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‘Augusto. O que 6 cultura popular. $80 Paulo, Brasiliense, imeiros passos,n. 36) Pensar a questo cultural brasileira na década de 80 6 pensé-la democrat ccamente, Para tanto, é preciso aprender a conviver com a sua dimensfo real e objetiva, reconhecendo a heterogeneidade dos elementos que a informam. & apreender essa diversidade como produto de homens concretos que se relaci 1am em sociedade. € fundamentalmente conhecer os processos que stuam diale- ticamente na composicfo de nossa dindmica sécio-cultural. €, em suma, desco- brir a realidade brasileira que, como jé dizia Alofsio Magalhdes, “‘contém riquezas ue ainda permanecem desconhecidas e como que protegidas por um imenso ta- Pete que as encobre e abafa”. Descobri-las constitu, sem dvida, o grande desa- flo que se coloca tanto para 0 Estado, como para a sociedade civil, no Brasil de abertura politica. ‘Ao propor que se projete 0 foco de atenefo sobre “o que as culturas efe- tivamente so, ou melhor, sobre como elas so produzidas, sobre os processos através dos quais elas se constituem ¢ o que elas expressam’, 0 Prof. de Antropo- logia Antonio A. Arantes, da UNICAMP, contribui decididamente, com esse seu novo livro, para @ superacio desse desafio. Como antropélogo, 6 na Antropologia, Social que vai encontrar os elementos tebricos que orientam sua anélise. Como Iiwestigador social, 6 nas pesquisas sobre o modo de vida e a produco art das classes trabalhadoras, a que se tem dedicado em especial, que consti a base ‘empirica de sua reflexéo sobre a cultura em geral, e sobre a cultura popular em 1 & Trp, Recto, 11(1): 125-148, jan jun, 1989 146 Recentbes especifico. Da_ unio dessas duas perspectivas, que sfo, aids, inseparéveis, conse- {que transmitir, em linguagem clara e acessivel, a realidade cultural em sua dind- mica e pluralidede, fornecendo, a partir da observaglo de situacSes concretas, olementos indispenséveis 8 compreensio do atual processo cultural brasileiro. 0 livto esté dividido em trés caprtulos, correspondentes 20s trés estigios mediante o& uals se desenvolve a andlise. No primeiro capitulo, detém-se Aran- ‘tes no exame da multiplicidede de signiticados com que se reveste, entre 6s, 2 ‘expresso “cultura popular”. De um nBo-saber ao papel de resistencia contra @ ‘dominagSo de clase, o conhecimento dessa realidade cultural é dificultado face @ uma pluralidade andrquica de significages e manipulagGes as mais diversas, Sis tematizando 8 sua anélise, direciona-a para as concepe6es que so predominan- tas em sociedades estratiticadas como a nossa, retomando a questo da resistn- do “popular” & dominago declasse 0 examinar,no terceiro capitulo, a cul- ‘ura popular em sua vertente politics. Para 0 autor, duas sf0 as concepebes pre dominantes: a) “Cultura popular" por contraste 20 termo genérico “‘cultur ‘onde @ primeira aparece como um nfo-saber, o que significa dizer que 0 “/povo no tem cultura". b) “Cultura popular” como suporte de uma ideallzacgo ro: mantica da tradigdo, isto 6, como um conjunto de elementos tradicionais que te ‘mam em resistir a um processo de decadéncia, o que significa dizer que ‘a cultu- +a popular sfo as nossas tradi¢6es”, Esta concepedo, segundo Arantes, tenta re solver, sem sucesso, 0 seguinte paradoxo: conquanto 0 “popular” nfo seja cons derado “cultura”, 6 através de fragmentos de “coisas populares” que se procura ‘expressar, entre nbs, a identidade nacional Procurando demonstrar 0 caréter manipulatorio dessas concepe6es, real 22 0 autor, no segundo capitulo, uma digressao sobre o conceito antropolbgico de cultura. Este é 0 ponto alto do livro e que orienta toda a andlise. Valendo-se da contribuigo de Lévi-Strauss, Malinowski e Leach, concebe que “interpreter 0 significado des culturas implica em reconstituir, em sua totalidade, modo como (08 grupos se representam as relacSes socials que os definem enquanto tals, na sua estruturago interna e nas suas relages com 0 outros grupos e com 3 natureza, nos termos @ a partir dos crtérios de racionalidade desse grupo”. E esta perspec- tiva que possibilite recuperar a “no¢do de que, mesmo em sociedades relativ ‘mente homogéneas, os sistemas culturais comportam incoerénclas". Estas incoe- rincias, que atestam @ heterogeneidade cultural, softem, nas sociedades politic mente centralizadas, um processo de homogenelzag&o, que, segundo Arantes, procura erlar, através de mecanismas institucionais, "a ilusfo de homogeneidade sobre um corpo social que, na realidade, é diferenciado”. ‘A originalidade de sua andlise, contudo, esté quando defende a existén- tla, na base da sociedade, de uma heterogeneidade real que ¢ resistente a esses ‘mecanismos culturalmente homogeneizadores, seja porque a interpretacio dife- Ch & Tebp. Recta, 11(1): 125-148, jan jum, 1983 Recentbet 147 rente de um mesmo conjunto de simbolos reproduz “metaforicamente as di rencas que realmente existem e continuam sendo objetivamente reproduzidas seja porque “a partir da interpretaedo de um mesmo material simb6lico (portan- ‘to, no interior de um campo cultural relativamente homogéneo},recriam-se for- mas de sociabilidade, modos de organizacdo ¢ expressam-se interesses que po- dem se contrapor aos padr8es @ interesses dominantes"”. ‘A partir dessas reflexes, onde @ questio cultural se articula com 0 pol/= tico, isto 6, com 0 universo das relagtes entre grupos socials, a andlise desenvotvi- dda por Arantes penetra na realidade brasileira, detectando, na dimensfo politica do popular, a questo da participapio. E isto ele o faz através do exame de ‘dust situages coneretas. A primelra, a0 se transportar ao Museu do Ipirange, numa tarde de domingo, quando constata que a maior parte de seus visitantes prefere “a sombra fresca des érvores @ o aconchego dos arbustos”,transforman doo ‘em “agradivel e descontra/do parque de esportes e diversées", em vez de apreciar “os objetos e fragmentos que ele abriga’. Para Arantes, dé-se, dessa forma, a “apropriacS0 popular dos espacos sagrados”, pois 0 povlo, mesmo ‘tendo conhecimento do seu significado oficial, transforma simbolicamente aque- le espaco cultural, “redefinindo as fungBos dos equipamentos existentes segundo _ suas proprias necessidades e conceprdes”. A segunda situagdo concreta exami nada pelo autor diz respeito @ uma pesquisa por ele realizada em um bairro ope- ‘rio da periferia da cidade de So Paulo, na qual buscou apreender, através de ‘uma andlise sobre a trajetéria da produefo cultural do segmento identificado pe- los proprios moradores como artésticos populares, a realidade dai dintmmica cultural desse grupo social, detectando, através do exame da politica local, os Constrangimentos que dlficultaram ou tentaram impedir, nesses Gitimos 50 anos, a articulacfo efetiva de suas manifestagdes culturais. Continuando sua andlise, Identifica a superago desset obstéculos com a criaefo, pelos produtores culturais locas, de espacos alternativos fragmentérios e dispersos, onde “ pequenos.grupos de vizinhos, amigos e parentes, companheiros de trabalho, de igreja ou de partido desenvolver as suas formas de expresso, a partir de suas manciras de pensar, de ‘gir, de fazer e, sobretudo, de organizar conjuntos de relagSes capazes de tornar vidveis, politica e materialmente, as suas atividades" Deslocando a andlise do nivel do objeto ou produto cultural para o ntvel do “fazer” que lhes ¢ subjacente, consegue Arantes, dessa forma, penetrar na rea lidade da dindmica do processo cultural brasileiro, © de qualquer outro. Dentro dessa perspectiva, diz, talver se compreenda que as manifestacGes culturals fazem parte de uma luta constante pela constituiglo da identidade social. Nesse se do, conclui, “fazer teatro, milsica, poesia ou qualquer outra modalidade de arte 6 construir, com cacos ¢ fragmentos, um espelho onde transparece, com as suas roupagens identificadoras particulares, e concretas, o que é mais abstrato e geral Gh & Trip, Recife, 111): 126-148, jan un, 1983 148 Fecensdes ‘num grupo humano, ou seja, a sua organizaglo, o que & condigo e modo de sua participacdo na producdo da sociedade". Este 6, para 0 Prof. Antonio A. Arantes, 0 sentido mais profundo da cul- ture popular ou de outra. Espere-te que o sea, também, de todos os que se preo- ccupam, atualmente, com a cultura brasileira e a consolidaco do regime democré- tico neste pais. ‘Affonso Cozar B. F. Pereira Fundoro Josquim Nebuco Ch & Trp. Recife, 11(1): 126-148, fan fun, 1983

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