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Memorial do Convento, José Saramago

Giovani T. Kurz

José Saramago experimentou muitos registros literários ao longo do seu período


de formação. Além de livros de poesia, Saramago tem em seu currículo a publicação de
diversas crônicas, de produção dramática e, desde o começo, de alguma crítica literária.
Paralelamente, ele não tem qualquer formação acadêmica tradicional, tendo feito apenas
um curso técnico. Apesar de já ter publicado anos antes, é apenas no fim da década de
1970 que o autor se estabelece com convicção na prosa de ficção, primeiro com Manual
de Pintura e Caligrafia, em 1977, com uma prosa híbrida, quase experimental, e, em
seguida, com Levantado do Chão, em 1980.
O romance Memorial do Convento, de 1982, consolida a posição do grande
romancista que Levantado do Chão já indicava em relação a Saramago. Na obra de 82, o
autor revisita o século 18 ao narrar a construção do convento em Mafra. Unem-se, aqui,
ficção e história, fundem-se de maneira que uma muitas vezes se apropria da outra e torna-
se ela mesma: história-ficção, ficção-história. Assim se dá o fato, que, acontecido ou não,
constrói um pensamento crítico, sensato, sensível e consciente da própria noção de
História. Contudo, e a partir disso, a característica mais marcante do romance aparece
no tensionamento entre vozes e discursos, que se sobrepõem e se contrapõem; a luta
discursiva motivada por diferenças sociais, religiosas, sexuais, culturais e individuais
perpassa o romance de maneira integral. Com voz do rei, por exemplo, a dissonância se
faz pela voz do restante das personagens, nada nobres e sim pobres, de simplicidade
arrebatadora em diversos sentidos, e, ainda assim, escolhidas pelo narrador como as reais
protagonistas do romance. É, inclusive, imprescindível apontar a ironia com que o
romance é narrado; neste caso, pode-se pensar na tensão entre uma História oficial e o
relato das vidas de figuras marginalizadas, ocultas ao olhar macroscópico da História.
Deve-se enfatizar, ainda, o próprio narrador, crítico e irônico, inserido no mesmo tempo
e espaço das personagens e portador de uma voz singular.
Dessa forma, a proposta aqui é olhar para o romance de José Saramago a partir
dos conceitos de Polifonia e de Cronotopo formulados por Bakhtin, uma vez que o
diálogo entre a ficção e a História surge, acima de tudo, como a própria premissa do
projeto de Saramago.
O autor constrói, em Memorial do Convento, um enredo calcado sobre a
ambivalência, sobre os opostos. Porém, antes de contradições ou labirintos retóricos, há
o esclarecimento, a constituição da natureza das personagens.
Para se pensar a Polifonia, em primeiro lugar, deve-se perceber, na leitura do
romance, um “campo de batalha” onde diversas vozes articuladoras de linguagens sociais
distintas movimentam-se de maneira a constituir a originalidade estilística no todo. O
romance, já indica Bakhtin, é primordialmente um discurso constituído, ele próprio, pelo
discurso do Outro, que penetra e é penetrado por diferentes marcas semânticas, sintáticas
e estilísticas, além, claro, da veiculação de uma opinião concreta, uma visão de mundo
que se contrapõe a outras visões de mundo, ali representadas ou não. Em sua Teoria do
Romance, ao falar sobre o gênero, o pensador russo deixa claro que “o prosador
romancista (...) acolhe em sua obra o heterodiscurso e a diversidade de linguagens da
língua literária e não literária, sem enfraquecê-las e até contribuindo para o seu
aprofundamento (pois contribui para a consciência isoladora das linguagens)” (p. 75).
Logo a seguir, ele prossegue, afirmando que “o prosador usa linguagens já povoadas de
intenções sociais alheias e as obriga a servir às suas novas intenções, a servir a um
segundo senhor. Por isso, as intenções do prosador se refratam, e se refratam sob
diferentes ângulos, dependendo do grau de alteridade socioideológica, de encorpadura,
de objetificação das linguagens que refratam o heterodiscurso.” (p.76-77). Bakhtin
conclui com uma observação acerca dos narradores: “o discurso desses narradores é
sempre um discurso do outro (em relação ao discurso direto real ou possível do autor) na
linguagem do outro (em relação àquela variedade de linguagem literária à qual se
contrapõe a linguagem do narrador)” (p. 98).
Ao dirigir os olhos da abordagem ao objeto, percebe-se como a obra de Saramago
se constrói essencialmente sobre expedientes análogos aos apontados por Bakhtin. Há,
em inúmeros instantes, a suspensão dessa voz narrativa, que, apesar de individualizada e
complexa, incorpora ao máximo discursos alheios. No primeiro capítulo, por exemplo,
desenvolve-se a narrativa de D. João e D. Maria Ana, que não conseguem ter filhos. É
esta a fagulha inicial que desencadeia todo o restante do enredo. Já aqui, no princípio, vê-
se a incorporação das vozes de D. João e o frei António de São José, com o consequente
desaparecimento da voz do narrador: “Perguntou el-rei, É verdade o que acaba de dizer-
me, que se eu prometer levantar um convento em Mafra terei filhos, Verdade é, senhor,
porém só se o convento for franciscano, Como sabeis, Sei, não sei como vim a saber, eu
sou apenas a boca de que a verdade se serve para falar, a fé não tem mais que responder,
construa vossa majestade o convento e terá brevemente sucessão, não o construa e Deus
decidirá” (p. 14).
O que se vê no fragmento é um procedimento que se repetirá exponencialmente
ao longo do romance: o desaparecimento da voz do narrador, substituído pelos discursos,
em primeira pessoa, das personagens. Depois da indicação “Perguntou el-rei”, há apenas
as vozes das personagens. Mais à frente na narrativa, vê-se tendências mais acentuadas
de tal procedimento, com contrastes evidentes entre os produtores das vozes que o
romance incorpora. À certa altura, o padre Bartolomeu, Baltasar e Blimunda discutem o
funcionamento da máquina voadora, e o fragmento da conversa aparece da seguinte
maneira: “Que virtude é essa do éter, perguntou Blimunda, É ser parte da virtude geral
que atrai os seres e os corpos, e até as coisas inanimadas, se os libertam do peso da terra,
para o sol, Diga isso por palavras que eu perceba, padre, Para que a máquina se levante
ao ar, é preciso que o sol atraia o âmbar que há-de estar preso nos arames do teto, o qual,
por sua vez, atrairá o éter que teremos introduzido dentro das esferas, o qual, por sua vez,
atrairá os ímanes que estarão por baixo, os quais, por sua vez, atrairão as lamelas de ferro
de que se compõe o cavername da barca, e então subiremos ao ar, com o vento, ou com o
sopro dos foles, se o vento faltar, mas torno a dizer, faltando o éter, falta-nos tudo” (p.
90).
Novamente, aqui, depois da indicação “perguntou Blimunda”, a voz do narrador
se dilui para dar lugar às vozes das próprias personagens. Cabe ressaltar que neste
fragmento do texto, além do diálogo, nota-se sem dificuldade, no discurso do padre, o
jargão técnico, do qual, inclusive, Blimunda reclama. É evidente que o padre Bartolomeu
compreende o funcionamento da máquina, mas também transparece sua escolarização e
seu conhecimento técnico, em oposição à simplicidade de Blimunda e, por extensão, de
Baltasar, que permanece em silêncio.
Já em direção ao final do romance (p. 224), em um dos momentos mais bonitos
da narrativa, a polifonia aparece outra vez como instrumento explícito de construção.
Baltasar Sete-Sóis se junta aos outros trabalhadores responsáveis pela construção do
convento em Mafra, e, ao longo de páginas, os homens compartilham suas histórias,
enquanto o narrador silencia, ocupando quase a posição de ouvinte, integrante do grupo
que divide as histórias.
O plurilinguismo (ou a heterosicursividade), ao penetrar no romance, é
obviamente submetido a uma elaboração literária. Assim, todas as vozes que se fazem
ouvir no discurso romanesco são respeitadas enquanto vozes sociais e históricas,
portadoras de posturas socioideológicas que não coincidem com a do autor, mas são
orquestradas por ele. Estas várias vozes se organizam no texto em diferentes unidades de
composição que vão desde a narrativa direta e literária do autor em todas as suas
variedades, à estilização, por meio do narrador, de formas de oralidade, ou então, no caso
específico deste romance de José Saramago, da estilização de formas como o discurso
tecnicista ou religioso. Por sua vez, cada uma destas modalidades poderá admitir, na sua
própria linguagem, uma variedade de vozes sociais de diferentes ligações e correlações.
Por trás desta multiplicidade que converge para um sistema literário harmonioso, está a
figura do autor, de maneira a organizar todos os sons multiformes.
Também da teoria bakhtiniana é possível extrair outro conceito bastante
interessante para fundamentar uma análise de Memorial do Convento. A Teoria do
Romance do pensador russo, no ensaio Formas de tempo e de cronotopo do romance, traz,
justamente, a ideia do Cronotopo.
Bakhtin define o conceito como a “interligação fundamental das relações
temporais e espaciais, artisticamente assimiladas”. Assim, ao se analisar um romance
histórico, o conceito de cronotopo é peça-chave na abordagem teórica.
Ao longo de toda a narrativa, há marcas de articulação entre espaço e tempo, de
maneira a inserir o enredo em balizas específicas. Se a noção de História, em oposição à
Ficção, é difusa, de parâmetros fluidos, em que há penetração mútua entre fato e criação,
não há qualquer dúvida em relação à inserção das personagens em um contexto bastante
determinado. Além disso, há capítulos inteiros dedicados a um mergulho na intimidade
da nobreza, essa sim traçada com base no percurso histórico de Portugal. O narrador é
explícito em certos momentos, quando diz, por exemplo: “e então el-rei mandou apurar
quando cairia o dia do seu aniversário, vinte e dois de outubro, a um domingo, tendo os
secretários respondido, após cuidadosa verificação do calendário, que tal coincidência se
daria daí a dois anos, em mil setecentos e trinta”. Além da menção ao ano de 1730, deve-
se ressaltar a precisão da data de aniversário de D. João V.
O cronotopo de Bakhtin, porém, não se reduz à delimitação precisa de tempo e
espaço; o conceito vai além e indica uma interdependência entre os dois. O
procedimento de inserção das personagens num tempo (como cronos) e num espaço
(como topos) de atuação incisiva do Santo Ofício da Inquisição é dado fundamental para
o desenvolvimento da narrativa: desde quando Baltasar conhece Blimunda até quando o
padre Bartolomeu decide colocar sua passarola em prática, num ímpeto de fuga do mesmo
Santo Ofício.
A passagem do tempo, em primeiro lugar, é essencial como instrumento de
modelagem das relações entre as personagens. Ao longo da narrativa, há a passagem de
anos, em que se pode perceber a transformação de alguns elementos, à oposição da
estabilidade de outros.
Da mesma maneira, a menção do espaço é óbvia como importância para o
romance, uma vez que, de um modo ou de outro, as relações se estabelecem em torno da
construção do convento em Mafra e sua extensão prolongada pelos anos.
Por fim, pode-se dizer que Memorial do Convento é, em última instância, um
romance que narra a busca pela humanidade, pelo discurso e pelas relações entre as
personagens, das mais elevadas às mais corriqueiras, busca à qual a polifonia serve como
instrumento central. É assim, ao menos, que o vê Eduardo Lourenço, ao afirmar que a
harmonia narrativa “é da mesma ordem que a aventura histórica dos homens para se tornar
totalmente humanos descobrindo pouco a pouco que não há outra harmonia, outro céu
que aquele que eles inventam humanizando tudo o que tocam, arrancando ao mundo da
necessidade, da opressão, do arbítrio de que são feitos, a liberdade que não lhes é dada
senão como recompensa atrasada dos seus combates sempre duvidosos e fatais”. Assim
afirma o próprio padre Bartolomeu Lourenço, em uma última ilustração da presença da
polifonia no romance, responsável por dar espaço à voz do padre, que diz: “Como poderei
achar-me nesta floresta de sim e não, de não que é sim, do sim que é não, afinidades
contrárias, contrariedades afins, como atravessarei salvo sobre o fio da navalha, ora,
resumindo agora, antes de Cristo se ter feito homem, Deus estava fora do homem e não
podia estar nele, depois, pelo sacramento, passou a estar nele, assim o homem é quase
Deus, ou será afinal o próprio Deus, sim, sim, se em mim está Deus, eu sou Deus, sou-o
de modo não trio ou quádruplo, mas uno, uno como Deus, Deus nós, ele eu, eu ele”.

M. BAKHTIN: Teoria do Romance.


E. LOURENÇO: Saramago: um teólogo no fio da navalha (1994)
J. SARAMAGO: Memorial do Convento (1982)

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