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0 PROBLEMA DA REFLEXAO (1) PLANO DE PESQUISA ste texto sumario € um projeto de trabalho apresen- lado pelo Autor ao CNRS (tranca:, Foi escrito em fran- cés, Sua origem mais proxima reside nos varios cursor proferides durante as (iltimoes anos na FFCL da USP e to- dos éles orientados no sentido duma ontologia do social, O A preottya-se com as “formas de finalidade" institui- das pelog diseursos estruturalistas, funcionalistas ¢ marxis- fa. Procura mostrar o narcisismo em que se perde grande parte do trabalho teirico das ciéncias sociais conte; poreneas e criticar o estatulo de seus discursos literal nTiente espeentativas. © circulo mortal da reflexgo tema- tivado auui em diversos niveis e ensaios do pensamento tem sido o tema principal da sua pesquisa ¢ de suas pro- posi¢ées epistemolégicas sobre a troca, sobre o Tato sa- cial em geval, Dai decotrem problemas ineémoedos para a epistemologia positivista: cual a relacio real entre o dis- eurso da Teoria ¢ o Mundo? & acaso localizdvel essa es. pessura da objetivacie cientifica fque ‘ranger propde noutro ensaio aqui inserto)? ou trata-se apenas duma lei- tura metafsrica de processo originaria de producio das signifeardes ques ciincia passa a manipular camo ebje tos sem histéria? Desse ponto de vista o A péde anterior~ mente criticar a ‘teoria da abstragio” marxista proposta bor Althusser. Nao se cogita, contudo, de forma algu- ma, alriluir i {ilosofia o papel de leitora do diseurse alheio — mas sim consliluir uma si-nifieacsa nova para a experitncia do social que nfo pe:ue por abstrata. isto 6, separada daquilo que efetivamente a produz. O dis- curse vem come social. (Mas um confronts inadidvel com Heidegger subsiste ainda no horivonte do A ; trata-se da veflexdo, Para Heidegger a forma de finalidade do traba- (1). — © titulo & do tradutor, + © Autor eselarece: Nao se trata do plano dum lvra mas realmente dum projeto de pesquisa cujos resultados podem ser publicades em separado. Com efelto “o parigrafo sibre Durkeim é um resumo dum capitula do livre que redijo atualmente™, = tho é refic.iva e niio hd progresse aprecidvel enlre Heel e Marx. A dialética como ilha reilexiyva — funda-se em si propria antarquicamente, nao se abandona o pensar do pensar e contude é preciso pensar a téeniea; que as varias modalidades da dialética sejam climplices da representaglo é 0 gue fica dificil conternar — “toda produgio é em si mesma j4 reflexao. Toda produgio é pensamento”. A filosofia classiea Kant, Hegel. Marx: e moderna (Merleau-Ponly) passara a fonercer ao discurso das cién- jas sociais uma profundidade e movimento eoneretos que nao se detém na enumeragio das proposigtes do mundo (Wittgenstein, mas que caminha com o mundo (Herel) (Armando Mora d‘Oliveira) I; As céncias sociais contemporaneas erypregam diversas nogées cujo sentido é antes do mais analégico. Que é que quer dizer exatamente fendmeno social? Como é que sao utilizados os conceitos de movimento, forca, organizagia, e mesmo 4 de es- trutura sem que seja determinado o contexto no qual é inserido? Os cientistas, duma maneira geral, sabem mais acerca dessas dificuldades da que aquilo que transparece no discurso; cada uma das palavras que éles empregam evoca um herizonte do néo-dite que seria preciso esclarecer. Téda ciéncia segrega uma ontelogia, dizia Merleau-Ponty eo nosso projeto cons'ste jus- tamente em estabelecer o péso ontelégico dos principais con- cellos empregues pelos socidlogos ¢ antropélogos. Julgamos entre ver 0 péso das conseqliéncias provecadas por ponto de partida e quanto chacam, em certo sentido, as no doutrinas em voga Nao redundaria nosso pento de partida numa recusa de tomar e d’scurse cientitico como um fate que poderia suportar uma andlise em seu prdpria nivel? Pressuponde que éste discurso visa uma objetividade a qual nae acedemos por meio dele alargamos 9 cenceite de experiéneia, que passa entao para além da consciéncia individual para atingir uma experién- cia coletiva preposta pelo préprio discurso. Que essa objetivi- dade seja una ou multipla, o que, na verdade, nos importa é que o discurso possui um poder instaurador que se nado é necessaria- mente originario, deve contudo ser estudado, Trata-se, pois, de tirar uma ontologia do objeto social, mas uma ontologia que se exerce no trabalho dos préprios pesquizadores, Para isso, é necessarie estudar certos autores estratégicamente colocados e ee ee tratar de tornar manifestos seus designios secretos e, se possi- vel, eslabelecer um quadro comum. Como. exemplo, considera. mos agora, algumas nogdes elaboradas por Durkheim, Levi- Strauss e Marx, que na nossa opinidio giram em térno da catego- tia.de reflexao, Cuida-se assim duma tentativa para determinar 0 seu sentido através dum uso implicito. Il — Para Durkhe'm, congiderar os fendmenos seciais come coisas é conceder-Ihes uma certa exterioridade enigmatica, es- tabelecer um afastamento entre Gles e nés mesmos, 6 a necessi- dade de assumir em relacio a éles a atitude impareial do pesqui- zador. Mas é igualmente evidente aes clhas de Durkheim que nao se lhes outerga o mesmo carater fenoménico das co’sas sen- siveis. que nao se trata de “reboear” uma forma superior do ser com uma forma inferior (Regras,..p. XII), Téda a nossa questao se reconduz assim em saber qual é esta forma do ser que se chama soeledade. A presenga do fenémeno social sé manifesta através dum simbolo, dum objeto qualquer que serve de intermedidrio aos homens; “Os espiritos particulares nfia podem encontrar-se ¢ comungar a nao sersob a condigaa de sairem de si préprios; mas nao podem exterior zar-se a nao ser sob a forma de movimento, & a homogeneidade destes movimentos que fornece ae grupo a sentimento de si e que, por conseguinte, o faz ser. Uma vez es- tabelecida esta homogeneidade, uma vez que estes mow mentos adquiram forma una e estereolipada, servem para simbolizar as tepresentagées correspondentes. Mas sd as simbolizam porque concarreram para as formas”. (Les formes élémentaires de la vie religieuse, pag. 330). A exteriorizagio se faz ainda gracas a ele- vagio ao peder das representagiivs individuais, gra ideacao © abstragio que se realizam além da consciéncia do in- dividuo, Que uma representacio coletiva exprima um poder maior que a consciéneia individual, sabemé-lo também quando examinamos a natureza dum conee‘to, Nao é evidente que numa palavra geral se ache condensada téda uma experiéneia que ultrapassa os meus limites? Esta observagio permite determinar em que sen tide ouvimos dizer que os coneecitos sfio represeniagdes coletivas, Se so comuns a um grupo social inteiro, é porque representem uma simples: média entre as repre sentagdes. individuais correspondentes: porque emtio se: iam mais pobres que estas em conletido intelectual, en- quanto que ma realidede estado prenhes dum saber que wegen ultvapassa o do homem médio, Nio sio abstragies que so teriam realidades mas consciéncias partieulares, mas representagies tio coneretas como as que o individua por de dar-se de seu meio pessoal: correspoidem & maneira pela qual este ser especial que 6 a sociedade pensa as coi- sas da sua experiéncia propria’ (Les formes ... 621). Mas os dois caminhos se cruzam; tanto o conceito é uma re- presentacio quanto a representagao € conceito, no fundo. Apesar da sintese quimica que a compée, a representagdo coletiva ¢ um feixe de representagées individuais associadas a um sinal. Re- econhecemos af. imediatamente, a teor’a do conceite tal como ela foi concebida por Locke e divulgada no fim do século pas- sado por Stuart Mill . Nao ha divida de que para Durkheim existem sentimentos coletivos e outras fungées coletivas além das fungées do entendimento. O que se pode sustentar, ¢ duma maneira mais minuciosa ainda é que t6da representagio cole- tiva torna-se coletiva poque imita o esquema classico do con- ceito. Se a sociedade é, portanto, uma espécie de razao objetivada, énos permitido perguntar em que € que essa razao pensa, No limite, a sociedade é uma razfo que se pensa a si mesma, “Por- que uma sociedade, nado ¢ simplesmente constituida pela. massa dos individuos que a compdem, pelo solo que ocupam, pelas coi- sag de que se servem, pelos movimentos que realizam, mas antes de tudo, pela idéia que se faz de si prépria” (Les formes ... pag. 601). Esta veflexdo objetiva se manifesta sobretudo na movimento do ideal: Uma sociedade nao pede criar-se nem recriar-so, sem ao mesmo tempo, criar ideal. Essa criacio nao é para ela uma espécié de ato subrogatéria, atravéz do qual sla se far e refaz periddicamente, Também, quando se opse A sociedade ideal a saciedade real, como duns antago- nistas que nos arrastariam para sentidos contrarios, fa- zem-se ¢ opSem-se abstragies. A sociedade ideal nao existe fora da socieclade real, faz parte dela” (Les formes ... pag. 6803/4) . O ser da sociedade nfo é por conseguinte, nada mais do que a consciéncia de si objetivada, uma Selbstbewstsein que toma o lugar de Deus, e duma posicao absoluta, desituada, olha o mun- eh do inteiro. Nao sendo mais que o sucedneo da metafisiea a so- ciolgia durkheimiana ¢ necessiriamente sociologismo. & entao surpreendente que , sendo os valores realidades sui generis, a quem se reportam avaliagdes que seguem os mesmos itineréri de constatagae dos fates, desapareca a diferenca entre juizos de relidade e juizos de valor? (Sciences et philosophie pag. 119 e segs.) , Pelo menos essa transformac&o da norma de fato, realiza- se gragas a uma espécie de reflexdo objeliva que faz romper os quadros da ontologia no interior da qual se move o pensamento de Durkheim, Além disso, se a sociedade é uma transfiguracao, uma visao privilegiada do mundo, qual é sua capacidade de transformagao do préprio mundo? No circuito fechado da refle- xdo ndo entra o trabalho. Para que se instaure uma representa- gao coletiva basta que um objeto qualquer desempenhe o papel de simbolo, de forma que a relacia do homem com a natureza seja uma consequéncia secundaria, sua essencialidade, um equi. voco do privilégio duma perspectiva individualista. NI — Tédos sabemos que a revolu fonoligica nasce no momento em que o significante é posto em relagao com o signi- ficado, de forma tal que um no possa ser tomado sem o autro. FE 2 oposicao distintiva ¢ a oposi¢ao significativa supdéem portanto uma relagio direta ou indireta a uma significacao, que deter- mina os limites no interior dos quais thda a andlise é realizada. Eis uma das razies pelas quais Troubetzkoy concebe a lingua fora da med'da © do mimero (Prineipes...pg, 9): se a relacia com a significagao determina a articula da face significante do discurse, nao existe um métoda matematieo eapaz de a re- cortar sem a intervencao tdicita duma intuicao, A extension do método esirutural A antropologia implica a mesma duplicidade. Para que a estrutura elementar do paren- tesco seja pensada em quatro térmos, 6 necessario que de inicio se coloque o principio da reciprocidade e a mulher estabelecida como bem raro, O corte da face sensivel dos fenémenos sensiveis realiza-se introduzindo ai uma referéncia & significaga&o oculta do conjunto do processo, Mas o estudo estrutural dos mitos eom- portara a mesma imbricacdo do sensivel e do inteligivel? # im- possivel determinar a priori o sentido geral dum mito, isso mes- mo a titulo duma hipdiese que deve ser retomada mais tarde pe. lo contrario, é preciso que éste sentido seja extraido passa-a pas- 80, que éle seja o resultado duma andlise minuciosa que rompa a aparente coerencia da sua narragio para ai encontrar os elemen- tos orig marios duma nova ordem significada. Nestas condigges, que quer dizer uma oposigiio pertinente, como determinar essas — se. — “grosses unités constitutives” ou mitemas (Antr. Str. pg. 233/4), se n4o fér através da escolha arbitraria de algumas oposicées que o autor encontra no caso de sua invesligagao? Em que sen- tide é entao possivel um estudo estrutural dos m‘tos paralelo 4 pesquiza fonoldgica? E sintomdtico que, A medida que Levi- Strauss avanca em suas pesquizas, se veja obrigado a mudar de paradigma, escolhendo® voltar-fe do mito para a musica, mais do que do mito para a linguagem como o haviamos tentado nas obras anteriores’ ... {Le cru et le euit, pag. $5). Deseebre que os mites duma sociecdade autorizam tédas as combinagées possiveis, se bem que ‘seu conjunto se torne uma linguagem desprovida de re- dundincia: néo importande que combinag&o possua yo- cacio significante tanto como outra, no extremo, poder- sei fazer dizer a cada uma das combinagdes a que se qui- ver {Le eru et le cuit, pag. £ prec’so entao que “a fedundincia, Jonge de ser dada com o eonterida do mito, como se cré ireqtiéntemente, se manifeste no térmo duma redug%o ov duma eritiea As quais a estrutura formal de cada versio serve de matéria prima, apenas trabalhada pela confrontagio metédica do conteude com @ contexto” (heCru .. pag. 0). Isso quer dizer que a redundancia, ou antes téda a trama articulada se revela apés uma redugdo, que embora obedecende as regras determinadas, nao pode supor um sentido préviamen- te dado, como “Les Structures Elémentaires de la Parenté” fa- ziam, A aproximacio entre as mitolégicas ¢ a musica serve exatamente para nos mostrar como 6 possivel apreender a arti- culagéo do significante nao pressupondo nada a nao ser ume significagao em vista. Ora acontece que para os conceifos de oposicao e de pertinéncia nae serem alterados, Levi-Strauss de- ve admitir tacitamente que o mesmo entendimento é capaz de percorrer a mesma diregio em dois sentidos opestos. Eis coma a situagao se apresenta: na andlise do sistema de parentesca parte-se duma significagio prévia (a troca de mulheres) que determ'na a pertinéncia de elementos coneretos (o conceito su- bsume portanto a articulagio do sens{vel); nas Mitolégieas pelo contrario @ sensivel se articula por meio do préprio entendi- iti mento (par cette chose, l'esprit) que por seu prépria movimento cria sentido. O paralelismo com o pensamento kantianoe é evi- dente, (alias j4 assinalado por Ricoeur), estabelecido pois que 4 primeira investigagio se moye no nivel dos juizos determi- nantes e a segunda no nivel dos juizos reflexionantes Poder-nos-iam objetar que Leyi-Strauss nao aceita a dicoto- mia kantiana entre o sensivel eo inteligivel: “No inicio desta introdugio, nés declarivamos ter pro- eurado transcender a oposigio sensivel-inteligivel colocan- do-se desde logo ao nivel dos signos, Com efeita estes ex~ primem um atravéz de outro. Mesmo em pequeno nimery prestam-se a combinag6es rigorasamente ordenadag que podem tradusit, até nas suas minimas nuances téda a di- versidade do sensivel. Assirn esperamos atingir um plano em que as propriedaces légicas se manifostarao coma a butos das coisas tao diretamente como os Sabores, au os perfumes cuja particularidade. excluindo toda o menos prezo, reenvia contudo, a uma combinagio de elernentos que diversamente eseothidos ou dispostos, suscitariam a cons- cinefa de auiro perfume. Gragas 4 nog&o de sipno, trata-se @o nosso ponto de vista, de devolver as qualidades segun- das ao comérein da yerdade, sébre o plano da inteligibili- dade @ n&o mais no plano somente do sensivel, (Le cru... pag. 22). Pele menos o problema sé pée exatamente ao nivel desta escolha e destas disposicées, por que, para nao.super um Deus ex machina que escolheria ¢ disporia os térmos da oposicio dos ‘ignifieanles, & preeiso estabclecer a relagdu precisa entre essa disposigao e seu critéria, entre os elementos minimos da camada significante e a camada significada, de forma que é iluséria a unidade sébre plano do inteligivel no qual Levi-Strauss eré colo- car-se de imediato. Notemas que a objetivaggo do entendimento, que essa Idgica sensivel e perfumada reclama, ndo resolve as dificuldades de sua estrutura e a problematica de sua consti- tuigao, TV — A nocao de reflexao determinante, uma dag molas da dialética hegeliana, é 0 primeiro ensaio para unificar num mo- vimenta iinico do entendimento a Juizo determinante e 9 juizo reflexionante, e cremos também que essa nocdéo nos oferece uma das chaves do primeiro livro do Capital de Marx. Nao é dificil mostrar que este livro eo primeiro capitulo da primeira parte da Grande Légiea de Hegel possuem mutatis mutandis 2 — 58 — mesma arquitetura, Na impossibilidade de percorrer aqui todo esse longo caminho, contentamo-nes em comentar uma frase de Marx que o contém em poténcia: “tere Verausselzung des gesellschaftlichen Peadukions. prozesses ist zugleich sein Resultat, und jedes seiner Rébul- tate erscheint zugleich als Voraussetzung. Alle die Pro- duitionssverhiilinisse, in denen sich der Prozess bewest, sindax daher obensewcchl seine Produkte als seine Bedin- gungen {1 heorien fiber den Mehrwert, teil, 3 pag. 304). Se se toma uma estrutura de parentesco eo esquema da cir- culagée simples das mercadorias nao se acha diferenga essencial no que diz respeito a recolocagao de suas condicdes ¢ pressuposi- <6es — : apdés o primeiro casamento tanto quanto depois da pri meira troca, para garantir a continuidade do processo, é preciso que outros parentes, outras mulheres e outras mereadorias este- jam disponiveis. A realizacao histarica das estruturas pressupde a produgao continua, bioldgica ou social, dog elementos necessa- rios A troca. Pata Levi-Strauss, a necessidade de recorrer niveis mais protundos da producio material é sinal de materia- lismo, para Marx ao contrario, isso significa que o processo ain- da nae perfez seu destine dialético. A aparigao das mercado- tas. nie ¢ sende um simples dado, independente da troca, al- fuma coisa que a experéncia dos agentes constata sem poder dela dar conta, se bem que séja visada pela determinag&o dao va- lor dos ebjetos em questao, A concretizagaio destas intengdes vazias implica portanta o alargamento do circuito da circulagao simples de tal forma que fédas as condicées possam, ser produzi- das no interior do préprio processo; a circulagao ampliada cuja formula ¢ Dinheiro-Mereadoria-Dinheiro, permite a reali do movimento reflexionante, a existéncia e a persisténci. modo capitalista de produgic como um circuite fechado sdbre si mesrno, mas sempre mais vasto, pois que conseguiu integrar o trabalho, a relacao concreta do homer para com a natureza, como o térmo médio dum movimento complexo que se efetua entre os homens. Bis uma diferenca essencial entre o estrutura- lismo € 0 marxismo. O primeiro aceita a teoria classiea da ex- periéncia: o eu varre a multiplicidade do sensivel passando de elemento para elemento, de A para B, nao achando entre éles ne- nhum elemento constilutivo. N&o existe necessidade ao nivel da facticidade pura. Se uma forma de parentescoo subsiste, & por- que outros processos naturais, outras necessidades, continuam a produzir objetos cuja forma “desituada” tem necessidade para aie a completar-se, O segundo pelo cormrario, vé a experiéncia como um circuito fechado sébre si mesmo, que mergulha num objeto para nele encontrar outro gragas a um movimento reflexionante, o eterno retorno. O que é decisivo' para a experiéncia é precisa- mente este retorno (Wiederkerung) que constitui os pressupos- tos e os alarga. A formula D-M-D caracteriza-se por uma refle- xdo que mesmo assim determina um diferencial, a mais-valia, que por sua vez se torna a mola oculta do processo le mesmo. O primeiro D é um dado como qualquer outro mas a medida que a reflexao se processa, o valor procedente da mais-valia o subs- pois que o valor originario é consumido pela classe capi- ta. Em outras palavras, a acumulagio primitiva (0 primeiro D) n&o faz parte da essencia do capitalismo, de sua histéria contemporanea, ela é apenas uma causa de seu devir his- térico, da sua instalacde conereta a partir de outros modos de producao. V — Essa concepgao da experéncia, é evidente, deseja ultra- passar a oposicéo entre a juizo determinante e o juizo reflexio- nante, pois que o movimento reflexionante determina e é deter- minado pela acio. Pelo menos nao é facil compreender o que quer dizer esta reflexéio que opera ao nivel da objetividade ela mesma, para além da oposigac do sujeito e do objeto, que possui uma concrecaio auténoma e contudo tem essa dimensao fantasmna- tica que Marx atribui 4s relacdes capitalistas de produgiio, dian- te da pressio das forcas produtivas. Além disso, é verdade que a reflexéo supée sempre a oposigao sujeito-objeto, como afirma Heidegger? — Subjetivilit Gegenstand und Reflexion, gehéren au sammem (Veberwindung der Metaphysik, XVI, Vortrage und Aufsatze.) A primeira vista parece que a fenomenologia é a recusa mais radical de toda a reflexao possivel, pelo menos a fenomeno- logia hermeneutica de Heidegger. Com efeito, desde os tempos da publicacdo de Sein und Zeit, o ponto de ruptura entre as duas fenomenologias situa-se justamente a préposite dessa refle- xfo de que Husserl fazia.a ancora salvadora contra a tarmenta do psicologismo. Tomemos como exemplo um acontecimentc eurioso. Ao receber o primeiro eshéco do artigo da Enciclopé- dia Briténica, escrito por Husserl e ao Jer esta frase Ist Mrfarenes nur im Frfaren,Gedanke nur in Den- ken, einsigktige Wahreit nur in Kinsehen gegeben und moe- tii glich, so erfordert die konkret allseftige Erforschung der fuer uns seienden und wissenschaftlich cinsichtig Welt auch die universale phaenomenologische Erforschuung der Bewusstseins mannigfalligkeiten, deren synthetischen Wandel sie sich subjektif als die uns galtende und ev. ein- sichitge gestalte”. Heidegger observa diante da palavra “erfordert™, Warum? 4undchst nur rein in der ontolo- gischen Erhellung verlegen ihr gleichsan in Riicker liegen- des Feld® (Husserliana, 'N, 234). Ris o ponto de partida duma polémica que selou o curso da filosofia contemporinea, Para Husserl se a conseiéncia é sempre consciéneia de alguma coisa, nao é& possivel evitar a reducdo, quer dizer, a reflexfio, como o unico meio vdlido para se apode- rar da cadeia consciéncia-mundo. Heidegger, contudo, mergu- lhande o Da-sein no mundo, sempre em perigo de ser engolido pelo on, nao pede conceder nenhuma necessidade a reflexao; to- da a redugao sé é possivel no interior da problematiea do Ser. & evidente, por outro lado, que Husserl encara a reflexfo como condigao estrutural da propria consciéncia, importa bem pouco na historia que esta condigio tenha uma conerecao qualquer. Nao reside aqui o sentido profundo da censura de antropolo- gismo dirigida por Husserl a Heidegger? Se é verdade que a filo- sofia deste Ultimo é o aprofundamente de algumas teorias hus- serlianas, particularmente a nogao de Lebenswelt, ndo podemos todavia dizer que um discurso continua o outro; existe uma ce- sura, uma profunda ruptura que implica opgdes diferentes, im- possivel de ser preenchida dum ponto de vista exclusivamente descrito, Téda a questao esta, de nossa parte, em saber se a ques- tao do Ser nao & ela mesma retlexionante, # sintomatico que Merleau-Ponty, ao aceitar a nogio de abertura, sustente mésmo assim o carateer reflexionante da questao: “que & o mun- de?”, ou melhor, “que é o Ser?", essas questées sd se tornam filoséficas se, por uma espécie de diplopia, visarem ao mesmo tempo que um estado de coisas, a si mesmas como questées-ao mesmo tempo que a significagdo do ser-o ser da significacao eo lugar da significacio no Ser. O proprio da interrogacdo filosdfiea é voltar-se sébre si propria, perguntar-se também o que é interrogar e o que é responder” (Visivel e invisivel. pag. 190) - VI — & possivel que seja o acaso que nos permitiu reunir sob a mesma rubrica questées tio diversas, como a consciéneia eee coletiva de Durkeim, a nocdo de pertinéncia, em Levi-Strauss, © modo de produgao em Marx e a polémica Husserl-Heidegger? Com o problema da reflexdo nfo tocamos os limites da cons- ciéncia burguesa contemporanea, limites bem mais amplos do qué Merleau Ponty julgava quando tentava ullrapassar 9 filosa- fia da reflexdo? Acreditamos que um dos problemas mais dificeis mas também um dos mais frutuoses consiste justamente no bensar esta reflexao que cbsidia os discursos dos antropéloges tanto quanto o dog filésofos. Porque nfo se par A escuta déste rumor que vem da pro- fundidade do discurso? Sao Paulo, Agosto de 1969 José Arthur Gianotti

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