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Questão 2 - É possível afirmar que a produção literária moçambicana das décadas de 1980,
1990 e anos 2000, abarca a realidade social do país por intermédio do cotidiano narrado de
personagens que habitam vivamente as páginas de seus romances e contos. Temos, dessa forma,
as possíveis imbricações entre texto ficcional e contexto histórico como espinha dorsal que
sustenta a narrativa de seus autores. Discuta como essa espinha dorsal (ou as imbricações entre
literatura e história) se configura esteticamente a partir da análise de alguns elementos
estruturais da narrativa do romance As visitas do Dr. Valdez, de João Paulo Borges Coelho ou
do romance Ventos do Apocalipse, de Paulina Chiziane.
Em ventos do apocalipse, Paulina Chiziane evoca seu papel como contadora de histórias para
nos trazer um romance que tem como missão reproduzir o clima, as histórias e o rosto da guerra
civil moçambicana no seu povo. Cheio de personagens marcantes e que são a face oculta e sem
voz desta guerra: o povo. Neste romance os personagens estão em meio ao conflito e sofrem as
consequências reais das ações tomadas pelo governo. É um romance que foca no povo, naqueles
esquecidos que no fim, foram os que mais perderam durante o período de guerra civil em
Moçambique. A relação entre literatura e história no romance pode ser analisada por diversos
ângulos. Através de seus personagens, das metáforas com as tradições orais que são bem
delimitadas no prólogo, e da crítica a uma nação que estava numa guerra ideológica que na
prática só trazia mazelas para o povo e que oscilava entre uma nação que tentava se modernizar e
que ainda era arcaica. Para esta análise vamos observar as consequências da guerra civil entre
FRELIMO e RENAMO para a população que vivia nas aldeias e as relações entre o moderno e
arcaico na visão dos personagens femininas e na figura de Sianga e Sixpence.
Na primeira parte do romance temos a figura de Sianga, um personagem que representa o
antigo regime em moçambique. Ele era um homem de poder, um ex régulo da região de
Mananga que tinha seus privilégios dentro do sistema colonial. Um homem que tinha nove
mulheres e viveu em fartura. A figura do personagem como esta representação de um período de
exploração acaba por culminar na sua decadência quando o romance se inicia. Sianga, velho e
cansado, vivendo com sua esposa menos querida, Minosse. Relembra os tempos de sua fartura e
das outras esposas que o deixaram. Mostrando que de certa forma, algumas pessoas conseguem
se beneficiar do antigo sistema, não que este seja defendido pela autora, mas dá a impressão que
este personagem é o contraponto perfeito entre esses opostos. Representando desta forma uma
parte da história do país e mostrando como a transição entre regimes não atingia de forma
uniforme todo o país e que havia muita carência tanto antes quanto depois da independência.
Sianga, insatisfeito com o regime, quer retomar o seu poder, tomando dessa forma diversas ações
para este objetivo. A principal delas é a realização da cerimônia do mbelele, um ritual feito pelas
mulheres da aldeia que iriam dançar peladas para que a chuva voltasse. A seca na região
castigava a todos, não havia comida, crianças morriam, e ele finge que acredita e tenta convencer
aos demais que esta seria a solução para o problema. Claro que a ideia deste ritual vai seguir
completamente os interesses de Sianga para retomar o poder, ele usa da tradição como arma
política. O regime da FRELIMO, prejudicou aqueles como Sianga, e ele tenta retomar tradições
para afastar as pessoas do novo regime, como uma forma de angariar poder, o que acaba
acontecendo em certa parte com algumas pessoas que apoiam esta realização. Algumas das
mulheres é que resistem no romance a realização do mbelele, pois o mesmo se resume a uma
canção feita por mulheres e elas estando peladas. Algumas questionam o porquê de se realizar tal
procedimento arcaico, pois como elas conseguiriam ficar peladas na frente de todos sem se
sentirem expostas e objetificadas. Esta é uma parte importante do romance, onde a Paulina
discute de uma forma moderna o papel da mulher naquela sociedade. Vemos que Sianga tem
uma relação de poder em relação a sua mulher Minosse, que apesar de parecer submissa, por ter
se mantido ao lado dele, se torna em uma das maiores forças do romance. Ele também tem uma
relação de posse com todas as suas mulheres, ele mesmo quer retomar o poder para ter uma
mulher nova. E quer usar a filha também como moeda de troca, para um bom casamento que
trará benefícios para ele. Mesmo após de ser realizado o ritual não obtém o resultado desejado,
mas o Sianga consegue de certa forma retomar o poder, só que com o apoio político da oposição.
Só que sua tentativa será fracassada e então ele e outros dissidentes serão executados. A
representação do poder de Sianga no romance está relacionado a um projeto de nação com
problemas e defeitos. Paulina tenta mostrar com isso, as nuances que a estrutura da nação
naquele tempo tinha naquele momento da história, uma oposição entre moderno e tradicional (o
conflito armado e o ritual sobrenatural) e com isso discute as dinâmicas da guerra civil em
Moçambique.
As mudanças nas dinâmicas sociais são muito observadas dentro das figuras femininas da
obra. Podemos citar Minossi, que num primeiro momento aparenta ser um mulher submissa e
que não tem voz para enfrentar seu marido Sianga. Só que ela demonstra muito mais força do
que aparenta e é uma personagem central para o desenvolvimento do romance, ela está presente
o tempo todo. Sua imagem vai se transformar de uma aparente submissão a uma mulher forte
que se transforma num porto seguro para aquelas pessoas que precisam enfrentar um
deslocamento por causa da guerra. Mesmo depois de perder seus filhos e o marido, há nela a
representação da força da mulher como alicerce desta sociedade. São elas as mães, as fontes de
inspiração e a força da nação. Quando convocadas para o mbelele, várias mulheres acabam tendo
uma postura moderna em relação a demanda da tradição. Há um questionamento do folclore
envolvido nesses rituais e seu óbvio caráter de ferramenta de persuasão do que algo em que elas
realmente acreditem. Como nesta fala do livro:
— Que esperam para fazer o mbelele?
— Sim, o mbelele.
— Desgraça, desgraça, só desgraça.
— A expressão sublime de submissão e humilhação é o mbelele.
— O mbelele? Que vergonha! Mulheres nuas com traseiro de melancia a exibir as
mamas aos pássaros e o cu aos gafanhotos faz chover? Que vergonha!
— A nudez das fêmeas é a súplica da chuva; o sangue dos justos e inocentes é o
reconhecimento das nossas culpas. É tempo do mbelele.
— Sim, sim, sim, o mbelele, seja feito o mbelele.
— Comadre, diz-se por aí que haverá mbelele.
— Também ouvi dizer que sim, comadre. Sabes como é? — Já ouvi falar nisso. A minha
avó diz que o último foi realizado quando ela começou a ser menstruada. Imagino que já
tinham passado setenta anos. (pg 36)
Esse posicionamento pode ser interpretados como uma chegada dos novos tempos, como uma
oposição ao retrocesso. Os ventos no romance trazem tragédias, mas também trazem mudanças.
Vemos que as tradições vão sendo rearranjadas no romance como consequência das mudanças,
há uma descaracterização delas depois da morte de Sianga e de sua tentativa de retomada.
Wusheni, que é a filha de Sianga e Minosse, representa uma ruptura da noção tribal de
casamento, ao querer se casar por amor com Dambuza, de quem fica grávida e quem
aparentemente quer estabelecer uma relação monogâmica. Esta atitude acaba desafiando o desejo
do seu pai de se fazer o lobolo, que é a tradição local de casamento arranjado em troca de
dinheiro e poder. Com o objetivo próprio de ter novas mulheres. Aliás, as próprias mulheres que
abandonaram Sianga quando o mesmo perdeu o poder são uma grande representação desta perda
de status. Podemos considerar que essas mulheres, as preferidas de Sianga, se emanciparam
daquela vida que tinham e partiram em busca de algo melhor, ou finalmente foi a possibilidade
delas saírem das amarras deste homem. Todas as mulheres representadas em Ventos do
apocalipse são usadas na narrativa como um fio condutor para se apresentar mudanças sociais
dentro desta conjuntura de guerra civil.
Por fim, temos Sixpence é um homem que perdeu sua família e precisa recomeçar. É uma
figura conciliadora e muito forte, um homem que carrega consigo marcas de um conflito e que
fazem com que ajude aqueles refugiados a encontrar um novo lugar para viverem de forma mais
digna possível. Sixpence representa aqueles que trabalharam para construir um lugar para a
população que estava em meio ao conflito, independente de posições políticas e sim em prol
daqueles que mais importam. Ele representa todos os que fugiram da guerra e precisaram
reconstruir, e ele o faz da melhor forma possível no romance. Os paralelos entre Sianga e
Sixpence são muitos se formos observar as atitudes e posições políticas dos personagens.São o
velho e o novo, a tradição e a modernidade, a glória e a sobrevivência.
As relações entre história e literatura se costura durante todo o romance, estes foram só
alguns exemplos desta relação. Como uma pessoa que teve um olhar de dentro do conflito,
Paulina conta sua história com forma sempre crítica e atenta. A natureza está se vingando
daquele povo, trazendo seca e depois enchentes. A guerra é veementemente criticada no romance
como algo prejudicial e não somente por razões óbvias de que a sede de poder de alguns nem
sempre trazem benefícios para aqueles que precisam, mas também como um conflito que não
trouxe benefício algum para aqueles que mais importam: o povo.