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DIDÁTICA MAGNA

João Amós Comênio


In: Didática magna: tratado da arte universal de ensinar tudo a todos. Lisboa, Calouste
Gulbenkian, 1966, p. 139-140; 145-146; 307; 455.

Que devem ser enviados às escolas não apenas os filhos dos ricos ou dos cidadãos
principais, mas todos por igual, nobres e plebeus, ricos e pobres, rapazes e raparigas, em
todas as cidades, aldeias e casais isolados, demonstram-no as razões seguintes:
Em primeiro lugar, todos aqueles que nasceram homens, nasceram para o mesmo
fim principal, para serem homens, ou seja, criatura racional, senhora das outras
criaturas, imagem verdadeira do seu Criador. Todos, por isso, devem ser encaminhados
de modo que, embebidos seriamente do saber, da virtude e da religião, passem utilmente
a vida presente e se preparem dignamente para a futura. Que, perante Deus, não há
pessoas privilegiadas, Ele próprio o afirma constantemente. Portanto, se nós admitimos
à cultura do espírito apenas alguns, excluindo os outros, fazemos injúria, não só aos que
participam conosco da mesma natureza, mas também ao próprio Deus, que quer ser
conhecido, amado e louvado por todos aqueles em quem imprimiu a sua imagem. E isso
será feito com tanto mais fervor, quanto mais acesa estiver a luz do conhecimento: ou
seja, amamos tanto mais, quanto mais conhecemos. Em segundo lugar, porque não nos é
evidente para que coisa nos destinou a divina providência. É certo, porém, que, por
vezes, de pessoas paupérrimas, de condição baixíssima e obscurantíssima, Deus
constitui órgãos excelentes da sua glória. Imitemos, por isso, o sol celeste, que ilumina,
aquece e vivifica toda a terra, para que tudo o que pode viver, verdejar, florir e frutificar,
viva, verdeje, floresça e frutifique.
Importa agora demonstrar que, nas escolas, se deve ensinar tudo a todos. Isto não
quer dizer, todavia, que exijamos a todos o conhecimento de todas as ciências e de todas
as artes (sobretudo se se trata de um conhecimento exato e profundo). Com efeito, isso,
nem, de sua natureza, é útil, nem, pela brevidade da nossa vida, é possível a qualquer
dos homens. Vemos, com efeito, que cada ciência se alarga tão amplamente e tão
sutilmente (pense-se, por exemplo, nas ciências físicas e naturais, na matemática, na
geometria, na astronomia, etc. e ainda na agricultura ou na silvicultura etc.) que pode
preencher toda a vida, mesmo de inteligências grandemente dotadas que acaso queiram
dedicar-se à teoria e à prática, como aconteceu com Pitágoras na matemática, com
Arquimedes na mecânica, com Agrícola na mineralogia, com Longólio na retórica (o
qual se ocupou de uma só coisa, para que viesse a ser um perfeito ciceroniano).
Pretendemos apenas que se ensine a todos a conhecer os fundamentos, as razões e os
objetivos de todas as coisas principais, das que existem na natureza como das que se
fabricam, pois somos colocados no mundo, não somente para que nos façamos de
espectadores, mas também de atores. Deve, portanto, providenciar-se e fazer-se um
esforço para que a ninguém, enquanto está neste mundo, surja qualquer coisa que lhe
seja de tal modo desconhecida que sobre ela não possa dar modestamente o seu juízo e
dela ss não possa servir prudentemente para um determinado uso, sem cair em erros
nocivos.
Por isso, seja para os professores regra de ouro: que cada coisa seja apresentada
àquele dos sentidos a que convém, ou seja, as coisas visíveis à vista, as audíveis ao
ouvido, as odorosas ao olfato, as saborosas ao gosto, as tangíveis ao tato; e se algumas
podem, ao mesmo tempo, ser percepcionadas por vários sentidos, sejam colocadas, ao
mesmo tempo, diante de vários sentidos.
Desejamos que o método de ensinar atinja tal perfeição que, entre a forma de
instruir habitualmente usada até hoje e a nossa nova forma, apareça clara- mente que vai
a diferença que vemos entre a arte de multiplicar os livros, copiando-os à pena, como
era uso antigamente, e a arte da imprensa, que depois foi descoberta e agora é usada.
Efetivamente, assim como a arte tipográfica, embora mais difícil, mais custosa e mais
trabalhosa, todavia é mais acomodada para escrever livros com maior rapidez, precisão
e elegância, assim também, este novo método, embora a princípio meta medo com as
suas dificuldades, todavia, se for aceite nas escolas, servirá para instruir um número
muito maior de alunos, com um aproveitamento muito mais certo e com maior prazer,
que com a vulgar ausência de método (άμεθοδεία) [ametodéia].

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