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METAMORFOSES 3 CAMINIO CCétedra Jorge de Sena para Estudos Literiios Luso-AMto-Brasileicoy UFRJ GS ‘TRES FACES DE EVA: IMAGENS DO FEMININO. NA POESIA MEDIEVAL GALEGO-PORTUGUESA Helder Macedo” Foi Stephen Reckert quem me abriu as portas do mundo da poesia medic- val galego-pormguesa. De inicio, no entanto, a magia desse mundo pareciaeme estar ‘Fila, dade-os a eRe» (Re M,p. 184) 0 conselho poderd ou nio ter sido dado pela mée da moa ~ «madres po- de simplesmente significar uma confidente ferninina mais velha e mais experien- te~ do mesmo mado que «el-Reis pode nao ser literalmente o monarca. Mas o «que ni ha divida & que o poema se refere a umnatransagio sexual, quer se trate de uma exigéncia relacionada ao droit du seigneur ou de qualquer outro neg6- cio menos senhorial. £ evidente que esse homem poderoso, quem quer que ele seja, deseja muito mais que os cabelos da jover, que so o correlativo objetivo ‘ou, ainda melhor, a sinédoque, do seu corpo. E a mulher mais velha eexperiente simplesmente diz jovem que lhe dé o que ele quer, como se néo tivesse ou- tra escolha, Isto deveria ser matéria de uma cantiga de escérnio, e no entan- to nao é. Se pensarmos um pouco na situacdo retratada, podemos até concluir que, por trfs da charmosa vinheta medieval, com toda a sua ingenuidade lii- «a (exceto que os trovadores medievais era tudo menos ingénuos), hi ura pragmitica aceitagdo da prostituicdo, com os beneficios materiais para a over implicitos no estatuto real do homem que pede os seus cabelos, e com a ama dre» desempenthando o papel de uma celestinescaaleovitira a encorajar tra sagio. : ssa sutil mas nada inocente cantiga de amigo, onde os cabelos significa 0 compo sexualizado da malt, pode ser exlsticamene associada a uma das ras obscenas cantigas de escério dos Cancioneiros, escrita(provavelmente pouces dé- “Tits faces de Bra. 207 ccadas antes) por Pero de Ambroa, que também utiliza a sinédoque como artficio estrutural. A primeica estrofe diz o seguinte: Pedi en cono aun molh « peiuemfea cen soldas entong cede I’ex log: ‘mal sem razon sme demandattes; mais, se vos prouguer, fazed ora ~ © faredes melhor ~ 1a soldada polo meu amor ade parte, ca no ei mais mester (PT, p. 60) Ou seja: tendo a mulher exigido 0 pagamento de com soldos em troca do seu corpo, o poeta-cliente decide barganhar, e no procssso desconstr6i o attficio rerdrico da sinédoque. O que ele dese ~ esclarece ~€ apenas uma parte espect- fica do corpo, néo precisa do corpo todo. E-argumen:a que até mesmo 0 ouro s6 € pago em pecas, moeda a moeda; que no mercado acarne e os legumes também 86 sio vendidos aos pedagos, € que no seu caso nao precisa, por exemplo, do tumbigo, nem sequer tera de Ihe tocar, é que pode perfeitamente tet a parte que Pretende entrando-the por trés. O poema é exttaordinariamente engenhoso na sua ‘obscenidade ¢ desenvolve um tipo de humor grosseito que poderia ser descrito, em termos modernos, como surreal. ‘i mencionei o trovador Dom Joio Soares Coelho, possivelmente 0 mesmo Joao Coetho a quem Pero Garcia Burgalés tera revelado o verdadeiro nome da sua ‘amada~talvez Joana, Sancha ou Macia. Descendente de hontado Egas Moniz, Dom Joi foi um dos eavaleiros que acompanharam Dom Afonso Ill na conquista do Algarve, Um niimero raaoavelmente grende de seus pocmas ~escritos nos rés medos de cantiga ~ chegou até nés, rornando possvel comparat as diversas perspectivas que ele adota no uso desses géneros. Numa de suas cantigas de amor hé também um clemento surrealista de desconstrugio por sinédoque, semelhante ao que encontta- ‘mos na cantiga de escdenio de Pero d'Ambroa, na forma como manipula o motivo trovadoresco dos olhos como instramento do anor. Nesta cantiga («Non me soub'e ds meus olhos melhor), a sinédogue dos olhos para sigrifcaro sentimento do amor 6 tratada de forma absolutamente literal. O poeta decide vingar-se do sofrimento tanto através dos olhos quanto neles préprios, como perceptivamente demonstrou Alexandre Pinheiro Tortes, ao consideri-los como «parce fora desi, quase uma en- tidade estranha, um inimigo que precisa aniquilars*, Mas esta attude, que implica a possibilidade de amputar a esséncia dos seus sentimenios experimentados através do olhar, reduplica osofrimento, porque afinal os seusslhos sio e sempre foram a expressio de si pr6rio. Conclui o poema declarandb: Erna venganca que deles prend, Gran mal per fiz a eles ea mien. (0, p. 170) 208 Cates ‘a mais bela é possivelmente uma em que as cantigas de amigo de Coelho, a mais bela ép : usa um entedo reiente no gnero joven: que va fot avaros abelon encontta 0 seu amigo. O tema é 0 mesmo da algo mais explicita cantiga de ‘Meogo que comesa Levous's lougana, levous'a vida, vai var eabelos a fontana fra Jeda dos amores, dos amores leds i veado (0 «cervo do monte») «vol- «que culmina com 2 imagem de urn simbélico veado (0 ae endo agua» (Re M, pp. 112-113). Na catia de Jo8o Soares Coelho, aj std também descrevendo a consumagio fisca do amor, o cabelo éigualmente ws- tizado para significa a sexualidade feminina, ¢ a mie ~ a mulher mais velha~ é mais, ‘uma veza confidente a quem a jovery confessa a consumagio do seu amor: Fui en, madre lavar mevs cabelas la Fonte, € pague-meu dels demi, loi, ui en, madre, var mas garceras ala fonts, e paguet-m’eu delas fede mi, longa. ‘Ala fone, e paguei-m’eu deles: a6 ache, "nad, 0 senior dees de mi hngia. Ante que meu dal parse, fui pagada do que m'el disse, de mis louga. (R © M, p. 132) Joo Soates Coelho & 0 mesmo tempo um rovadorconesivalmente come plex, em is cron canis de sor em gue us 2 selene des oon octicamente sui, como se pode ver na cantign de ami jovemg ‘3 fonve, Felando da perspectva masculina na cantiga de amor, ele iment de seamen gensio um tpico desantade da sadn ove 3 son i i nos dé uma imagem do 2 voz feminina na cantiga de amigo, cle nos a i cualidade assumida € m ificante da consumacio do desejo numa sex aay fe satisfetta, Mas este trorador complezoesutl & também james de canis “de escérnio e maldizer incrivelmente obscenas. Uma delas ultrapassa 7 mites do abjeconiamo es, com parece, eta de uma canigaaobiogsé fica, revela ainda a mais extraordindriacapacidade de autoderrsio. E 0 pe que comega: “Tes faces de Eva. 209 Laaia Sinchez, jzedes em gran falha , € mesmo sensandecer® ~resulraram em mada, Como diz ma segunda e ter- cera esttofes do poema, compor esse tipo de cantiga havia sempre sido um pro- blema para ele, ¢, ainda por cima, as mensagens transmitidas a sua amada eram sempre mal-recebidas por ela. De repente, no entanto, disse a verdade e tudo mur dou: eto per coita grande soft ‘mais ci dela quant aver coda Sandice e morte gue busquei sempre i! E-seu amor me dev quant hascaval (PT, p. 308) © que a dona finalmente Ihe dé ndo é, portanto, a remota espiitualidade de um amor que se bastasse a si mesmo e que, por iso mesmo, se pudesse sat fazer sem a participagio dela, mas afnal o tipo de amor que ele prdprio sempre desejars. Tudo o que a amada havin rejirado eram of seus enfadonhos métodos de seducio ¢ néo os seus descjos de esandice ¢ morte» que, pelo contrério, ela estava desejosa de compartilhar em vez de deixi-lo sofrer sozinho por sua causa. Sandice e morte adquicem, assim, sentido alrernativo de abandono sexual. Logo due os mal-entendidos sobre as intenges supostamente castas do poeta se escla- zecem, a amada ja lhe pode dar o amor que afinal ambos sempre desejaram. Dom Jodo Garcia de Guilhade nunea nos detxa levar excessivamente a sé- tio aquelas caractristicas da pocsia medieval galego-portaguesa que #8 tomnariam, ‘ou insuportavelmente obscenas ou enfadonhamenteestereotipadss. Como Stephen Reckert jf notou, Guilhade tende a fagir as convengées (R e M, p. 89). E Reckert também assinalow que para este prolifco e irreverente trovador a realidade do amor, mesmo nas suas formas mais cruas, pode ser altamente poética (e matéria de aka poesia), mas nunca apenas eliterstiae (R e M, pp. 95-96). Esta justa per cepgio da obra de Guilhade também nos deve encorajar a rele outros poeta cujas Tres faces de Eva. 213 cantigas de amor escétnio ¢ maldlizer ratura, Possam parecer excessivamente literdrias e cujas cantigas de possam no parecer dignss de serem consideradas somo lite * Stephen Recker e Helder Macedo. Do Concioneivo de Ani hc ee el C de Amigo, Documenta Posies, 3. Lis 1576 Tawa io ao ‘agp Sebniinte forma: Re M, seguida da indicagio de pagina Sree -# ordi sme ani hen a acts eats, por bem de ede tem Pao, ved mig gu gue sede qc ee ds bis nea aus 17 aa por a ene sn de eas ae lait, feamen ango lions Nese se TASS ee ener en on pata pcm eae ogee __ Emer gher stale lin cpa plenty ag Mee it de Tendo. lin 7. fom see fe i i Sos lhe escravzam o apsionade, or qu no vigor o Psa deles? (Dist nesa ies a ctcunstincis curios de 0 tovadorconsder-os como part ora d 5, use tama entidade esranhe, um iimigo que precise angular. .}& esta cuoss rn tent tra de amputsgio que 0 trovador vi levaraeabo fe (FE p. 71) (eadugio: Teresa Cristina Cerdsira)

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