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Perversão: uma clínica possível

Perversão: uma clínica possível


Alberto Henrique Azeredo Coutinho
Médico. Participante do Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.
Ana Cristina Teixeira da Costa Salles
Psicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.
Berenicy Raelmy Silva
Psicóloga. Participante do Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.
Eliana Maria Delfino
Psicóloga. Participante do Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.
Eliane Mussel da Silva
Médica. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.
Geraldo de Morais
Engenheiro. Participante do Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.
Marília Brandão Lemos Morais
Médica. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.
Suzanne Beaudette Drummond
Psicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.

Palavras-Chave
Clínica da perversão – Transferência – Estratégia – Tática – “Sujeito-suposto-saber”
– “Sujeito-suposto-saber-fazer” – Desejo de analista

A clínica da perversão apresenta inúmeras dificuldades à psicanálise, seja pelas


características próprias da estrutura perversa, fundada no mecanismo da recusa da
castração, seja pela ineficácia da neutralidade e associação livre neste trabalho.
Revendo a literatura existente e recorrendo à própria experiência clínica, os autores
propõem uma estratégia diferente para o manejo da transferência, buscando viabilizar
o trabalho clínico e uma saída para a posição paralisante de moralista e/ou voyeur
na qual o analista é colocado pelo perverso a fim de desestabilizar o processo analítico.
Propondo uma posição alternativa ao “semblant” de “sujeito-suposto-saber”, os
autores apostam numa possível clínica da perversão, podendo daí advir um sujeito
menos cativo de sua cena fantasmática.

Introdução desmoralização” (Aurélio:1318)1 Em-


bora em psicanálise se fale da perversão
A escolha da palavra perversão para apenas em relação à sexualidade, o
nomear uma estrutura clínica carac- sentido moral e ético ainda é marcado
terizada por um desvio sexual, denota pelo conceito de perversidade.
um sentido pejorativo próprio de sua
origem em latim: “ato ou efeito de 1
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicioná-
perverter(-se); corrupção, depravação e rio Aurélio Básico da Língua Portuguesa, 1995, p. 501.

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No entanto, Freud já dizia (1905) tece dele procurar um analista, não é em


que na vida sexual todos nós transgre- função da sua prática sexual. Se na
dimos os estreitos limites do que se neurose o sujeito se questiona a respeito
considera normal. São suas as palavras: do seu desejo – “Que queres?”, “Que
“As perversões não são bestialidades nem quero?” –, na perversão não existe uma
degenerações no sentido patético dessas pergunta, mas uma resposta sobre o
palavras. São o desenvolvimento de germes desejo.
contidos, em sua totalidade, na disposição Na perversão, o desejo aparece
sexual indiferenciada criança...”. Mais como vontade de gozo e o ato é viven-
adiante, acrescenta: “Todos os psico- ciado como vitorioso triunfo isento de
neuróticos são pessoas de inclinações per- qualquer sentimento de culpa. O perver-
versas fortemente acentuadas, mas recal- so sabe o que quer e isto é a base da sua
cadas e tornadas inconscientes no curso arrogância, já que está convencido de
do seu desenvolvimento. Por isso suas fan- saber a verdade sobre o gozo. Desta
tasias inconscientes exibem um conteúdo forma, ele não está à mercê das apre-
idêntico ao das ações documentadas nos ensões, inibições, recriminações, auto-
perversos”...2 acusações e frustrações que angustiam
Assim, concluímos que a presença o sujeito neurótico. Pelo contrário, o
do ato perverso na vida sexual não perverso não se penaliza e ainda vê o
implica a existência de estrutura per- sofrimento do neurótico com desprezo.
versa. O sujeito neurótico pode apresen- Para ele o neurótico é um indivíduo que
tar uma montagem perversa para solu- não sabe o que quer, que não sabe gozar.
ção do problema edipiano, ou como Jacques-Alain Miller (1989:356-
forma de evitar a dor psíquica revelando 357) ressalta que “o perverso é aquele que
com isso traços perversos. O processo tem a resposta que demonstra o real do seu
analítico com este tipo de paciente difere gozo como constante, assegurado e sempre
radicalmente do trabalho realizado com pronto para ser utilizado” 3 . Ele está
pacientes de estrutura perversa, propó- constantemente a postos para o ato,
sito deste trabalho. agindo sempre na hora certa. Por sua
No trabalho clínico com pacientes vez, o neurótico mede o tempo e selecio-
perversos, deparamos-nos com manifes- na criteriosamente sua hora de agir, pois
tações hostis e desqualificativas que ele é um sujeito de falta, de desejo; a ele
dificultam nossa função de escuta são impostos os intervalos do véu da
psicanalítica, pois repetidamente o alienação.
analista se encontra enlaçado como De acordo com o que foi assinalado,
objeto real de gozo. se o que está em jogo é o gozo, não há
Sabe -se, ainda, que o perverso demanda de análise. O sujeito perverso
verdadeiro dificilmente busca a psicaná- sabe o que fazer, não se interroga, realiza
lise, mesmo porque a prática perversa o ato e o repete reiteradamente. Quan-
lhe garante o acesso ao gozo. Como do a relação com o gozar é perturbada
Freud nos ensina, o objeto fetiche, além (como, por exemplo, ocorre com o rom-
de assegurar o prazer sexual, ainda é pimento de contrato por parte do par-
considerado salutar e propício ao ceiro ou, ainda, quando se deu o advento
fetichista. Quando, porventura, acon- da Aids e suas mortais conseqüências),

2
FREUD, Sigmund. Fragmento da análise de um caso 3
MILLER, Jacques Alain. Patologia da ética. In Lacan
de histeria, ESB, v. VII, 1989, P. 53-54. Elucidado – Palestras no Brasil, 1997, p. 356-357.

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a ruptura da montagem perversa deses- mente no lugar de ouvinte passivo e de


tabiliza o sujeito possibilitando o sur- cúmplice que o perverso lhe aponta e
gimento da angústia, da loucura ou da manobra para mantê-lo. Assim, o
depressão. Nesses momentos o per- perverso desafia o psicanalista em sua
verso pode buscar um analista, mas práxis e em sua ética, reeditando no real
como será sua relação com ele? Como de suas “encen-ações” a recusa à castra-
se manifesta a transferência no sujeito ção que a análise ameaça impor-lhe pela
perverso? via do simbólico.
Essa recusa é sustentada à custa de
A posição subjetiva do um imenso e desgastante investimento
perverso na relação analítica psíquico que se defronta porém com uma
realidade da qual eventualmente o
O que o perverso quer do analista? perverso pode perceber que, mesmo ele,
Aliviar-se de algum mal-estar momentâ- não pode escapar: a inexorabilidade do
neo, sem que esteja disposto a abrir mão tempo. A decadência física e a falibili-
de seu gozo mortífero? Utilizar-se da dade do corpo, do qual se utiliza impie-
análise como um álibi contra possíveis dosamente na repetição de suas encen-
implicações médico-legais de seus atos ações na busca compulsiva pelo gozo,
eventualmente criminosos, deles fazen- acabam por confrontá-lo com o horror
do o analista um cúmplice? Como mes- inconsciente de não poder depender
tre da retórica, apropriar-se do discurso delas indefinidamente para escapar da
analítico para refinar sua tarefa inesgotá- angústia, da loucura e da melancolia,
vel de desafiar a lei, através da busca do que a perversão manteve afastadas até
gozo a qualquer custo? Reverenciar essa então. Este ponto limite – que ocasional-
mesma lei (representada pelo analista), mente pode levar o perverso a procurar
confessando -lhe suas condenáveis um analista ou que pode surgir no curso
“encen-ações reais”, só para poder de sua análise – é exatamente a possível
desafiá-la novamente a cada relato fenda que abala toda sua estrutura
interminável e, assim, fantasmatica- defensiva e através da qual pode-se
mente triunfar sempre sobre a castração? entrever alguma possibilidade de subje-
Formar um par perverso com o analista, tivação e de uma verdadeira demanda
deslocando -o do lugar da escuta e de trabalho analítico.
reduzindo-o a um mero ouvinte e voyeur Entretanto, esse trabalho pode ser
de seu monólogo exibicionista? intolerável para o perverso por implicar
Em qualquer dessas demandas, a sofrimento psíquico, sempre por ele
transferência é minada em sua função negado por meio do mecanismo da
de suporte para a interpretação, dando recusa. Quando a crença ilusória é
lugar a uma relação estéril com o colocada à prova pela realidade, surge
analista, da qual o perverso busca uma imensa angústia pois, como disse
sempre auferir algum lucro que atenda Flavio Ferraz (2000:98), “não é só sua
seu propósito de manter o controle. As vida sexual que foi construída sobre o
regras da associação livre e da neutrali- alicerce da clivagem, mas sim toda sua
dade revelam-se inúteis para o trabalho superfície identificatória”4.
analítico; a primeira por ser sistemati-
camente desrespeitada pelo analisando
e substituída pelo relato compulsivo e 4
FERRAZ, Flávio Carvalho. Perversão. Coleção
inflexível de suas “encen-ações reais”, e Clínica Psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicó-
a segunda por instalar o analista exata- logo, 2000. p. 98.

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O trabalho de subjetivação o obri- ato” 6. Este permite que ele alcance o


gará a abandonar, pelo menos parcial- próprio gozo, ao mesmo tempo em que
mente, o gozo proveniente do seu ato sustenta o gozo do Outro. Ou seja, o per-
impostor. Como ilusionista, o perverso verso se faz objeto a serviço do gozo do
é mestre em posicionar o outro de forma Outro, ele se dedica a tamponar a falta,
a se impor ao seu olhar. Seu intento, ao o furo do Outro para que exista como
designar ao analista o lugar de especta- sujeito não barrado ( a S ). Assim, o
dor, é o de paralisá-lo. O êxito da análise, gozo do perverso depende do não -
num primeiro momento, depende de o consentimento do outro e advém da dor
analista tolerar o discurso de um pacien- provocada no parceiro.
te que se mantém no mundo da ilusão. Da mesma forma como age com seu
O sexo explícito e o horror reluzente, par, o perverso reedita na cena analítica
próprios do discurso perverso, fascinam sua vontade de gozo. Por privilegiar uma
e ameaçam quem o ouve, colocando o Lei recusada que o persegue, uma cul-
“desejo de analista” à prova, fazendo tura narcisista que o determina, ele pro-
com que o analista se sinta questionado cura definir as regras do jogo e manter o
em seu saber. controle do setting analítico. A conjun-
Na relação analítica é comum ção dos elementos que caracterizam a
escutarmos o perverso utilizando o relação transferencial na análise do
vocabulário psicanalítico, contudo sem perverso acaba por encurralar o analista
a intenção de estabelecer uma interlo- entre duas possíveis posições polari-
cução. Sua fala, como bem apontou zadas, ambas dissonantes com a ética da
François Perrier (Clavreul, 1900:154)5, Psicanálise: a de moralista e regulador
permanece “inarticulável”, podendo ser (S2) ou a de cúmplice e voyeur (a).
vista como um desafio, uma manobra de Assim, a transgressão e o desafio contu-
redução do terceiro ou uma sedução. A maz à lei por parte do perverso, o
transferência por ele montada é de sistemático desrespeito à “regra funda-
ordem narcísica, ele nega ao analista o mental” da associação livre e sua
pedestal do “sujeito-suposto-saber”. As substituição pela confissão repetitiva e
intervenções do analista que desnudam monótona de suas “encen-ações”, e o seu
a clivagem do perverso são declinadas absoluto desprezo pelo “sujeito-suposto-
visto que, para ele, é primordial se saber” dificultam ou impossibilitam ao
manter fora do campo do Outro, pois é analista ocupar sua posição. Em vez de
lá que reside a angústia – portão de semblant de objeto, o analista é tomado
entrada do desejo. pelo perverso como mais um objeto real
O discurso do perverso é uma fala de gozo (a), ao ser por ele instalado na
vazia de sentido que exclui a angústia e posição masoquista de ouvinte passivo,
condena o desejo a circular fora da cúmplice e voyeur do seu discurso
cadeia discursiva. Ele sustenta seu desejo exibicionista. Ou, na tentativa de
pelo gozo, sustenta sua vontade de gozo escapar desta posição paralisante e
com o ato. No confronto entre a palavra diante da pobreza simbólica e fantasmá-
e o ato prevalece, no perverso, “a osten- tica do discurso perverso, o analista pode
tação demonstrativa da sua aposta em

6
GEREZ-AMBERTÍN, Marta et al. Supereu: clínica
diferencial neurose -perversão. In Rev. Letra
Freudiana - Pulsão e gozo, ano XI, n. 10/11/12, p.
5
CLAVREUL, Jean et al. O desejo e a perversão. 192. Publicação da Escola Letra Freudiana. Rio de
Campinas: Papirus, 1990. p. 154. Janeiro: Dumará.

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flagrar-se na posição sádica de moralista princípio ético central de seu trabalho:


e regulador (S2), o que estimula o o amor à verdade.
desafio da transgressão perversa e Qual seria a estratégia adequada à
alimenta a perpetuação do gozo. análise na perversão?
Basculando entre estas duas posi- Se para o neurótico a estratégia
ções, o analista é destituído de seu lugar analítica se baseia na instalação de uma
e portanto de sua função, havendo o neurose de transferência que permite a
risco de estabelecer uma relação dual interpretação ao longo do deslizamento
com o perverso na qual desaparece o da cadeia significante, na análise do
“desejo de analista”. É precisamente perverso a estratégia é outra. No lugar
neste ponto que ele desmonta o disposi- do material simbólico (sintomas, sonhos,
tivo analítico e questiona seu arcabouço associações), ele oferece ao analista o
teórico. real de suas “encen-ações”, que carecem
Assim, o grande desafio que se do duplo sentido que propicia a inter-
impõe ao analista no trabalho com o venção interpretativa pela palavra.
perverso é o de achar uma posição que Intitulando-se mestre do gozo e lutando
lhe permita aproveitar aquilo que o por manter a angústia no campo do
sujeito traz além do relato de suas Outro, o perverso recusa ao analista o
“encen-ações”. Desafio que passa neces- pedestal do “sujeito-suposto-saber”.
sariamente por um posicionamento teó- Esse paciente não busca uma cura para
rico e técnico diverso daquele con- seu sintoma, tampouco um saber sobre
sagrado no trabalho analítico com o seu desejo, a ele só interessa fazer o outro
neurótico. gozar. Portanto, a “moeda de troca” na
relação transferencial com perversos não
Uma clínica possível pode se situar preferencial ou exclusiva-
mente no plano simbólico como na aná-
Lacan teorizou que a direção do lise com neuróticos.
tratamento psicanalítico, em analogia às A perspicaz observação de Jean
guerras, comporta os níveis da política, Claude Maleval (1998:22), ao confron-
da estratégia e da tática. Neste sentido, tar as estruturas clínicas em suas rela-
ética, manejo da transferência e inter- ções com o gozo, nos indica um caminho
pretação são, respectivamente, os para o manejo da transferência com per-
princípios que devem nortear o analista versos. Esse autor pontuou que, se o psicó-
no embate que se trava, no setting tico tem uma relação de certeza quanto
analítico, entre o “desejo de analista” e ao gozo do Outro e o neurótico mantém
as resistências do paciente. Se para a uma posição de suposição sobre esse gozo,
análise do neurótico obtemos uma o perverso testemunha um saber fazer so-
satisfatória eficácia clínica, no trabalho bre o gozo em sua interação com o outro7.
com o perverso as questões técnicas são A idéia, aqui defendida, é de se
frontalmente questionadas e minadas buscar, na análise do perverso, a instala-
pela posição ocupada pelo paciente e por ção do “Sujeito-suposto-saber-fazer”. A
aquela na qual ele busca manter o atribuição de um “saber fazer” pro-
analista. Este, se for aprisionado pelo piciaria ao analista intervir do lugar de
discurso perverso nas posições de detentor de um saber sobre o que o
moralista/regulador ou de cúmplice/
voyeur, se verá incapaz de interpretar e
será manejado na transferência, incor- 7
MALEVAL, Jean Claude. Lógica Del delírio.
rendo no risco de perder até mesmo o Barcelona: Ediciones Del Serbal, 1998. p. 22.

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perverso deseja: gozar. Tal atribuição saber rígido e implacável que o escuda
possibilitaria a emergência de uma da desilusão, da angústia e, ainda lhe
relação transferencial que, se confi- garante fazer o Outro gozar.
gurada, permitiria ao perverso supor que A mensagem que se pretende trans-
há um sujeito para além do seu “saber mitir ao perverso, ao remeter seu
fazer”. Conseqüentemente, haveria uma discurso reluzente de horror à triviali-
transformação da posição do sujeito com dade, é a de que seus atos não com-
seu saber, até então absoluto. Um efeito portam a originalidade que ele lhes atri-
da instalação da transferência seria a de bui, seja por sua repetição monótona de-
levantar a suspeição sobre seu ato, nunciada pelo analista, seja porque este
deslocando para o que há de verdade no os escuta com o aparente desinteresse
sujeito – a falta, desta maneira possibili- de quem “já sabe” sobre o que é relatado.
tando -lhe o ingresso no campo do Só se pode tratar como trivial aquilo que
Outro. se domina. Agindo desta maneira em
As situações especialmente difíceis relação ao gozo, o analista esvazia o
impostas ao trabalho analítico com o caráter precioso que o perverso dá às
perverso exigem recursos táticos, dife- suas encen-ações, convidando-o a se
rentes da interpretação, que visem questionar sobre elas e a perceber sua
instaurar o “sujeito-suposto-saber-fazer” função de defesa contra a angústia.
na posição do analista. Embora a A ironia pode constituir para o
Psicanálise seja uma clínica do singular, analista um valioso instrumento para
a experiência adquirida com a clínica da lidar com o discurso paralisante do
perversão permite prever uma gama de perverso. Proveniente do grego eiróneia
desafios endereçados ao analista pelo e significando ‘interrogação’, a palavra
paciente, aos quais se deveria sempre denota um “modo de exprimir-se que
responder de forma a sustentar a posição consiste em dizer o contrário daquilo que
estratégica aqui defendida. Entre os se está pensando ou sentindo, ou por
possíveis recursos táticos para o manejo pudor em relação a si próprio ou com
da transferência com perversos apon- intenção sarcástica e depreciativa em
tamos: a trivialização, a “douta ironia”, relação a outrem” (Aurélio: 969).
o paradoxo, o humor, o ato analítico, o Porém, o sentido que pretendemos aqui
desvelamento da angústia, a atribuição utilizar se encontra na expressão ironia
de sentido e a restauração histórica. socrática, definida como um “modo de
As respostas do analista ao perverso interrogar pelo qual Sócrates levava o
na direção da cura dependem direta- interlocutor ao reconhecimento de sua
mente da posição que este ocupa em própria ignorância” (idem), técnica que
relação ao Outro. Assim, quando o per- passou a ser conhecida como socratismo.
verso se posiciona enquanto encarnação Lacan postulou que o analista
do saber fazer gozar, é necessário que o escutasse o neurótico com “douta
analista suporte o jogo perverso no qual ignorância” sobre o que é dito. Toman-
ele é chamado como parceiro, acolhendo do-lhe emprestado a expressão, sugeri-
o relato de suas encen-ações sexuali- mos que na perversão o analista escute
zadas e violentas, confrontando o horror e construa suas intervenções sobre o
do gozo a partir do que podemos chamar conceito de “douta ironia” em relação
da “trivialização na transferência”. ao ato perverso. Sem responder ao
Recurso utilizado para atestar o caráter escárnio desafiante com que o paciente
“prosaico” de suas encen-ações, levando trata o saber do analista, o que se
o perverso a se questionar sobre este pretende, na mesma direção apontada
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pela “trivialização”, é deslocar o discurso que regula o desejo; naturalmente ela


perverso da repetição de suas “encen- barra o acesso do sujeito ao gozo, pois é
ações”, abrindo espaço para um saber o prazer como ligação à vida que barra
além do fazer gozar e para a verdade do o gozo.
sujeito. O ato analítico é outro recurso
Para que se vença o impasse analí- indispensável à análise do perverso, pois
tico entre uma escuta acolhedora e por se situar praticamente fora do
conivente e a atitude moralista de de- simbólico, no registro do real, o perverso
núncia de uma prática, propomos que o manifesta em atos (encen-ações) aquilo
analista opere com um paradoxo: quan- que teria que ser dito em palavras.
do localizado pelo perverso na posição Considerando a primazia da clínica do
de cumplicidade, o analista deve fazer real na perversão, faz-se necessário o
semblant do grande Outro, assim repre- trabalho com o tempo lógico e o corte
sentando um saber fazer, porém com um de sessões a fim de deslocar o controle,
poder que não subjugue o perverso e privando o perverso do domínio da rela-
nem dele goze. Por outro lado, quando ção, tão essencial a ele. Sugerimos, ain-
o perverso localizar o analista como da, o estabelecimento de um contrato
moralista, detentor da lei, estrategi- flexível, com o uso opcional e/ou alter-
camente, este faria semblant do objeto, nado do divã, procedimento que visa
causa de desejo. Da posição de objeto, retificar a presença ou ausência do olhar
o analista apontaria para Outra cena, do analista enquanto objeto fetichizado.
buscando a instalação do duplo sentido Quando o perverso se posiciona en-
da dimensão simbólica: “o que quer com quanto objeto que instrumentaliza o
isso?”. nosso gozo e nos convoca como sujeito
Em se falando de recursos táticos, barrado para garantir – com a presença
não podemos nos esquecer do humor, de nosso olhar – o seu gozo, devemos
que por sua própria natureza é extre- produzir um corte com nosso ato,
mamente adequado ao trabalho com o criando um espaço vazio de qualquer
perverso. Como bem apontou Freud, o significação, sustentando uma posição
humor utiliza o mecanismo de recusa ética para fazer emergir algo da verdade
para propiciar um deslocamento da dor. encoberta por seu saber fazer. Contudo,
Intervir com humor, além de desarmar a fragilidade da borda representacional
o confronto analítico, interpela a relação exige que esse corte seja muito bem
imaginária de cumplicidade do perverso, calculado a fim de evitar um colapso de
introduzindo uma relação outra de seus limites de identidade e/ou uma fuga
parceria. Ao compartilharem da jocosi- da análise.
dade inerente ao humor, ocorre um Buscamos, com os recursos mencio-
reposicionamento do par e, conseqüen- nados, uma subjetivação da posição
temente, um certo redimensionamento perversa, ao preço da eclosão da angústia
da angústia que se transfere em parte ao e de sua própria fragmentação, pois o
campo do paciente por não ser mais risco de desmontagem da sua recusa
exclusiva do campo do outro. O disposi- fundamental sinaliza o perigo iminente
tivo humorístico bem demonstra que a de se haver com o desamparo absoluto
interdição do gozo não é decorrência de vivenciado diante do “não saber”.
qualquer tipo de proibição por parte do De acordo com os princípios éticos
analista; ela está articulada à função de que norteiam o nosso trabalho, enfatiza-
regulação da lei na própria dimensão mos que a posição do analista não é de
discursiva. A lei da qual falamos é a lei mestria. Ao contrário, para a instalação
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da transferência na sua dimensão real, o advento de um sujeito não mais cativo


cabe ao analista emprestar palavras, de sua cena fantasmática. ϕ
boca e corpo – distintos do conjunto de
órgãos com o qual o perverso costuma
gozar – para delinear uma borda de Keywords
contenção ao gozo mortal. É necessário Clinical work with perverse patients –
que o analista, em seu trabalho, desem- Transference – Strategy – Tactics – Subject-
penhe o papel de escriba, ou seja: de Supposed-Knowledge - Subject-Supposed-
registrar e testemunhar o trabalho que Knowledge-on-doing – Analyst’s wish
realiza o paciente para além da narrativa
de suas encen-ações, resgatando a Abstract
função da escuta. Enquanto escriba e Clinical work with perverse patients presents
testemunha, o analista deve religar os numerous difficulties to psychoanalysis, be
cacos da história relatada, construir that due to the characteristics typical of the
juntamente com o sujeito e acompanhá- perverse structure, which is founded on the
lo nessa construção para atribuição de mechanism of disavowal, or be that due to
um sentido. Para sustentar o desejo de the inefficiency of neutrality and free
analista, é imprescindível que se ofereça association in this kind of practice. A study
a via discursiva e um laço social que of existent literature on the subject and a
permita circunscrever o gozo do per- thorough examination of their own clinical
verso, possibilitando, assim, um trabalho findings led the authors to propose a different
com o Inconsciente. Isto poderá levá-lo form of strategy for dealing with transference
a construções que regulem, de certa that would make clinical work with these
forma, seu dilema com o gozo, o que não patients plausible and indicate options for
significa trocar o modo de gozar. the paralyzing position which is imposed on
Podemos dizer que a estratégia do the analyst by the perverse patient in order
analista deve ser, além de desfazer a to derange the analytic process. By proposing
dessimetria da relação, a de devolver ao an alternative for the “semblance subject-
perverso uma certa autonomia ao supposed knowledge”, the authors defend the
libertar o sujeito de sua certeza quanto idea that clinical work with perverse patients
ao Outro que goza de pleno poder sobre is possible, resulting in a subject less captive
ele. Diante do perverso que vem à of the phantasmagoric scene.
análise contabilizar seu gozo, o analista
deve administrar, em doses pequenas e
suportáveis, o sentido de suas “encen-
ações”, costurando em sua história algo bibliografia
da sua verdade. Se o analista conseguir
acenar-lhe com a possibilidade do AULAGNIER-SPAIRANI, Pierra. A perversão
como estrutura. Trad. Antonio Teixeira. Belo
desejo, que é uma articulação entre o Horizonte, material de publicação interna
gozo e o amor, pode ser que ele faça valer GREP, 2002.
o “desejo de analista”. . Em defesa de uma certa anormalidade:
O trabalho analítico com o perverso teoria e clínica psicanalítica. Trad. Carlos Eduardo
deve propiciar uma saída pela vertente Reis. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.
do amor: uma mudança na sua posição BRAUNSTEIN, Nestor A (org.) .La reflexión de
los conceptos de Freud en la obra de Lacan.
subjetiva que acarrete um movimento México: Siglo Veintiuno Editores S.A., 1993.
do pólo de gozo em direção ao pólo de FREUD Sigmund. A dinâmica da transferência.
amor. A circunscrição do gozo abre uma Edição Standard Brasileira das obras completas de.
janela em seu cárcere gozoso, permitindo Rio de Janeiro: Imago, v. XII, 1989.

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Perversão: uma clínica possível

. A divisão do ego no processo de


defesa. ESB. v. XXIII.
. Além do princípio do prazer. ESB. v.
XVIII.
. Fetichismo.ESB. v. XXI.
. Observações sobre o amor transferen-
cial. ESB. v. XII.
. Recodar, repetir e perlaborar. ESB. v.
XII.
. Três ensaios sobre a teoria da sexuali-
dade. ESB. v. VII.
. Uma criança é espancada: uma
contribuição ao estudo da origem das perversões
sexuais. ESB. v. XVII.
FUNDACIÓN DEL CAMPO FREUDIANO.
Rasgos de perversión en las estructuras clínicas.
Buenos Aires: Manantial, 1990.
HELSINGER, Luis Alberto. O tempo do gozo e
a gozação: a temporalidade na perversão. Rio de
Janeiro: Revan, 1996. 230 p.
MILLER, Jacques Alain.Lacan Elucidado –
Palestras no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
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Perversão: uma clínica possível

28 Reverso • Belo Horizonte • ano 26 • n. 51 • p. 19 - 28 • Ago. 2004

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