Você está na página 1de 7

A esquerda não tem nada de novo a dizer sobre ... about:reader?url=http://revistacult.uol.com.br...

revistacult.uol.com.br

A esquerda não tem nada de novo a dizer sobre a


violência urbana?

O crime urbano violento e a corrupção, quando tratados como fenômenos sociais


graves e disseminados, estão muito próximos. Os fenômenos do crime urbano e da
corrupção política, em virtude do modo extremo como hoje afetam a qualidade de vida
dos brasileiros, são considerados não apenas as principais razões para o desejo de
migrar, o novo trend das nossas classes abastadas (a modinha do Projeto Miami e, mais
recentemente, o Projeto Portugal), como também ganharam espaço cativo no topo das
urgências sociais que, segundo a percepção geral, a política tem que resolver.

Mas o que o sentimento geral da população considera problemas e urgências sociais é


em geral um construto da própria sociedade. Explico. O que não falta no mundo são
problemas e aflições, mas toda sociedade em um determinado momento elege aqueles
que são mais urgentes e que, por conseguinte, precisam estar no topo da agenda. Mas
tudo tem limite, até o centro das preocupações sociais. Assim, lembramos de e ficamos
aflitos com algumas poucas coisas de cada vez e vamos substituindo os temas e
problemas conforme vai se deslocando o foco da atenção pública. Os cidadãos, em um
dado momento, precisam pôr-se de acordo, por exemplo, que o que lhes impede de
serem felizes e de terem uma vida com qualidade são agora X e Y e que A e B, que
ocupavam, até o momento, o topo das suas aflições, podem ser deslocados para o
segundo plano.

Assim, preocupações com saúde pública e desemprego parecem estar no centro das
nossas preocupações em razão de uma imposição da realidade, mas o fato é que, em
um determinado momento, uma sociedade pode decidir que temas como imigração,
ajuste das contas públicas, matriz enérgica, sustentabilidade, aquecimento global,
educação, violência urbana ou corrupção podem assumir o seu lugar. E é assim que os
temas vão e vêm das arenas da atenção pública.

Além disso, problemas sociais não são propriamente “fatos naturais”, mas fatos
interpretados, segmentos intermediários de uma sequência que inclui pelo menos um
diagnóstico e uma solução preconizada. As expressões genéricas “crime” ou
“corrupção” são, na verdade, um feixe de noções envolvidas em uma competição social
pela interpretação das raízes do crime e da corrupção e do modo como estes temas
podem ser resolvidos. Esta competição envolve, naturalmente, todas as forças sociais
que disputam o mercado de interpretação e opiniões: as pessoas comuns, a

1 de 7 11-03-2018 10:36
A esquerda não tem nada de novo a dizer sobre ... about:reader?url=http://revistacult.uol.com.br...

comunicação massiva e as pessoas que conseguem se expressar por meio dela,


intelectuais, autoridades, políticos etc. Não é simplesmente “corrupção”, mas
corrupção causada por X e que deve ser resolvida pelos meios Y e Z. Idem para o
crime urbano.

Por fim, depois que as pessoas se põem em suficiente acordo sobre as emergências
sociais e sobre o ângulo de abordagem a ser adotado, chega o momento em que elas, as
emergências, de alguma forma, estruturam as campanhas políticas. É na relação com as
emergências que aparecem na percepção social que são avaliados os cacifes eleitorais
dos candidatos, planejadas as narrativas da campanha e construídas as imagens dos
candidatos. Assim, uma vez que a maioria admite que a corrupção é causada por X (e
não por A) e será resolvida por meio da providência Y (e não B), o ator mais adaptado
para o papel e a narrativa mais coerente com as premissas socialmente adotadas no
esquema causa-problema-solução têm mais chances eleitorais que os seus
concorrentes.

Por outro lado, as grandes contraposições políticas frequentemente desempenham um


papel na estrutura das urgências sociais e da resposta política, tanto no que tange às
narrativas quanto no que se refere à imagem de pessoas e instituições necessárias para
disputar a opinião pública e os votos. A esquerda e a direita, por exemplo, novamente
voltam, nestes dias, ao terreno da disputa acerca do tema do crime. Não é opcional.
Como disse na coluna anterior, a agenda do crime ocupou o centro da atenção pública e
está orientando, como nunca, as decisões eleitorais na eleição presidencial.

O problema, para a esquerda e para o centro, é que estão sendo derrotados


fragorosamente no tema do crime, na arena da percepção pública. E esta é
provavelmente uma das razões porque esta eleição, noves fora Lula, vem se inclinando
para a direita. Antes de tudo, isso tem a ver com cultura e mentalidades relacionadas
aos segmentos políticos: a direita, sobretudo a direita conservadora, consegue
tradicionalmente lidar melhor com os temas do crime e da violência do que o centro
liberal ou a esquerda progressista. Tudo tem a ver com a competição pela interpretação
do esquema causa-problema-solução. Competição, naturalmente, para ver qual será o
ponto de vista adotado pela maioria das pessoas, se o meu ou do meu concorrente.
Assim, por exemplo, se o tema é o crime violento, o pacote completo inclui a disputa
para ver quem consegue convencer mais pessoas sobre as causas do crime violento e as
soluções ao alcance da mão para resolvê-lo.

O fato é que a esquerda em geral, e a esquerda brasileira em particular, não tem uma
resposta com sucesso de público e crítica para a violência urbana. O sucesso da direita,
por sua vez, tem a ver com o enquadramento que adota, as associações que evoca e

2 de 7 11-03-2018 10:36
A esquerda não tem nada de novo a dizer sobre ... about:reader?url=http://revistacult.uol.com.br...

com o fato de as suas explicações serem simples, intuitivas e coerentes com a matéria
prima fartamente disponível no imaginário social – medo, moralização e punição -,
enquanto os concorrentes fazem associações complexas e abstratas, correlacionam
causas remotas e demandam muito em termos de cognição e informação do público
para serem assimiladas e aceitas.

Há, naturalmente, muitas alternativas possíveis para o esquema causa-problema-


solução no que se refere ao crime violento urbano. A direita conservadora costuma
recorrer a duas delas. Na primeira, há crime porque indivíduos tomam a decisão de
praticá-los e o fazem de caso pensado. Há racionalidade envolvida, pois o criminoso
sopesa vantagens e riscos e decide que os potenciais benefícios de, por exemplo,
praticar um latrocínio, superam os potenciais custos envolvidos. O sujeito põe na
balança, de um lado, os benefícios do crime e, de outro, as chances de ser apanhado,
multiplicadas pelas penas a que estaria sujeito se fosse condenado. E se inclinará para o
prato que pesar mais.

Como, em geral, acredita-se que no Brasil é baixíssima a chance de um criminoso


violento ser apanhado e que, quando ocorre identificação e condenação, as penas não
são severas o suficiente, parece à população que o temor de ser apanhado e a
perspectiva de punição não são o bastante para desencorajar o crime. Antes, ao
contrário, o crime compensa e a escolha pelo crime, acreditam, tem fundamento
racional.

Poder-se-ia perguntar, claro, por que razão, se o crime compensaria para todo mundo,
nem todo mundo é criminoso. Teoricamente, a teoria da escolha racional, aplicada ao
crime, é pouco consistente, mas a opinião pública não é um simpósio filosófico e a
responsabilização individual pelo crime (“se eu me privo, mas não pratico o crime, os
outros também poderiam fazer o mesmo”), que a acompanha, acaba desviando a
atenção das inconsistências conceituais da ideia.

O passo seguinte, naturalmente, é a política pública para resolver o problema. Do


diagnóstico do crime decorre que uma solução necessariamente há de passar pelo
aumento das chances de identificação e captura do criminoso (vigiar) e pelo aumento
das penalidades pelo crime violento (punir). Precisa-se, portanto, de mais vigilância,
mais controle, mais polícia, mais exibição de força do Estado, de um lado, e do
aumento das penas (tudo vai virando “crime hediondo”) e da diminuição da
menoridade penal, de outro.

A fórmula parece simples: se mais vigilância, penas mais severas e mais gente podendo
ser punida (até crianças), o prato da balança dos custos do crime começará a pesar mais

3 de 7 11-03-2018 10:36
A esquerda não tem nada de novo a dizer sobre ... about:reader?url=http://revistacult.uol.com.br...

que o prato dos benefícios, e o crime violento deixará de compensar. A banalização da


violência cessaria com a distribuição de punições mais frequentes, mais severas e a
mais gente.

O segundo modelo adotado para explicar a violência urbana transfere a causa do crime
para o plano dos valores. A responsabilização tira o peso do indivíduo e dos seus
cálculos de perdas e ganhos e o transfere para o julgamento de caráter, individual, e
para a estrutura intermediária onde o caráter é formado, que são os valores. Crime tem
a ver com maldade, com fraqueza de caráter, com ausência de valores.

Há uma teoria sobre a decadência moral da sociedade por trás desta explicação: se no
passado o crime urbano não assombrava as pessoas e todos se sentiam seguros é
porque no passado os valores compartilhados eram do tipo X (valorizava-se a
honestidade, o trabalho, a integridade, o respeito, a religião, a distribuição tradicional
dos papeis de gênero, um padrão normativo de comportamento sexual, etc.), de muito
melhor qualidade, e não do tipo Y que agora “querem nos impor”. A violência seria um
sintoma de um profundo desarranjo no nível dos valores e na formação do caráter das
pessoas. Assim, os jovens são piores que os velhos, os costumes antigos são melhores
que os modernos e as sociedades do passado são melhores do que as do presente: O
tempora! o mores!.

O antídoto à dissolução moral, naturalmente, estaria em preservar valores morais


consistentes, restaurando antigos padrões e reeducando. Naturalmente, quem está
disposto a diagnosticar esta causa não tem tempo nem paciência para reeducar uma
inteira sociedade degenerada, preferindo mais rapidamente punir, afastando a “maçã
podre” da sociedade antes que se estrague todo o cesto.

Nesta perspectiva, educar evita o aumento do dano, mas não o que já está acontecendo.
De forma que tudo o que caberia ao Poder Público, dado o estado de disseminação do
crime, seria punir exemplarmente a marginalidade, aumentando por este meio o medo
de ser apanhado e, de quebra, reafirmando os bons valores desta sociedade. Não se
deixaria de praticar o mal por virtude, mas por pavor das punições que podem ser
aplicadas pelas “pessoas de bem”.

Nas duas alternativas, o “vamos punir!” é a forma de aplacar o ressentimento da parte


da sociedade que é vítima habitual do crime urbano. O mesmo se aplicando, ao tema
aparentado da corrupção. A convicção por trás disso tudo é que a punição é o remédio
que cabe ao Estado aplicar em nome da sociedade. É um esquema freudianamente até
infantil: se eu não posso fazê-lo e se quando o faço sou punido, porque ele faz e não lhe
acontece nada? Se o medo da punição é eficaz em mim, também será eficaz para conter

4 de 7 11-03-2018 10:36
A esquerda não tem nada de novo a dizer sobre ... about:reader?url=http://revistacult.uol.com.br...

os outros. E se houver algum obstáculo social à punição severa, alargada e abrangente,


que nos satisfaz, tenha este obstáculo origem nos direitos e garantias das Constituições
liberais ou venha do populismo da esquerda e dos Direitos Humanos, que se danem tais
barreiras, passemos por cima delas. As contas precisam fechar de maneira mais
favorável às “pessoas de bem”, a sua sede de justiçamento precisa ser aplacada.

O modelo causal da esquerda já é velho e gasto. A responsabilização individual


desaparece da equação, a estrutura intermediária dos valores é dispensada e tudo se
resume à relação entre macroestruturas determinantes e indivíduos determinados. A
violência urbana, como muitas outras mazelas sociais, é determinada em sua maior
parte por fatores estruturais remotos. Pobreza, miséria, abandono social, ausência de
acesso a serviços de educação, saúde e amparo social, como fatores próximos, e pela
própria divisão da sociedade em classes e, enfim, pelo sistema de produção capitalista,
como fatores remotos. Tudo isso vai correlacionado para explicar o crime urbano e
uma série de outros fenômenos associados.

As soluções, naturalmente, passam por mudanças estruturais, geralmente fora do


alcance imediato dos imediatamente envolvidos: fim da miséria e da pobreza, educação
(“Se os governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir
presídios”, disse Darcy Ribeiro), alteração substancial nos índices de desenvolvimento
humano em geral. Os mais radicais, naturalmente, atam tudo ao fim do modo de
produção capitalista e à exploração do homem pelo homem.

As políticas públicas dedicadas ao problema da violência urbana (a rigor, desaparece o


problema do crime, substituído pelo tema mais genérico da “questão social”) devem vir
pari passu com todas as políticas públicas dedicadas a resolver a questão social. Não
há uma ênfase exclusiva ou mesmo expressiva no tema da epidemia do crime urbano
que apavora as pessoas neste momento. Em vez do mais simples e aplacador “vamos
punir”, entra em campo o menos emocionante, quase frígido, “vamos construir escolas,
vamos incluir todos os cidadãos, vamos reduzir as desigualdades para acabar com o
crime”.

Para o cidadão comum, trancado em casa e que possivelmente já experimentou no


corpo ou na vida dos que ama ou amou o horror da violência, isto soa basicamente
como dizer “reze e entregue tudo a Deus”. Não resolve o seu problema, nem solução
lhe parece.

Ainda mais quando lhe dão a entender que ele é causa do problema e não a sua vítima.
Se é de classe baixa, dizem-lhe que a culpa é da sociedade e não do criminoso; se é de
classe média dizem-lhe que a culpa é do seu egoísmo, do seu consumismo, da sua

5 de 7 11-03-2018 10:36
A esquerda não tem nada de novo a dizer sobre ... about:reader?url=http://revistacult.uol.com.br...

indiferença; se calha de ser rico, então, a culpa é diretamente jogada nos seus ombros,
quase como se a merecesse, como punição, por ser beneficiário da exploração do seu
semelhante ou por não tomar as providências que poderiam pôr fim à situação.

Quem, em situação de desespero, quer ser responsabilizado pelo mal de que é vítima,
tirando a responsabilidade individual do seu algoz para colocá-la em si? Melhor migrar,
melhor adotar a solução “casca grossa” de Bolsonaro, qualquer coisa é melhor que o
proposto. Mas isto é praticamente tudo o que a esquerda tem a oferecer e não
surpreende, em termos de mera psicologia social, que as pessoas fujam da adoção deste
esquema como o diabo fugiria da cruz.

Na verdade, ninguém sabe como interpretar corretamente o problema da violência


urbana brasileira e, muito menos, como resolvê-la. A intervenção militar de Temer na
cidade do Rio é, neste contexto, uma cartada extrema, apostando tudo na demanda
punitivista da sociedade. Bolsonaro oferece perspectivas de punição, “se eleito for”;
Temer aposta no aumento da presença do Estado armado, forte, amedrontador. Poderia
ter mandado a Guarda Nacional, mas a palavra Forças Armadas tem mais peso
dramático e só Deus sabe como Temer precisa de soluções dramatúrgicas para o seu
fim de governo.

O lance é arriscado, claro, uma vez que um esquema que pode funcionar muito tempo
no nível do imaginário e das narrativas pode revelar-se um engodo quando
materializado em ações. E se o crime no Rio não diminuir? E se o crime voltar assim
que o Exército se retirar? Os 70% que apoiam a intervenção, com o argumento de que
“chegamos ao limite, alguma coisa tinha que ser feita”, terão paciência por quanto
tempo se não virem o crime reduzir drasticamente?

A esquerda em geral falha no seu esquema pela impossibilidade de mostrar resultados


imediatos. “Eduque o sujeito agora e não terá que o punir daqui a 20 anos” é um
argumento relativamente sensato, mas 20 anos é uma vida e a violência é um transtorno
existencial tremendo aqui e agora. Os esquemas interpretativos da direita conservadora
parecem mais intuitivos, mas se são transformados em política de Estado precisam
fazer uma entrega imediata.

Por isso é que “bancadas da bala”, candidatos eleitos por conta da agenda do combate
ao crime, são geralmente bancadas legislativas e não cargos executivos – o sujeito faz
basicamente discursos, atua no interesse de corporações militares e policiais e tenta
fazer Projetos de Lei transformando o delito A em crime hediondo, apoiando que a
população se arme ou tentando reduzir a menoridade penal. Gasta cuspe e papel, nada
mais. Não tem que testar as suas ideias em campo e mostrar que o seu esquema

6 de 7 11-03-2018 10:36
A esquerda não tem nada de novo a dizer sobre ... about:reader?url=http://revistacult.uol.com.br...

explicativo efetivamente dá conta da realidade do crime. Há poucos meses das eleições


gerais, ao fazer do Rio o seu laboratório, Temer faz uma aposta alta. Logo saberemos
no que pode resultar.

Enquanto isso, a esquerda é apanhada mais uma vez sem ter o que dizer sobre um tema
dominante na conjuntura política. Aconteceu o mesmo em 1994, quando o tema que se
impôs na opinião pública foram inflação e máquina pública, sobre os quais o PT nada
tinha a dizer e FHC nadou de braçada. As perspectivas punitivistas continuam fazendo
sucesso de público, embora estejam enfrentando um teste de fogo neste exato
momento.

Nas arenas da opinião e do imaginário do público, contudo, não têm adversária à altura.
E, o que é pior, a esquerda sequer demonstra ser capaz de entender a importância deste
tema para a população. O que tem para oferecer, até o momento, é não apenas o
esforço de demonização da urgência social, como também a tentativa de demonização
dos atores políticos que, por sua vez, concentram-se em surfar com sucesso a
gigantesca onda de atenção que o tema produziu. Como se demonizar temas e atores
fosse capaz de fazer o tema desaparecer ou de tornar desimportantes aqueles que
fornecem as interpretações que o público adota e usa para tomar decisões eleitorais.

7 de 7 11-03-2018 10:36

Você também pode gostar