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ano 5, vol. 2, set. 2004, p.

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Florianópolis SC Brasil

A alma da cidade. Personagens urbanos de


Florianópolis
Ana Carolina Fackes Yamada

Ao caminhar pelo Centro Histórico de Florianópolis, em Santa


Catarina, Brasil, o que mais surpreende é a forma como o
espaço se encontra marcado, a diversidade de indivíduos,
grupos e formas de apropriação. Neste cenário, que é para ser
vivenciado, todos fazem papel de ator e espectador.

Na rua, uma das principais artérias da cidade, existe o mundo


dos camelôs, vendedores ambulantes, solitários anônimos,
ilustres desconhecidos, turistas, colegiais, pessoas em trânsito,
estátuas, obras de arte, monumentos... Há inúmeras
variedades de figuras, com vestuário, jeito, andar, rosto e
expressões fisionômicas diferenciadas.

Uma multidão caminha com os olhos fixos no chão, nos


ponteiros dos relógios ou nas vitrines das lojas, ou ainda
correm e tomam atalhos com o objetivo de chegar mais
depressa. Sempre presas a uma “ditadura” que surgiu na
época do capitalismo industrial e permanece até hoje com
aumento progressivo de sua intensidade.

Já a Praça XV, primeiro espaço público claramente definido de


Florianópolis, diferencia-se dos outros espaços por ainda
preservar o antigo conceito de praça, da sociedade tradicional,
onde o espaço público é o lugar da vida coletiva, de reunião e
encontro, de lazer. Os velhinhos que se divertem e passam o
tempo jogando dominó, juntamente com artesãos, hippies,
músicos locais e engraxates, dão vida e segurança ao local. O
calçadão da Conselheiro Mafra e Felipe Schimidt e suas
transversais se transformam numa segunda rua de comércio,
com vendedores ambulantes, camelôs, índias guaranis, entre
outros.

Estes espaços urbanos são entendidos a partir de sua


localização e de seus limites, que definem sua territorialidade.
A marcação desse território acontece não apenas por limites
geográficos ou referenciais visuais, mas pela apropriação do
espaço por um grupo que desenvolve uma atividade
específica, dando-lhe uma identidade.

Contextualização do espaço privado no espaço público (1)

Todas as relações que envolvem usuário e meio, sejam estas


culturais, antropológicas ou históricas, determinam a formação
do espaço. Então, “os relacionamentos com o espaço estão
ligados diretamente à estruturação urbana e seu processo de
transformação, seja pelo desenvolvimento tecnológico, modelo
cultural ou pela divisão do trabalho, uma vez que este último
influi diretamente na base dos relacionamentos sociais” (2)

A natureza de um espaço determina os tipos de


relacionamentos entre as pessoas, sendo, portanto, a
conformação urbana um dos fatores que caracteriza a forma e
o tipo de uso que o espaço adquire. Assim, o que determina se
o espaço é público ou privado é o uso que se faz dele. Mesmo
que um espaço seja destinado a um fim específico, nem por
isso desempenhará a função para a qual foi construído. O tipo
de uso ou o não-uso serão determinados pelos valores da
população que o utiliza.

Na sociedade atual, o capitalismo absorve quase todo o


espaço e o repensa em função da utilidade econômica. Quase
toda a cidade mostra sua estrutura a partir dos locais de
trabalho e de consumo (3). A vida extraprofissional é
repensada em referência à vida profissional. Neste contexto,
os espaços públicos, que eram em maior parte locais não-
econômicos, locais de convívio, de encontro coletivo e de
relação com o outro, desaparecem, são re-funcionalizados,
pois são locais não econômicos, não rentáveis.

Além disso, a estruturação do espaço, concebida em função do


trabalho, não considera a presença da marginalidade e da não-
atividade, ou seja, só tem direito de não fazer nada quem tem
um trabalho rentável e não um trabalho gratuito. Isto gera uma
agressão para os grupos que não se encaixam na lógica do
trabalho, como mulheres não-ativas, crianças e velhos.

Também existe, segundo Garcia (4), o caso da apropriação


dirigida do espaço, que acontece em Curitiba, onde a fruição e
as práticas cotidianas de apropriação social acontecem por
influência da mídia. Nesta situação, a cidade é vista como
cidade-modelo e assim há uma consolidação de uma
identidade social-espacial positiva. O problema neste tipo de
política urbana é que a cidade é vista como mercado e o
cidadão como consumidor. E este anseio por consumir mostra-
se como característica direta das classes média. Neste
contexto não é possível saber onde se encaixam as outras
classes sociais. Outra dúvida é em relação à cidade ser vista
como um lugar de consumo. Como na atualidade as
mercadorias são descartáveis, as intervenções urbanas feitas
com este critério também podem perder seu uso e sua função
rapidamente.

O espaço urbano, aberto ou fechado, público ou privado, é


definido pelo uso específico do mesmo, pela atividade
desenvolvida como sendo atividade social de intercâmbio
humano – onde há a necessidade do encontro, do outro, do
alheio ao “eu” – ou como sendo atividade particular, onde o
“estar só” da intimidade demarca limites.

O grupo social ou cultura e a época influenciam nos diferentes


usos que se faz deste espaço e nos diferentes sentidos que se
atribuem a ele. Uma mesma disposição espacial, interior e
exterior, pode ser percebida de modos inteiramente distintos
por dois indivíduos de cultura e realidade social diferentes
(dimensão sócio-econômica), modificando o comportamento,
as expressões culturais e até provocando perturbações
psicológicas nos usuários desses espaços.

A natureza de uso e de quem usa define se o espaço é público


ou privado, diferenciando-se de acordo com os interesses e as
necessidades daquele que, como usuário do espaço, dele se
apropria.

Então, aparece em primeiro plano, o espaço aberto como


sendo coletivo, como sendo espaço público, e o espaço
construído, como sendo espaço privado. Mas, se for definida
aqui, a rua como o espaço público por excelência, não se
poderá, por isso, ignorar que “a rua pode ser privada, quando o
uso privado acontece na rua”.

Assim, percebe-se que a identidade de um espaço é a


identidade de seu usuário ou de seu uso, sendo portanto uma
identidade social. Espaços públicos ou semipúblicos também
podem se tornar privados, quando ocorre a apropriação deles,
ou seja, um grupo de pessoas define e dita suas regras de uso.

Cada pessoa escolhe o espaço onde encontra tipos de


representação e comportamento que são semelhantes aos
seus. As pessoas que não tem nenhuma capacidade de
apropriação sentem-se como estrangeiras. O espaço é uma
extensão, uma projeção da personalidade e portanto deve-se
respeitar este território.

As classes sociais têm interesses e necessidades diferentes, o


que determina diferentes formas de apropriação de um espaço
coletivo enquanto espaço público. O usufruto do espaço
privado também é conseqüência da situação sócio-econômica.
As classes privilegiadas não têm fronteiras, são uma classe
internacional, com interesses e aspirações semelhantes,
mesmo que sejam de origens diferentes.

Os fluxos e a circulação entre um espaço e outro determinarão


rituais que permitem aproximações entre diversos grupos e
realidades sociais, o que determinará os relacionamentos
dentro do espaço social. A engrenagem que move a realidade
urbana, portanto, é esse intercâmbio que surge através dos
fluxos humanos. Assim, a rua como meio de acesso “a algum
lugar”, segundo Nelson dos Santos (5), “é mais do que via,
trilha ou caminho”. Ela possui uma hierarquia, uma vocação,
onde ocorrem eventos e as relações entre veículos e
transeuntes provocam encontros, e o “ir ao trabalho” e os
tradicionais acontecimentos da vida de convívio social cedem
lugar aos jogos, festas, devoções... Tudo isto demarca um
território, uma ocupação variada do espaço rua e uma
especialização de seu uso (pelo modo de apropriação). Deste
modo, ela aparece como o “microcosmo real” do espaço de
relações.

A rua como espaço público é um espaço para ser vivenciado,


para “ver” e para “ser visto”. O indivíduo deve assumir na rua,
comportamentos impostos por um padrão determinado pela
sociedade e deve representar seu papel segundo sua função
social.

Quanto mais é vivenciado o espaço público, mais este tende


para o doméstico (o privado), no entanto, se acontece o
oposto, mais o espaço público é excluído, havendo, não
apenas, uma alienação, mas uma distorção na percepção de
suas realidades. Isto acontece de tal modo que permite que a
violência e a degradação dominem, pois não há controle do
que acontece no espaço externo (desprotegido) e nem são
conhecidas suas rotinas e faces próprias.

Neste espaço, nenhum fato é suspeito e ao mesmo tempo,


todos são suspeitos, o que gera, ainda que inconscientemente,
uma posição de defesa, por vezes, meio agressiva em relação
ao que é do outro, ou se falamos de espaços, em relação ao
público.

Na medida em que há vários grupos que utilizam um espaço,


há em certas situações uma concorrência pelo uso do espaço,
o que torna necessário a existência de certos limites ou regras
de utilização. São acordos permanentemente em construção e
acontecem, a partir deste conjunto de relações sociais.

E mesmo, com os conflitos que as relações sociais podem


propiciar, pode-se perceber, então, que “a rua é um espaço
vital no conjunto social, sendo ela, mais que uma via ou um
caminho de circulação. Ela aparece neste contexto, quando há
integração social, como extensão do convívio doméstico e
familiar para grande família social”. (6)

Estas “novas relações na rua criam novas relações nos espaços


contíguos” (7). Um exemplo disto é a calçada e seu uso. A
priori, o passeio é o lugar das pessoas na rua. Se definir o lugar
das pessoas, estabelecem-se neste espaço valores e atividades
bem específicas, embora não determinemos o uso. O uso é
restrito ao pedestre, embora o repertório de uso seja amplo. A
calçada, assim, em sua ligação social pode abrigar usos tais
que aparece como segunda rua de comércio. Um exemplo disso
são os “hippies” e camelôs. E neste exemplo encontra-se
inclusive, o domínio de uma área pela especialização de uma
atividade.

Continuando a análise, percebe-se que, dependendo do


referencial adotado, um mesmo espaço pode ser público ou
privado. Enquanto para o “hippie”, o espaço chega a assumir a
idéia de doméstico, pela relação que tem com o mesmo, do
ponto de vista dos passantes, o espaço é totalmente público, ao
qual todos tem acesso. Pode-se observar, então, que posturas
e comportamentos diferentes constroem diferentes signos e
valores na consciência das pessoas, dependendo da função
desempenhada.

Assim, segundo Santos, “cada sistema é um palco, tem um


suporte material, um tipo de valorização no “consciente” social,
script, texto ou ação, onde atores desempenham papéis de
acordo com o referencial que adotam. Um sistema de espaços
só existe em conexão com um sistema de valores” e estes
valores surgem de acordo com a visão e a relação que se tem
do espaço dentro do próprio espaço como usuário ou apenas
como observador deste.

Quem usa o espaço, habita no mesmo, pois este é parte de seu


contexto, ao contrário de quem observa, assumindo uma
posição dentro do espaço que é, na verdade, “o outro”, alheio e
sem vinculação direta à realidade específica do espaço. Este
tipo de relação dentro de um espaço essencialmente público
poderá determinar seu caráter como exclusivamente público ou
transformá-lo num espaço privado.

As ligações e divisões espaciais estabelecem preferências e


valores e como conseqüência diferentes eixos de percepção. A
assimilação do espaço e a personalização de seus signos
dependem e são definidas pelas relações humanas que atuam
no mesmo. Essa questão está diretamente ligada à questão
social e as implicações que esta provoca na morfologia
espacial.

Apreender os significados do espaço público e do espaço


privado depende não apenas do contexto de espaços
construídos ou não, mas do contexto de percepção dos limites
através da vivência social.

Por conseqüência, o espaço e seu caráter dependem da posição


que assumem os usuários entre si e em relação aos seus
respectivos espaços. E os espaços, portanto, não serão jamais
singulares, mas passíveis de absorver uma nova função.

Conclusão

Caminhar, assumindo o movimento da alma, como dizia o


filósofo Plotino, com um olhar sensível como a luz, captando
imagens, apresenta-se como a melhor maneira de entender a
cidade.

Já que elas são ruas, avenidas de troca e comércio, o


aglomerado físico de pessoas, uma multidão caminhando nas
calçadas movidas por curiosidade, surpresa, pela possibilidade
do encontro, a vida humana não acima da confusão, mas no
meio dela. (8). Por isso, é necessário que os planejadores
urbanos vejam a cidade através dos pés, e não de cima de uma
prancheta.

Notas

1
O espaço privado visto não como propriedade privada, mas como uma
forma de apropriação do espaço público, que o torna de certa forma
privado.

2
REMY, Jean; VOYÉ, Liliane. La ciudad y la urbanización. Instituto de
Estudios de Administracion Local. Madrid, 1976.

3
Segundo Karl Marx, o trabalho e o consumo são indissociáveis, gerando a
mercantilização do espaço, que se torna mercadoria. Um exemplo claro da
privatização do público, são os shoppings centers. “Contribuição à uma
economia política”.

4
GARCIA, Fernanda E. Sánchez. Curitiba anos 90: a imagem urbana
revisada. In Imagens Urbanas: os diversos olhares na formação do
imaginário urbano / organizada por Célia Ferraz de Souza e Sandra Jatahy
Pesavento. Porto Alegre: Editora da Universidade / UFRGS, 1997.

5
SANTOS, Carlos Nelson F. dos (et al.). Quando a rua vira casa. 3.ed. São
Paulo: Projeto, 1985.

6
ARAÚJO, Tânia Guedes de; Yamada, Ana Carolina Fackes. O privado no
público e suas relações. Trabalho desenvolvido na disciplina Teoria da
Arquitetura I, ministrada por Lino Peres, no Curso de Arquitetura e
Urbanismo. UFSC, Florianópolis: junho, 1997.

7
SANTOS, Carlos Nelson F. dos. Op. cit.

8
HILLMAN, James. Cidade & alma. Coordenação e tradução Gustavo
Barcellos e Lúcia Rosenberg. São Paulo: Studio Nobel, 1993.
Bibliografia complementar

CORREA, J. de A.. Ética: a responsabilidade técnica e social do arquiteto.


Notas do Seminário proferido no VI Congresso da ABEA. Salvador, 1993.

FERRARA, Lucrécia D’ A.Ver a cidade: cidade, imagem, leitura. São Paulo:


Ed. Nobel, 1988.

_________. Olhar periférico: informação, linguagem, percepção ambiental.


São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1993.

_________. Cidade: imagem e imaginário. In Imagens Urbanas: os diversos


olhares na formação do imaginário urbano / organizada por Célia Ferraz de
Souza e Sandra Jatahy Pesavento. Porto Alegre: Editora da Universidade /
UFRGS, 1997.

POE, Edgar Allan. O homem da multidão. Tradução de Dorothée de


Bruchard. Edição trilingüe. Porto Alegre: Ed. Paraula, 1993.

VAZ, Nelson Popini. O Centro Histórico de Florianópolis: espaço público do


ritual. Florianópolis: FCC Ed., / Ed. UFSC, 1991.

VOYÉ, L.. A cidade e a urbanização; a ordem e a violência. (entrevista);


tradução Vera Helena Bins Ely. Síntese: revista de arquitetura, Imprensa
Universitária – UFSC, 3, p.67-76, 1991.

YAMADA, Ana Carolina Fackes. A alma da cidade. In: CONGRESSO


NACIONAL DA ABEA. (9:1999: Londrina-PR) (16:199:Londrina-PR).
Anais... Londrina: UEL, 1999. p. 111.

_________. A alma da cidade. Trabalho desenvolvido na disciplina História


da Arte, Arquitetura e Urbanismo I, ministrada por Lino Peres, no Curso de
Arquitetura e Urbanismo e na disciplina de Fotojornalismo III, ministrada
por Ivan Giacomelli. UFSC, Florianópolis:, 1999.

Ana Carolina Fackes Yamada é arquiteta, urbanista, designer e fotógrafa. Graduou- Minha Cidade 111 – setembro 2004
se com Mérito pela Universidade Federal de Santa Catarina (Florianópolis-SC), em
2002. Ainda cursou Desenho Industrial pelo CEFET-PR, em 1993. Atualmente atua
em Curitiba no Grupo Cubo Arquitetos Associados
Fórum de debates
Elvio Garabini
Gelse Yuri

Minha Cidade 111 – setembro 2004

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