1) O documento discute o romance Memorial do Convento de José Saramago, publicado em 1982, que revisita o século 18 narrando a construção de um convento em Mafra.
2) O romance se caracteriza pela polifonia, com diversas vozes se sobreporem em diálogos, representando diferentes perspectivas sociais.
3) A obra também explora o conceito de cronotopo desenvolvido por Bakhtin, examinando a interligação entre tempo e espaço na narrativa histórica.
1) O documento discute o romance Memorial do Convento de José Saramago, publicado em 1982, que revisita o século 18 narrando a construção de um convento em Mafra.
2) O romance se caracteriza pela polifonia, com diversas vozes se sobreporem em diálogos, representando diferentes perspectivas sociais.
3) A obra também explora o conceito de cronotopo desenvolvido por Bakhtin, examinando a interligação entre tempo e espaço na narrativa histórica.
1) O documento discute o romance Memorial do Convento de José Saramago, publicado em 1982, que revisita o século 18 narrando a construção de um convento em Mafra.
2) O romance se caracteriza pela polifonia, com diversas vozes se sobreporem em diálogos, representando diferentes perspectivas sociais.
3) A obra também explora o conceito de cronotopo desenvolvido por Bakhtin, examinando a interligação entre tempo e espaço na narrativa histórica.
José Saramago experimentou muitos registros literários ao longo do seu período
de formação. Além de livros de poesia, Saramago tem em seu currículo a publicação de diversas crônicas, de produção dramática e, desde o começo, de alguma crítica literária. Paralelamente, ele não tem qualquer formação acadêmica tradicional, tendo feito apenas um curso técnico. Apesar de já ter publicado anos antes, é apenas no fim da década de 1970 que o autor se estabelece com convicção na prosa de ficção, primeiro com Manual de Pintura e Caligrafia, em 1977, com uma prosa híbrida, quase experimental, e, em seguida, com Levantado do Chão, em 1980. O romance Memorial do Convento, de 1982, consolida a posição do grande romancista que Levantado do Chão já indicava em relação a Saramago. Na obra de 82, o autor revisita o século 18 ao narrar a construção do convento em Mafra. Unem-se, aqui, ficção e história, fundem-se de maneira que uma muitas vezes se apropria da outra e torna- se ela mesma: história-ficção, ficção-história. Assim se dá o fato, que, acontecido ou não, constrói um pensamento crítico, sensato, sensível e consciente da própria noção de História. Contudo, e a partir disso, a característica mais marcante do romance aparece no tensionamento entre vozes e discursos, que se sobrepõem e se contrapõem; a luta discursiva motivada por diferenças sociais, religiosas, sexuais, culturais e individuais perpassa o romance de maneira integral. Com voz do rei, por exemplo, a dissonância se faz pela voz do restante das personagens, nada nobres e sim pobres, de simplicidade arrebatadora em diversos sentidos, e, ainda assim, escolhidas pelo narrador como as reais protagonistas do romance. É, inclusive, imprescindível apontar a ironia com que o romance é narrado; neste caso, pode-se pensar na tensão entre uma História oficial e o relato das vidas de figuras marginalizadas, ocultas ao olhar macroscópico da História. Deve-se enfatizar, ainda, o próprio narrador, crítico e irônico, inserido no mesmo tempo e espaço das personagens e portador de uma voz singular. Dessa forma, a proposta aqui é olhar para o romance de José Saramago a partir dos conceitos de Polifonia e de Cronotopo formulados por Bakhtin, uma vez que o diálogo entre a ficção e a História surge, acima de tudo, como a própria premissa do projeto de Saramago. O autor constrói, em Memorial do Convento, um enredo calcado sobre a ambivalência, sobre os opostos. Porém, antes de contradições ou labirintos retóricos, há o esclarecimento, a constituição da natureza das personagens. Para se pensar a Polifonia, em primeiro lugar, deve-se perceber, na leitura do romance, um “campo de batalha” onde diversas vozes articuladoras de linguagens sociais distintas movimentam-se de maneira a constituir a originalidade estilística no todo. O romance, já indica Bakhtin, é primordialmente um discurso constituído, ele próprio, pelo discurso do Outro, que penetra e é penetrado por diferentes marcas semânticas, sintáticas e estilísticas, além, claro, da veiculação de uma opinião concreta, uma visão de mundo que se contrapõe a outras visões de mundo, ali representadas ou não. Em sua Teoria do Romance, ao falar sobre o gênero, o pensador russo deixa claro que “o prosador romancista (...) acolhe em sua obra o heterodiscurso e a diversidade de linguagens da língua literária e não literária, sem enfraquecê-las e até contribuindo para o seu aprofundamento (pois contribui para a consciência isoladora das linguagens)” (p. 75). Logo a seguir, ele prossegue, afirmando que “o prosador usa linguagens já povoadas de intenções sociais alheias e as obriga a servir às suas novas intenções, a servir a um segundo senhor. Por isso, as intenções do prosador se refratam, e se refratam sob diferentes ângulos, dependendo do grau de alteridade socioideológica, de encorpadura, de objetificação das linguagens que refratam o heterodiscurso.” (p.76-77). Bakhtin conclui com uma observação acerca dos narradores: “o discurso desses narradores é sempre um discurso do outro (em relação ao discurso direto real ou possível do autor) na linguagem do outro (em relação àquela variedade de linguagem literária à qual se contrapõe a linguagem do narrador)” (p. 98). Ao dirigir os olhos da abordagem ao objeto, percebe-se como a obra de Saramago se constrói essencialmente sobre expedientes análogos aos apontados por Bakhtin. Há, em inúmeros instantes, a suspensão dessa voz narrativa, que, apesar de individualizada e complexa, incorpora ao máximo discursos alheios. No primeiro capítulo, por exemplo, desenvolve-se a narrativa de D. João e D. Maria Ana, que não conseguem ter filhos. É esta a fagulha inicial que desencadeia todo o restante do enredo. Já aqui, no princípio, vê- se a incorporação das vozes de D. João e o frei António de São José, com o consequente desaparecimento da voz do narrador: “Perguntou el-rei, É verdade o que acaba de dizer- me, que se eu prometer levantar um convento em Mafra terei filhos, Verdade é, senhor, porém só se o convento for franciscano, Como sabeis, Sei, não sei como vim a saber, eu sou apenas a boca de que a verdade se serve para falar, a fé não tem mais que responder, construa vossa majestade o convento e terá brevemente sucessão, não o construa e Deus decidirá” (p. 14). O que se vê no fragmento é um procedimento que se repetirá exponencialmente ao longo do romance: o desaparecimento da voz do narrador, substituído pelos discursos, em primeira pessoa, das personagens. Depois da indicação “Perguntou el-rei”, há apenas as vozes das personagens. Mais à frente na narrativa, vê-se tendências mais acentuadas de tal procedimento, com contrastes evidentes entre os produtores das vozes que o romance incorpora. À certa altura, o padre Bartolomeu, Baltasar e Blimunda discutem o funcionamento da máquina voadora, e o fragmento da conversa aparece da seguinte maneira: “Que virtude é essa do éter, perguntou Blimunda, É ser parte da virtude geral que atrai os seres e os corpos, e até as coisas inanimadas, se os libertam do peso da terra, para o sol, Diga isso por palavras que eu perceba, padre, Para que a máquina se levante ao ar, é preciso que o sol atraia o âmbar que há-de estar preso nos arames do teto, o qual, por sua vez, atrairá o éter que teremos introduzido dentro das esferas, o qual, por sua vez, atrairá os ímanes que estarão por baixo, os quais, por sua vez, atrairão as lamelas de ferro de que se compõe o cavername da barca, e então subiremos ao ar, com o vento, ou com o sopro dos foles, se o vento faltar, mas torno a dizer, faltando o éter, falta-nos tudo” (p. 90). Novamente, aqui, depois da indicação “perguntou Blimunda”, a voz do narrador se dilui para dar lugar às vozes das próprias personagens. Cabe ressaltar que neste fragmento do texto, além do diálogo, nota-se sem dificuldade, no discurso do padre, o jargão técnico, do qual, inclusive, Blimunda reclama. É evidente que o padre Bartolomeu compreende o funcionamento da máquina, mas também transparece sua escolarização e seu conhecimento técnico, em oposição à simplicidade de Blimunda e, por extensão, de Baltasar, que permanece em silêncio. Já em direção ao final do romance (p. 224), em um dos momentos mais bonitos da narrativa, a polifonia aparece outra vez como instrumento explícito de construção. Baltasar Sete-Sóis se junta aos outros trabalhadores responsáveis pela construção do convento em Mafra, e, ao longo de páginas, os homens compartilham suas histórias, enquanto o narrador silencia, ocupando quase a posição de ouvinte, integrante do grupo que divide as histórias. O plurilinguismo (ou a heterosicursividade), ao penetrar no romance, é obviamente submetido a uma elaboração literária. Assim, todas as vozes que se fazem ouvir no discurso romanesco são respeitadas enquanto vozes sociais e históricas, portadoras de posturas socioideológicas que não coincidem com a do autor, mas são orquestradas por ele. Estas várias vozes se organizam no texto em diferentes unidades de composição que vão desde a narrativa direta e literária do autor em todas as suas variedades, à estilização, por meio do narrador, de formas de oralidade, ou então, no caso específico deste romance de José Saramago, da estilização de formas como o discurso tecnicista ou religioso. Por sua vez, cada uma destas modalidades poderá admitir, na sua própria linguagem, uma variedade de vozes sociais de diferentes ligações e correlações. Por trás desta multiplicidade que converge para um sistema literário harmonioso, está a figura do autor, de maneira a organizar todos os sons multiformes. Também da teoria bakhtiniana é possível extrair outro conceito bastante interessante para fundamentar uma análise de Memorial do Convento. A Teoria do Romance do pensador russo, no ensaio Formas de tempo e de cronotopo do romance, traz, justamente, a ideia do Cronotopo. Bakhtin define o conceito como a “interligação fundamental das relações temporais e espaciais, artisticamente assimiladas”. Assim, ao se analisar um romance histórico, o conceito de cronotopo é peça-chave na abordagem teórica. Ao longo de toda a narrativa, há marcas de articulação entre espaço e tempo, de maneira a inserir o enredo em balizas específicas. Se a noção de História, em oposição à Ficção, é difusa, de parâmetros fluidos, em que há penetração mútua entre fato e criação, não há qualquer dúvida em relação à inserção das personagens em um contexto bastante determinado. Além disso, há capítulos inteiros dedicados a um mergulho na intimidade da nobreza, essa sim traçada com base no percurso histórico de Portugal. O narrador é explícito em certos momentos, quando diz, por exemplo: “e então el-rei mandou apurar quando cairia o dia do seu aniversário, vinte e dois de outubro, a um domingo, tendo os secretários respondido, após cuidadosa verificação do calendário, que tal coincidência se daria daí a dois anos, em mil setecentos e trinta”. Além da menção ao ano de 1730, deve- se ressaltar a precisão da data de aniversário de D. João V. O cronotopo de Bakhtin, porém, não se reduz à delimitação precisa de tempo e espaço; o conceito vai além e indica uma interdependência entre os dois. O procedimento de inserção das personagens num tempo (como cronos) e num espaço (como topos) de atuação incisiva do Santo Ofício da Inquisição é dado fundamental para o desenvolvimento da narrativa: desde quando Baltasar conhece Blimunda até quando o padre Bartolomeu decide colocar sua passarola em prática, num ímpeto de fuga do mesmo Santo Ofício. A passagem do tempo, em primeiro lugar, é essencial como instrumento de modelagem das relações entre as personagens. Ao longo da narrativa, há a passagem de anos, em que se pode perceber a transformação de alguns elementos, à oposição da estabilidade de outros. Da mesma maneira, a menção do espaço é óbvia como importância para o romance, uma vez que, de um modo ou de outro, as relações se estabelecem em torno da construção do convento em Mafra e sua extensão prolongada pelos anos. Por fim, pode-se dizer que Memorial do Convento é, em última instância, um romance que narra a busca pela humanidade, pelo discurso e pelas relações entre as personagens, das mais elevadas às mais corriqueiras, busca à qual a polifonia serve como instrumento central. É assim, ao menos, que o vê Eduardo Lourenço, ao afirmar que a harmonia narrativa “é da mesma ordem que a aventura histórica dos homens para se tornar totalmente humanos descobrindo pouco a pouco que não há outra harmonia, outro céu que aquele que eles inventam humanizando tudo o que tocam, arrancando ao mundo da necessidade, da opressão, do arbítrio de que são feitos, a liberdade que não lhes é dada senão como recompensa atrasada dos seus combates sempre duvidosos e fatais”. Assim afirma o próprio padre Bartolomeu Lourenço, em uma última ilustração da presença da polifonia no romance, responsável por dar espaço à voz do padre, que diz: “Como poderei achar-me nesta floresta de sim e não, de não que é sim, do sim que é não, afinidades contrárias, contrariedades afins, como atravessarei salvo sobre o fio da navalha, ora, resumindo agora, antes de Cristo se ter feito homem, Deus estava fora do homem e não podia estar nele, depois, pelo sacramento, passou a estar nele, assim o homem é quase Deus, ou será afinal o próprio Deus, sim, sim, se em mim está Deus, eu sou Deus, sou-o de modo não trio ou quádruplo, mas uno, uno como Deus, Deus nós, ele eu, eu ele”.
M. BAKHTIN: Teoria do Romance.
E. LOURENÇO: Saramago: um teólogo no fio da navalha (1994) J. SARAMAGO: Memorial do Convento (1982)