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Assim, preocupações com saúde pública e desemprego parecem estar no centro das
nossas preocupações em razão de uma imposição da realidade, mas o fato é que, em
um determinado momento, uma sociedade pode decidir que temas como imigração,
ajuste das contas públicas, matriz enérgica, sustentabilidade, aquecimento global,
educação, violência urbana ou corrupção podem assumir o seu lugar. E é assim que os
temas vão e vêm das arenas da atenção pública.
Além disso, problemas sociais não são propriamente “fatos naturais”, mas fatos
interpretados, segmentos intermediários de uma sequência que inclui pelo menos um
diagnóstico e uma solução preconizada. As expressões genéricas “crime” ou
“corrupção” são, na verdade, um feixe de noções envolvidas em uma competição social
pela interpretação das raízes do crime e da corrupção e do modo como estes temas
podem ser resolvidos. Esta competição envolve, naturalmente, todas as forças sociais
que disputam o mercado de interpretação e opiniões: as pessoas comuns, a
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Por fim, depois que as pessoas se põem em suficiente acordo sobre as emergências
sociais e sobre o ângulo de abordagem a ser adotado, chega o momento em que elas, as
emergências, de alguma forma, estruturam as campanhas políticas. É na relação com as
emergências que aparecem na percepção social que são avaliados os cacifes eleitorais
dos candidatos, planejadas as narrativas da campanha e construídas as imagens dos
candidatos. Assim, uma vez que a maioria admite que a corrupção é causada por X (e
não por A) e será resolvida por meio da providência Y (e não B), o ator mais adaptado
para o papel e a narrativa mais coerente com as premissas socialmente adotadas no
esquema causa-problema-solução têm mais chances eleitorais que os seus
concorrentes.
O fato é que a esquerda em geral, e a esquerda brasileira em particular, não tem uma
resposta com sucesso de público e crítica para a violência urbana. O sucesso da direita,
por sua vez, tem a ver com o enquadramento que adota, as associações que evoca e
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com o fato de as suas explicações serem simples, intuitivas e coerentes com a matéria
prima fartamente disponível no imaginário social – medo, moralização e punição -,
enquanto os concorrentes fazem associações complexas e abstratas, correlacionam
causas remotas e demandam muito em termos de cognição e informação do público
para serem assimiladas e aceitas.
Poder-se-ia perguntar, claro, por que razão, se o crime compensaria para todo mundo,
nem todo mundo é criminoso. Teoricamente, a teoria da escolha racional, aplicada ao
crime, é pouco consistente, mas a opinião pública não é um simpósio filosófico e a
responsabilização individual pelo crime (“se eu me privo, mas não pratico o crime, os
outros também poderiam fazer o mesmo”), que a acompanha, acaba desviando a
atenção das inconsistências conceituais da ideia.
A fórmula parece simples: se mais vigilância, penas mais severas e mais gente podendo
ser punida (até crianças), o prato da balança dos custos do crime começará a pesar mais
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O segundo modelo adotado para explicar a violência urbana transfere a causa do crime
para o plano dos valores. A responsabilização tira o peso do indivíduo e dos seus
cálculos de perdas e ganhos e o transfere para o julgamento de caráter, individual, e
para a estrutura intermediária onde o caráter é formado, que são os valores. Crime tem
a ver com maldade, com fraqueza de caráter, com ausência de valores.
Há uma teoria sobre a decadência moral da sociedade por trás desta explicação: se no
passado o crime urbano não assombrava as pessoas e todos se sentiam seguros é
porque no passado os valores compartilhados eram do tipo X (valorizava-se a
honestidade, o trabalho, a integridade, o respeito, a religião, a distribuição tradicional
dos papeis de gênero, um padrão normativo de comportamento sexual, etc.), de muito
melhor qualidade, e não do tipo Y que agora “querem nos impor”. A violência seria um
sintoma de um profundo desarranjo no nível dos valores e na formação do caráter das
pessoas. Assim, os jovens são piores que os velhos, os costumes antigos são melhores
que os modernos e as sociedades do passado são melhores do que as do presente: O
tempora! o mores!.
Nesta perspectiva, educar evita o aumento do dano, mas não o que já está acontecendo.
De forma que tudo o que caberia ao Poder Público, dado o estado de disseminação do
crime, seria punir exemplarmente a marginalidade, aumentando por este meio o medo
de ser apanhado e, de quebra, reafirmando os bons valores desta sociedade. Não se
deixaria de praticar o mal por virtude, mas por pavor das punições que podem ser
aplicadas pelas “pessoas de bem”.
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Ainda mais quando lhe dão a entender que ele é causa do problema e não a sua vítima.
Se é de classe baixa, dizem-lhe que a culpa é da sociedade e não do criminoso; se é de
classe média dizem-lhe que a culpa é do seu egoísmo, do seu consumismo, da sua
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indiferença; se calha de ser rico, então, a culpa é diretamente jogada nos seus ombros,
quase como se a merecesse, como punição, por ser beneficiário da exploração do seu
semelhante ou por não tomar as providências que poderiam pôr fim à situação.
Quem, em situação de desespero, quer ser responsabilizado pelo mal de que é vítima,
tirando a responsabilidade individual do seu algoz para colocá-la em si? Melhor migrar,
melhor adotar a solução “casca grossa” de Bolsonaro, qualquer coisa é melhor que o
proposto. Mas isto é praticamente tudo o que a esquerda tem a oferecer e não
surpreende, em termos de mera psicologia social, que as pessoas fujam da adoção deste
esquema como o diabo fugiria da cruz.
O lance é arriscado, claro, uma vez que um esquema que pode funcionar muito tempo
no nível do imaginário e das narrativas pode revelar-se um engodo quando
materializado em ações. E se o crime no Rio não diminuir? E se o crime voltar assim
que o Exército se retirar? Os 70% que apoiam a intervenção, com o argumento de que
“chegamos ao limite, alguma coisa tinha que ser feita”, terão paciência por quanto
tempo se não virem o crime reduzir drasticamente?
Por isso é que “bancadas da bala”, candidatos eleitos por conta da agenda do combate
ao crime, são geralmente bancadas legislativas e não cargos executivos – o sujeito faz
basicamente discursos, atua no interesse de corporações militares e policiais e tenta
fazer Projetos de Lei transformando o delito A em crime hediondo, apoiando que a
população se arme ou tentando reduzir a menoridade penal. Gasta cuspe e papel, nada
mais. Não tem que testar as suas ideias em campo e mostrar que o seu esquema
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Enquanto isso, a esquerda é apanhada mais uma vez sem ter o que dizer sobre um tema
dominante na conjuntura política. Aconteceu o mesmo em 1994, quando o tema que se
impôs na opinião pública foram inflação e máquina pública, sobre os quais o PT nada
tinha a dizer e FHC nadou de braçada. As perspectivas punitivistas continuam fazendo
sucesso de público, embora estejam enfrentando um teste de fogo neste exato
momento.
Nas arenas da opinião e do imaginário do público, contudo, não têm adversária à altura.
E, o que é pior, a esquerda sequer demonstra ser capaz de entender a importância deste
tema para a população. O que tem para oferecer, até o momento, é não apenas o
esforço de demonização da urgência social, como também a tentativa de demonização
dos atores políticos que, por sua vez, concentram-se em surfar com sucesso a
gigantesca onda de atenção que o tema produziu. Como se demonizar temas e atores
fosse capaz de fazer o tema desaparecer ou de tornar desimportantes aqueles que
fornecem as interpretações que o público adota e usa para tomar decisões eleitorais.
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