivan (Marco Ricca) e o do casal estranha, praticamente uma outra língua, quase um idioleto, e uma outra
de pombinhos (Mariana Ximenes e Paulo Miklos). O paralelo é flagrante: forma de soberania, que se contrapõe de maneira inversa simétrica à sobe-
Ivan voltava de uma noite no motel com Claudia (Malu Mader), enquanto rania empresarial: a soberania das ruas e do tráfico. Tudo aqui contrasta.
o casal, formado pelo invasor e pela “invadida”, se apresentam pela pri- Vejamos, por exemplo, a sua fala em rap free style, à capela, apenas acom-
meira vez como tal na empresa, marcando o novo status de Anísio. Ivan panhada por uma percussão de boca de Anísio, solicitada por ele (“manda
fecha o vidro eletrônico do carro, sublinhando um aspecto importante do um som aí, Sabotage”), com a finalidade de demonstrar a sua competência,
filme, o dos enclaves fechados. O filme é extremamente sensível à consti- garantindo o empréstimo junto aos dois engenheiros:
tuição dos espaços segregados: prédios com interfones, portas eletrônicas,
Não sei qual que é, se me vê dão ré
seguranças, leões de chácara. Os interiores fortificados, como a mansão de Trinta cara a pé do piolho desce lá pra onde ferve
Marina, as salas e escritórios da construtora, são absolutamente antissép- Diz que black enlouquece
ticos, e sempre brancos. A fachada da mansão é também branca, clean.36 Breck só de arma pesada, inferno em massa
Aqui, no entanto, uma revolução ocorreu: o invasor, que não deveria ser Vem violentando a minha quebrada, basta
Eu registrei, eu vim cobrar, sangue bom
admitido dentro, se encontra no interior da estrutura fechada. Motivo forte Boa ideia quem tem, não vai tirar a ninguém
na cultura da “segurança total”, o novo conceito de moradia que caracteriza Roubada alguém causa
o momento atual da configuração da segregação urbana (em São Paulo, Fofin abala desespero de um canalha
Deixou falha
36 Teresa Caldeira parte de uma espécie de essência segregadora na formação das cidades (“a Sujou a quebrada
segregação – tanto social quanto espacial – é uma característica importante das cidades em Por mais cruel um cara quando cresce e a mãe perdeu
geral”) para, em seguida, identificar uma periodização da segregação espacial e social em Sem casa na vala mataram um Orfeu
São Paulo, a partir de três padrões bem distintos (Teresa Caldeira. Cidade de muros – crime, Mais é de lei sim, respeito aqui também sente....
segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp/Editora 34, 2000, segunda edição
2003, p. 211). O primeiro estendeu-se do fim do século XIX até os anos 1940 e produziu
uma cidade comprimida em uma pequena área urbana, em que diversos grupos sociais
Sabotage utiliza aqui parte da primeira estrofe de “Um bom lugar”, rap
eram segregados por tipo de moradia; o segundo vai dos anos 1940 aos 1980, e é dominado de seu CD Rap é compromisso (2001), acrescentando-lhe um final diferente.
pela oposição centro-periferia, em que diferentes grupos sociais estão separados por gran- Na versão do CD (ou do videoclipe), ele substituiu os versos que começam
des distâncias, as classes média e alta vivendo nas áreas centrais e os pobres nas distantes
periferias; um terceiro padrão começa a se configurar nos anos 1980, e complica o modelo por “Roubada alguém causa”, pelos seguintes:
centro-periferia: agora diferentes grupos sociais podem conviver com grande proximidade,
mas estão separados por “muros e tecnologias de segurança, e tendem a não circular ou Meditei, mandando um som com os irmãos da Fundão
interagir em áreas comuns” (ibidem, idem). Parte deste terceiro padrão a sua definição de Volta ao Canão se os homens vim
“enclave fortificado”, como “espaços privatizados, fechados e monitorados para residência, Disfarça o grandão
consumo, lazer e trabalho”. E sua justificativa, em estrita linhagem hobbesiana: o “medo do Rap é o som
crime violento”. Assim como o diagnóstico: “esses novos espaços atraem aqueles que estão
abandonando a esfera pública tradicional das ruas para os pobres, os ‘marginalizados’ e os
sem-teto” (ibidem, idem), fragmentando o espaço urbano e tendendo a segmentarizá-lo de 37 Ibidem, p. 267.
forma cada vez mais rígida. 38 Ibidem, p. 278.

258 259
E mora lá no morro, só louco Abre o olho cara,
A união não tem fim Piolho é sempre um mano dos nossos,
Vai moscar, se envolve Jão
Já viu seus pivetes, dizer que rap Inimigo tem Astra, barca, Blazer, e também tem moto,
Quer curtir, ouvir, te fortalece É Zona Sul, Canão, meu bairro pilotei, não deixei rastro.40
Nunca esquece, quem conclui é o mestre, basta
Que longe vou, bem como tolo poupo, pra conseguir forte dor “Piolho é sempre um mano dos nossos” inscreve o critério insidioso,
Tem que depor e não voltar sujou, mas essencial na guerra, de diferenciação entre amigos e inimigos, sempre
Bem-vindo ao inferno, aqui é raro, eu falo sério assombrado pelo fenômeno da traição iminente. Identificar de que lado
Pecados anticristos e mortal patifaria ai meu
Vai batalhar tenta a sorte, seje forte
estão consiste então em tarefa complexa, obrigando a um alerta constante
Só o destino aqui resolve (“Abre o olho cara”). Os inimigos se infiltram no morro (“estão maquina-
Qual é cabulinho só saudades dos no morro”); até prestam socorro, mas estão armados e “podem atirar”.
Fez da vida por aqui de mente erguida O que não impede de estarem bem de vida no asfalto (“tem Astra, barca,
Sem mentira com malícia me passou lição de vida39 Blazer, e também tem moto”), novo subterfúgio e disfarce. Sabotage não
Os dois textos – a versão do filme e a do CD – constituem um pequeno tem posses, não pilota carro, mas pilotou o bairro (“meu bairro pilotei”),
fragmento cifrado de crônica da periferia, narrando de forma estilhaçada, i.e., foi gerente de tráfico. Não tem “Astra”, mas não deixa “rastro”.
com um virtuosismo rítmico impressionante e característica estrutura de Na versão do filme, o “inferno” é submetido a uma espécie de análise
rimas, uma sequência de fatos que compõem uma cena de invasão da boca de causas (“Roubada alguém causa”), alguém morre à bala, e causa deses-
por uma facção oponente. “Trinta cara a pé” [...] “Só de arma pesada”, [...] pero (“fofin abala desespero de um canalha”). Mas a razão do assassinato
“piolhos”, i.e. da outra facção, descendo até onde a luta está se travando (“lá
onde ferve”). “Diz que black [i.e. maconha] enlouquece breck [o pessoal 40 Segundo Alba Zaluar, a primeira guerra em que um traficante tentou tomar conta de todas as
bocas em uma só localidade, nas favelas brasileiras, ocorreu no final dos anos 1970, na Cidade
da boca, negros]”. A estrofe começa com a interrogação geral, estupefacta, de Deus, entre Zé Pequeno e Mané Galinha, tema do livro e filme Cidade de Deus (de Paulo
sobre a situação da favela (“Não sei qual que é”), e sobre o porquê de o Lins/ Fernando Meirelles e Kátia Lund), que resultou em cerca de 722 mortos (Cf. A máquina
e a revolta. As organizações populares e o significado da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 2000,
pessoal recuar ao vê-lo (“se me vê dão ré”). O que se explica pelo fato de 2ª ed., p. 134-144; Condomínio do diabo. Rio de Janeiro: Revan/Editora UFRJ, 1994, p. 247; Inte-
tratar-se de uma invasão inimiga. O diagnóstico sobre a violência é claro: gração perversa: pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro: FGV editora, 2004). A inovação
técnica foi determinante para a história das cidades brasileiras, instituindo a reconfiguração
“inferno em massa/Vem violentando a minha quebrada [a minha favela]”. dos morros em territórios (“antes não havia dono de morro, só dono de boca”), repartidos
A oposição entre amigos e inimigos (“piolhos”) é elaborada a partir de cri- por facções ou comandos entre oponentes ou aliados, e produzindo uma sociedade seg-
térios associativos cambiantes e precários, envolvendo traições, ritualiza- mentada em redes de “amigos”, com fluxos adventícios “organizados”, que transcendem de
muito as favelas. Estes circuitos extensos repetem, com sinal invertido, o enclausuramento
das em invasões rotineiras, mudanças consistentes de lado, reconfigurações dos espaços em enclaves fortificados de ricos. A cena narrada por Sabotage no rap é corri-
de quadrilhas e de lideranças. Adiante, na mesma canção, Sabotage alerta: queira nos morros de São Paulo e do Rio e tem sem dúvida ressonâncias autobiográficas.
Sabe-se, pela reconstituição de Marina Amaral, a partir do inquérito policial do assassinato
Se liga na fita, danados otários de Sabotage, que ele participara de uma guerra pelo controle do tráfico na região das favelas
da Paz, do Morro e do Autódromo, após a morte de Euclides em 1999. A quadrilha que antes
Estão maquinados no morro. controlara o movimento, sob Euclides, era integrada por Derley (gerente), Bocão, Vadão e
Pelo que falaram podem atirar, Caçapa (seguranças do ponto). E é esta disputa – que na ocasião opusera, de um lado, Sabo-
Depois prestarem também um socorro, tage e seu amigo de infância Binha, que havia montado um ponto na favela do Morro, e, de
outro, os “herdeiros” de Euclides – que eventualmente matará Sabotage, muitos anos depois,
39 As canções de rap em geral têm diversas versões escritas, que divergem em muitos pontos. depois de ele haver largado o tráfico, em uma clássica sucessão em cadeia de assassinatos por
No caso das canções de Sabotage isso é flagrante: trata-se de transcrições, inclusive com dis- vinganças. A invasão aqui narrada de forma fragmentária é, sem dúvida, uma repetição da
tintas opções de grafia, de um original que é essencialmente oral, constantemente submetido que sofrera de Caçapa, quando este fora ao alojamento em que Sabotage morava, no conjunto
a pequenas alterações segundo a ocasião, e o repente do improviso. Aqui optei em geral por habitacional Cingapura, e o humilhara. Para tudo isso ver o artigo de Marina Amaral, “Som
transcrever os trechos segundo o padrão ortográfico da norma culta. e fúria. A saga de Sabotage”, em Especial Caros Amigos. Hip Hop Hoje.

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precisa ser entendida. Ela se explica pela punição soberana (“deixou falha”): e elite, que constituem outros tantos guetos, ilhados em circuitos fechados
“Sujou a quebrada/[...] Sem casa na vala mataram um Orfeu”). Matou-se de comunicação. Formalização linguística da segmentarização social, do
alguém (um “Orfeu”), com a seguinte biografia: “um cara quando cresce e a universo dos enclaves fortificados, sinal poético de uma língua que circula
mãe perdeu”. Enuncia-se a terrível lei soberana do tráfico (“Mas é de lei sim, mas só fora dos meios privatizados de comunicação. A grandeza especi-
respeito também sente...”). Na versão do disco, todo este universo é con- ficamente poética de Sabotage, cujo defeito de dicção nunca impediu-lhe
trastado à possibilidade aberta pela música: uma ideia (“Boa ideia quem de ser entendido, como afirma no documentário Sabotage, mas indicia já
tem”), que não quer ridicularizar ninguém (“Não vai tirar a ninguém”), i.e., uma configuração estilística, é justamente haver convertido em estilo uma
que se situa em um espaço avesso aos tiros ligados ao comércio e à guerra característica linguístico-social ampla, emergência da mazela real do espaço
soberana entre facções – uma meditação (“Meditei”), opondo-se, portanto, urbano brasileiro contemporâneo em geral, e paulistano em particular.
ponto por ponto, à lei das ruas e do tráfico. A cobrança de dívida de droga No diálogo que se segue, o invasor-bandido já se considera membro
(“eu registrei eu vim cobrar sangue bom”), reminiscente do período em que integrante da sociedade “só nós”, e, como tal, fala do disco de Sabotage
fora gerente de tráfico, é aqui inteiramente deslocada: ele vem cobrar não como um investimento “nosso”. Menciona o vírus da corrupção na gestão
mais uma dívida de pó, e sim o compromisso com o rap. A canção inteira privada e pública brasileira e mundial: o caixa dois. A invasão musical do
é pautada pela construção de um lugar (“um bom lugar”, do título), que free styling de Sabotage irrita os eficientes empresários antes de colocá-los
se defina pela recusa do crime (“vou seguir sem pilantragem, vou honrar, possessos com a proposta-ameaça de produzi-lo. Trata-se de um simples
provar”), com o recurso aberto pela música (“mandando um som com os “empréstimo”, explica Anísio. O próprio filme como empresa, homólogo à
irmãos da [favela do] Fundão”), embora coexista sem problemas com o construtora Araújo e Companhia, representada no filme, banca a música de
tráfico (“se os homens [policiais] vim/Disfarça o grandão [o revólver]”). Sabotage, empresta-lhe a autoria da trilha do filme, investe em uma estética
Sabotage tem um projeto pedagógico estruturado de conversão ao rap da periferia que, como afirma Anísio, não deixará de dar lucros. É a rua de
(“rap é o som”; Rap é compromisso – título de seu CD), que pode salvar da mão dupla da subjetivação do mercado estético-musical: a segmentação do
loucura que é morar na favela territorializada pelos mandantes do tráfico e mercado fonográfico e cinematográfico gera e veicula um produto atraente
pela polícia (“E mora no morro, só louco”), procurando envolver as pessoas para a cultura da juventude, ao mesmo tempo em que confere ao rapper da
com a música, especificamente aquelas que estão no tráfico (“se envolve periferia o “copyright da sua própria miséria”, para usar uma expressão de
Jão”), contrapondo a esse envolvimento um outro, com o rap, demons- Ivana Bentes e Micael Herschmann.
trando o sucesso que ele faz com os seus próprios filhos (“Já viu seus pive- A relação de Marina com Anísio se consuma após a visita do invasor à
tes, dizer que rap/Quer curtir, ouvir, te fortalece”). O documentário Sabo- casa de Marina (“essa é a vida”), e a decisão de dar uma volta de carro, após
tage, de Ivan Vale Ferreira, Tiago Barbini e Pedro Caldas (2004), se conclui fumar um baseado. O longo travelling filmado do ponto de vista de Marina,
com a cena dele rodeado de crianças, falando de sua vontade de criar uma sentada no banco de passageiros do carro dirigido por Anísio, desenrola
escolinha de rap para a meninada de Canão. o plano horizontal das fachadas de lojas e ruas que transitam da área rica
O ex-traficante narra aqui uma cena de seu cotidiano de idas e vindas de São Paulo até a zona sul, Brookyln, Canão, territórios de Sabotage. As
(“Volta ao Canão”), instaurando a matriz simbólica, rigorosamente dupla, sequências consistem em dois longos videoclipes justapostos, duas canções
de tradução e conversão entre criminalidade e rap – o rap como programa de Sabotage: “Na zona sul (cotidiano difícil...)” e “Aracnídeo”. O travelling
ético de “salvação”, surgido dentro do tráfico, mas separando-se dele por urbano acompanha o anoitecer e desemboca de noite no bar de periferia.
um abismo essencial. A transcrição em linguagem rap cifrada, quase em Antes, no entanto, o casal faz uma parada no cabeleireiro de periferia. A
código, não pode ser explicada como mero hermetismo poético. Denota-se cabeleireira negra recusa-se a “dar um trato” no cabelo da “princesa” (“não
aqui a autonomização quase absoluta, idioletal, de uma língua que só cir- dá jeito não, esse cabelo aí”), que não parece se importar, mas o fato puro e
cula no interior de seus guetos, não se comunicando com a da classe média simples da rejeição indicia uma cultura que se orgulha de si mesma, autos-

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suficiente e não impressionável pelas marcas óbvias de riqueza da menina enuncia a ameaça enquanto forma bem-sucedida e realizada da invasão
branca. Tudo aqui denota uma mercadoria estética sedutora: a menina rica, da moda e do estilo. Estetizar a linguagem do tráfico, da violência armada,
de piercing, tatuagens no braço, estilo de roupa, e de cabelo característicos, como com os gangsta rappers dos Estados Unidos, fornece o modelo de
sendo introduzida ao mundo da periferia pelo músico Titã – já que Aní- uma possibilidade de subjetivação para o traficante ou morador de favela:
sio é antes de mais nada Paulo Miklos, matador estetizado, seu namorado marca a sua intervenção estética com os sinais de um real da morte, que ele
ou pretendente, o que em si configura o programa musical inteiro do pop abandona ao tematizá-lo, transformando-o em produto artístico – o que
internacional contemporâneo. O pop glamouriza o objeto fóbico do ter- lhe permite deixar o tráfico, profissionalizando-se como músico, e signifi-
ror de classe, conferindo-lhe marcas sedutoras de perigo e marginalidade, cando a violência que abandona.
que constituem o duplo da cultura de periferia a que introduz a menina Sabotage traduz em seu próprio nome esta violência simbólica. O
rica, com quem se identifica o espectador do filme. Ao final, Anísio pega termo resume em si a história ambígua da não violência do protesto contra
um papel na boca, os dois cheiram e transam no carro. Mariana Ximenes injustiças sociais: “uma ação intencional de dano, destruição ou desloca-
faz aqui a versão hard da personagem de Raíssa, da novela América (2005) mento de objetos físicos com a finalidade de alcançar objetivos sociais”.41
da rede Globo, a linda filha rica e fashion do milionário Glauco (Edson Sabotage recebeu o apelido em 1980 de um irmão mais velho, Sérgio, por
Celulari) e de Haidê (Cristiane Torloni), que, exatamente como Marina, ter-lhe roubado o documento de identidade para poder frequentar bailes
também vai se envolver com o traficante Roberto (Thiago Lacerda). Raíssa, funk, com sete ou oito anos de idade42 – o mesmo irmão que morreria no
que vai ao show de Tati Quebra Barraco, faz com a cultura do funk carioca massacre do Carandiru, em 1992, quando 111 presos foram executados pela
em 2005 o que Marina faz com o rap paulista em 2001. polícia militar sob as ordens do Coronel Ubiratan Guimarães. Não há acaso
Elemento puramente estético, sem qualquer função narrativa, puro nenhum em que Sabotage participe em 2003 do filme de Hector Babenco,
suplemento à economia do enredo, a trilha sonora ocupa um papel impor- Carandiru, baseado no relato homônimo de Drauzio Varella, que se conclui
tantíssimo na construção do filme. É a música de Pavilhão 9 e Tolerância (texto e filme) precisamente com o massacre de 1992.43 No filme, Sabotage
Zero que vai também, em outros tantos clipes que acabam ocupando uma interpreta Fuinha, um preso da Casa de Detenção, além de haver composto
parte significativa do filme, fazer a ponte entre a normalidade suposta de em parceria com Babenco o rap “Sai da frente”.
Ivan no início do filme e seu surto psicótico ao final, nas cenas de clubes, O documentário póstumo Sabotage mostra o rapper em Canão, no
boates, shows em que ele aparece bebendo, ou bêbado. Brooklin paulista, onde cresceu e viveu até 1998. Sabotage enuncia aí um
Mas é sobretudo no rap de Sabotage, expresso de forma comprimida programa rap: a denúncia e visibilização da invisível pobreza da periferia
em sua curta aparição em pessoa e expandido ao longo da trilha sonora da cidade de São Paulo. O recurso à metralhadora como soldado do tráfico
inteira do filme, que percebemos o procedimento essencial de simboliza- é uma saída para a invisibilidade da pobreza, em diagnóstico elaborado
ção da violência. Basicamente, o rap ressignifica a violência, transforman- de maneira exemplar por MV Bill, Luiz Eduardo Soares e Celso Athayde,
do-a em linguagem. É dessa violência ressignificada que ele retira a sua
potência, o seu atrativo maior enquanto cunha de estilo de juventude, e 41 Dubois Apud Brian Martin, Nonviolence versus capitalism. Londres: War Resisters’ Internatio-
nal, 2001. Nesta acepção, o termo data do final do século XIX, dos primórdios da industriali-
enquanto via aberta para a “salvação” de moradores das favelas, especial- zação da tecelagem, quando teares industriais podiam ser danificados por tecelões deslocados
mente suscetíveis à sedução do tráfico, frequentemente crianças. É aqui para este fim jogando seus tamancos (sabots em francês) na maquinária. Este tipo de ação direta
foi defendida como legítima-defesa pelos primeiros sindicatos radicais americanos, como o
também que o rap desempenha um papel ambivalente no cenário da nossa Industrial Workers of the World (IWW) em 1923 (ver o verbete “sabotage” na Wikipedia.)
(in)segurança nacional. Se ele não encarnasse de alguma forma a invasão 42 Como ele mesmo conta em entrevista a Luara Gonçalves: “Quando eu ia pras festas, meu
que o filme de Beto Brant registra em seu título, se o perigo de contamina- irmão que já morreu ficava preocupado e não queria que eu fosse. Eu ia escondido. Um
dia ele descobriu e disse pra minha mãe: ‘Ele tá indo escondido, tá fazendo sabotage’. Todo
ção que representa não fosse real, ele não teria qualquer atrativo estético, mundo gostou e o apelido pegou.”
enquanto matriz de maneiras, modos e modas. A invasão autoproclamada 43 Ver a respeito o capítulo 3, “O sujeito carcerário”.

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em Cabeça de porco (2005). A tarefa, no entanto, é enunciada por Sabo- É essa ambivalência essencial à estética rap que, de uma outra forma,
tage, como movimento armado: “eu sou um guerreiro da periferia”, ele diz, Mano Brown enunciou em entrevista ao jornal Agora, de 10 de outubro de
“sou um guerreiro sem armas”, retomando mote recorrente do hip-hop. 2005, posicionando-se a respeito do referendo das armas.46 Em um show
A função de denúncia é ocupada também pela câmera que o filma e mos- dos Racionais MC’s na quadra da escola de samba São João, em Mauá,
tra a vida de Canão: a “câmera é uma arma”. Tudo sintetizado pela frase cidade do ABC paulista, quando perguntado sobre o que achava do refe-
que define o rap: “rap é isso”. O que significa, no contexto do documentá- rendo sobre o desarmamento, mais de metade do público se manifestou
rio, pelo menos três coisas: o que se realiza nas letras/música rap; o que a contra o desarmamento. A leitura de Mano Brown é emblemática, e aponta
câmera mostra, i.e. a favela de Canão tornada visível no documentário; e o para uma luta de classes com posições simétricas inversas: “O rico não quer
próprio mostrar da câmera que o filma, e filma Canão, e que, no ato de fil- que o pobre se arme e ele fique desarmado. E o pobre não quer que o rico
mar, denuncia. Essa relação mimético-reflexiva entre a violência do crime se arme e ele fique desarmado. Você viu o argumento do moleque: ‘Como
e/ou da prisão, tão importante para o hip-hop, para o rap paulista e carioca, é que os policiais vão andar armados e eu vou andar desarmado?’” Mano
para o funk carioca, sem falar nos “proibidões”, é perfeitamente emblema- Brown reconhece que a luta é absolutamente desigual, e que o argumento
tizada, por exemplo, nos videoclipes de MV Bill e Kátia Lund, “Soldado do rapaz estava confuso. E, apesar de haver se manifestado em seguida
de morro”, e “Traficando informação”, ou no uso cênico de revólveres em publicamente a favor do desarmamento, é evidente que a retórica da vio-
shows.44 Ou ainda Sabotage: “o crime é igual ao rap / Rap é minha alma / lência, inseparável da estética hip-hop, o faz desempenhar um papel equí-
Deite-se no chão / Abaixe suas armas”, na canção “Rap é compromisso”, voco neste debate. É do indissolúvel vínculo com a encenação e com a reali-
ao mesmo tempo um libelo pacifista, contrário ao tráfico, construído no dade da violência que o rap extrai a sua potência, a sua soberania, digamos,
entanto sobre a homologia estrita: “o crime é igual ao rap”. É precisamente estética, ao mesmo tempo em que municia o argumento a favor das armas,
este jogo de ressignificação da violência que caracteriza o Witz poético de estimulando o pavor fóbico da contaminação e da invasão do rap e dos
grande parte dos nomes de grupos e títulos de CDs de rap.45 pobres, todos estereotipados como criminosos armados.
A sua colocação desenha de forma explícita o retrato ambíguo de uma
44 É o mesmo procedimento de simbolização da violência que aparece no documentário O dupla soberania no Brasil, configurando um estado de exceção com dupla
Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas (2000), de Paulo Caldas e Marcelo Luna, face: uma das periferias e favelas, governada por uma figura amorfa subsu-
inteiramente estruturado em torno do paralelo entre o músico Garnizé, de Faces do subúr-
bio, e o “justiceiro” Helinho, condenado na época a 150 anos de prisão por 65 homicídios,
mida pelo tráfico, e outra das classes médias e altas, defendida pela polícia
e executado na prisão um pouco depois da conclusão do documentário. Garnizé enuncia e pelo vasto sistema de segurança privada. A figura da guerra civil47 é, no
simbolicamente na percussão o que Helinho fazia na prática. O mesmo ocorre em outros
casos conhecidos, como o Afro-reggae de Vigário Geral, ou o projeto de ensino de boxe para
meninos com risco de envolvimento com o tráfico na Maré, realizado por Luke Dowdney: de pistola; Realidade urbana, A invasão (2005); Rei, A ocasião faz o ladrão (2003); SAR (Solda-
sempre se trata aqui de ressignificar a violência, transformando-a em linguagem. Sobre isso dos Armados do Raciocínio); Tribunal MCs, A arte da guerra (2002).
ver o capítulo 6, “A violência como figura (O Rap do Pequeno Príncipe)”. 46 Em 23 de outubro de 2005, 110 milhões de pessoas responderam à pergunta “O comércio de
45 Uma pequena pesquisa feita em uma vasta coleção de rap brasileiro, feita em 2006 na coleção armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?”, sob a forma de um referendo popular.
de um usuário do browser Soulseek, resultou na seguinte amostra de nomes de álbuns e de O resultado – 63,5% votaram pelo “não”, e 36,1%, pelo “sim” – demonstrou uma tendência
grupos de rap, que jogam com esta transubstanciação da violência em símbolo de violência preocupante no Brasil de hoje.
(os nomes de grupos estão em redondo e os títulos de CDs em itálico): Baseado nas ruas, A 47 É importante enfatizar este afirmação: não há guerra civil nas cidades brasileiras. Alba Zaluar
sabotagem continua (1999); C.X.a, Contos do crime (1998); Código penal, Aí bandido (2003); é taxativa: “Não se trata, pois, de nenhuma guerra civil entre pessoas de classes sociais dife-
Comando DMC, São Paulo está se armando; Conexão Carandiru, Do crime para o rap (2001); rentes nem mesmo de guerra entre polícia e bandidos. [...] Nestas mortes [Zaluar utiliza a
Consciência humana, Entre a adolescência e o crime (1998); Contravenção racial, Terror estatística de que 57% dos homicídios de jovens tem relação com drogas], os pobres não estão
(2003); Criminal D, O conteúdo do sistema; Criminal rap, Programado para viver; DA Guedes, cobrando dos ricos, nem perpetrando alguma forma de vingança social, pois são eles as prin-
Morro seco mas não me entrego (2002); Detentos do rap, Apologia do crime (1998); Distúrbio cipais vítimas da criminalidade violenta, pela ação ou da polícia ou dos próprios delinquentes”
MCs, Sistema do crime (2002); Face da morte, O crime do raciocínio (2000); Facção terrorista; (Alba Zaluar. “Para não dizer que não falei de samba”. Fernando Novais, (dir.) História da vida
Guind’art 121, Ser ou não ser gangster (1996); Helião & Negro Li, Guerrero guerrera (2004); MV privada no Brasil. Vol. V. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 296). Ou ainda a discussão
Bill, Declaração de guerra (2002), Traficando informação (1999); Negociação, Sobre a fumaça terminológica pormenorizada de Luke Dowdnew: “[...] As disputas entre facções no Rio de

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entanto, falsa, embora municie poderosamente o argumento que defende nada mais tem a recear do que o poder único de outro homem, se alguém
o enrijecimento ostensivo de policiamento no campo e nas cidades (e não, planta, semeia, constrói ou possui um lugar conveniente, é provável esperar
por exemplo, o policiamento comunitário), o recurso à invasão e à ocu- que outros venham preparados com forças conjugadas, para desapossá-lo e
pação policial sistemática de favelas; em suma, a construção do que Loïc privá-lo, não apenas do fruto de seu trabalho, mas também de sua vida e de
Wacquant denomina de Estado Penal (por oposição ao declinante Estado sua liberdade. Por sua vez, o invasor ficará no mesmo perigo em relação aos
Caritativo), que define o novo padrão de criminalização da pobreza e de outros”.49 No estado-limite de natureza, definido pelo direito de cada um
gestão da miséria. Um traço que complexifica o problema é a tendência ao prover à sua necessidade e desejo, que desconhece o bem e o mal, o medo
apoio aos justiceiros e à pena de morte entre camadas pobres da população da invasão do outro, o medo, por sua vez, do outro também de ser invadido
urbana brasileira, justamente aquela que mais sofre com a violência policial, por um outro outro, e assim por diante, definem o estado geral das coisas: a
demonstrada nas pesquisas de Teresa Caldeira. Outro: uma pesquisa rea- exceção em série que venho palmilhando deste o início deste ensaio.
lizada pelo DataUFF, coordenada pelo cientista político Alberto Almeida e De ambos os lados desta guerra que está longe de ser apenas retórica
financiada pela Fundação Ford, demonstra que o apoio a políticas de exter- negocia-se surpreendentemente uma mercadoria de natureza estritamente
mínio cresce na proporção inversa do nível de escolaridade.48 No entanto, simbólica: o medo recíproco da outra soberania, em uma disputa entre
como aponta José Murilo de Carvalho, nisso residiu a maior surpresa do soberanias. É exemplar neste sentido a argumentação do então deputado
referendo: “quanto mais educado o eleitor, maior a oposição ao ‘sim’.” Luiz Antonio Fleury (entre 1998 e 2005; PTB/SP) – o mesmo que autori-
Luiz Eduardo Soares, em Cabeça de porco, fala constantemente de zara o Massacre da Casa de Detenção em 1992, como então governador
muros invisíveis (ou de seu antídoto, as pontes), na estruturação da dupla do estado de São Paulo – retomada por toda a Frente Parlamentar pelo
face estilhaçada da cidade do Rio de Janeiro, que materializam uma cultura Direito à Legítima Defesa, de que era vice-presidente, e que teve na revista
do medo recíproco entre as metades. Não é o medo do armamento dos ricos, Veja o seu órgão principal na grande mídia: é preciso mantermos o nosso
que, ao ver da maioria do público pobre do show de rap dos Racionais MC’s, direito de ter armas de fogo em casa, explica ele, por que assim retiramos
o fazia ser contra o desarmamento? Não é o medo simétrico que fez com ao bandido a certeza de que naquela casa não há arma de fogo. Trata-se em
que os ricos não quisessem que o comércio legal de armas fosse proibido, o suma de jogar com uma margem de incerteza suficiente para despertar no
que significaria conferir aos bandidos, que de todo o modo não compram bandido o medo de assaltar a casa, subtraindo-lhe a segurança de poder
armas em lojas, o monopólio do porte de armas? Tanto a argumentação do assaltar com tranquilidade, comprovada pela estatística de que “64% dos
público dos Racionais MC’s quanto a da Frente Parlamentar pelo Direito à assaltantes evitam assaltar quando sabem que alguém tem arma em casa”.
Legítima Defesa (vulgo Frente Pró-armas, a bancada do “não”) repetem É no mínimo curioso que a defesa da privatização da segurança passe pelo
de forma rigorosa a cena originária do direito de exceção e do estado de argumento de recusar ao bandido armado a segurança de assaltar. O desa-
segurança, cuja matriz encontra-se em Hobbes: “[...] quando um invasor fio lançado em tom de bravata à Frente Brasil Sem Armas (a Bancada do
“sim”), de afixar na porta de suas casas o cartaz “Nesta casa não há armas”,
Janeiro não satisfazem um critério fundamental para serem chamadas de guerra ou de conflito materializa uma espécie de blefe, ou cálculo hipotético... do medo. Colocar
armado importante: o governo brasileiro não é objeto deliberado de ataque e as facções não
têm interesse em assumir o lugar do estado” (Luke Dowdney. Crianças do tráfico. Um estudo de
o cartaz, ou, segundo Fleury, votar por retirar ao cidadão o direito de portar
caso de crianças em violência armada organizada no Rio de Janeiro, loc. cit., p. 239). Dowdney armas, “é um convite para o bandido entrar”.50
sugere que se adote o termo de “violência armada organizada”, que descreveria melhor do que
“guerra civil, profundamente inadequado, e com graves implicações em termos de implemen-
tação de política de segurança, o que ocorre hoje nas grandes cidades brasileiras. 49 Thomas Hobbes. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil, loc. cit., p.
48 Dentre os consultados sobre se consideram certo ou errado a polícia matar assaltantes e 108, tradução modificada.
ladrões depois de prendê-los, 40% de analfabetos consideraram certo, contra 17% com curso 50 Fleury: “O bandido hoje, nas condições atuais, ao tentar assaltar uma casa, não sabe se a
superior. Folha de São Paulo, Página C1, 9 de abril de 2005, “Apoio popular incita ação ilegal”, pessoa tem arma de fogo ou não. Se nós aprovarmos o Referendo, se votarmos ‘‘sim’’ ao Refe-
diz pesquisador. rendo, ele vai ter a certeza de que no Brasil inteiro não haverá uma única residência onde ele

268 269
O jogo projetivo de acenos, e a negociação com a suposição do medo, Exemplarmente, a retórica de Fleury recorta dois lados de uma cena
tem, no entanto, um alvo bastante diferente, e igualmente explícito: o estritamente hobbesiana, configurando o que chamei acima de equação
governo. Embora a violência discutida seja bem real, é característico que tautológica do poder: de um lado, a suposta “guerra de todos contra todos”,
ambos os lados da polêmica, tanto a Frente Brasil Sem Armas quanto a a invasão iminente que assombra as casas de classe média e da elite, sob
Frente Parlamentar pelo Direito à Legítima Defesa, pareçam estar concerni- a forma de bandidos armados ameaçadores, com o direito assegurado de
das na verdade por questões absolutamente extrínsecas ao problema, ligadas “entrar”, instalando o medo generalizado de morrer do estado de natureza,
exclusivamente a uma discussão de fundo eleitoral, com nítidos recortes par- e contra os quais precisamos nos defender, a quem queremos tirar a segu-
tidários. Aqui, na posição de Fleury, por exemplo, fica claro que o problema rança de que não teremos armas em casa – justificativa do direito à auto-
é de fato outro. Como quando lembrado sobre a informação fornecida pelo defesa. E de outro lado os poderes constituídos, que nos negam o direito
Deputado Federal Doutor Rosinha (PT/PR) em seu site, de que cinco deputa- constitucional de dispensar-nos segurança, acusados de extrapolarem
dos federais, dentre os quais Fleury, integrantes da Frente Pró-Armas, rece- seus limites contratuais legítimos, ao imporem uma lei de fundo autoritá-
beram doações de fabricantes de munições e armamentos nas eleições de rio cujos antecedentes encontram-se em Hitler, a Khmer Rouge e Stalin, e
2002. A resposta de Fleury é desqualificar a informação e o deputado, mas contra os quais também precisamos nos defender, salvaguardando o nosso
ele o faz de forma extremamente significativa: “O deputado, o doutor Rosi- direito individual de autodefesa. O Estado é culpado, por um lado, por não
nha, para começar não entende nada do assunto. [...] Não entende nada de nos proporcionar o que é apenas o nosso direito e seu dever, razão pela
segurança. Só entende de defender o MST. Vamos ver se o MST vai continuar qual precisamos nos defender individualmente, e é não menos culpado, por
armado ou desarmado, de acordo com o doutor Rosinha”.51 outro, por exceder-se em sua função, ao extrapolar os limites legítimos de
seu poder, razão pela qual precisamos nos defender dele. Ou seja, o Estado
pode enfrentar a resistência de uma arma de fogo. Entendeu? Eu não quero dar essa certeza
para o bandido.” é ao mesmo tempo insuficiente e excessivo: não cumpre o seu dever e não
51 A referência ao MST “armado” é absolutamente recorrente em todo o debate promovido pela provê a segurança pública de que temos direito, forçando-nos a recorrer à
Frente Parlamentar pelo Direito à Legítima Defesa. Observe-se, por exemplo, o destaque defesa particular (a indústria de segurança particular...); e excede autori-
sobre João Stédile, na matéria de capa da Veja de 5/10/2005, “Referendo sobre o desarma-
mento: 7 razões para votar não”, assinada por Jaime Klintowitz. Na terceira razão, justamente tariamente em seu direito tirando-nos o nosso de nos defendermos par-
aquela que associava o cerceamento ao direito de portar armas, supostamente defendido ticularmente, sendo amigo de nossos inimigos. Os dois lados da equação
pelo governo, a exemplos históricos de cerceamento análogo por regimes totalitários, jun-
tando na mesma rubrica Hitler, Stalin, Mussolini, Fidel Castro e Mão-Tse-Tung, lia-se, em
têm como pivô algo semelhante ao contrato dos jusnaturalistas: uma cena
caixa separada com o título: “Por que João Stédile, do MST, apoia o desarmamento”: “Seis anterior ao contrato, apontando para a violência do estado de natureza e
de cada dez armas existentes no Brasil estão em áreas rurais. ‘Nas áreas rurais, a dezenas justificando a necessidade de aparelhamento policial e o armamento indi-
de quilômetros de uma delegacia de polícia, ter uma arma de fogo é uma necessidade’. Sem
as armas, perderiam também um poderoso instrumento de dissuasão usado para prevenir vidual; e outra, posterior ao contrato, onde um governo autoritário é ele
saques e invasão do MST. É por isso que João Pedro Stédile, o líder máximo do MST, apoia próprio portador em si da violência do estado de natureza. As duas cenas
o desarmamento: na próxima invasão, terá a segurança de que não enfrentará resistência
armada.” Veja-se ainda, na mesma linha, a associação do direito de legítima defesa (Segunda se fundem na figura da invasão: a falta de lei é o que determina as invasões,
Emenda da Constituição dos Estados Unidos) ao direito de livre expressão e da imprensa
(Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos), na entrevista de Fleury: “Estamos de legítima defesa), em um país que historicamente – é o que prova a pesquisa citada por
tirando o direito amanhã de ter uma arma dentro de casa, da mesma forma que tentaram ele – desconhece a noção mesma de direito. A defesa de um direito civil coroaria uma catarse
tirar o direito de vocês jornalistas informarem. Isso está dentro de uma... se você analisar cívica, diante do “espetáculo deprimente de degradação da vida pública, dos partidos, do
ditaduras do passado, você vai ver que Stalin fez exatamente o que se pretendeu fazer aqui. Congresso, do governo dos políticos”. Concordo com a primeira parte da premissa, de que
Reduziu a liberdade de imprensa, depois, proibiu a venda de armas e munições, cassou quem houve de fato catarse, mas a pergunta permanece sobre o porquê de o direito civil defendido
tinha arma em casa e depois implantou uma ditadura. É um caminho para o totalitarismo ter sido o de legítima defesa, e não outro. Observe-se que o direito civil clássico, mencionado
que passa, inclusive, por isso. Agora, citei Stalin; poderia citar Hitler, poderia citar Idi Amin por José Murilo Carvalho e defendido pela Frente Pró-Armas, de “guardar e portar armas”,
Dada e vários outros, o Khmer Vermelho, no Camboja, todos utilizaram a mesma estratégia. tal qual formulado na Segunda Emenda da Constituição dos Estados Unidos, justificava-se
Só que as polícias armadas não desapareceram. Como o MST, tenho certeza, não devolveu originalmente pela necessidade de uma “milícia bem regulada à segurança de um Estado
arma nenhuma.” Parece-me insuficiente a colocação de José Murilo de Carvalho de que o livre”. Não estou certo de que os termos desta questão (de 1791) possam ser transportados
referendo fora positivo por fixar de forma clara a defesa de um direito civil clássico (o direito para o contexto atual sem graves distorções.

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essencialmente criminosas (de traficantes entre favelas, de pobres em massa Quem sofre mais os presos daqui ou de Angola??
aos espaços protegidos de ricos, como por exemplo as praias do Rio de O que nos resta é espalhar que deus existe agora é a hora
Por que a paz plantada aqui irá dar flor lá fora
Janeiro, etc.), no sentido de que desrespeitam o direito fundamental da pro-
Corre perigo INVASOR vacilou
priedade, embora seja justificável a invasão de favelas por policiais; e é esta Presa facil virou
mesma figura que é supostamente defendida por um Estado que encampa Eu só naum posso me esquecer de lembrar
as invasões do MST e de sem-tetos às propriedades particulares, demons- Sei que o que é certo é certo eu me preservo
trando desta forma sua clara inspiração totalitária stalinista. Insuficiente Corre perigo INVASOR vacilou
Presa facil virou
(i.e. incapaz de nos defender, fazendo-nos padecer mais uma vez do medo
Eu só naum posso me esquecer de lembrar
de morrer) e excessivo (i.e. ditatorial, ele próprio invasivo, e defensor do Sei que o que é certo é certo eu me preservo
direito de invasão); justifica-se então que nos defendamos privadamente,
retirando do Estado o papel a ele confiado contratualmente, renunciando Afinal, esta é a terra em que participam em um projeto soberano de
à renúncia que em algum momento nos fizera depositar nele o papel de extermínio a fome da miséria, o fuzil dos traficantes e da polícia, e algo que
prover a nossa segurança (i.e. o “monopólio do uso legítimo da força” webe- sintetiza metaforicamente os dois: a doença fatal africana, o ebola. Já que
riano), e instalando nós mesmos o terror necessário à implementação da lei, aqui é a África, onde os presos sofrem tanto ou mais do que em Angola. A
da justiça, i.e., da segurança, a exceção como norma. solução: espalhar pela música que Deus existe, esta é a hora e não outra, e não
Neste ponto estamos preparados para formular uma tipologia da equa- “a hora de nossa morte”, conforme reza a oração, que a canção cita e desloca
ção da invasão. A invasão legítima e oficial (da polícia, do aparato de segu- a flor musical que projeta a paz, como memória (“não posso me esquecer de
rança); a invasão estética (do hip-hop, de Sabotage); a invasão de facções do lembrar”) do que é certo, parâmetro ético, função da autopreservação e de
narcotráfico (tema do rap de Sabotage, entre outros); a invasão ao mesmo salvação. Afinal: o invasor, em boa lição hobbesiana, é presa fácil. Este é o
tempo real e simbólica como cena-limite do medo, produtora de uma ges- seu vacilo.
tão privada e estatal do terror. É preciso, no entanto, esclarecer uma coisa:
a gestão simbólica dos medos não pode ser confundida com o terror real,
embora seja ela que, em última análise, justifique e conduza ao terror real,
como maneira de reduzir o medo que gere. Embora pareça insignificante,
a diferença entre a gestão simbólica dos medos e a real dos cadáveres (já
que em última análise uma conduz à outra), não podemos deixar de fazê-la.
Se, como vimos acima, o soberano é aquele que decide se, quando, e como
matar seus súditos (situação da exceção), relegando as suas vidas ao domí-
nio da norma, podemos concluir que a gestão simbólica dos medos consti-
tui o âmbito da norma, enquanto o terror real constitui a circunferência da
exceção. É verdade que a gestão dos cadáveres é interior e condição para a
norma, mas é este, de fato, o paradoxo topológico da soberania.
Sabotage, mais uma vez, faz uma análise aguda da reversibilidade sis-
têmica da função da invasão, no contexto do narcotráfico, e da guerra par-
ticular que caracteriza as grandes cidades brasileiras, no rap O invasor.
Naum sei que mata mais
A FOME O FUZIL OU O EBOLA??

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capítulo 8
Mediação e inclusão

As novas manifestações artísticas provenientes do território da pobreza


brasileira instauram uma crise nos processos de mediação, ao instalar um
dispositivo de inclusão, ao mesmo tempo indissociável e em competição
com a mediação. O mundo dos mediadores é aquele, hoje lírico, intrinse-
camente ligado à paisagem urbana e cosmopolita da modernidade, admi-
ravelmente descrito por Gilberto Velho, que o associa a um dos seus des-
bravadores teóricos, Simmel:
É importante, também, examinar, segundo a preocupação de Simmel, as rela-
ções entre culturas objetiva e subjetiva, quando lidamos com as diferenças
entre um localismo, em princípio autorreferido, e o potencial universalista da
experiência cosmopolita que não é igualmente distribuída pelos habitantes da
metrópole. Nesta, heterogênea e complexa, uma das principais características
é a coexistência de diversos mundos sociais e correntes culturais que expres-
sam diferentes modos de relacionamento e interação com a realidade, assim
como múltiplos pertencimentos e identidades simultâneas. Certamente, há
mundos mais restritos e estáticos e outros mais abertos e dinâmicos.1

O mediador transita entre espaços fechados e descontínuos, heterogê-


neos em si e tendencialmente homogêneos. É o flâneur benjaminiano-bau-
delairiano atravessando agilmente os espaços da cidade, que não o abriga
mas o deixa ser. Por oposição a um local autorreferido, ele estabelece a
comunicação entre mundos sociais distintos, encarnando ele próprio a
heterogeneidade que atravessa. Em seus múltiplos pertencimentos simul-
tâneos, estabelece a ligação entre cada um dos mundos que a metrópole
cosmopolita, modernista, espacializa.

1 VELHO, Gilberto. Metrópole, cosmopolitismo e mediação. Horizontes Antropológicos. Porto


Alegre, ano 16, n. 33, jan./jun. 2010, p. 15.

275
Já a inclusão pressupõe uma crise no paradigma das heterogeneidades que se denomina, em nossas paragens, “inclusão cultural”, no contexto das
simultâneas, desaparecendo o espaço intersticial no qual viceja o media- políticas de inclusão ou de inserção, implementadas pelo Estado ou por seus
dor. Entretempos as heterogeneidades coexistentes se converteram em avatares em tempos de Estado mínimo – as organizações não governamen-
interioridade homogênea e excludente. A cidade da inclusão é a metrópole tais (ONGs) e as fundações culturais como margem não financeira do capi-
contemporânea segmentada, e não a cidade moderna. A inclusão inverte tal – e substituto de políticas de integração em profundidade. A distinção
o paradigma da exclusão ao colocar o que estava fora, excluído, dentro, entre inserção (ou inclusão) e integração foi estabelecida por Robert Castel:
incluído, em uma ginástica preposicional característica. O trânsito entre
Entendo, por políticas de integração, as que são animadas pela busca de gran-
ex- e in- consiste em atravessar uma fronteira que separa o campo interno des equilíbrios, pela homogeneização da sociedade a partir do centro. São
de um mundo conhecível, razoável, cidadão, e uma exterioridade dispersa desenvolvidas através de diretrizes gerais num quadro nacional. É o caso das
em um campo não definido e anômico. As heterogeneidades plurais, dis- tentativas para promover o acesso de todos aos serviços públicos e à instru-
postas em múltiplas fronteiras mais ou menos porosas, em uma cidade não ção, uma redução das desigualdades sociais e uma melhor divisão das opor-
tunidades, o desenvolvimento das proteções e a consolidação da condição
mais cosmopolita mas cindida, se convertem em heterogeneidades sempre salarial [do espaço, do bairro, da cidade, das políticas de planejamento].3
únicas, situadas do outro lado de um muro fronteiriço, com diversos mati-
zes, ou versões, que se trata de traduzir, incluir ou deixar falar. O incluído A essas políticas se opõem, termo a termo, as de inserção, ou de inclu-
traz em sua bagagem as experiências da vida de excluído que relata em sua são, que
passagem para o território da inclusão. obedecem a uma lógica de discriminação positiva: definem com precisão a
Desse mundo da inclusão emerge um processo de autorização da expe- clientela e as zonas singulares do espaço social e desenvolvem estratégias
riência subjetiva que chancela a vivência experiencial da exclusão, testemu- específicas para elas. Porém, se certos grupos, ou certas regiões, são objeto
nhada pelo incluído e por meio da qual se dá sua inclusão, estabelecendo-se de um suplemento de atenção e de cuidados, é porque se constata que têm
menos e são menos, é porque estão em situação deficitária. De fato, sofrem de
uma prescrição de que o sujeito não só seja o autor ou a testemunha do que
um déficit de integração, como os habitantes dos bairros deserdados, os alu-
conta, como também o ator do que conta ou testemunha. O dispositivo, nos que fracassaram na escola, as famílias malsocializadas, os jovens mal-em-
além de autobiográfico, estabelece fronteiras de competência, autoridade, pregados ou não empregáveis, os que estão desempregados há muito tempo...
autenticidade, propriedade: o incluído – e só ele – é dono de uma experiên- As políticas de inserção podem ser compreendidas como um conjunto de
cia real, a que ele tem acesso privilegiado e da qual detém o copyright auto- empreendimentos de reequilíbrio para recuperar a distância em relação a
uma completa integração (um quadro de vida decente, uma escolaridade
declarado. Ao ser incluído, ele se torna ao mesmo tempo sujeito e objeto da “normal”, um emprego estável etc.).4
cultura, que de passagem o aceita, mas conferindo-lhe uma cidadania pre-
cária, que a qualquer momento pode ser retomada. Ocorre uma mudança Os exemplos de Castel, embora guardem uma especificidade francesa,
de episteme entre o mundo da mediação e o da inclusão. encontram facilmente análogos no Brasil. Em resumo, a integração pro-
O que descrevo aqui é um processo de subjetivação pela cultura, para põe “medidas de alcance geral”, enquanto a inserção “medidas específicas
usar um termo cunhado por Michel Foucault, que não fala de cultura.2 É o para uma clientela de populações particulares”.5 A inserção teria um caráter
transitório, baseado no critério da “discriminação positiva” (a expressão
2 Para Foucault, subjetivação corresponde ao conjunto de práticas disciplinares, jurídicas e faz imediatamente pensar na política de cotas, em 2012, transformada em
morais que constroem o indivíduo. As ciências humanas, por exemplo, têm por objeto sujei- legislação federal), a partir do qual se localiza a área de carência em um
tos. Sujeitos são assim objetivados em enunciados que dizem a verdade sobre eles (“jogos
de verdade”), constituindo-os como tais e em relação aos quais sujeitos agem, movem-se e
3 Robert Castel. As metamorfoses da questão social. Uma crônica do salário. Trad. Iraci D.
se concebem. “Modos de subjetivação” são o conjunto de práticas e de regras técnicas que
Poteli. Petrópolis: Vozes, 2005, 5a edição, p. 538.
definem o sujeito (Michel Foucault. Dits et écrits, vol. II, loc. cit., p. 1451: o verbete “Foucault”,
escrito pelo próprio e assinado por Michel Florence [M.F.] para o Dictionnaire des philosophes, 4 Idem, ibidem.
editado por D. Hisman. Paris: PUF, 1984). 5 Ibidem, p. 538-539.

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dado corpo social e se define um corretivo emergencial localizado, como sociais ou políticos que “não vivem essa realidade”. O “novo olhar” traz
substituto para políticas mais gerais – e, por definição, mais caras – e que, o ponto de vista não mediado, imediato, dos próprios jovens, sua própria
no momento e até segunda ordem, o Estado se encontra incapacitado de voz, a vida de cada um narrada por eles mesmos, desvencilhando-se do
oferecer. O objetivo, explicável como solução de emergência, seria tão discurso científico/político que tradicionalmente os filtrou e os objetivou.
somente “recuperar a distância em relação a uma completa integração”. Aqui se inscreve a marca insistente, em toda essa nova episteme, do “pró-
Portanto, o objetivo da inserção não é outro senão a integração. Contudo, prio”, do “si mesmo”, da autodeclaração, da autoria autoautorizada.
o diagnóstico de Castel não poderia ser mais sombrio: as populações inse- O aporte inicial da novidade enunciativa se traduz em benefício per-
ridas não são integráveis. Provavelmente, podemos acrescentar, em virtude ceptível que contrasta com a representação midiática, por exemplo, precisa-
de o remédio não visar, de fato, à cura do doente, mas sim mantê-lo conva- mente a apresentada no Rio de Janeiro pela mesma Rede Globo que exibia
lescendo na cama. o documentário, ou pela mídia impressa e televisiva em geral, que represen-
Ora, a integração pertence ao mundo da mediação. Ela tem como tava esses jovens “falcões”, ou o narcotráfico como um todo, como ativida-
horizonte a coexistência das diferenças a partir de uma hipótese futura de des criminosas. O ponto de vista elucidado pela nova enunciação arma a
integração, em um mundo pautado pela regra antropológica da harmonia tarefa que o documentário se propõe a realizar: descriminalizar esses meni-
ideal entre heterogêneos, ao passo que a inclusão é baseada no paradigma nos ao mostrá-los à luz de suas próprias ideias, e não filtrados pelo olhar
da discriminação positiva e na inserção precária. exterior de alguém de outra classe, que conhece essa realidade por meio das
É natural que o procedimento da inclusão compita com a antropolo- mãos enluvadas da ciência ou do jornalismo, tendo, portanto, a perspectiva
gia, que de alguma forma detinha o monopólio da experiência do hetero- marcada pelo privilégio que criminaliza o que precisa ser visto como pro-
gêneo, interna ao paradigma da mediação. Observe-se, a título de exemplo blema social ou de saúde pública. Livre do privilégio da distância que separa
do que estou dizendo, a afirmação do privilégio experiencial manifestada as vivências na nova metrópole segregada, estabelece-se um privilégio da
pelo rapper MV Bill no Fantástico, antes da exibição de Falcão – meninos do experiência do real, pessoal e intransferível, como no poema de Torquato
tráfico, em rede de televisão nacional, no dia 16 de março de 2006, para um Neto, baseada na proximidade, “perto” ou “no meio”, e não na separação.
público estimado em dez milhões de espectadores. Incomodamente sen- O que vemos aqui é a emergência de uma forma de autorização ou
tado ao lado da apresentadora Glória Maria, MV Bill responde o seguinte de autenticação discursiva, originalmente formulada pela antropologia e
quando perguntado sobre a razão de fazer o documentário: pelas ciências sociais e que agora incorpora a mediação científica que a
Eu vivo perto dessa realidade, vivo no meio dela. Sempre vi esse problema estruturou e a configurou, a fim de apresentar a voz e a visão não mediada
sendo analisado por antropólogos, sociólogos, especialistas na área de segu- daqueles tradicionalmente representados de maneira exclusiva pela ciên-
rança, que não vivem essa realidade. A ideia é permitir que o país faça uma cia. Implícito no relato da inclusão é o projeto de tendencialmente substi-
grande reflexão sob um novo ponto de vista, um novo olhar, que é a visão dos tuir o discurso da ciência e da política por uma perspectiva mais autêntica,
jovens que sempre são colocados como culpados, são sempre considerados
como os grandes culpados de toda essa tragédia.
autoproduzida, dotada de uma verdade a que os discursos mediados não
podem – nem querem – almejar. A distância que separa a voz não mediada
A novidade de um rapper apropriando-se de um discurso de antropó- e a mediação científica é a distância entre o dado empírico e sua elevação
logo ou político profissional como veículo de denúncia, munido das prer- à abstração universal. A contemporaneidade se esmera em demonstrar o
rogativas de visibilidade na mídia a que tem acesso um artista de impacto preconceito epistemológico contido nessa mesma caracterização da parti-
popular, contém a afirmação de uma perspectiva nova sobre um problema cularidade como dado empírico, a que se confere agora uma autorreflexivi-
já conhecido. O “novo ponto de vista”, o “novo olhar” é trazido por alguém dade própria. O momento atual se reveste de uma importância nova dada
cuja autoridade sobre o material que mostra provém de viver “perto”, “no ao particular, que se apropria como pode da universalidade, embutindo-a,
meio” da realidade que mostra, em contraste com o discurso dos cientistas por assim dizer. A ciência chancela “de fora” a voz “de perto” ou “de dentro”,

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a uma distância calculada, como que a autorizando a se autoautorizar, e Ela assume resolutamente seu status de estrutura formal montada coleti-
eventualmente sendo dispensada. vamente, inserida no mercado e na “indústria cultural”. A inclusão salta
Entendamo-nos sobre o termo de mediação. O conceito vem da filo- as etapas tradicionais das indústrias midiáticas e sua filtragem nacional
sofia de Hegel, retrabalhado por exemplo por Adorno, e está no centro ou estatal, utilizando-se para tanto da revolução da tecnologia digital, que
do campo dos estudos de mídia, dos meios de comunicação de massa e permite o acesso direto da produção artística à universalidade da rede
de comunicação desenvolvidos nos anos 1960 por McLuhan, até chegar à mundial.
antropologia com a noção de mediador, como vimos anteriormente. O sen- A mediação se traduz, no campo da política, pela representação, no sen-
tido está longe de ser homogêneo em cada um desses campos. tido da “democracia representativa”. Um índice sintomático do trânsito entre
Em Hegel, a mediação (Vermittlung) é mesmo o operador essencial da a episteme da mediação e a da inclusão é a visibilidade – ou audibilidade –
filosofia e da história, e descreve a transformação do mundo empírico, par- da dicção popular do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como alguém
ticular, em universal, espiritual, no movimento do negativo.6 Em Adorno, a “nascido e criado em sua própria classe”, por oposição a alguém que pode-
mediação consiste na passagem do sujeito ao objeto na e pela linguagem, ao ria ter nascido em sua classe e adiante se distanciado e perdido suas mar-
mesmo tempo subjetiva, universal e social. É a linguagem que faz a mediação cas específicas.9 Isso significa que a fala, o gestual, a presença de Lula foram
entre o sujeito e a sociedade.7 Para McLuhan, os meios como extensão do entendidos como marca identitária, e essas marcas não foram apagadas nem
homem evacuam todos os conteúdos, subsumidos pelas diversas mídias em convertidas na forma neutra, nacional, mediada, de classe média, como
revoluções em sequência, já que “o meio é a mensagem”, tornando-se a forma teriam sido em outros tempos. O que explica, ao mesmo tempo, a extrema
que totaliza, unifica a humanidade inteira, a partir da revolução elétrica.8 A popularidade do presidente junto às camadas populares, identificadas com
invariante é evidente: em cada caso, o meio, medium, mediação, é o operador sua dicção, incluindo suas infrações à norma culta, e o repúdio simétrico,
de uma passagem ou elevação – Hegel dirá “suspensão” (Aufhebung) – do classista, tingido de asco biopolítico, da parte das classes abastadas.
particular ao universal ou de “render” um pelo outro, no sentido idiomá- Assiste-se, assim, à transformação do dado universalista de classe –
tico que o termo tem em português (outra maneira de traduzir Aufhebung), no caso, o trabalhador, um operário migrante, sindicalista, convertido em
ou global, para usar o termo que McLuhan popularizaria, pelo espírito, pela presidente – em traço cultural, identitário, popular, particular. Não mais
linguagem ou pela tecnologia. exótico, mas sim incluído. Dado que se complica ainda mais por ser ele, o
A episteme da inclusão altera profundamente essas três acepções de ex-presidente, eleito republicanamente como chefe da democracia repre-
mediação. A partir de agora se trata não mais de subsumir ou “suspender” sentativa que o Brasil quer ser, o que o torna ao mesmo tempo um repre-
o particular ao universal ou de “render” um pelo outro, mas de deixar o sentante e o incluído, esclarecendo-se, nessa confusão, a distinção entre as
particular ser ou falar, sem o aparelhamento da universalização. A obra duas posições.
de arte deixa de reivindicar o caráter de autonomia, crucial para Adorno. A recusa da mediação ou a proposta de novas mediações assume a
forma de uma recusa da representação, implícita em injunções tornadas
6 “[...] pensar o mundo empírico significa essencialmente alterar a sua forma empírica e trans- senso comum em nossa época de enunciação própria, em seus próprios
formá-la em algo universal” (G.W.F. Hegel. The Encyclopaedia Logic. Trad. T. F. Geraets, W.
A. Suchting e H. S. Harris. Indianapolis: Hackett, 1991, parágrafo 50). termos: “que as minorias falem por si mesmas”, “que tal grupo social repre-
7 “[...] assim a linguagem estabelece a mediação entre lírica e sociedade no que há de mais sente a si mesmo” etc. A marca de época dessa nova proposição anti ou
intrínseco.” Ou: “[...] isso mostra que em cada poema lírico devem ser encontrados, no
autorrepresentativa surge de modo emblemático e inaugural na conversa
médium do espírito subjetivo que se volta sobre si mesmo, os sedimentos da relação histórica
do sujeito com a objetividade, do indivíduo com a sociedade” (Theodor Adorno. Palestra de 1972, “Os intelectuais e o poder”, entre Michel Foucault e Gilles Deleuze,
sobre lírica e sociedade. Notas de literatura I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cida-
des/Editora 34, 2003. p. 74 e 72). 9 A descrição identitária de Lula vem do “Discurso da sra. ministra-chefe da Secretaria de
8 Marshall McLuhan. Os meios de comunicação como extensões do homem. Trad. Décio Direitos Humanos da Presidência da República, Maria do Rosário, na ocasião da transmissão
Pignatari. São Paulo: Cultrix, s/d. de cargo da secretaria” (Brasília, 3 de janeiro de 2011).

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em que é formulado o programa da autorrepresentação: “[...] criar condi- cinematográfica do romance –, apimenta as apostas em torno do motivo da
ções para que os presos – como grupo social sintoma, no contexto do tra- ética da representação.
balho do Grupo Informação Prisão, no qual ambos estiveram envolvidos Reza a biografia de MV Bill que ele nunca deixou a Cidade de Deus,
– pudessem falar por si mesmos”.10 ao contrário de Paulo Lins. O rapper permanece envolvido ativamente em
Os sujeitos auto- ou i-mediatamente constituídos não pedem per- um grande número de atividades comunitárias, relacionadas ou não com a
missão para falar; sua fala não é encorajada ou facilitada pelo intelectual música, com crianças e adultos na Central Única das Favelas (Cufa), que vê
bem-intencionado e desinteressado, mas sempre “interessado”. Eles deixam o hip-hop como uma máquina de guerra e ferramenta didática, que visa a
de depender da interferência desse tradutor ou mediador científico, que produzir sujeitos favelados sempre que pode e da maneira como pode. A
defendia os seus direitos e a eles como figuras da carência, a serem “inte- competição entre os dois marca a instalação da política de inclusão em larga
gradas”, nos termos de Castel. Esses sujeitos simplesmente tomam para si a escala, que prevê sua generalização em um ativismo cultural e requer o envol-
oportunidade de falar e representar a si mesmos. O problema apresentado vimento comunitarista e a manutenção identitária nas bases locais. O interes-
aqui parece atualizar uma já velha discussão da enunciação subalterna, que sante, evidentemente, é que o romance de Paulo Lins, bem como a carreira
definiu o programa do indiano “Grupo de estudos subalternos”, formulado modelar de seu autor, é que inaugura na literatura, como veremos, o filão de
celebremente por Gayatri Spivak no ensaio “Pode o subalterno falar?”. O uma narrativa de “dentro”, ao transformar um informante de uma pesquisa
subalterno, de fato, não fala; ele é constitutivamente incapaz de falar, já que etnográfica em narrador de romance que fala sobre a realidade que vive, com
é silenciado pelo aparelho institucional que permite sua voz até quando a qual convive e sobre a qual informava ao discurso antropológico.11
defende seu direito de fala, na verdade, falando em seu lugar, numa forma
de ventriloquismo. Para Spivak, a ideia de uma fala subalterna não mediada ***
é ao mesmo tempo uma ingenuidade teórica, que ela imputa aos mesmos A novidade do romance de Paulo Lins na literatura brasileira consiste
Foucault e Deleuze, com quem debate aqui, um desejo de uma fundamen- em colocar a literatura, de certo modo, contra a antropologia, apropriando-
tação ontológica da enunciação que inexiste, e um enunciado do próprio se dos recursos desta última, associando-se a ela a fim de infiltrar, invadir
aparelho enunciativo, expressando de forma maciça sua má consciência. e estabelecer, dentro do patrimônio antropológico, a propriedade literária
Em nosso exemplo, MV Bill está agindo precisamente como uma espé- daqueles que falam da e sobre realidades a que estão existencialmente liga-
cie de mediador “de dentro”, que permite a escuta do áudio e vídeo diretos, dos. Esta apropriação “devida”, no entanto, vale para o livro, mas não valerá
não mediados, dos meninos que entrevista e retrata. Ele funciona como para o filme. O lançamento em 2002 de Cidade de Deus, dirigido por Fer-
um “intelectual orgânico” gramsciano, dando-nos um acesso privilegiado nando Meirelles e codirigido por Kátia Lund, adaptação do romance homô-
à sua realidade. MV Bill torna-se, assim, um exemplo ou modelo ideal de nimo, escrito pelo antigo morador do conjunto habitacional da zona oeste
inclusão a ser imitado. A inclusão é essencialmente modelizante: trata-se do Rio, desencadeou as contradições que estruturavam o romance, mas que
de produzir exemplos positivos que incentivem a autoestima de excluídos permaneciam adormecidas, virtualmente suturadas, no texto escrito.
que são, dessa forma, impulsionados a se “salvar”, segundo o modelo que O romance modifica radicalmente o paradigma da representação
discuti no Capítulo 7, “Sabotage e a soberania”. A competição com o per- subalterna no Brasil, ao representar – de uma forma inaugural nas letras
curso também exemplar de Paulo Lins, autor de Cidade de Deus (1997) – e brasileiras – a visão da pobreza, de dentro. A novidade do livro está, em
que rendera uma polêmica importante entre os dois, atual e ex-morador primeiro lugar, ligada precisamente ao mesmo paradigma da autorização
de Cidade de Deus, como veremos, quando do lançamento da adaptação experiencial do incluído que descrevemos no caso de MV Bill, de que este é

11 Ver, a propósito, a resenha de Roberto Schwarz sobre o livro Cidade de Deus em Sequências
10 Michel Foucault. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. 15. ed. Rio de Janeiro: Graal, brasileiras (São Paulo: Companhia das Letras, 1999), que aponta precisamente essa caracte-
2000. p. 70. rística do relato.

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uma resultante direta. O livro abrirá o campo para possibilidades vocacio- cialmente nas transcrições de entrevistas que conduzira e que formatara em
nais como as de Ferréz, da literatura marginal, e da Cooperifa de Sérgio Vaz, relatórios periódicos, infinitamente reescritos e modificados. O resultado
todas elas se ligando à afirmação de um ponto de vista “de dentro”, ou seja, novelístico foi publicado em 1997 pela Companhia das Letras, com os aus-
a um narrador que escreve ou poetiza a vivência da favela ou comunidade pícios do crítico literário Roberto Schwarz, amigo de Zaluar e seu colega,
não a partir da perspectiva exterior de um especialista, um antropólogo, na época, da Unicamp. O personagem Buscapé, o fotógrafo que escapou de
jornalista, assistente social, como tradicionalmente se fez no Brasil, mas ser engolido pelo narcotráfico – baseado em José Wilson dos Santos, outro
como alguém que ali morou de fato muitos anos, dono portanto de uma morador de Cidade de Deus, que trabalha hoje em dia como fotógrafo pro-
experiência autêntica da realidade que narra, e que o autoriza a falar dela. fissional – é um duplo do autor. Com Paulo Lins, a literatura brasileira pro-
Uma segunda novidade é o seu modo de produção. O livro inaugura um vou ser uma poderosa prática subjetivante, capaz de “salvá-lo” do enredo
filão na literatura brasileira, um novo modelo de colaboração entre litera- determinista de pobre morador de Cidade de Deus, que definia, por outro
tura e ciências sociais, incluindo uma nova proposta de autoria marcada por lado, a carreira de todos os personagens da saga que narrava, como destino
“redes de cooperação”, para usar a expressão de Howard Becker,12 ou seja, por de exceção. O narrador de fato não é mais um antropólogo, mas apropria-se
formas autorais coletivas ou vazadas por coletividades que alteram substan- da pesquisa antropológica de Alba Zaluar. Mais importante é a modificação
cialmente a obra final, modificando a matriz de sua relação com o real de que substancial da relação tradicional entre as ciências sociais e a literatura: a
falam e que representam. Formas de autoria coletiva usuais, por exemplo, antropologia autoriza a enunciação “de fora”, chancelando a enunciação do
no cinema, ou na performance musical, e bem menos comuns na literatura. narrador “de dentro”, não mais falando por ele, portanto, não mais o repre-
Cidade de Deus foi concebido durante o período de oito (ou nove) anos sentando, segundo uma tradição centenária da mimésis artística brasileira,
em que Paulo Lins trabalhou como assistente na pesquisa antropológica mas deixando-o falar, ele próprio, em seu próprio nome.
pioneira sobre violência urbana, “Crime e criminalidade no Rio de Janeiro”, Ora, em alguma medida, a costura colaborativa constitutiva da obra
conduzida por Alba Zaluar nos anos 1980, na Cidade de Deus. Ele viveu no literária Cidade de Deus, frágil mas eficaz, se rasgou por ocasião do lança-
bairro de 1966 a 1994 e teve condições de fato de deixá-lo por causa de seu mento do filme, configurando uma disputa de competências, em que os
trabalho como escritor. A história de sua vida é a de uma inclusão com final diversos campos envolvidos em sua fatura foram obrigados a especificar
feliz. Alba Zaluar conta a sua própria versão da colaboração: quando come- o quinhão que lhes cabia no produto final, em um território conflituoso –
çou o trabalho de campo, em 1980, ela reparou rapidamente que o abismo réplica simbólica, por uma necessidade e ironia que tentaremos explicar, da
entre a acadêmica branca de classe média e os “nativos” que entrevistava própria zona de guerra da realidade representada pela obra.
era tão vasto que havia filtragem substancial da informação, tornando o seu Pelo menos duas polêmicas ocorreram após o lançamento do filme.
trabalho de campo completamente impossível. A fim de solucionar o pro- Ambas galvanizaram alianças e antagonismos em campos diversos, demons-
blema, em 1984, na segunda pesquisa que conduziu no mesmo local, con- trando, por sua multiplicação, que se tocava de fato ali – nos dois casos – em
tratou com verba da Fapesp quatro assistentes, dentre os quais Paulo Lins.
um nó importante do problema, ou da “novidade” que o filme apresentava.
Paulo demonstrou ser logo de cara um entrevistador de talento. Zaluar
Ambas se situam em uma interface entre ética e estética e repousam sobre
aconselhou-o então a começar a trabalhar em um romance, em parte com o
uma oposição entre pesquisa acadêmica e mercado, consistindo em parte
propósito de ampliar o alcance dos achados que a pesquisa vinha revelando,
em uma intervenção universitária no mercado das imagens. A primeira, em
que permaneceriam restritos a um grupo pequeno de acadêmicos se per-
ordem cronológica, foi a provocação da professora da Escola de Comunica-
manecessem fechados na árida linguagem acadêmica. Paulo seguiu o con-
ção da Universidade Federal do Rio de Janeiro Ivana Bentes, expandindo e
selho e se sustentou com bolsas conseguidas por ela ao longo de quase todo
atualizando, a propósito de Cidade de Deus e das novas formas de estetiza-
o período que levou para escrever o romance. Ele baseou o seu trabalho ini-
ção da violência na cultura audiovisual contemporânea, o diagnóstico sobre
12 Howard Becker. Art Worlds. Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1982, p. 1. a “cosmética da fome” que fizera a propósito dos filmes da Retomada do

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cinema brasileiro após a extinção da Embrafilme (1990), em 2001. Em um novo estágio do processo que se iniciara então, com o 5 x Pacificação (2012),
artigo publicado no Jornal do Brasil, Ivana Bentes identificara um retorno produzido por Renata Almeida Magalhães e pelo mesmo Cacá Diegues,
dos “territórios de fronteiras e fraturas sociais” caros à filmografia cinema- agora sobre o Rio de Janeiro do tempo das UPPs (Unidade de Polícia Pacifi-
novista dos anos 1960 – o sertão e a favela – em filmes recentes, como A cadora), demonstrando a eficácia e a prevalência do modelo. A abordagem
guerra de Canudos, de Sérgio Rezende, Central do Brasil, de Walter Salles, simpática, mas “de fora”, objetivante, do tema, em 1961, é repetida agora em
ou Orfeu, de Cacá Diegues, nos quais os territórios do sertão e da favela de outra chave, por narradores “de dentro”, representando-se a si próprios e suas
Glauber Rocha e de Nelson Pereira dos Santos pareciam retornar. comunidades. Perfaz-se, desta maneira, um ciclo artístico do cinema brasi-
Mas retornavam de forma profundamente alterada: o que constituía, leiro recente: à referência estética do cinema novo é agregada a novidade
no Cinema Novo, uma maneira consequente e ética de mostrar a dor e a enunciativa do novo cinema, preenchendo uma lacuna no projeto anterior,
revolta produzidas na miséria se transformara em uma representação con- posteriormente percebida, mas devidamente suturada pelo novo filme.
sumível da pobreza, exibindo esses mesmos territórios como um “jardim Uma segunda polêmica veiculada pelo site da ONG Viva favela13 se
ou museu exótico”, “glamourizado” da pobreza. O revival temático exoti- iniciou em janeiro de 2003 com a acusação de que o filme estereotipava
zante se opõe termo a termo ao programa cinemanovista: a imagem crua os moradores do conjunto habitacional Cidade de Deus, de que extraíra o
e calcinada do sertão como cenário intolerável transcendido pelo mito e nome, como criminosos e traficantes, confrontando o filme com o referente
pela utopia, de Glauber ou Nelson Pereira dos Santos, é substituída por que se propunha a representar. O alarme foi lançado pelo mesmo rapper e
uma miséria representada realisticamente e sentimental em sua repetição morador de Cidade de Deus, MV Bill, que em 2006 lançaria Falcões – meni-
recente. Em suma, concluía ela, ao invés de uma “Estética da fome”, refe- nos do tráfico: os moradores da favela que batiza o filme não gostaram do
rência ao famoso texto programático de Glauber Rocha de 1965, teríamos filme, não se viram representados nele. Além do mais, o filme arrecadaria
agora algo como uma “cosmética da fome”. No ano seguinte, logo após lucros significativos no Brasil e fora dele, e não havia trazido um centavo
a exibição de Cidade de Deus, Ivana retoma os mesmos argumentos em para a favela que lhe dera nome.
artigo para o Estado de São Paulo. Em setembro do mesmo ano, o crítico Alba Zaluar, a antropóloga que está na origem da pesquisa na qual
do mesmo jornal, Luiz Carlos Merten, organiza um ciclo Cosmética versus o filme e o livro se baseavam, levantou um número de questões ligadas à
estética, no espaço Unibanco de São Paulo, com a presença dos dois direto- ética etnográfica, lembrando a dívida do livro e do filme para com um tra-
res do filme, Ivana Bentes, críticos de cinema, diretores e produtores, o que balho de campo que teriam aparentemente querido esquecer. Mais impor-
conferiu uma ressonância midiática ao debate. tante, ela saiu a público em defesa de Ailton Costa Bittencourt, o Ailton
Ora, o que transcorrera entretempo, entre o cinema dos anos 1960 e os Batata, protagonista e único sobrevivente da guerra do tráfico dos anos
dos anos 2000, e não fora detectado por Ivana Bentes, fora precisamente a 1980, aliado de Mané Galinha e inimigo de Zé Pequeno, e que Paulo Lins
emergência da episteme da inclusão, modificando radicalmente o horizonte transpusera no romance como Sandro Cenoura, interpretado no filme por
da política ao introduzir o problema da enunciação particular da pobreza, Matheus Nachtergaele, trocando a batata pela cenoura, motivo que Zaluar
que não deve mais ser formalizada pela pena autoral de um grande diretor habilmente não deixará de satirizar em seus comentários. Batata perma-
em um veículo estético potente, mas remeter às falas que apresenta e às quais necera 16 anos na prisão, lera o livro e se reconhecera nele, assim como
empresta autoridade. Sintomático da repetição é 5 x favela – agora por nós a outros personagens reais, alguns que tiveram seus nomes alterados ou
mesmos (2010), que reúne cinco curta-metragens dirigidos por moradores cujos nomes haviam permanecido os mesmos.14 Zaluar intermediou a con-
de comunidades do Rio e São Paulo. O projeto sintetiza o procedimento
autorreflexivo (“nós mesmos”), circunscrevendo a passagem de objeto a 13 www.vivafavela.com.br
14 A opção de Paulo Lins nas primeiras edições do livro fora criar nomes ficcionais para os
sujeito-objetos da representação da favela, ao repetir o modelo do clássico personagens baseados em pessoas vivas, como no caso de Aílton Batata, e manter os mesmos
cinemanovista 5 x favela, de 1961. Mais perto de nós, o mote se repetiu, num nomes daqueles baseados em pessoas mortas. Já na segunda edição, posterior ao filme e a

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tratação de um advogado, e Ailton Batata processou por danos morais e subprodutos a ela ligados. Assim, a crua perspectiva sobre a violência
materiais todas as empresas ligadas à produção do livro e do filme: a O2 urbana do livro Cidade de Deus foi reconfigurada: o drama passou a ser o
filmes, a Lumière, a Videofilmes Produções Artísticas Ltda, a Globo Filmes da promoção da inclusão dramática pela via da exceção, em programa con-
e a Companhia das Letras. Além disso, Zaluar questionava Paulo Lins e a junto em que colaboram as artes e as ONGs. Na prática, o drama da inclusão
adaptação do filme a respeito do status ficcional do filme e do livro, e sobre – tenuemente presente no livro, mas essencial no destino de Paulo Lins – é
o problema da responsabilidade da pesquisa e da ficção, instalando uma replicado no personagem de Buscapé, com a vantagem, na transposição
disputa de jurisdição entre a antropologia e a literatura/cinema. para a arte visual, de alcançar um harmônico metalinguístico na evocação
O grosso dessas questões já poderiam ser colocadas a respeito do indireta do cinema, inscrita na fotografia.
livro; no entanto, foi com o lançamento do filme, e a mudança de mídia, Ao encorpar o coro dos descontentes com o filme Cidade de deus, Alba
ou seja, com a expansão geométrica do universo de seu público, de custos e Zaluar aponta, em primeiro lugar, equívocos da ordem da veracidade do
de renda, que o problema assumiu proporções importantes. Assim, apenas dado etnográfico. Um exemplo: a questão da idade dos meninos envolvidos
12.000 exemplares do livro haviam sido vendidos até 2003, enquanto pos- no tráfico. Segundo ela, nenhum menino integrava o grupo de traficantes,
sivelmente centenas de milhares de pessoas viram o filme no Brasil apenas como integram hoje em dia – este é precisamente o tema de Falcão – meni-
no primeiro ano e fora dele.15 O filme foi distribuído internacionalmente nos do tráfico, conforme veremos adiante. Segundo ela, a representação do
pela Miramax, deslanchando a carreira de Fernando Meirelles como dire- filme (e não do romance) dos meninos como traficantes na guerra do trá-
tor de Hollywood em seu segundo longa de ficção, imprimindo um rumo fico ocorrida entre 1978 e 1981 era uma superposição anacrônica do pas-
diferente em uma carreira iniciada no cinema publicitário. Além disso, o sado sobre o presente. Paulo Lins discorda com veemência.
filme gerou subprodutos, abrindo um filão de grande eficácia comercial. A disputa opõe um imperativo de verossimilhança cinematográfica e
Dentre os subprodutos, há a série da TV Globo Cidade dos homens (quatro literária a uma responsabilidade ética com relação ao objeto histórico ou
temporadas, 19 episódios, 22 milhões de espectadores em 30 países) e um antropológico, de um lado, e uma defesa às vezes desajeitada da singulari-
longa-metragem homônimo (2007), dirigido por Paulo Morelli, da mesma dade criativa da literatura em uma obra que claramente provém de um tra-
produtora de Meirelles. balho de campo antropológico, de outro. Paulo Lins defensivamente termina
Significativamente, entre o livro, o filme e seus subprodutos ocorreu colocando a questão em termos de agência literária e liberdade criativa, pare-
uma modificação estrutural: a criação do personagem a ser incluído e o cendo oprimido pela autoridade antropológica de sua antiga mentora: ele
drama da inclusão social. De fato, o personagem Buscapé, que no livro tem não precisa ouvir de ninguém o que pode ou não pode escrever, recorrendo a
um papel secundário, integrando a galeria virtualmente enciclopédica e uma noção de “licença poética” e assim negligenciando precisamente a novi-
serial de personagens, passa a estruturar o filme, narrando-o em off, confi- dade do romance que escrevera. Por outro lado, Alba Zaluar nega absoluta-
gurando um destino de exceção e fugindo da regra determinista e inflexível mente o trabalho formal da literatura e projeta-o diretamente ao referente,
da vida bandida ao buscar os caminhos da integração social pelo trabalho confundindo o romance com as entrevistas que Paulo Lins transcrevera e os
artístico como fotógrafo. Como lembra Ismail Xavier, manifesta-se aqui, relatórios que redigira como seu assistente e bolsista de diversos órgãos de
em filmes da mesma época, a importância da voz: os filmes são enunciados fomento. Não se pode deixar de notar um estranho elemento de propriedade
em primeira pessoa, ressaltando a importância do paradigma enunciativo. autoral e intelectual em jogo de sua parte, que inclui até mesmo a sugestão de
Ora, é esse personagem e o drama da inclusão que o filme virtualmente que ela deveria receber honorários dos produtores do filme por haver inspi-
inventa, e que será replicado na série Cidade dos homens e em tantos outros rado a obra em que o filme foi baseado. Ela demonstrava agora, em retros-
pecto – depois que a adaptação do romance à tela grande havia sido lançada,
essa polêmica, além de um enxugamento do livro como um todo, ele padronizou o procedi-
mento, ficcionalizando, indiferentemente, todos os nomes de vivos e de mortos. subindo o patamar dos ganhos – sérias dúvidas sobre o projeto como um
15 3,3 milhões até 2009, segundo o site da produtora 02 filmes. todo. Por exemplo, sobre o título do romance, para o qual ela escrevera a ore-

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lha e que apoiara em toda a sua feitura: que deveria ter sido mantido como produzindo uma forma equívoca de autoria e uma dupla inscrição de pro-
nas primeiras versões, Tempo de pipa, a fim de dissociá-lo da Cidade de Deus priedade intelectual. No caso da contraparte brasileira, por outro lado, a
real, sublinhando assim o seu caráter ficcional. mediação é externa, mas não menos essencial, e o colaborador funciona
O resultado de seus esforços, por outro lado, foi que Ailton Batata, como editor, mentor, e o produto final consolida uma forma mais tradicio-
que havia saído da prisão Plácido de Carvalho em liberdade condicional nal de autoria ou assinatura.
em 2005, pôde alugar uma casa com os $5.000,00 reais conseguidos, na Ambas as formas, no entanto – e esse é o cerne da questão – veem-
época, num acordo extrajudicial com a Companhia das Letras. Batata se como uma encarnação não mediada da subjetividade: no testemunho
eventualmente perdeu a ação por danos morais e materiais, com a sentença hispano-americano precisamente porque ele se desvencilha da media-
do juiz Wilson Marcelo Koslowski Junior concluindo que as semelhanças ção do intelectual como porta-voz tradicional; e no caso do autor brasi-
entre Sandro Cenoura e a vida de Batata eram “acidentais” e insuficien- leiro, porque ele foi capaz de incorporar o ascetismo silencioso da escrita
tes para comprovar serem a mesma pessoa. Batata passou a trabalhar para em prática. O páthos do gestor ou do facilitador é, no entanto, o oposto:
uma ONG encarregada da ressocialização de presos, e a viver de seu próprio autossacrifício (“despersonalização”, “supresión del yo...”) do gestor e trans-
salário. Com o resultado da visibilidade trazida pelo filme sobre o aban- formação no veículo ou mídia da voz desencarnada do testemunho his-
dono virtual pelo Estado de Cidade de Deus e das comunidades urbanas pano-americano; e na contraparte brasileira a sistemática afirmação da
pobres em geral, um certo número de projetos sociais foram concebidos propriedade intelectual sobre a obra literária e o escritor, a coleta cíclica
e um grande número implementados, incluindo um ginásio, um estúdio dos dividendos da antropologia como fonte e apoio da obra, culminando
multimídia, uma fábrica de materiais esportivos, etc. com o lançamento do filme, em uma verdadeira disputa de notoriedade e
Paulo Lins tem vivido desde a publicação do romance como roteirista demanda por royalties como fonte do projeto.
de cinema, conferencista e comentarista de televisão, após trabalhar na sua O cerne tanto de Cidade de Deus, o romance e o filme, quanto do docu-
adaptação para o cinema e como consultor para as suas muitas traduções. mentário Falcão é uma certa estratégia de enunciação. Tanto o romance
Ele republicou o romance em 2002, em uma versão reduzida que enxuga quanto o documentário reformatam a técnica tradicional da entrevista
a linguagem do livro, tornando-o mais econômico e traduzível para outras antropológica, e a colocam na obra de arte. Isso é verdade também, por
línguas. A reprodução, adaptação e serialização (múltiplas edições, tradu- uma razão diferente, no caso do filme Cidade de Deus, em grande medida
ções, adaptação para o cinema, transformação em uma série de TV), com- pela contribuição de Kátia Lund e seus workshops com meninos pobres e
binados ao tempo transcorrido, o fizeram reformatar a obra original a par- não atores e pelo trabalho do Nós do Morro de Guti Fraga com moradores
tir de sua recepção. Em 2012, Paulo concluiu o seu segundo romance, Desde de favelas, de onde saíram alguns dos atores do filme, e uma técnica de
que o samba é samba, superando a síndrome dos autores de um romance só. improvisação da fala que significava, de fato, recontar os diálogos escri-
tos ao invés de lê-los ou aprendê-los de cor. Dessa forma, o filme pôde
***
construir uma representação verossímil da pobreza, nunca vista no cinema
Tanto Cidade de Deus, o romance, como Falcão – meninos do tráfico, brasileiro, especialmente nas últimas décadas, inteiramente tomadas por
fornecem uma visão “de dentro” de fenômenos sociais tradicionalmente uma encenação estereotipada das classes baixas, originadas das técnicas de
monopolizados por pessoas “que não vivem essa realidade”. A diferença atores das novelas da Globo.
entre eles se situa precisamente no papel de mediação de um especialista Tentemos sistematizar esse conceito de obra em relação ao que me
ser ou bem interno ou externo à obra. No caso do testemunho hispano-a- concerne especificamente aqui, a questão da inclusão. O que vemos aqui
mericano, como vimos no capítulo 2, o gestor (esse é o termo de Miguel é um novo tipo de obra de arte no Brasil, que altera profundamente o con-
Barnet), o cientista social que funciona como o editor, transcritor e escriba, ceito tradicional de obra autônoma, inserindo-se em um processo de pro-
que encarna a voz na letra silenciosa, é estruturalmente interno à obra, dução que é inseparável do pacote de subprodutos que engendra da série

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de efeitos que produz, programa e aos quais reage. O texto escrito funciona que o autor tradicionalmente objetivava, interiorizava ou mediava – agora
como um produto em uma cadeia virtualmente infinita de múltiplos pro- retorna para “assombrar” o artista, reclamando o seu quinhão de visibili-
dutos interligados, de natureza textual, imagética, legal, industrial, mobili- dade e lucro, às vezes usando para este fim as opções legais ao seu dispor.
zando assim, produzindo e transformando as subjetividades que não são A lei fornece um tipo de direito individual coextensivo à obra, absor-
externas à rede em que são inseridas. Nele são integrados conhecimentos vendo-a e sendo absorvida por ela, estruturando a linguagem artística da
diferentes e frequentemente opostos, que negociam a sua parte de prestígio, denúncia, chamando a atenção para injustiças, que podem ser efetivas, ao
autoridade e autoria sobre o trabalho que criam. estabelecer precedentes importantes em questões de marginalidade social
O sociólogo Howard Becker batizou isso de “redes de cooperação”, vol- como as que estamos lidando aqui. Mudanças efetuadas na realidade social
tadas para a produção da obra de arte. Esse tipo de construção da obra não através de novas políticas que resultaram da visibilidade dada a uma certa
é certamente uma novidade no Brasil (como em todo lugar, as indústrias agenda por uma obra de arte comportam claramente uma dívida para com a
televisivas e cinematográficas vêm operando dessa forma há anos), mas o formulação jurídica de justiça social, e devem ser pensadas como um efeito
status especificamente ambíguo, literário, da obra em questão, a combina- trazido pela obra. Em alguns casos a lei pode fornecer a linguagem estrita
ção de faixas de sujeitos envolvidos na cooperação, o contexto no qual isso da obra de arte.17 É o caso, por exemplo, do testemunho prisional canônico
se dá e ao que tenta responder, e os resultados visados, são definitivamente brasileiro, André du rap (Do massacre do Carandiru), escrito pelo jornalista
algo novo e merecedor de atenção. Se tomarmos mais uma vez a polêmica Bruno Zeni e pelo rapper, na época preso, André du rap, um sobrevivente
ocorrida na sequência do lançamento de Cidade de Deus, a troca às vezes do massacre do Carandiru de 1992. A ideia do testemunho, como vimos no
áspera entre Paulo Lins, Alba Zaluar, MV Bill, Fernando Meirelles, Kátia Capítulo 3, surgiu no julgamento do Coronel Ubiratan Guimarães – o poli-
Lund, editores, mediados por advogados, amigos, etc., com mensagens cial militar encarregado da operação, responsável direto pelo massacre –,
postadas no site da ONG Viva Rio, dramatizam a natureza conflituosa que onde André du rap serviu como testemunha da acusação. O testemunho
está no centro desse tipo de obra contemporânea – estruturada em torno de literário é assim remetido de volta às suas raízes históricas, e empresta a sua
subjetividades múltiplas mobilizadas em uma cooperação pacífica ou beli- forma do testemunho judicial.18
cosa, frequentemente as duas, gerando reciprocidades positivas ou negati- Generalizado como procedimento, é enquanto testemunho que as
vas, como poderíamos dizer em jargão maussiano.16 obras de arte constituem subjetividades, incluindo indivíduos tradicional-
A polêmica encena um litígio sobre a jurisdição do real, em que pelo mente excluídos e marginalizados e as comunidades a que pertencem, tra-
menos seis mediações estão em conflito – literatura, cinema, antropologia, zendo-os para o primeiro plano e fazendo-os falar, escrever ou trabalhar.
militância cultural, os moradores comuns de Cidade de Deus e a política
(os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, ***
por exemplo, agilmente se apropriaram do capital político que uma obra Detenhamo-nos agora em mais detalhe sobre Falcão – meninos do
como essa contém, na première do filme em Brasília). A mediação polêmica tráfico. O documentário desencadeou instantaneamente um escândalo
ou legal entre construções de realidade diferentes e contraditórias é sem de proporções nacionais sobre as imagens nele mostradas, iniciando uma
dúvida algo bastante comum nos Estados Unidos, mas menos comum no série de discussões entre especialistas sobre a violência urbana no Brasil e
Brasil, e indica sem dúvida uma gestão legal cada vez mais importante das o destino de crianças de rua, e reafirmou a necessidade de repensar as prá-
sociedades em geral. Mais importante do que isso, no entanto, nesse tipo
17 As letras de hip-hop brasileiro recorrem frequentemente à linguagem legal. Tribunal MC é
de obra, é o fato de que o que tradicionalmente era absorvido como fundo, o nome de um famoso grupo de hip-hop paulista. “Júri Racional” é o título de umas das
tema ou conteúdo – i.e., as comunidades, realidades sociais, sujeitos, vozes canções dos Racionais MCs do cd Raio-X do Brasil, que literalmente submete mulheres que se
relacionam com rapazes brancos ricos a uma forma de julgamento.
16 Ver Marcel Mauss, “Ensaio sobre a dádiva”; Alba Zaluar, Integração Perversa: pobreza e tráfico 18 Sobre o testemunho como forma jurídica ver A verdade e a formas jurídicas, de Michel Fou-
de drogas (2004). cault. Sobre testemunho, ver, dentre outros, Testimony, de Shoshana Felman e Dori Laub.

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ticas nacionais de polícia e segurança. Surpreende de antemão a razão do são por Organização Não-Governamental, rigor das ciências sociais, papo
escândalo sobre as imagens da realidade e não sobre a realidade que repre- hard hip-hop, crianças de rua morrendo feito moscas e guerras de drogas
sentam. A TV produz acontecimentos instantâneos que adquirem existên- sistêmicas é difícil de imaginar, mas é precisamente o que está em jogo
cia imediata após a exibição, e que pareciam nunca ter existido antes. O aqui. O ativismo ONG é estritamente pragmático nesse sentido e não vê
documentário de 58 minutos foi dividido em três segmentos interrompidos nada de necessariamente errado com os elementos “impuros” misturados
por comerciais e apresentado por entrevistas com MV Bill, conduzidas pela com os seus objetivos construtivos e respeitáveis. Os autores estão bastante
entrevistadora do Fantástico. Essa exibição foi seguida, na mesma semana, conscientes do complexo dispositivo cooptativo em jogo na imagem televi-
pelo lançamento do livro homônimo, com relatos pessoais dos dois autores, siva, mas pensam que vale a pena, como maneira eficiente para expor a sua
narrando o pano de fundo das filmagens. Uma série de outras filmagens agenda. A inclusão política é vista como envolvendo necessariamente uma
foi agendada também para as semanas seguintes, incluindo uma particu- negociação, e como tal é necessariamente impura. Mas por outro lado –
larmente polêmica na butique de luxo Daslu, em São Paulo, um símbolo retrucariam eles, quem sabe – o que é mais impuro do que ser um soldado
do privilégio da classe alta brasileira, cuja dona foi mais tarde acusada de ou falcão de 16 anos trabalhando em uma facção de tráfico militarizado?
fraude do imposto de renda. O lançamento de uma versão longa do filme Se a recepção de Cidade de Deus foi polêmica, a reação a Falcão foi quase
foi marcado para o dia 12 de outubro, dia da criança. que unanimemente positiva. É precisamente essa unanimidade que deve ser
O documentário consistia de entrevistas com 17 sentinelas (“falcões”) questionada. A boa consciência é o que o documentário parece ter universal-
na estrutura do tráfico do varejo de maconha e cocaína em diversas cidades mente inspirado. Para início de conversa, o Fantástico mostrou logo depois
brasileiras, apresentados com imagens digitalmente tarjadas com a finali- da exibição um certo número de figuras públicas bastante conhecidas, “for-
dade de proteger-lhes a identidade, armados com poderosos revólveres ou madores de opinião” – praticamente todos diretamente ou indiretamente
metralhadoras, falando de suas vidas, seu futuro, relação com o trabalho, ligados à Globo, com exceção do diretor de cinema Cacá Diegues –, que
com as drogas, etc. Ele descreve com precisão sociológica todos os está- enunciaram dramaticamente a sua surpresa diante do que o documentário
gios de uma linha de distribuição altamente organizada – mostrando de mostrara. A surpresa ao mesmo tempo autêntica e encenada soa estranha
maneira exaustiva a cultura da morte fria e cercada de indiferença –, entre- aos nossos ouvidos, e o furo de reportagem de toda a estratégia marqueteira
vista as mães de traficantes adultos ou meninos envolvidos na operação e produziu desconforto: ninguém pode honestamente afirmar que as imagens
faz um diagnóstico rápido: os pais de família são um grupo de risco nas mostradas no documentário ou a realidade que representam não havia sido
favelas hoje em dia, com as famílias sendo mantidas frequentemente por vista antes, ou pelo menos que não se trata de algo amplamente conhecido.
mães solteiras ou viúvas, nesse cenário quase genocida em que os homens O que de fato surpreendeu as pessoas, em minha opinião, é outra coisa: eles
quase sempre são mortos e seus filhos têm uma expectativa de vida extre- se surpreenderam com a sua própria reação diante das imagens que viram,
mamente curta. A versão editada pela TV Globo é baseada em 217 horas de pela primeira vez se permitindo ver. Pela primeira vez sentiram pena dos
material filmado por MV Bill e Celso Athayde nos intervalos de seus tours meninos, todos humanos, afinal de contas, e não apenas uma massa anônima
musicais pelo Brasil, entre 1998 e 2003. O filme teve a sua exibição anun- de ladrões em potencial que roubariam seus carros nos sinais de trânsito. A
ciada em 2003, tendo sido cancelada por razões misteriosas, ao que tudo surpresa encenada era obviamente um elemento importante na estratégia de
indica por causa de ameaças de morte recebidas pelos autores de chefes do marketing da Globo, afirmando a fórmula posta em operação nos últimos
tráfico que temiam a exposição do seu negócio no documentário. anos de envolver-se em projetos de cidadania, mitigando a sua posição mais
A campanha de lançamento do documentário demonstra uma com- tradicional de defesa de tratamento policial mais rigoroso como medida para
binação curiosa de sincero ativismo ONG com políticas de marketing a diminuição do tráfico de drogas nas favelas.19
agressivo, que estão no cerne do projeto de Falcão. A fusão entre moda de 19 O retorno dos especialistas, conforme registrado nos dias que se seguiram nos jornais O
butique estilo Daslu, marketing televisivo orquestrado, política de inclu- Globo, ou pelo site da CUFA, foi geralmente positivo. Eles unanimemente saudaram a ten-

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Já em 2003, quando o documentário foi concluído, apenas um dos 17 ciado por ela em uma pequena vinheta no Fantástico, duas semanas após
meninos que apareciam no filme estava vivo – e mesmo ele só sobrevivera a exibição do Falcão, é “dar voz à periferia”. Se Falcão mostrava uma visão
porque estava na prisão, precisamente como Aiton Batata, e a despeito da particularmente abissal do envolvimento de crianças nas guerras do narco-
situação de risco de vida e extrema precariedade das prisões brasileiras. tráfico, situadas no espaço múltiplo e difuso da periferia urbana nacional,
Ele tinha 17 anos na época do filme, e pode ser visto no documentário ao onde elas são fadadas a morrer em breve, e eram mostradas como vítimas,
expressar o seu desejo de deixar o tráfico para se tornar palhaço de circo. A Central da periferia vai mostrar o reverso: uma imagem alegre da periferia
versão em livro do filme é dedicada a ele: “Esse livro é dedicado ao jovem com uma cultura vívida, a cultura de que os mesmos garotos gostam, e
Força [o apelido de Sergio Cláudio de Oliveira Teixeira] – o único sobrevi- que gostariam, poderiam e podem produzir eles próprios, se o plano de
vente dos 17 selecionados para o projeto.” Na exibição do filme no auditório inclusão, embutido no programa, funcionar. Os criadores do programa se
da Globo, em 30 de março de 2006, o menino – agora um jovem de 21 anos, propunham a localizar e dar visibilidade a manifestações culturais – espe-
ainda na prisão – apareceu e, sob aplausos intensos, foi convidado pelo cialmente musicais – pelo Brasil, ligados a projetos sociais e de cidadania.
empresário Beto Carreiro para ingressar na escola de palhaços no seu circo, Regina Casé anuncia que agora “a periferia não precisa de intermediários”,
em uma cena reminiscente dos shows de TV lacrimogêneos como Ratinho ela pode produzir a sua própria mídia, da mesma forma como os músi-
ou Leão, que todo o dia encenam a realização de desejos em ato para bene- cos da periferia prensam seus próprios CDs e os distribuem inteiramente
fício de grandes audiências. fora da indústria fonográfica oficial. Como mostram alguns dos músicos,
O mecanismo espetacular colocado em cena na campanha de lança- que são extremamente conhecidos em suas comunidades – ou às vezes em
mento aponta para uma estratégia de inclusão posta em jogo pelo docu- várias comunidades – mas que não vendem CDs em uma loja de discos.
mentário, cujo papel de denúncia é posto a serviço de “salvar” – essa é a No entanto, a pergunta que não quer calar é o que Regina Casé que-
palavra utilizada – a maior quantidade possível de meninos de integrar ria de fato dizer com “não precisa de intermediários” em um show na
as macabras e constantemente renovadas estatísticas das 6.000 crianças rede Globo, a maior cadeia televisiva do Brasil (e quinta do mundo). Em
assassinadas envolvidas em tráfico de drogas no Rio, por exemplo, entre suma, dizer que a Globo não é um sistema de mediação é um contras-
1987-2001.20 O documentário e o livro são parte de um esforço estruturado, senso, para dizer o mínimo. O projeto de inclusão expressamente descrito
conduzido por um número de ONGs, como a Afro-reggae ou a CUFA, coor- pelos criadores de Central da periferia tinha por objetivo produzir uma
denadas por Celso Athayde, que organizam uma grande quantidade de estética, um modelo heroico de socialização da pobreza a ser reproduzido.
projetos em várias comunidades pobres no Rio, assim como uma centena Não estou dizendo que esse programa não é interessante ou até desejável,
de outros grupos culturais que emergiram nos últimos 10 anos com uma estou dizendo apenas que a questão precisa ser estudada em profundi-
função semelhante, preenchendo o vácuo deixado pelos projetos sociais dade, e que o programa includente embute nele a apropriação midiática
depois dos anos 1980. da suposta “ligação direta”, imediata, sem intermediários, como estratégia
O documentário gerou um subproduto imediato: o programa men- de produção. O resultado era – como não poderia deixar de ser – mais um
sal de uma hora Central da periferia, ciceroneado por Regina Casé, criado produto televisivo, o que configura literalmente a fusão dos dois modelos,
por ela e pelo antropólogo Hermano Vianna e dirigido por Guel Arraes, em uma mediação da inclusão. Resta saber se essa apropriação da voz pró-
exibido pela mesma TV Globo, um sábado por mês. O seu objetivo, anun- pria não consiste em uma regra da forma-inclusão, que se autoriza na nova
episteme como mídia, em um mercado segmentado de consumidores de
tativa de dar visibilidade ao problema, encorajando discussões em larga escala e de fundo
sobre a necessidade de descriminalizar o comércio varejo de droga ou pelo menos de pensar imagem, a quem agrada a estética pobre da periferia, em um mundo cada
o problema não em termos policiais. Alba Zaluar levantou mais uma vez uma voz dissonante, vez mais periférico.
como já fizera na época do lançamento do filme Cidade de Deus: Falcão estereotipava as fave-
las, e os meninos que nela vivem como traficantes.
20 Segundo a pesquisa de Luke Dodney (2003).

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SACRAMENTO, Paulo. Prisoneiro da grade de ferro de, 2004.
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______. Senhora Liberdade, 2004.
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VALE FERREIRA, Ivan; BARBINI, Tiago e CALDAS, Pedro. Sabotage, 2004.
ZIMBALIST, Jeff e MOCHARY, Matt. Favela Rising (2005).

discografia
FACES DO SUBÚRBIO. Faces do subúrbio, 1998.
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documentos
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INFOPEN . http://portal.mj.gov.br/data/Pages/ MJD 574 E 9 CEITEMIDC 37 B 2 AE-
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Infopen. “População carcerária brasileira (quinquênio 2044-2007). Evolução e
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Brasília.

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impresso sobre papel
pólen soft 80g/m2 (miolo)
na gráfica da editora vozes
para viveiros de castro editora
em junho de 2013.

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