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12/03/2018 Noam Chomsky: “As pessoas já não acreditam nos fatos” | Cultura | EL PAÍS Brasil

CULTURA

Noam Chomsky: “As pessoas já não acreditam nos


fatos”
Prestes a fazer 90 anos, acaba de abandonar o MIT. Ali revolucionou
a linguística moderna e se transformou na consciência crítica dos
EUA

Noam Chomsky, em seu escritório da Universidade do Arizona, em Tucson. APU GOMES

JAN MARTÍNEZ AHRENS

12 MAR 2018 - 19:45 CET

Noam Chomsky (Filadélfia, 1928) superou faz tempo as barreiras da vaidade.


Não
  fala de sua vida privada, não usa celular e em um tempo onde abunda o
líquido e até o gasoso, ele representa o sólido. Foi detido por opor-se à Guerra do
Vietnã, figurou na lista negra de Richard Nixon, apoiou a publicação dos Papéis do
Pentágono e denunciou a guerra suja de Ronald Reagan. Ao longo de 60 anos, não
há luta que ele não tenha travado. Defende tanto a causa curda como o combate à
mudança climática. Tanto aparece em uma manifestação do Occupy Movement
como apoia os imigrantes sem documentos.

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12/03/2018 Noam Chomsky: “As pessoas já não acreditam nos fatos” | Cultura | EL PAÍS Brasil

Mergulhado na agitação permanente, o jovem que nos anos


MAIS INFORMAÇÕES cinquenta deslumbrou o mundo com a gramática gerativa e
seus universais, longe de descansar sobre as glórias do
filósofo, optou pelo movimento contínuo. Não se importou
com que o acusassem de antiamericano ou extremista.
Sempre seguiu em frente com valentia, enfrentando os
Zygmunt Bauman: demônios do capitalismo − sejam os grandes bancos, os
“As redes sociais são conglomerados militares ou Donald Trump. À prova de fogo,
uma armadilha”
sua última obra volta a confirmar sua tenacidade. Em
Réquiem para o sonho americano (editora Bertrand Brasil), ele
põe no papel as teses expostas no documentário homônimo e
denuncia a obscena concentração de riqueza e poder que
exibem as democracias ocidentais. O resultado são 192
Antonio Negri: “A páginas de Chomsky em estado puro. Vibrante e claro.
direita encontra-se
em posição de
ataque em todos os
Preparado para o ataque.
cenários
continentais”

— O senhor se considera um radical?

— Todos consideramos a nós mesmos moderados e


razoáveis.
Chomsky: “Os EUA
são a origem do
problema do tráfico — Defina-se ideologicamente.
de drogas”

“As pessoas se sentem menos representadas e levam uma vida


precária. O resultado é uma mistura de aborrecimento e
medo”
 

— Acredito que toda autoridade tem de se justificar. Que toda hierarquia é


ilegítima enquanto não demonstrar o contrário. Às vezes pode se justificar, mas
na maioria das vezes, não. E isso... isso é anarquismo.

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Uma luz seca envolve Chomsky. Depois de 60 anos dando aulas no Instituto de
Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), o professor veio viver nos
confins do deserto de Sonora, no Arizona. Em Tucson, a mais de 4.200
quilômetros de Boston, ele se instalou e estreou um escritório no Departamento
de Linguística da Universidade do Arizona. O centro é um dos poucos pontos
verdes dessa cidade abrasadora. Freixos, salgueiros, palmeiras e nogueiras
crescem em torno de um edifício de tijolos vermelhos de 1904 onde tudo fica
pequeno, mas tudo é acolhedor. Pelas paredes há fotos de alunos sorridentes,
mapas das populações indígenas, estudos de fonética, cartazes de atos culturais
e, no fundo do corredor, à direita, o escritório do maior linguista vivo.

O lugar não tem nada a ver com o espaço inovador do Frank Gehry que o abrigava
em Boston. Aqui, mal cabe uma mesa de trabalho e outra para sentar-se com dois
ou três alunos. Recém-estreado, o escritório de um dos acadêmicos mais citados
do século XX ainda não tem livros próprios, e seu principal ponto de atenção recai
em duas janelas que inundam a sala de âmbar. Chomsky, de calças jeans e longos
cabelos brancos, gosta dessa atmosfera calorosa. A luz do deserto foi um dos
motivos que o levaram a se mudar para Tucson. “É seca e clara”, comenta. Sua
voz é grave e ele deixa que se perca nos meandros de cada resposta. Gosta de
falar longamente. Pressa não é com ele.

Pergunta. Vivemos uma época de desencanto?

Resposta. Já faz 40 anos que o neoliberalismo, liderado por Ronald Reagan e


Margaret Thatcher, assaltou o mundo. E isso teve um efeito. A concentração
aguda de riqueza em mãos privadas veio acompanhada de uma perda do poder
da população geral. As pessoas se sentem menos representadas e levam uma
vida precária, com trabalhos cada vez piores. O resultado é uma mistura de
aborrecimento, medo e escapismo. Já não se confia nem nos próprios fatos. Há
quem chama isso de populismo, mas na verdade é descrédito das instituições.
 

P. E assim surgem as fake news (os boatos)?

R. A desilusão com as estruturas institucionais levou a um ponto em que as


pessoas já não acreditam nos fatos. Se você não confia em ninguém, por que tem

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de confiar nos fatos? Se ninguém faz nada por mim, por que tenho de acreditar
em alguém?

P. Nem mesmo nos veículos de comunicação?

R. A maioria está servindo aos interesses de Trump.

P. Mas há alguns muito críticos, como The New York Times, The Washington Post,
CNN…

R. Olhe a televisão e as primeiras páginas dos jornais. Não há nada mais que
Trump, Trump, Trump. A mídia caiu na estratégia traçada por Trump. Todo dia ele
lhes dá um estímulo ou uma mentira para se manter sob os holofotes e ser o
centro da atenção. Enquanto isso, o flanco selvagem dos republicanos vai
desenvolvendo sua política de extrema direita, cortando direitos dos
trabalhadores e abandonando a luta contra a mudança climática, que é
precisamente aquilo que pode acabar com todos nós.

Noam Chomsky. APU GOMES

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P. O senhor vê em Trump um risco para a democracia?

R. Representa um perigo grave. Liberou de forma consciente e deliberada ondas


de racismo, xenofobia e sexismo que estavam latentes, mas que ninguém tinha
legitimado.

P. Ele voltará a ganhar?

R. É possível, se conseguir retardar o efeito letal de suas políticas. É um


demagogo e showman consumado que sabe como manter ativa sua base de
adoradores. Também joga a seu favor o fato de que os democratas estão
mergulhados na confusão e podem não ser capazes de apresentar um programa
convincente.

P. Continua apoiando o senador democrata Bernie Sanders?

R. É um homem decente. Usa o termo socialista, mas nele significa mais um New
Deal democrata. Suas propostas, de fato, não seriam estranhas a Eisenhower
[presidente dos EUA pelo Partido Republicano de 1953 a 1961]. Seu sucesso, mais
que o de Trump, foi a verdadeira surpresa das eleições de 2016. Pela primeira vez
em um século houve alguém que esteve a ponto de ser candidato sem apoio das
corporações nem dos veículos de comunicação, só com o apoio popular.

“Trump liberou deliberadamente ondas de racismo, xenofobia


e sexismo que estavam latentes mas não legitimadas”

P.
  Houve um deslizamento para a direita do espectro político?

R. Na elite do espectro político sim, ocorreu esse deslizamento, mas não na


população em geral. Desde os anos oitenta se vive uma ruptura entre o que as
pessoas desejam e as políticas públicas. É fácil ver isso no caso dos impostos. As
pesquisas mostram que a maioria quer impostos mais altos para os ricos. Mas
isso nunca se leva a cabo. Frente a isso se promoveu a ideia de que reduzir
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impostos traz vantagens para todos e que o Estado é o inimigo. Mas quem se
beneficia da reduzir [verbas para] estradas,hospitais, água limpa e ar respirável?

P. Então o neoliberalismo triunfou?

R. O neoliberalismo existe, mas só para os pobres. O mercado livre é para eles,


não para nós. Essa é a história do capitalismo. As grandes corporações
empreenderam a luta de classes, são autênticos marxistas, mas com os valores
invertidos. Os princípios do livre mercado são ótimos para ser aplicados aos
pobres, mas os muito ricos são protegidos. As grandes indústrias de energia
recebem subvenções de centenas de milhões de dólares, a economia de alta
tecnologia se beneficia das pesquisas públicas de décadas anteriores, as
entidades financeiras obtêm ajuda maciça depois de afundar… Todas elas vivem
com um seguro: são consideradas muito grandes para cair e são resgatadas se
têm problemas. No fim das contas, os impostos servem para subvencionar essas
entidades e com elas, os ricos e poderosos. Mas além disso se diz à população
que o Estado é o problema e se reduz seu campo de ação. E o que ocorre? Seu
espaço é ocupado pelo poder privado, e a tirania das grandes corporações fica
cada vez maior.

P. O que o senhor descreve soa a George Orwell.

R. Até Orwell estaria assombrado. Vivemos a ficção de que o mercado é


maravilhoso porque nos dizem que está composto por consumidores informados
que adotam decisões racionais. Mas basta ligar a televisão e ver os anúncios:
procuram informar o consumidor para que tome decisões racionais? Ou
procuram enganar? Pensemos, por exemplo, nos anúncios de carros. Oferecem
dados sobre suas características? Apresentam informes realizados por entidades
independentes? Porque isso sim que geraria consumidores informados capazes
de
  tomar decisões racionais. Em vez disso, o que vemos é um carro voando,
pilotado por um ator famoso. Tentam prejudicar o mercado. As empresas não
querem mercados livres, querem mercados cativos. De outra forma, colapsariam.

P. Diante dessa situação, não é muito fraca a contestação social?

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R. Há muitos movimentos populares muito ativos, mas não se presta atenção


neles porque as elites não querem que se aceite o fato de que a democracia pode
funcionar. Isso é perigoso para elas. Pode ameaçar seu poder. O melhor é impor
uma visão que diz a você que o Estado é seu inimigo e que você tem de fazer o
que puder sozinho.

P. Trump usa frequentemente o termo antiamericano. Como o senhor entende


esse termo?

“As grandes corporações empreenderam a luta de classes, são


marxistas mas com os valores invertidos”

R. Os Estados Unidos são o único país onde, por criticar o Governo, te chamam de
antiamericano. E isso representa um controle ideológico, acendendo fogueiras
patrióticas por toda parte.

P. Em alguns lugares da Europa também ocorre isso.

R. Mas nada comparável ao que ocorre aqui, não há outro país onde se vejam
tantas bandeiras.

P. O senhor teme o nacionalismo?

R. Depende. Se significa estar interessado em sua cultura local, é bom. Mas se for
uma arma contra outros, sabemos aonde pode conduzir, já vimos e
experimentamos isso.
 

P. Acha possível que se repita o que ocorreu nos anos trinta?

R. A situação se deteriorou. Depois da eleição de Barack Obama se desencadeou


uma reação racista de enorme virulência, com campanhas que negavam sua
cidadania e identificavam o presidente negro com o anticristo. Houve muitas

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manifestações de ódio. No entanto, os EUA não são a República de Weimar


[democracia alemã anterior ao nazismo]. Precisamos estar preocupados, mas as
probabilidades de que se repita algo assim não são altas.

P. Seu livro começa lembrando a Grande Depressão, uma época em que “tudo
estava pior que agora, mas havia um sentimento de que tudo iria melhorar”.

R. Eu me lembro perfeitamente. Minha família era de classe trabalhadora, estava


desempregada e não tinha educação. Objetivamente, era uma época muito pior
que agora, mas havia um sentimento de que todos estávamos juntos naquilo.
Havia um presidente compreensivo com o sofrimento, os sindicatos estavam
organizados, havia movimentos populares… Tinha-se a ideia de que juntos
podíamos vencer a crise. E isso se perdeu. Agora vivemos a sensação de que
estamos sozinhos, de que não há nada a fazer, de que o Estado está contra nós…

P. Ainda tem esperanças?

R. Claro que há esperança. Ainda há movimentos populares, gente disposta a


lutar… As oportunidades estão aí, a questão é se somos capazes de aproveitá-las.

Chomsky termina com um sorriso. Deixa vibrando no ar sua voz grave e se


despede com extrema cortesia. Em seguida, sai do escritório e desce as escadas
da faculdade. Fora, esperam-lhe Tucson e a luz seca do deserto de Sonora.

ARQUIVADO EM:

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· Linguística · Estados Unidos · Língua · América do Norte · Ideologias · América · Internet

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