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Capitulo Comunidades tribais: a educagao difusa indigenas habilidades 0s mitos dos sis por meio da difusa, ne convivio -edultos da tribo. Swaurd, Parque do ‘MT, 2005.) Segundo uma explicacdo literal e, portanto, simplificadora, costuma-se ca- racterizar a vida tribal, marcada pela tradicéo oral dos mitos e ritos, como pré-historica, por ter ocorrido “antes da historia”, quando os povos ainda nao ti- nham escrita e, por conseguinte, no re- gistravam os acontecimentos. A pré-historia constitui um periodo ex- tremamente longo, em que instrumentos ufilizados para a’ sobrevivéncia huma- na se transformaram muito lentamente. E bom lembrar que as mudancas néo ocorreram de forma igual em todos os lugares. Também néo ha uniformidade no tempo, uma vez que o modo de vida das tribos nos primérdios nao desapare- ceu de todo, tanto que ainda ha tribos que vivem dessa maneira na Australia, na Africa e no interior do Brasil. A ldade da Pedra Lascada (Paleolitico) ea Idade da Pedra Polida (Neolitico) re- presentam momentos diversos, em que as tribos passam de habitos de nomadismo — sustentado pela simples coleta de ali- mentos — para a fixacdo ao solo, com o desenvolvimento de técnicas de agricultu- ra e pastoreio, A terra pertence a todos, e 0 trabalho e seus produtos séio coletivos, o que de- fine um regime de propriedade coletiva 33 dos meios de produgdo. Em decorrén- cia, a sociedade é homogénea, una, indivisivel. Com 0 tempo, a metalurgia, a utili- zagdo da energia animal e dos ventos, a invengdo da roda e dos barcos a vela ampliam a produgéo e estimulam a di- versificacéio dos oficios especializados dos camponeses, artesdios, mercadores e soldados, tornando as comunidades cada vez mais complexas. Veremos neste capitulo as caracteristi cas genéricas das comunidades “primiti- vas”, bem como a sua educasio difusa. E preciso lembrar que essas populacées nao finham uma cultura homogénea, existindo diferengas conforme o lugar e © tempo. 1. A cultura tribal Estamos tao acostumados com a escola que as vezes nos parece estranho 0 fato de que essa instituigao nfo existiu sempre, em todas as sociedades. Nos demais capitulos, veremos as condigdes do aparecimento da escola, as transformagées ao longo do tem- po, € também a relacio indissohivel entre ela e omodo pelo qual os individuos intera~ gem para produzir a sua existéncia, Antes, porém,.veremos por que nao ha necessida- de de escolas nas comunidades tribais. Por motivos diversos 6 muito dificil dar as caracteristicas gerais desse tipo de sociedade. Primeiro porque, por mais que fagamos ge- neralizag6es, hd muitas diferengas entre tais sociedades, ¢ depois porque, com frequéncia, corremos 0 risco de emocentrismo, ou seja, a tentago de avalié-las segundo padrdes da nossa cultura. Dessa perspectiva, ditiamos: as sodiedades tribais ndo tém Estado, nao tém classes,nao tém escrita, ndo tém comércio, nao tém historia, nao tém escola. Segundo 0 etnélogo francés Pierre Clas- tres, explicar as sociedades tribais pelo que Ihes falta impede compreender melhor a sua realidade ¢, em muitos casos, até tem justificado a atitude paternalista © missio- naria de “levar 0 progresso, a cultura © a verdadeira fé” ao povo “atrasado”, Uma abordagem mais adequada, no entanto, consideraria esses povos diferentes de nds, ¢ nao inferiores. Mesmo porque, afinal, nem sempre auséncia significa necessariamente falta. Alids, o antropélogo Lévi-Strauss lem- bra como nés, urbanos, se por um lado ga- nhamos muito com a tecnologia, por outro perdemos algumas de nossas capacidades, por exemplo, por utilizarmos consideravel- mente menos as nossas percepgdes senso- riais. Por isso mesmo, & falta de um termo melhor, Lévi-Strauss prefere colocar aspas em “primitivo”, com a intengao de minorar a carga pejorativa do conceito. De maneira geral as sociedades tribais sdo predominantemente miticas e de tradi- cao oral. Para esses povos a natureza esté “carregada de deuses”, eo sobrenatural pe- netra em todas as dependéncias da realida~ de vivida ¢ nao apenas no campo religioso, isto é, na ligagao entre o individuo e o di vino. O sagrado se manifesta na explicagao da origem divina da técnica, da agricultura, dos males, na natureza magica dos instru- mentos, das dangas dos desenhos. ‘Ao agir, 0 “primitivo” imita os deuses nos ritos que tornam atuais, presentes, 05 mi- tos primordiais, ou seja, cada um repete 0 que os deuses fizcram no inicio dos tempos. $6 assim a semente brota da terra, as'mu- Theres se tornam fecundas, as arvores dao fratos, 0 dia sucede & noite e assim por dian- te. As dangas antes da guerra, por exem- plo, representam uma antecipacio magica que visa a garantir 0 sucesso do confronto. Do mesmo modo, os cacadores “matam” suas futuras presas ao desenhar renas ¢ bi- ses nas partes escuras e pouco acessiveis das cavernas, como ainda podemos ver em Al- tamira (na Espanha) e Lascaux (na Franca). 34 Historia da Educacao e da Pedagogia — Geral e Brasil ‘Também no Brasil foram descobertos regis- tros rupestres, como os do centro arqueolé- gico de Sio Raimundo Nonato, no Piaui, datados de 12 mil anos antes da chegada dos colonizadores, ¢ os da gruta da Pedra Furada, encontrados no Para. Os mitos ¢ 0s ritos so transmitidos oral- mente, ¢ a tradigao se impée por meio da crenga, permitindo a coesio do grupo ¢ a repeticao dos comportamentos considera~ dos desejaveis. Assim sio constituidas co- munidades estaveis, no sentido de que nelas as mudancas acontecem muito lentamente. Por exemplo, 0s membros da tribo passam de um estado a outro pelos ritos de passa- gem que marcam 0 nascimento, a passagem da infincia para a vida adulta, 0 casamen- to, a morte, A organizagao social das tribos baseia-se em uma estrutura que mantém homogé- neas as relagdes, sem a dominagao de um segmento sobre o outro. Mesmo que a di- visio de tarefas leve as pessoas a exercerem fungdes diferentes, 0 trabalho ¢ 0 seu pro duto so sempre coletivos. Também as ati- vidades das mulheres adquirem um caréter social, por nao se restringirem a0 mundo doméstico. No exercicio do poder, algumas pessoas especiais — como o chefe guerreiro ou 0 feiticeiro xam’ — possuem prestigio, me- recem a confianga das demais e geralmente so objeto de consideraco ¢ respeito. Em nenhum momento, no entanto, abusam dos privilégios para estabelecer a relagao mando-obediéncia. O chefe é 0 porta-voz do desejo da comunidade como um todo ¢, nesse sentido, nao da ordens, mesmo por- que sabe que ninguém lhe obedecera. E sua tarefa apaziguar os individuos ou familias em conflito, apelando para 0 bom senso, para os bons sentimentos ¢ para as tradi- ges dos ancestrais'. Dessa forma, as esferas do social ¢ do politico no se separam, ¢ 0 poder nao constitui uma instincia a parte, como acontece nas sociedades em que o Es- tado foi institufdo. ‘As oposigées, inexistentes na prépria comunidade, geralmente surgem entre as tribos em guerra, ocasio em que o chefe assume a vontade que a sociedade tem de aparecer como una e auténoma, falando em nome dela. Alids, 0 “primitivo” é guer- reiro por exceléncia, e dessa disposigéo de- correm os valores apreciados pela comuni- dade ¢ que so objeto da educacao. 2A educagtio difusa Nas comunidades tribais as criangas aprendem imitando os gestos dos adultos nas atividades didrias € nos rituais. Tanto nas tibos némades como naquelas que ja se sedentarizaram, para se ocupar com ‘a caga, a pesca, o pastoreio ou a agricul tura, as criangas aprendem “para a vida € por meio da vida”, sem que ninguém esteja especialmente destinado para a tarefa de ensinar, ‘A cuidadosa adaptagdo aos usos ¢ va- lores da tribo geralmente é levada a efeito sem castigos. Os adultos demonstram mui- ta paciéncia com os enganos infantis ¢ res- peitam o seu ritmo proprio. Por meio dessa educagio difusa, de que todos participam, a crianca toma conhecimento dos mitos dos ancestrais, desenvolve aguda percepcao do mundo e aperfeicoa suas habilidades. ‘A formagio é integral — abrange todo 6 saber da tribo — ¢ universal, porque todos podem ter acesso ao saber € ao fa- zer apropriados pela comunidade. f. bem verdade que alguns se destacam, detendo um conhecimento mais amplo ou especial » Pierre Clastres, Arquenlogia da violéncia: ensaio de antropologia politica. Sio Paulo, Brasiliense, 1982, p. 108. ‘Comunidades tribais: a educacao difusa 35 — como no caso do feiticeiro —, 0 que, no entanto, nao resulta em privilégio, mas ape- nas em prestigio, como jé foi dito. conhecimento mitico imprime uma tonalidade especial & educagio, pois os re- latos aprendidos no sto propriamente his- toricos, no sentido da revelagao do passado da tribo. Diferentemente, o mito é atempo- ral ¢ conta 0 ocorrido no “inicio dos tem- pos”, nos primérdios. Dai os diversos ritos que marcam as passagens, como o nasci- mento ¢ a morte ou ainda a iniciaco A vida adulta (ver leituras complementares). 3. Para além da vida tribal Aeescrita surge como uma necessidade da administragio dos negécios, 4 medida que as atividades se tornam mais complexas. As transformagbes técnicas e 0 aparecimento das cidades em decorréncia da produgio excedente ¢ da comercializagio alteraram as relagdes humanas e 0 modo de sua so- ciabilidade, Com o tempo, enquanto nas tribos a organizago social era homogénea, indivisa, foram criadas hierarquias devido a privilégios de classes, ¢ no trabalho apa- receram formas de servidao e escravismo; as terras de uso comum passaram a ser ad- ministradas pelo Estado, instituigio criada para legitimar o novo regime de proprieda- de; a mulher, que na tribo desempenhava destacado papel social, ficou restrita ao lar, submetida a rigoroso controle da fidelida- de, a fim de se garantir a heranga apenas para 0s filhos legitimos. Finalmente o saber, antes aberto a todos, tornou-se patriménio e privilégio da classe dominante. Nesse momento surgiu a neces- sidade da escola, para que apenas alguns iniciados tivessem acesso ao conhecimento. Se analisarmos atentamente a historia da educac&o, veremos como a escola, ao eli- tizar o saber, tem desempenhado um papel de exclustio da maioria. Algumas dessas transformagdes € suas consequéncias para a educagio sero vistas nos préximos capitulos. Dropes 1 - Em A educagao moral, Durkheim ob- serva que as punigdes quase nao existem nas sociedades primitivas: “Um chefe Sioux achava os brancos barbaros por baterem nos filhos”. A coergao da infan- cia aparece nas sociedades em pleno de- senvolvimento cultural, como a de Roma imperial, ou a da Renascenga, onde a necessidade de um ensino organizado mais se faz sentir, (...) E que 4 medida que a sociedade progride, torna-se mais complexa, a educagao deve ganhar tem- po e violentar a natureza, para cobrir a distancia sempre maior entre a crianga e 6s fins a ela impostos. (Olivier Reboul) 2 As criancas {nas sociedades orais} seguem os adultos nas mais diferentes atividades, na caca, na coleta, no cuida- do com as plantas cultivadas, na pesca. Imitam 08 adultos e, ao imité-los, esto imitando os préprios herdis culturais, pois foram eles que fundaram (...) todas as formas de fazer as coisas no interior das culturas. Assim, um homem pesca como pesca porque assim faziam seus antepassados miticos que Ihes transmiti- ram estes conhecimentos, e que seguem transmitindo-os sempre que necessario de diferentes formas. (Paula Caleffi) 36 Historia da Educacao e da Pedagogia — Geral e Brasil

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