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Um outro olhar sobre os olhares da OCDE

Santana Castilho *

Não desisto de convocar políticos e cidadãos comuns para o debate das ideias e para o
exercício de informar com seriedade e verdade. Sem informação e discussão não há vida
democrática.

Há dias foi divulgado o “Education at a Glance 2010”, um olhar já clássico da


Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico sobre o estado dos
sistemas educativos dos países que a compõem. São 472 páginas de uma complexa rede
de indicadores quantitativos, tão úteis quanto perigosos. Esclareço: úteis porque ajudam
a cotejar resultados de políticas, no quadro da educação comparada; perigosos porque
são passados para a opinião pública sem indispensável informação complementar;
porque muitos quadros nunca deviam ser divulgados isoladamente, outrossim em
conjugação com outros que os clarificam e impedem grosseiras conclusões; porque, por
essa via, conferem falsos fundamentos e legitimidade a políticas mais que questionáveis;
porque o seu valor está hoje inaceitavelmente inflacionado e dá origem a uma política
global de educação para problemas e culturas de estados membros bem diferentes;
porque assumem que tudo se pode medir e reduzem as diferentes dimensões da
educação ao interesse exclusivo da economia e do mercado.

Deixem-me fundamentar o afirmado com exemplos, a saber:

1. O primeiro-ministro, bem ao seu jeito e em cerimónias de abertura do ano lectivo,


classificou de feito notável Portugal ter ultrapassado a média da OCDE no que toca á
frequência da educação pré-escolar. É, sem dúvida, uma boa notícia. Só que o Estado e
as políticas educativas seguidas pelos dois últimos governos não tiveram qualquer
relevância na matéria. Das cerca de 4 centenas de novos jardins-de-infância que
contribuíram para o celebrado crescimento, os dedos de uma mão sobram para contar os
que pertencem á rede pública. O avanço deve-se à iniciativa de privados e de instituições
de solidariedade social.

2. Logo que o documento foi publicado, a espuma dos números invadiu a imprensa e a
blogosfera, tendo sido indicados, como custos por aluno, 5.011 euros para o ensino
básico e 6.833 para o secundário. Todavia, se consultarmos o orçamento de Estado para
2008, ano a que se reporta o relatório em análise, encontramos um custo por aluno, no
conjunto dos dois níveis de ensino, que não chega sequer aos 4.000 euros. A enorme
diferença explica-se quando estudamos como é formado o respectivo indicador. E isto
não é explicado. Porque não vende papel e ninguém lê. Porque não interessa à máquina
propagandística do Governo. Veja-se, a esse título, o que o Gabinete de Comunicação do
Ministério da Educação achou relevante e divulgou. Disse que as nossas crianças do
ensino básico passam 889 horas por ano na escola, enquanto a média da OCDE é de 777
e a celebrada Finlândia se fica pelas 600? Claro que não disse! Disse que os professores
portugueses trabalham, em média, mais 83 horas por ano que os seus colegas da OCDE
e têm uma carga horária superior, seja qual for o nível de ensino considerado?
Obviamente que não disse! Disse que os professores portugueses ganham menos que os
colegas da OCDE, excepto no topo da carreira, mas que, para lá chegarem esperam mais
7 anos que eles? É o dizes!

3. “Education at a Glance 2010” tem um editorial assinado por Angel Gurria, Secretário-
Geral da OCDE. São duas páginas e meia de considerações claras sobre a ideologia da
publicação. Não vi na imprensa nem na blogosfera uma só referência a este relevante
texto, que abre uma obra de referência sobre as políticas educativas ocidentais sem uma
só palavra sobre a dimensão humana da educação. “Business”, puro e duro, explicado
com a terminologia dos gurus da mão-de-obra flexível, barata e adaptativa. Traduzo,
livremente, um parágrafo igual aos outros, que é paradigma do género: “… A edição de
2010 mostra que os recursos públicos injectados na educação permitem, a termo, gerar
retornos fiscais ainda mais importantes. Em média, nos países da OCDE, um homem
diplomado pelo ensino superior gera mais 119.000 USD de IRS e contribuições sociais, ao
longo da vida activa, que outro que apenas tenha formação secundária. Mesmo depois
de deduzidas as despesas públicas necessárias à formação superior deste homem,
sobram 86.000 USD, ou seja, aproximadamente 3 vezes o investimento público por
estudante do terciário …” Este naco de prosa não surpreenderá os que têm memória, já
que pertence ao mesmo autor que em Lisboa, aquando da apresentação do relatório da
OCDE sobre Portugal, referente a 2008, afirmou que o que era importante era fazer
reformas, independentemente dos seus resultados.

É preocupante que hoje se aceite, quase de forma consensual, a tradução das realidades
complexas dos sistemas educativos em simples baterias de indicadores. E que daí resulte
uma hegemonia que instituições de cariz económico transnacionais exercem sobre os
académicos e os governos nacionais, substituindo a racionalidade e a cultura pela fé na
engenharia estatística. Basta que recordemos alguns dos objectivos fundadores da OCDE
(promover o crescimento económico sustentável; promover o emprego; garantir a
estabilidade financeira dos estados) e os confrontemos com a situação vivida pelos
cidadãos no seio dos respectivos estados membros, para sentirmos uma comovente
admiração pela fidelidade dos crentes.

* Professor do ensino superior. s.castilho@netcabo.pt

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