A crise jurídica brasileira no decorrer do tempo e suas causas.
Tomas Hobbes fala de um estado de natureza onde o que
determina as ações é o livre arbítrio. Esse estado é caótico onde se trava a, por ele designada, “guerra de todos contra todos”. É relativamente fácil pensar que tal estado é devastador em diversos sentidos: os recursos naturais que a Terra dispõe podem ser vastos, porém finito, a vontade humana, no entanto é infinita e, hora ou outra, quando a vontade ultrapassar os recursos, a Terra en traria em colapso; tem-se nesse estado também o livre arbítrio que, em sentido estrito, possibilita que nossas ações sejam completamente arbitrárias, não necessitando que qualquer contexto seja levado em consideração. Essas proposições que podem parecer absurdas seria o estado primeiro e de onde o ser humano deveria sair, uma vez que viver assim seria insustentável. Diante disso o grupo humano acordaria se abster tanto da vontade, quanto do livre arbítrio em sentido estrito para que uma vida em sociedade fosse possível. Para Hobbes o poder ordenador capaz de gerir a socieda de seria o soberano, ele deteria o poder em suas mãos enquanto a sociedade teria a vontade e o arbítrio bem restritos de modo que não conflitasse com a vontade do soberano. A vontade do soberano passaria a ser a vontade geral. Entretanto, ainda que as vont ades e o arbítrio fossem regulados, haveria ainda um ser onipotente que poderia ser arbitrário. Nada o impediria de agir negativamente caso assim o quisesse fazer. Não teria nenhum poder capaz de regulá -lo também. Diante disso podemos inferir que um ordena mento jurídico válido deve ser capaz de orientar todos os segmentos da sociedade, inclusive os governantes. O Brasil vivenciou uma experiência em que o poder do soberano na figura de Dom Pedro tinha primazia sobre os demais segmentos. A experiência democrá tica não pode ser plena quando há um segmento ou vários que detém poderes enfreáveis. A população não se sente segura e nem mesmo o próprio ordenamento que presencia uma figura intocável. Montesquieu ao viver sob julgo de tiranos e influenciado por seu antecessor J ohn Locke e pelo filósofo Aristóteles concordava que deveria haver uma tripartição de poderes sendo eles de igual relevância e se equilibrar entre a autonomia e a intervenção nos demais poderes. Nesse sistema vemos que não há margem para abusos arbitrários uma vez que os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário mesmo sendo autônomos, se regulam. Essa teoria veio muito a calhar em uma Europa que se libertava da tirania dos soberanos e que precisava moldar a sociedade para que não houvesse mais tempos em que a vontade de um único ser fosse superior que a vontade de toda uma sociedade. O poder judiciário assume, nessa teoria, um papel fundamental na manutenção da sociedade. Antes o poder tanto de fazer quanto de aplicar, repousava na figura do soberano. Agora houve uma cisão entre a figura do que faz as leis e de quem as aplica. O ordenamento ganha mais especificidade e complexidade uma vez que existem pessoas competentes só em fazer leis enquanto existem responsáveis só em fazer cumpri -las. O Brasil adotou essa teoria para guiar a sociedade quando rompeu com a metrópole e se t ornou uma nação independente e até hoje mantém esse sistema. É cada vez mais comum o tema da crise no judiciário brasileiro, e se analisarmos mais a fundo, vamos notar que é uma crise que assume diversas formas, mas que perdura desde os primórdios do sistema tripartite. Logo no início foi implantada uma forma degenerada da teoria de Montesquieu. O Poder Moderador conferia ao imperador o poder do Não. Isso implicaria que as ações tomadas pelos 3 poderes poderiam ser vetadas segundo a vontade e interesse do soberano. O Judiciário aqui não tinha plenitude nas suas ações, o ordenamento continuava seguindo a vontade do soberano vigorando as leis e aplicações que melhor lhe interessasse. Após o período degenerado do Poder Moderador veio a República e com isso os 3 poderes passaram a ser autônomos. Nesse contexto o ganho que se teve foi imensurável uma vez que a tripartição dos poderes estava como deveria ser sem a figura de um ser que fosse intocável. Entretanto vejo que nessa época o legislativo se degenerou uma vez que se instaurou a política do café com leite reunindo os maiores colégios eleitorais do país (São Paulo e Minas Gerais) para garantir a eleição de pessoas que seriam eleitas não pelas propostas que tinham e vontade popular, mas por interesses de um punhado de pertencentes da elite agrária brasileira. Houve certo comodismo do judiciário e executivo nessa questão pois era claro as irregularidades que haviam como por exemplo: voto de cabresto, curral eleitoral, dentre muitas outras formas de garantir a eleição. E nessa questão eu volto atrás ao dizer que nessa época a tripartição dos poderes era como deveria ser e como Montesquieu propôs. Faltava aqui a intervenção dos demais poderes para que o legislativo não fosse tão irregular. Prova disso é que em 1930 houve uma nova cisão, mas, novamente foi de ordem política. A era Vargas, de novo, retraiu a experiência da tripartição de poderes, o Estado Novo e a nova Constituição colocou a figura de um soberano que, novamente estava a cima dos poderes que guiavam a sociedade. A crise que o ordenamento jurídico vivenciou aqui foi a falta de autonomia. Não se pode ser imparcial quando há um poder que determina e qualifica suas ações. Após a saída de Vargas houve um período em que as eleiç ões voltaram a acontecer, mas quase como se fosse no período do café com leite. O controle e rigorosidade quanto a fraudes eleitorais pouco era combatido. Do governo Dutra até João Goulart podemos classificar como uma certa calmaria, visto a tempestade que estava por vir. Em 1964 o Brasil passou por uma crise que afetou todas as áreas da sociedade. A experiência da ditadura militar foi a pior experiência de governo que o país poderia ter. não só a estrutura de poder foi transformada como também t oda a sociedade. O governante que era amparado pelas forças armadas suprimiu as liberdades pessoais, modificou a constituição e colocou em segundo plano a atuação do Legislativo, Executivo e Judiciário. Não havia autonomia para que o judiciário pudesse atu ar assim como aconteceu em períodos anteriores. A luta para que esse regime caísse foi enorme e mesmo assim houve resistência perdurando por 21 anos de uma época marcada pelo autoritarismo, tirania e irresponsabilidade social. No pouco tempo em que vivenciamos a democracia a qual propôs Montesquieu, percebemos que é marcante a instabilidade. Ora os poderes se harmonizam, ora se opõem ou, ainda, há quem queira degenerá-lo. Nesse sentido a Constituição de 1988 serviu para dar mais segurança e refutar a experiência da ditadura. Os poderes passaram a ser sólidos como nunca dantes foram, mas nem por isso deixou e deixa de haver crise. A crise jurídica atual se dá, ao meu ver, no comodismo, na falta de preparo e nas brechas. Todos os poderes existem para servir e dar segurança para a população, logo, toda atuação deve ter como foco principal o próprio cidadão. O que o legislativo demonstra são focos completamente dispersos. Há interesses específicos em aprovações de leis que beneficiem apenas alguns segmentos da sociedade enquanto a grande maioria carece de atenção e fica a mercê de migalhas que lhes são oferecidas. Não acho que vivemos numa democraci a plena, é bem verdade que temos o direito e poder do voto e, teoricamente, nós que escolhemos o poder legislativo, uma vez que será a nossa voz. Mas esse poder é cheio de enlaces, muitas decisões que são tomadas e posturas não reflete a vontade geral e o desejo da população, a representação deve ser feita a partir de preceitos, ideologias e interesses que sejam previamente bem distintos. Em vez disso vemos um grupo político que ora toma posicionamentos progressistas, hora conservadores, não que isso não se ja possível, mas a questão tocante aqui é o interesse por trás dessas tomadas de posições. Há um conchavo para que ora um grupo, ora outro seja beneficiado. A população que vive em sociedade espera que a representação seja reflexo de seus intentos e não um instrumento de poder para que uns poucos demandem decisões recheadas de arbitrariedade. As normas jurídicas seguem a tendência que o legislativo propõe. Há na nossa Constituição inúmeros artigos e não menos emendas que procuram regular um pouco de tudo. Teoricamente isso é excelente ao dispor sobre diversos temas nos artigos, porém, o que se vê é uma lei em dois mundos: em um desses mundo há rigor ao extremo com a aplicação de leis seguindo o texto e penalizando muitas vezes de forma excessiva o u até mesmo irregular; no outro mundo vemos a aplicação dessas leis de forma branda. A população carcerária em quase sua totalidade é composta por pobres e negros, isso não é nenhuma coincidência e nem mero acaso. A maior parte da renda se encontra nas mão s de brancos. Vemos aqui uma seletividade com fortes tendências para punição para um segmento enquanto outros se beneficiam. Por último, mas não menos importante vejo um despreparo dos aplicadores da lei. O curso de Direito é dos mais visados que existem p elos estudantes e as escolas se multiplicaram a ponto de baterem recorde mundial. A questão é que essa indústria se preocupa em formar, mas, em muitos casos, pouco interessa o tipo de profissional que ela forma. A ciência do Direito é riquíssima nos detalh es, teorias, conceitos, etc. Um profissional para assumir um cargo na aplicação de leis de um país deve ser muito bem qualificado para tal. Ao meu ver concursos públicos não avaliam quem é realmente apto para ocupar determinado cargo, mas sim, avalia um concorrente em relação a outro. O decorrer do tempo desde que começamos a experimentar a experiência democrática foi bem instável, entretanto desde a Constituição de 1988, o país vive em sua melhor fase democrática, ao menos no judiciário, mas iss o não significa que é a melhor experiência possível a qual desejamos.