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-RACISMO CORDIAL | | FOLHA DE S.PAULO Datafolha AMmMais no brasil r | Teese Geeta atte A maior e mais ampla investigagao cientifico- jornalfstica sobre preconceito de cor no Brasil, realizada pela Folha e pelo Instituto de Pesquisas Datafolha em 1995, resultou em centenas de revelagdes. Mas trés niimeros basicos sintetizam um pouco esse extenso tra- balho, agora publicado neste livro: 1) apesar de 89% dos brasileiros dizerem haver preconceito de cor contra negros no Brasil, 2) sé 109% admitem ter um pouco ou muito preconceito, mas, 3) de forma indireta, 87% reve- lam algum preconceito, ao pronunciar ou concordar com enunciados preconceituosos, ou ao admitir comporta- mentos de contetido racista em relagdo a negros. Em resumo, os brasileiros sabem haver, negam ter, mas demonstram, em sua imensa maioria, preconceito contra negros. Esses ntimeros nao apareceram limpos e encadeados ao final da pesquisa. E que os mais de cinco mil entrevistados sabiam, ainda que de forma velada, que ser racista no é boa coisa. Agiram de acordo com uma frase cunhada no inicio dos anos 60 pelo socidlogo Plorestan Fernandes (1920-1995): “O brasileiro nao evita, mas tem vergonha de ter preconceito”. Foi exata- Fernando Rodrigues, 32 anos, & repérter especial da Fatha de S.Paul a RAcIsMo CORDIAL mente assim na pesquisa Datafolha. A imensa maioria dos brasileiros demonstrou ter ou estar inclinada a ter atitudes preconceituosas em relagao a pessoas negras, mas quis minimiza-las. Uma demonstracio de cordialidade, talvez, para nao ofender ainda mais aquele que se dis- ctimina, Este trabalho da Folh« e do Datafolha analisou minuciosamente as respostas € identificou esse tacismo cordial — subliminar muitas vezes —, embora seus pro- tagonistas cenham centado oculta-lo. “A contribuigio brasileira para a civilizagdo sera de cordialidade. Daremos ao mundo o ‘homem cor- dial’. A Ihaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tio gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traco definido do carater brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa € fecunda a influéncia dos padrdes de convivio humano, informados no meio rural € patriarcal”, disse 0 historia- dor Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), em seu livro Rafzes do Brasil (26, ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1994. p. 106-7), editado pela primeira vez em 1936. Mas o autor adverte: “Seria engano supor que esas virtudes possam significar ‘boas maneiras’, civilidade” (p. 107). Segundo ele, “a palavra ‘cordial’ hé de ser toma- da, neste caso, em seu sentido exato e estritamente eti- molégico” (p. 106). Buarque de Holanda afirma que o brasileiro esta distante de ter uma nogio ritualista da vida, sendo cordial e colocando sempre o privado acima do coletivo. “Nossa forma ordindria de convivio social é, no fundo, justamente o contrario da polidez. Ela pode iludir na aparéncia — e isso se explica pelo fato de a atitude poli- da consistir precisamente em uma espécie de mimica deliberada de manifestagdes que sio espontaneas no ‘homem cordial’: € a forma natural e viva que se conver- teu em férmula. Além disso, a polidez é, de algum ismo cordial modo, organizagao de defesa ante a sociedade, Detém-se ha parte exterior, epidérmica do individuo, podendo mesmo servir, quando necessério, de pega de resist@ncia” (p. 107). Essa é a descrigio que mais acuidade empresta ao que o Datafolha encontrou ao fazer aos brasileiros per- guntas sobre preconceito de cor. Indagado se é racista, 0 brasileiro, cordialmente, nega. Como disse Buarque de Holanda, essa cordialidade “equivale a um disfarce que permitira a cada qual preservar intatas suas sensibili- dades € suas emogdes”. E a pesquisa conseguiu retirar es- se disfarce dos brasileiros. Os dois primeitos achados do Datafolha eram absolutamente contraditérios: 89% dos brasileiros diziam haver racismo no pais, mas sé 10% admitiam ser, eles ptéprios, racistas. Havia, claramence, um buraco entre essas duas respostas dos brasileiros pesquisados. Como a pesquisa era longa, com 34 perguntas, jornalistas e pro- fissionais do instituto de pesquisa comegaram a fazer cru- zamentos de respostas. Nesses cruzamentos, escolheram-se 12 per- guntas bdsicas que faziam parte da pesquisa. Essas perguntas, interpretadas 4 luz de novos cruzamentos de resultados, poderiam ajudar a compreender as atitudes mais cotidianas dos entrevistados quando o assunto eta racismo. E, principalmente, contribuit para alcancar 0 objetivo principal da pesquisa, que era saber o tamanho exato do racismo no Brasil, quem o exercia e de que forma. As 12 perguntas escolhidas esto listadas abaixo, redigidas da forma como foram lidas pelo pesquisador do Datafolha: “Eu vou dizer algumas coisas que as pessoas costumam falar ¢ gostaria que vocé dissesse se concorda ou discorda de cada uma, totalmente ou em parte: RacisMo CORDIAL 1) “negro bom é negro de alma branca”; 2) “uma coisa boa do povo brasileiro é a mistura de ragas”; 3) “as tinicas coisas que os negros sabem fazer bem sio mi- sica € esportes”; 4) “toda raga tem gente boa e gente ruim, isso nao depende da cor da pele”; 5) “negro, quando nao faz, besteira na entrada, faz na saida”; 6) “se pudessem comer bem e estudar, os negros teriam su- cesso em qualquer profissao”; 7) “se Deus fez racas diferentes, é para que elas nao se mis- turem”, 8) Alguns estudos recentes afirmam que, por natureza, brancos e negros so diferentes em relac&o ao nivel de inteligéncia, Na sua opiniao, existem diferencas de in- teligéncia entre brancos ¢ negros? Se sim, de um modo geral, quem sio mais inteligentes, os brancos ou os negros? 9) Vocé votaria ou jé votou alguma vez em um politico negro? 10) Se no seu trabalho vocé tivesse um chefe negro, voce nao se importaria; ficaria contrariado, mas procuraria a- ceitar; ou nfo aceitaria e mudaria de trabalho? 11) Se varias familias negras fossem morar na sua vizi- nhanga, vocé nao se importaria; ficaria contrariado, mas procuraria accitar; ou no aceitaria e mudaria de casa? 12) E se um filho ou uma filha sua se casasse com uma pes- soa negra, vocé nfo se importaria; ficaria contrariado, mas procuraria aceitar; ou nfo aceitaria o casamento?” Concluiu-se, inicialmente, que as pessoas que escolhessem as respostas de contetido mais preconceitu- oso as 12 perguntas seriam indiscutivelmente racistas — ainda que negassem isso. Quase imediatamente apés essa tentativa de Constatagao, a equipe que preparou as reportagens para a Racismo cordial Folba e para este livro levantou uma divida que s6 foi dissipada apés varias reunides. A dtivida era a seguinte: é ou esté sendo necessariamente racista a pessoa que con- corde, sem refletir profundamente, por exemplo, que “negro bom € negro de alma branca” ou que “as tinicas coisas que os negros sabem fazer bem sao musica € esportes”? Surgiram duas possibilidades de respostas para a questo do pardgrafo anterior. Primeiro, a de que muitos brasileiros tém conhecimento limitado do signi- ficado exato das palavras da lingua portuguesa. Simples- mente repetem axiomas aprendidos na infancia. Nao atribuiriam a essas frases uma conotacao racista, pro- ferindo-as de forma irrefletida. Seria, portanto, errado classificar como racismo um problema de compreensio semantica do linguajar dos brasileiros. Um segundo raciocinio foi mais implacdvel com os brasileiros que escorregaram na hora de responder se concordavam com a primeira afirmacao. Sabendo ou no que a frase é racista ou que contém elementos pre- conceituosos, a pessoa que a fepete ajuda a perpetuar uma situacao de desigualdade social a que esto relega- dos os negros na sociedade brasileira. Ou seja, mesmo sem querer, a pessoa que repete inocentemente “negro bom é negro de alma branca” esta sendo preconceituosa contra negros. Foi adotada neste trabalho de pesquisa ¢ re- portagem a segunda proposigaéo. Ou seja, alguém que concordasse com a afirmacao seria considerado uma pes- soa que “manifesta preconceito contra negros em algum momento, ainda que de forma indireta”. Essa expressio nao € um mero eufemismo para evitar a classificagio “racista”. E evidente que ha uma diferenga entre a pessoa que diz “negro bom € negro de alma branca” e outra que, por exemplo, impede um negro de entrar em um restau- rante ou em uma sala de cinema. 15 16 RacisMo CoRDIAL Para efcito de estudo, decidiu-se criar um ranking ou escala de preconceito. A idéia era attibuir Pontos para as respostas dos encrevistados nao-negros as 12 perguntas. Pessoas que escolhessem as respostas mais Pteconceituosas na maioria das perguntas seriam consi- deradas “fortemente Preconceituosas”. Nessa categoria, enquadraram-se apenas 4% dos brasileiros pesquisados, Mas outros 83% se encaixaram entre os que demons- fraram “um pouco” ou “medianamente” Preconceito con- tra negros. A soma de 83% ¢ 4% resulta no percentual (87%) de brasileiros nao-negros que manifestam precon- ceito contra negros em algum momento, ainda que de forma indireta. S6 13% dos entrevistados conseguiram sair ilesos do teste, respondendo a todas as indagacdes com a Opsio desprovida de contetido preconceituoso. E correto dizer, portanto, que apenas 13% dos brasileiros tém um comportamento isento de preconceito contra negros em sua vida cotidiana, Em pesquisas desse tipo, nem todas as pessoas tespondem a todas as perguntas, Por isso, no foi possfvel estabelecer um ntimero minimo de Tespostas que podem dar a alguém a classificagio de “pouco” ou “mediana- mente” preconceituoso. Isso seria errado, Utilizou-se nesse ranking do Ppreconceito uma metodologia de médias. Cada Pesquisado poderia fazer de zero a dois Pontos por pergunta, dependendo do grau de preconceito embutido em sua resposta. Ao final, os computadores do Datafolha somaram quantas perguntas cada pessoa respondeu ¢ quanto cada uma pontuou. Depois disso, dividiu-se o ntimero de Pontos obtidos pelo ntimero de perguntas respondidas e chegou-se a uma média para cada um. E fundamental o entendimento da metodolo- gia utilizada para compor o ranking do preconceito. $6 Racismo cordial assim 0 miicleo da pesquisa Datafolha se torna inteligfvel, Fica mais facil compreendé-lo lendo as tabelas deste li- vro, que descrevem os cruzamentos das respostas as 12 perguntas. Outra forma que ajuda a compreender o re- sultado da pesquisa Datafolha é transformar em ntioneros absolutos os percentuais obtidos. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE), o Brasil tem uma populacio de 154 milhes. Esse ntimero corres- onde ao apurado no censo de 1991, atualizado com pro- jegdes de aumento da taxa populacional, ano a ano, até 1994. Do total de habitantes, 97,6 milhdes tém idade igual ou superior a 16 anos (0 univetso Besquisuda, pelo Datafolha). Nesses 97,6 milhdes, ha 92,9 milhdes de brasileiros nao-negros. Como 879% dos nio-negros mani- festam preconceito de alguma forma, ainda que indireta; contra pessoas negras, é correto dizer que ha 80,8 mt lhdes de preconceituosos adultos no pais. E esse ont mero de potenciais racistas cordiais brasileiros com idade igual ou superior a 16 anos. O racista cordial Interpretada a pesquisa, a reportagem da Folha iniciou uma série de entrevistas em todo o pats para identificar pessoas que se enquadrassem nos Bets centuais do estudo. Evidentemente, foi impossfvel encontrar alguém que se dissesse abertamente um “racista cordial”. Até porque, ao fazer isso, nao estaria mais inclufdo na categoria. A reportagem nao buscou os tradicionais estereétipos racistas, como os de grupos neonazistas. Esse fendmeno de agrupamentos extremistas nao ocorre apenas no Brasil. E nao seria alguma pessoa desse estrato social que poderia representar os 879% dos v 18 Racismo corpiaL Maria Thereza Ferraz Ramos Féris, professora e diretora de escola, foi processada pela pratica de racismo e absolvida. brasileiros que manifestam Preconceito contra negros em algum momento, ainda que de forma indireta. Entre as personagens encontradas, esta a pro- fessora e diretora de escola estadual aposentada Maria Thereza Ferraz Ramos Féris, que tinha 59 anos em junho de 1995. Sem a menor mé intengao, Maria Thereza diz que “tem preto que é gente”. Ela no tem intengio de ser racista. E diz nao ser racista. Maria Thereza faz Propaganda a favor de negros. Teve varias testemunhas negras depondo em sua defesa, num processo a que respondeu por acusacao de ra- cismo, em 1990. Naquela época, ela ditigia uma escola estadual em Paulinia, a 120 km a noroeste de Sio Paulo. A professora Ana Augusta da Silva acusou Maria Thereza de proibi-la de entrar na escola. E, mais, de ter dito: “Lugar de negro € na senzala”, Em 1995, Maria Thereza foi absolvida em segunda instancia — quando o conde- nado recorre ao Tribunal de Justiga do Estado — e sua pena foi revogada. icismo cordial A absolvicao foi dupla. Tanto no caso da pro- fessora que a acusou, como em um outro, no qual ale- gavam que ela teria impedido a matricula de estudantes negros na escola que dirigia. Essa segunda acusacao surgiu como uma continuagaéo da primeira. Enquanto respondia a processo por causa da primeira dentincia, re- ferente a frase da “senzala”, Maria Thereza permaneceu no trabalho. No infcio de um ano letivo, teve de remane- jar estudantes de sua escola para uma outra. Entre eles havia alunos negros. Isso serviu de base para que surgisse outra acusagao de racismo. Condenada pela Justi¢a local, foi absolvida em segunda instancia. Magoada com tudo o que passou, Maria Thereza chorou ao conceder entrevista 4 Folha. “Se eu tivesse um pouco de culpa, eu nem estaria aqui. Nem estaria Ihe dando bola”, disse. A professora aposentada repete, sempre que pode, que nao é racista. Ainda assim, em suas declaragées pontificam exclamagées do tipo “gosto nao se discute” (sobre gostar ou nao de negros) e “fui defendida por eles; por incrivel que pareca”. Com essas declaragdes, Maria Thereza torna-se paradigma dos brasileiros que desejam ser cordiais em relagao aos negros, mas que acabam escorregando em algum momento, como os 87% idencificados na pesquisa Datafolha. Uma pessoa doce, atenciosa, Maria ‘Thereza atendeu com paciéncia a reportagem da Folha. Meti- culosa, apresentou em uma pasta cépias dos processos a que respondeu, sendo depois absolvida. Indagada se teria sido vitima de uma incontinéncia verbal captada por uma pessoa mais perceptiva que a média, ela nao soube dizer. Nao seria 0 caso, hoje em dia, de as pessoas tomarem cuidado com aquilo que dizem, quando um branco e um negro est&o discutindo? Responde Maria Thereza: “Principalmente o branco. Mas precisaria acabar com isso, porque gera a animosidade, a raiva. Vocé ja viu 19 20 Racismo corDIAL algum portugués te processar? Algum judeu te processar porque vocé contou uma piada? E o que tem de re- pertério de portugués burro... B isso que eu quero: que a crianga preta tenha o espirito do portugués. Ele nao se sente, no fundo, inferior: dé risada”. Diferentemente de Maria Thereza, 9 médico Candido da Silva Lopes nao gosta de comentar 0 caso no qual esteve envolvido, como Pfotagonista, também sob a acusagao de ter sido preconceituoso, No dia 3 de abril de 1995, Candido foi convocado a depor perante autori- dades policiais. Nessa data, na Delegacia de Policia de Investigacées sobre Crimes Raciais, ele confirmou: “Eu disse mesmo que a coisa que eu mais detesto é pan- d’égua e crioulo”. Aos 60 anos, na época de seu teste- munho, Candido prestou depoimento sem olhar para o delegado de plantio. Enquanto depunha, lia um livro que havia levado consigo até a delegacia. Respondia mo- nossilabicamente a quase tudo. O acusador de Candido é um vigia do hospi- tal onde 0 médico trabalhava. Durante um plantio, Candido teria se irritado com o seguranga ¢ dispatado « frase que deu origem a dendincia. “O caso é curioso Porque 0 que mais acontece é a pessoa acusada vir até a delegacia e dizer que nao disse nada”, afirma o delegado Mauricio José Lemos Freire, que foi citular da Delegacia de Crimes Raciais em parte de 1994 e de 1995. No pare- cer do médico Candido Lopes, manifestar 0 seu desprezo por alguém de uma determinada etnia é algo perfeita- mente aceitével em uma sociedade democratica. Ninguém pode obrigé-lo, Taciocina, a apreciar todas as etnias que compdem a populagio — desde que ele tespeite os direitos individuais e coletivos de todos. A aparente truculéncia do médico ao admitic © preconceito em relacio a pessoas hegras nfo tem, pelo menos perante a lei brasileira, nada a ver com racismo. Racismo cordial Seria, no méximo, uma injtiria. Ainda assim, 0 juiz que julgasse esse caso teria de: 1) considerar ofensiva a palavra “crioulo”, 2) interpretar que o médico equiparara alcodlatras (“pau-d’4gua”) a negros e 3) que a pessoa que se sentiu ofendida estaria sendo chamada de bébada. De oucra forma, Candido Lopes nao teria feito nada de erra- do ao professar sua aversio por negros. Teria cometido um crime se fizesse 0 que fez utilizando um meio de comunicagao. Como sua declaragao foi de natureza priva- da — proferiu a frase para uma pessoa especifica ouvir —, estava apenas externando sua opiniao. E nao, neces- sariamente, incitando ou induzindo alguém a praticar disctiminag&o ou preconceito, A lei brasileira que trata do racismo é a 7.716, de 5 de janeiro de 1989. O texto descreve o que é racismo e quais so as penas para esse tipo de crime, que no Brasil é inafiangdvel — isto é, uma vez registrado 0 fato em flagrante, o acusado vai direto para a cadeia e nao tem direito a pagar fianga pata aguardar 0 julgamento em liberdade. Mas isso é um fato rarissimo. E didatico conhecer trechos da lei 7.716: Art. 1° - Seto punidos, na forma desta Lei, os crimes de precon- ceitos de raga ou de cot. Lot Acct. 3° - Impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da Administragio Direta ou Indi- reta, bem como das concessiondrias de servigos publicos: Pena - reclusio de 2 (dois) a 5 (cinco) anos. Art. 4° - Negar ou obstar emprego em empresa privada: Pena - reclusio de 2 (dois) a 5 (cinco) anos. Art. 5° - Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a setvir, atender ou receber cliente ou comprador Pena - reclusio de 1 (um) a 3 (teés) anos. Art. 6° - Recusar, negar ou impedir a inscrigio ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino piblico ou privado de qual- quer grau: 21 Racismo corps. Pena - reclusio de 3 (trés) a 5 (cinco) anos. Pardgrafo Gnico - Se 0 crime for praticado contra menor de 18 (ezoito) anos a pena é agravada de 1/3 (um terco), Att. 7° - Impedir o acesso ou recusar hospedagem em hotel, pen- Sto, estalagem, ou qualquer estabelecimento similar: Pena - reclustio de 3 (trés) a 5 (cinco) anos Art. 8° ~ Impedir o acesso ou recusar atendimento em restau tantes, bares, confeitarias, ow locais semelhantes abertos ao publico: Pena - reclusio de 1 (um) a 3 (ttés) anos, Att. 9° ~ Impedir 0 acesso ou recusar o atendimento em estabe- lecimentos esportivos, casas de diversdes ou clubes sociais abertos ao ptiblico: Pena - rechusio de 1 (um) a3 (trés) anos. Art. 10 - Impedir 0 acesso ou recusar atendimento em sales de cabeleireiros, barbearias, termas ou casas de massagem ou esta- belecimentos com as mesmas finalidades: Pena - reclusio de 1 (um)a 3 (trés) anos. Att. LL - Impedir 0 acesso as entradas sociais em edificios pabli- Cos ou residenciais ¢ elevadores ou escada de acesso aos mesmos: Pena - reclusio de 1 (um) a 3 (ttés) anos, Art. 12 - Impedir 0 acesso ou 0 uso de transportes piiblicos, como avides, navios, barcas, barcos, 6nibus, trens, metrd ou qualquer outro meio de transporte concedido: Pena - reclusio de 1 (um)a 3 (trés) anos, Art. 13 - Impedir ou obstar 0 acesso de alguém a0 servigo em qualquer ramo das Forgas Armadas: Pena - reclusdo de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, Art. 14 - Impedi ou obstar, por qualquer meio ou forma, 0 casa- mento ou convivéncia familiar e social: Pena - reclusio de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, fu} Art. 16 - Constitui efeiro da condenagio a perda do cargo ou fun $0 pablica, para o servidor pablico, € a suspensio do fanciona- mento do estabelecimento particular por prazo niio superior a 3 (tr€s) anos, {ed Att. 18 - Os efeitos de que tratam os arts, 16 ¢ 17 desta Lei nfo sio aucomticos, devendo ser motivadamente declarados na sentenica, Ll Art. 20 - Praticar, induzir, ov incitar, pelos meios de comunicagio social ou por publicagio de qualquer natureza, a discriminaggo ou Preconceito de raca, cor, religido, etnia ow procedéncia nacional: Racismo cordial fio de 2 (dois) a 5 (cinco) anos. Pena + reclusio de 2 (d ‘ 2. Wan ii vi 10 Panigrafo 1° - Poderé o juiz determinar, ouvido o aici e , : é jal, sol Pablico ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, » desobediéncia: pena de deso! - et 1 0 recolhimento imediato ou a busca € apreensiio dos erial respectivo; ! polaures do material i "i ct = I] - a cessagio das respectivas transmissdes radiofénicas ou tel sivas Par eters rao 2° - Constitui efeito da condenagao, apés 0 transito lo da decisio, a destruigio do material apreendido. Meticulosa a ponto de descrever, entre outras coisas, as formas de transporte (barcas, barcos, etc.) onde iio se pode impedir 0 acesso de alguém com base na sua cot, a lei 7.716 comete uma gafe logo no inicio, ae que serio punidos os crimes “resultantes de NecONGeH OS le raga ou de cor”, Evidentemente, para seres humans, raga existe apenas uma: a humana. O que ha sdo etnias — 0 negro, por exemplo, pertence a uma das etnias da raga humana. Outro aspecto de maior relevancia na lei /.716 & que quase todos os seus artigos comecan com tres verbos no infinitivo: “impedir”, aes e “negar”. Racismo é, como fica claro, impedir alguém de fazer algo wo cleitto de por causa da cor da pele. Por exemplo, 0 caso classico a noturna impedindo um um porteiro de alguma oe ane negro de entrar. Ainda assim, para que o Pore 4 dono do estabelecimento pudessem ser presos, es necessdrio que a policia fosse até o fee! ag ome lo fato e que pessoas testemunhassem. $6 assim ee eu figurado o crime de racismo. E, mesmo com oes is evidéncias, os acusados poderiam apresentar ee desculpas para se safarem. Dizer que 0 negro impe: re de entrar nfo estava vestido de forma adequada, que ae pagou o ingresso, que a casa estava lotada, etc. Bssas ee gagdes jogariam a acusagdo no testeno das suposicoes, réu acabaria sempre tendo o beneffcio da diivida. B RACISMO CORDIAL ; Nos primeiros seis meses de 1995, a Delega- cia de Crimes Raciais de Sio Paulo, a tinica do pais espe- cializada nesse tipo de crime, registrou 53 ocorréncias. Menos de uma por dia. Ou, com maior Precisio, regis- trou-se, em média, apenas uma ocorréncia a cada 3,4 dias do primeiro semestre de 1995. A idéia de ter uma dele- gacia especializada em crimes raciais é dar, suposta- mente, acesso mais facil 4 lei aos que se sentem ofendi- dos. E mais confortavel, sup6e-se, procurar um policial para reclamar de disctiminacio sem ter de compartilhar © espago com outras pessoas, baleadas ou assaltadas. Nao se corre o risco de alguém sugerir que a queixa de racis- mo soa irrelevante, se comparada as desgragas que apare- cem numa delegacia diariamente. $6 que a delegacia paulistana de crimes raciais est4 instalada no 17° andar de um prédio no centro da cidade. Essa distancia da calgada acaba nfo facilitando 0 acesso daqueles que even- tualmente poderiam fazer uma queixa ou dentincia, Delegacia de Investigagdes de Crimes Raciais Racismo cordial Segundo o delegado Mauricio Freire, a maio- ria dessas poucas ocorréncias registradas nem resulta em Iuita coisa. “Quase cudo que aparece é injiiria, ou nem isso”, diz. Ele explica como so interpretadas, perante a lei, as acusagdes de suposto crime de racismo: “Quando uma pessoa chama a outra de ‘macaco’, isso € injtiria. Se a ofensa for chamar alguém de ‘ladrao’, sem provar, isso é caltinia, E no caso de um profissional classificar 0 outro de ‘incompetente’, af € difamagio. ‘Tudo isso af € muito confundido com racismo, principalmente quando ha um hranco e um negro enyolvidos”. Ha casos curiosos registrados nas gavetas do delegado Mauricio Freire. Pessoas que confundem a extensio da lei e protagonizam reclamagées histéricas, desprovidas de qualquer base juridica. Como o de um marido negro que disse estar sendo discriminado pela mulher, branca, dentro de casa. “Era muito esquisito, pois os dois haviam se casado, e a mulher estaria mani- festando racismo s6 depois de morarem juntos hd quase um ano”, relata Freire. No final, ficou esclarecido que se tratava apenas de um desentendimento entre marido e mulher, que nada tinha a ver com preconceito de cor. Outro caso de confusio sobre a interpretagaio da lei € 0 de uma mulher negra demitida de seu emprego por justa causa. Indignada, queixou-se porque a demis- siio teria sido causada por sua cor e crenga religiosa. Depois da investigagao conclufda, verificou-se que nao era bem um caso de racismo. A mulher havia sido con- tratada como ascensorista em um prédio na regio cen- tral de Sao Paulo. Alguns dias depois de ser admitida, passou a ir ao trabalho, todas as sextas-feiras, trajando uma roupa tipica baiana. Usava um vestido rodado bran- co para poder freqitientar um culto religioso apés o servico. A indumentéria era uma exigéncia de sua religiaio. Como o local de trabalho obrigava o uso de uni- 25 26 RacisMo CORDIAL forme, e a mulher foi irredutivel em sua posicio, acabou demitida. A policia arquivou 0 caso. Negro contra negro e idéias preconcebidas Um dos resultados que mais chamou atengao na pesquisa Datafolha foi algo de que se ouvia falar quando o assunto era racismo, mas nunca havia sido comprovado cientificamente: negros também manifes- cam algum tipo de preconceito em relagao a pessoas de sua etnia. Para 48% dos negros entrevistados, por exem- plo, a frase “negro bom € negro de alma branca” estd total ou parcialmente correta. O que isso significa? Para o diretor-executivo do Datafolha, Antonio Manuel Teixeira Mendes, trata-se de “um caso tipico de baixa auto-estima, ¢ nao de racismo propriamente”. Mas o per- centual mostra, sobretudo, o grau de enraizamento do racismo na sociedade brasileira, a ponto de os préprios negros repetirem — ainda que de maneira irrefletida — afirmagdes negativas em relacio a si préprios. Ha outros percentuais altos que indicam pre- conceito intra-étnico. Para 32% dos negros entrevista- dos, esté completamente correta a afirmagdo “as tnicas coisas que os negros sabem fazer bem sdo miisica e esportes”. Outros 10% concordaram parcialmente com a assertiva. Mesmo quando a maioria dos negros discor- da de determinadas afirmagdes, € curioso que uma parcela minoritdria, mas significativa, continue manten- do a abordagem negativa. Por exemplo, 22% dos negros concordam total ou parcialmente que “negro, quando nao faz besteira na entrada, faz na safda”. E 8% deles consideram que os brancos sao mais inteligentes que os negros. Racismo cordial Outro grupo étnico que, em tese, nfo teria razéo aparente para manifestar preconceito contra negros € 0 dos pardos — a designagio que confina todos os mo- renos, mulatos ¢ demais pessoas de cor ndo-branca, exce- to negros e amarelos. Curiosamente, os pardos sao sem- pte tao preconceituosos quanto os brancos. Por exemplo, 36% dos pardos concordam inteiramente que “negro bom é negro de alma branca”. Entre os brancos, esse percentual é de 35%. Os pardos também sao preconceituosos ao responder que “negro, quando nfo faz besteira na entrada, faz na saida”: 24% concordam totalmente ou em parte. O percentual é de 23% entre os brancos. Mas a demonstragao mais reveladora sobre os pardos é a resposta que dao criticando a prépria formagao de sua etnia, Para 24% dos pardos, esta correta total ou parcialmente a afirmacao “se Deus fez racas diferentes, é para que clas nado se misturem”. Um pardo — mulato, moreno, nao importa — tem de ser, necessariamente, fruto de uma miscigenagao entre duas pessoas de etnias diferentes. Ao concordar com a frase racista de que Deus nao quer mistura entre pessoas que tenham cores dife- rentes de pele, os pardos, ainda que de forma impensada, desqualificam a propria existéncia. A capacidade de perceber que existe precon- ceito no pais esta diretamente ligada ao nivel de escolari- dade dos entrevistados. Entre negros com nivel superior, 9600 dizem haver preconceito de cor em relacio a negros no pais. Esse percentual cai para 899% quando os negros entrevistados tém apenas até o 1° grau. A influéncia do nivel escolar € mais visfvel na escala do preconceito. nquanto apenas 8% dos negros entrevistados com nivel superior manifestaram preconceito mediano ao responder is perguntas ucilizadas para montar 0 ranking, 62% dos negros com formagio de 1° grau foram medianamente (589%) ou muito (4%) preconceituosos nas entrevistas. wes RacisMo corpiaL A pesquisa Datafolha demoliu algumas idéias Preconcebidas que existiam sobre racismo no pais. Por exemplo, que haveria menos preconceito em cidades pequenas. Nao é verdade, segundo o Datafolha apurou, que uma populacio menor aproxime as pessoas e que 0 maior nivel de convivéncia ajude a anular o racismo. Moradores de municipios Pequenos demonstram um sen- timento tacista em proporgio quase idéntica a verificada em cidades médias e grandes, Em alguns casos, aumenta © preconceito, conforme diminui o nimero de habitantes, Um exemplo: entre os entrevistados brancos, vatiou de 3% a 5% os que demonstraram muito precon- ceito — em cidades pequenas, médias ¢ grandes. Ja entre os brancos que nao manifescaram Preconceito em Momento algum, hé uma diferenca visivel. Nos municf- pios grandes, 179% dos brancos nao foram preconceitu- osos. Em cidades pequenas, o Percentual caiu para ape- nas 12%. Uma das possiveis razdes para que cidades pe- quenas tenham, em alguns casos, situagdes mais agudas de racismo é a distancia do debate, constante em gtandes centtos, sobre o papel do negro na sociedade, £ mais raro, em cidades pequenas, haver queixas por supostos crimes de racismo. Nao é por acaso que a tinica delegacia espe- cializada do pais esté em sua maior cidade, Sio Paulo. Outra suposigao antiga que foi desmontada pela pesquisa Datafolha é a de que os ricos so mais pre- conceituosos que os pobres, Na verdade, quem tem mais dinheiro tende a ser menos racista, O inverso também é valido: quanto menor a renda, mais preconceito tende a expressar a pessoa, Tome-se o exemplo classico de brancos contra negros. Apenas 1196 dos brancos com renda mensal até dez saldrios minimos no manifestaram Preconceito con- tra hegros na pesquisa Datafolha. Ja encre os que recebem Racismo cordial , 7 . Rn 10 saldtios minimos ou mais por més, subiu para 24% o percencual dos que responderam de forma nao-precon- coituosa as 12 perguntas do ranking do Datafolha. Nordeste racista E curioso que a maior manifestagdo de pre- conceito contra negros tenha sido captada na regiao Nordeste, onde hd maior miscigenagio. Entre os brancos nordestinos, 6% responderam de forma muito precon- ado pelo ceituosa as 12 perguntas do ranking Datafolha, Os mulatos atingiram a marca de 7% de res- postas muito preconceituosas, e os negros tiveram rai percentual alto, de 6%, nesse item, quando a regiao pesquisada foi o Nordeste. ds ; Conforme apurou o repérter Joio Batista Natali em investigacéo em Recife (PE), das 1.378 pes- soas assassinadas na regiao metropolitana da capital per- nambucana em 1994, sé 173 eram brancas. As outras foram classificadas pelos legistas como sendo negras, par- das ou morenas. No Espinheiro, um bairro de classe aes de Recife, Joao Batista Natali encontrou pos Peron exemplar de como o pais ainda conserva habitos de sécu- los passados. Marlene Maria Lino da Silva, com 20 anos em junho de 1995, contou ter trabalhado cong empre- gica doméstica por dois anos sem receber salétios. Foi espancada, teve a pele queimada eae geo fervendo e niio péde, durante todo esse tempo, sair a rua ou telefonar para alertar a policia ou a familia. Na época, instaurou-se um inquérito policial para apurar esses fatos. oO asterecls Jotio Veiga afirma que Marlene, uma negra, foi vitima de esctavidéo. “Ela comegou a bater em mim quatro meses depois que eu trabalhava para ela. Me chamava de negra rs) RACISM CORDIAL sem- em-vergonha ¢ falava que todo negro nasceu para ser escravo”, relata Marlene. : Embora tenha feito entrevistas em 121 cidades em todo o pais, a Datafolha nao permite que se indique um municipio, e nem mesmo um estado, como sendo o mais preconcei- tuoso do pags. Para isso, a Pesquisa teria de ser muito mais ampla e levaria muito mais tempo. Apesar disso, as estratificagdes por regiao do pais permitem dizer, ei Seguranca, que o Nordeste é 0 local onde as respostas a Pesquisa foram as de contetido mais preconceituoso, / Apesar disso, Recife serve de residéncia a um dos maiores exemplos de ascensao social de um negro brasileiro nao relacionado a esportes ou a artes musicais. Exemplo colhido por Jodo Batista Natali, a histéri se Adson Carvalho fascina por ser fade brasileira, det incomum na sociedade jascido em uma favela em Belém (PA), : d ele ficou 6rfao aos trés anos. Foi criado por um tio sapatei: To. ° fii emprestio Adson Carvalho, 58, dono da IT (Internacional de Tecnologia), amostra utilizada pelo Racismo cordial ‘Trabalhou como auxiliar de escritério em uma compa- phia aérea e conseguiu entrar para a faculdade, Cursou engenharia, em Recife. Por concurso, conseguiu uma yaga na multinacional de origem norte-americana IBM. Em 1975, montou sua prépria empresa, que hoje tem filiais em Sao Paulo, Santiago (Chile) e Atlanta (BUA). Da emprego a um exército de 3.200 funciondrios. B, com certeza, um dos negros mais ricos do Brasil. Em junho de 1995, Adson Carvalho estava com 58 anos. Sua empresa, a IT (Internacional de ‘Tecno- logia) — especializada em servigos de transmissio de imagens digitalizadas (imagens processadas por com- putador), um ramo de atividade que deve prosperar cada vez mais no final dos anos 90 — tinha faturamento de US$ 100 milhGes, previsto para o ano. “Sou contra qualquer marca de desgosto ¢ nao concordo com os movimentos que estimulam o conflito. Se eu tivesse tempo para militar, participaria de algum grupo conciliador”, diz Adson Carvalho ao ser indagado sobre como enfrenta os mal-entendidos do dia-a-dia. Dificilmente, afirma, se aborrece com esse tipo de inci- dente. Por exemplo, quando entrou numa concessiondria para obter informacées sobre um automével Mercedes, modelo 300 E, o vendedor perguntou-lhe se, em lugar do carro, nao era um caminhio que ele procurava. Ou, entao, quando Adson foi abordado por um héspede no saguio do hotel Sheraton Mofarrej, um cinco estrelas de Séo Paulo. O desconhecido perguntou, depois de tocar-lhe no ombro, se eram bem pagos os motoristas de limusine. Pai de cinco filhos, morador num apartamen- to de 500 metros quadrados na praia de Boa Viagem, um bairro nobre de Recife, Adson Carvalho é proptietdrio de um automével Mercedes. O carro alemao Ihe custou US$ 140 mil, ‘Tem planos de comprar um jatinho para se deslocar com mais conforto e rapidez. Em 1996, a idéia é 31 32 Racismo CorDiaL mudar a empresa para um prédio de 15 andares, revesti- do de matmore ¢ enfeitado NO topo com uma esfera me- tilica de 15 metros de diametro, Adson mandou cons- truir o ediffcio com recursos prdprios € batizou-o com seu nome. Vai chamar-se Adson Tower, A cor que o brasileiro tem € a que desejaria ter Quando se conversa com um norte- americano sobre a composic fio étnica de seu pais, ele normalmente diz, orgulhoso, que os Estados Unidos sao um cadinho (“melting pot”) de tagas. Sabe-se que nao é bem assim, se a comparagio for o Brasil. Ha uma dianteira de quase 100 anos para os brasileiros em termos de mist se sabe ao certo quando chegaram os prii Brasil; ha grandes probabilidades de te expedi¢ao de Martim Afonso de Sous: América do Norte, a Ptimeira leva de esc: introduzida por traficantes holandeses em Jamestown (Virginia) em 1619”, escreveu Caio Prado Junior (1907- 1990) em seu festejado livro Formagdo do Brasil Contempordneo (23. ed. Sio Paulo, Brasiliense, 1994, p. 30), Se 1531 foi mesmo 0 ano da chegada dos pri- meitos negros ao Brasil, como disse Caio Prado, esses 464 anos de miscigenacio até 1995 resultaram em uma indefinigio completa sobre a cot atual do brasileiro, que é classificada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Es- tatistica (IBGE). Burocratas desse 6rgio controlado pelo governo federal inventaram uma definica da a quase ninguém: a cor parda. “O te verdadeiro saco de gatos. Tudo 0 qui fe dio se enquadra nas Outras Categorias € jogado lé dentro, I a lata de lixo do censo”, disse a demégrafa € estatistica Valéria Motta Leite & repérter Cristina Grillo. A escolha da cor parda foi consolidada em 1976, depois que o IBGE fez a sua ‘cigenaciio. “Nao iMeiros negros ao rem vindo j& na ‘a, em 1531. Na tavos africanos foi Racismo cordial u acional por Amostra de Domicilios (PNAD) squisa N 1 m de Domicilios ( ee uele ano. O resultado ciros se auto- Oo Itado foi que os bras' a S tribufram 135 cores diferentes. Isso tornou inv: ae ner lizar 0 censo apenas segundo a cor que cada pessoa realiza considerava ter. ‘A lista das 135 cores constitui um verdadeiro tado antropolé, . ditado pelos brasileirc seguir, a ado antropolég' Pp ri s. A seg) cio completa de cores coletadas na pesquisa real zada rela em 1976: | - Acastanhada ) - Agalegada 3 - Alva Alva-escura - Alvarenta 6 - Alvarinta ~ Alva-rosada, 8 - Alvinha 9 - Amarela 10 - Amarelada 1] - Amarela-queimada 12 - Amarelosa 13 - Amorenada 14 - Avermelhada 15 - Azul 16 - Azul-marinho 17 - Baiano 18 - Bem-branca 19 - Bem-clara 20 - Bem-morena 21 = Branca 22 - Branca-avermelhada 23 - Branca-melada 2.4 - Branca-morena 25 - Branca-pélida 26 - Branca-queimada - Brance-sardenta - Branca-suja 29 - Branquiga 30 - Branguinha 31 - Bronze 32 - Bronzeada 33 - Bugrezinha-escura 34 - Burro-quando-foge 35- 36 - Cabo-verde 38 - Café-com-leite 39 - Canela 40 - Canelada 41 - Cardio 42 - Castanha 43 - Castanha-clara 44 - Castanha-escura 45 - Chocolare 46 - Clara 47 - Clarinha 48 - Cobre 49 - Corada 50 - Cor-de-café 51 - Cor-de-canela 52 - Cor-de-cuia 53 - Cor-de-leite 54 - Cor-de-ouro 55 - Cor-de-rosa 56 - Cor-firma 57 - Crioula 58 - Encerada 59 - Enxofrada 60 - Esbranquecimento 33, IACISMO CORDIAL 61 - Escura 62 - Escurinha 63 - Fogoio 64 -Galega 65 - Galegada 66 - Jambo 67 - Laranja 70 - Loira-clara 71 - Loura 72 - Loutinha 73 ~ Malaia 74 - Marinheira 75 - Marrom 76 - Meio-amarela 77 = Meio-branca 78 - Meio-morena 79 - Meio-preta 80- Melada 81 - Mestica 82- Miscigenagio 83 - Mista 84 - Morena 85 - Morena-bem-chegada 86 - Morena-bronzeada 87 - Morena-canelada 88 - Morena-castanha 89 - Morena-clara 90 - Morena-corde-canela 91 - Morena-jambo 92 - Morenada 93 ~ Morena-escura 94 - Morena-fechada 95 ~ Moreno 96 - Morena-parda 97 = Morena-toxa 98 - Morena-ruiva 99 - Morena-trigueira 100 - Moreninha 101 - Mulata 102 - Mulatinha 103 - Negra 104 - Negrota 105 - Palida 106 - Paraiba 107 - Parda 108 - Parda-clara 109 - Polaca 110 - Pouco-clara 111 - Pouco-morena 112 - Preta 113 - Pretinha 114 - Puxa-para-branca 115 - Quase-negra 116 - Queimada 117 - Queimada-de-praia 118 - Queimada-de-sol 119 - Regular 120- Retinta 121 - Rosa 122 - Rosada 123 ~ Rosa-queimada 124 - Roxa 125 - Ruiva 126 - Russo 127 - Sapecada 128 - Sarard 129 - Saratiba 130 - Tostada 131 - Trio 132 - Trigueira 133 - Turva 134 - Verde 135 - Vermelha A lista aci i fits os sien acima serviu de base para 0 IBGE de- ‘aria as pessoas que no fossem brancas, Racismo cordial hegras, amarelas ou indigenas. “Havia criticas ao fato de » quesito ser fechado (as respostas n&o eram livres). Na NAD tentamos verificar a melhor maneira para se descobrir a cor da populagio. Conclufmos que pardo ria melhor”, relata a demégrafa Valéria Motta Leite. A pureir dessa’ pesquisa de 76, muita gente passou a entrar sem querer — como tendo a cor parda nas estatisticas oficiais do governo brasileiro. Hoje, segundo 0 IBGE, o brasileiro pode ter apenas cinco cores: 1) branca, 2) parda, 3) negra, 4) indi- wena e 5) amarela. Os pardos sio todos os nao-brancos que no sejam negros, amarelos ou fndios. Apesar de te- tem sido os ptimeiros habitantes do pais, os indigenas yanharam denominagao prépria apenas no diltimo censo ‘lemogréfico, de 91. Os brasileiros que nao concordam com as cinco definigdes possiveis de cor apresentadas pe- lo IBGE sao jogados na classificago outros. O IBGE pesquisa a cor das pessoas apresen- tando as cinco opgSes para que cada pessoa se autodefina. S6 se conhece a diviséo por cor dos brasileiros segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilios (PNAD) de 1990, que classifica a populagio em 55,3%% brancos, 39,39 pardos, 4,9% negros e 0,5% amarelos. Como o censo de 91 nao estava processado até setembro de 1995, nio foi possivel para este livro trazer o percentual de indigenas na populacio brasileira. O IBGE aplica o censo com dois formularios. Um é levado & maioria dos domicilios do pais. O outro questiondrio, mais extenso, 86 € aplicado a um percentual da populagio. E esse segundo que contém as informagGes sobre a cor dos brasileiros e nao havia sido completa- mente processado até setembro de 1995. Segundo as normas internacionais, acordadas pelos pafses-membros da Organizagao das Nacdes Unidas (ONU), cada nacio deve fazer um censo a cada dez anos. 35 36 Racismo corpian ic s du ‘aS estavam previstos para liber, oe Publico apenas no final de 1995. Por oe D de 1994 sequer foi realizada. we Além de demonst of 45 em Tar que falta agili BrineiPal 0Fgao estatistico nacional a a r eeavolha também serviu para expor que a d or do IBGE esta ultrapassada. Diferent isso, a pesquisa lefinicdo de Préprio. Finalmente, apresentava as po: vistas pelo IBGE e pedia para 0 pes em uma delas. O resultado & que ‘asileiros rejeitaram c le os br: espetacularmente © termo pardo. Apenas petacu t pai \penas 6% . e vistados se atribuii ne ; Se auto-atribuiram a cor Parda em ns ae tesposta ce neas. Outros 8% se disseram de cor . m ‘ta. E o grande achado foi a c er no censo do IBGE: 43% dos bi anos se classificam como mo (moreno-claro ¢ moreno-escuro ‘Or Morena, que inexiste rasileiros maiores de 16 Fenos € suas variacdes ( A ). O inane Percentual supera. eae de brancos. Apenas 39% dos brasilel ‘ istados se disseram brancos. Outros 2 nie deraram claros, scons Quatro conclusdes sobre esses ntimeros: Racismo cordial |) Para 6 IBGE, o Brasil € um pafs que tem maioria hranca (65,3% da populagao) e uma multidao de pardos (49,506 do total); ) Na pratica, quase ninguém quer ser pardo, pois 71% ‘los que foram listados como sendo dessa cor pelos poiquisadores do Datafolha (seguindo critérios do IBGE) \ Lussificaram-se como morenos; \) Nem todos os classificados como brancos pelo IBGE se consideram dessa cor, pois 24% dos listados como hrancos pelos pesquisadores também se consideram Morenos; € 1) Para os brasileiros, nao existe uma maioria de brancos ho pats. A soma de morenos € negros, segundo auto- avibuicgio espontanea de cor, resulta em 50%. Se forem somados af os que se classificam como pardos (6%), mulacos (1%) e escuros (2%), o percentual sobe para 90%, a maioria, portanto. A palayra “moreno”, segundo o dicionario Aurélio, deriva do espanhol: “Moreno, da cor trigueira do mouro”. Por raz6es diversas, que nao foram estudadas nesta pesquisa do Datafolha, 0 termo “moreno” cenraizou-se de forma altamente positiva na cultura brasileira. B raro ver alguém que nado queira bronzear-se no vero para ficar moreno. Mesmo os que nao querem ficar morenos tendem a admirar as pessoas que sao dess: cor, Coletada por Cristina Grillo, a frase de Ezio San, vocalista do grupo de pagode Os Morenos, sintetiza o subconsciente nacional sobre o assunto: “Moreno é a cor do Brasil. Ninguém gosta de ser chamado de neguinho ou de branquinho”, Essa confusao sobre a cor da pele das pessoas fica mais intensa em familias em que um negro se casa com uma branca, ou vice-versa. Paula Barreto, branca, com 36 anos em junho de 1995, filha do produtor de 7 48 RacisMO CORDIAL cinema Luis Carlos Barreto, casou-se com o jogador de futebol Claudio Adio, negro, de 39 anos, Paula contou Para a tepérter Cristina Grillo que sofreu as “pressdes na- turais” em casa quando anunciou 0 casamento. Mais ou menos 0 que apurou a pesquisa do Datafolha: 14% dos entrevistados nao aceitariam facilmente um casamento de um filho ou filha branca com uma hegra ou negro. Quando em 1977 Paula comunicou aos pais que se casaria com Claudio Adio, sua mie Ihe perguntou se jd havia pensado nos filhos, que seriam mulatos. “E era © que eu mais queria, ter filhos Lindos, que niio fossem branquelos como eu e que fossem uma mistura minha e do Claudio”, relatou Paula. O casal teve dois filhos: Camila e Felipe, com 10 € nove anos em junho de 1995, Na certidao de nasci- mento, os dois so brancos; mas quando passa 0 pesqui- sador do IBGE, Paula diz que os filhos sio negros. “Minha maior decepgio foi quando as criangas nasceram. Elas eram brancas, por isso foram registradas assim. Mas depois 0 pediatra me trang, izou e disse que elas iriam escurecer”, afirma Paula. Para ela, 0 problema mesmo é 0 termo pardo: “Tenho horror a ele. E feio, Preconceituoso. Meus filhos so negros e sao felizes”, Felizes, as criangas Camila e Felipe sio dois entre provaveis milhdes de exemplos sobre a ficg&o que é a classificacio de cor do IBGE. Pelos critétios oficiais do censo, todos os descendentes de casamentos mistos sio necessariamente pardos. Assim, o filho de um casal for- mado por um oriental e um branco é considerado pardo. Essa € a mesma classificagZo usada para o filho de um casal formado por um branco e um negro. “A idéia do branqueamento da raga é muito forte. Minha mie dizia para as filhas: “Vocé tem que casar com branco para apurar a raga’. O negro de classe média também rejeita a raga”, disse em junho de 1995 0 tinico Racismo cordial Vereador do PC do B, Vital Nolasco, tinico vereador negro na Camara Municipal de Sao Paulo. vereador negro da cidade de Sao Paulo, 0 comunista ae Nolasco. A rigor, Vital seria o que se onrsanaee Ha mar de mulato. “Mas se a socicdade nos ae a gros, por que nds nado vamos Cire que a 5 aon perguntar. Presidente de uma “comissao i Bae nhamento das comemoracdes dos 300 anos ie ua Nolasco, que tinha 48 anos ao dar esta cae ey se com Maria Ester, branca, mas também mil prante is direitos dos negros. “O negro precisa Se ee Ele no se impde. Tem medo de ser negro”, afirma “ dl Elza Berqué, pesquisadora do Centro Bra. sileiro de Anélise e Planejamento ead “ninguém tem sabedoria, dircito nem beee a sificar ninguém”, Em entrevista a Reg el BS = disse considerar “pobre” a classific aco por ce es pele, conforme aparece no formulério do IBG! H Zs ae nfo se opde a que a palavra “pardo” seja trocada p

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