(4) Por fim, não existe entre os homens um único ordenamento, mas
existem muitos e de diversos tipos. Os vários ordenamentos têm relação entre
si e de que tipo são essas relações? O problema fundamental que deverá ser
examinado é o do reenvio de um ordenamento ao outro. Deve haver, então,
uma teoria das relações entre ordenamentos.
12. O poder originário, uma vez constituído, cria, ele mesmo, para satisfazer
a necessidade de uma normatização sempre atualizada, novas centrais
de produção jurídica, atribuindo a órgãos do Estado o poder de emanar
normas integradoras.
22. Os limites com que o poder superior restringe e regula o poder inferior
são de dois tipos diferentes: (a) relativos ao conteúdo; (b) relativos à
forma. Por isso, se fala em limites materiais e limites formais. O
primeiro refere-se ao conteúdo da norma que o poder inferior é
autorizado a emanar; o segundo refere-se à forma, ou seja, ao modo ou
o processo com que a norma do poder inferior deve ser emanada. Se
nos colocarmos do ponto de vista do poder inferior, observaremos que
este recebe um poder que é limitado ou em relação àquilo que pode
comandar ou proibir, ou em relação a como pode comandar ou proibir.
Os dois limites podem ser impostos ao mesmo tempo, mas um pode
existir sem o outro. Isso é importante porque, se uma norma inferior
exceder qualquer um desses limites, é passível de ser declarada
ilegítima, podendo ser retirada do ordenamento jurídico.
pergunta “em que ela se funda”, deve-se responder que ela não tem
nenhum fundamento, pois, se o tivesse, deixaria de ser norma
fundamental, mas existiria outra norma superior da qual ela depende.
Todo sistema tem um início. Para os positivistas, questionar-se sobre o
que existia antes desse início é um problema mal colocado. A única
resposta que se pode dar aos que queiram saber qual é o fundamento
do fundamento é que, para sabê-lo, é preciso sair do sistema, pois, se
esse é um problema, não é mais um problema jurídico, mas um
problema cuja solução deve ser buscada fora do sistema jurídico, ou
seja, fora daquele sistema em que é postulada a norma fundamental.
31. Podemos partir da análise do conceito de sistema feita por Kelsen. Esse
autor distingue entre os ordenamentos normativos dois tipos de
sistemas, e chama um de estático e ou outro de dinâmico. Sistema
estático é aquele em que as normas estão ligadas umas às outras, como
as proposições em um sistema dedutivo, pelo fato de que se deduzem
umas das outras partindo de uma ou mais normas originárias de caráter
geral, que têm a mesma função dos postulados ou axiomas em um
sistema científico. É claro, então, que todas essas normas formam um
sistema enquanto são deduzidas de uma só. Com outras palavras,
pode-se dizer que num sistema desse tipo as normas estão ligadas
entre si em relação ao seu conteúdo.
32. Sistema dinâmico, por sua vez, é aquele em que as normas que o
compõem derivam uma das outras através de sucessivas delegações de
poder, ou seja, não através de seu conteúdo, mas da autoridade, que as
estabeleceu: uma autoridade inferior deriva de uma autoridade superior,
até chegar a uma autoridade suprema, que não tem nenhuma outra
autoridade acima de si. Pode-se dizer, em outras palavras, que a ligação
entre as várias normas, nesse tipo de ordenamento normativo, não é
material, mas formal.
33. Feita esta distinção, Kelsen sustenta que os ordenamentos jurídicos são
sistemas do segundo tipo, ou seja, são sistemas dinâmicos. Sistemas
estáticos seriam, por exemplo, os ordenamentos morais. Surge aqui
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pelas quais nem todas as antinomias são solúveis são duas: (1) há
casos em que não se pode aplicar nenhuma das regras excogitadas
para a solução de antinomias; (2) há casos em que se podem aplicar ao
mesmo tempo duas ou mais regras em conflito entre si. Ele chama,
então, as antinomias solúveis de aparentes; as insolúveis, de reais.
41. Ora, pode ocorrer que duas normas incompatíveis estejam entre si numa
relação em que possam ser aplicados, ao mesmo tempo, não apenas
um, mas dois ou três critérios. Para citar um exemplo mais simples, uma
norma constitucional e uma norma ordinária geralmente são emanadas
em tempos diversos: entre essas duas normas existe, ao mesmo tempo,
uma diferença hierárquica e uma diferença cronológica. Se, como muitas
vezes acontece, a norma constitucional é geral, e a norma ordinária é
especial, os critérios aplicáveis são no mínimo três. Essa situação não
suscita particular dificuldade, pois, seja qual for o critério adotado, a
situação não muda.
42. Mas a situação nem sempre é tão simples. Suponhamos o caso em que
duas normas se encontrem em relação tal que sejam aplicáveis dois
critérios, mas que a aplicação de um critério dê solução oposta à
aplicação do outro critério. É claro que nesse caso não se pode aplicar
os dois critérios ao mesmo tempo. É preciso aplicar um em preferência
ao outro. Qual? Eis o problema. Para citar também aqui um exemplo
mais fácil, basta pensar no caso de uma incompatibilidade entre norma
constitucional anterior e norma ordinária posterior. É o caso em que são
aplicáveis dois critérios, o hierárquico e o cronológico: mas ao se aplicar
o primeiro, dá-se prevalência à primeira norma; ao se aplicar o segundo,
dá-se prevalência à segunda. Não se pode aplicar ambos os critérios ao
mesmo tempo: são ambos incompatíveis.
54. É claro que se uma das duas regras faltar, a completude deixa de ser
considerada um requisito de validade do ordenamento jurídico. Podemos
imaginar dois tipos de ordenamentos incompletos, segundo falte a
primeira ou a segunda das duas regras mencionadas. Num
ordenamento em que faltasse a primeira regra, o juiz não seria obrigado
a julgar todas as controvérsias que se lhe apresentem: poderia pura e
simplesmente rejeitar o caso como juridicamente irrelevante, com um
juízo de non liquet. Num ordenamento em que faltasse a segunda regra,
o juiz seria, sim, obrigado a julgar cada caso, mas não seria obrigado a
julgá-los com base [unicamente] em uma norma do sistema. É o caso,
como o nosso, do ordenamento que autoriza o juiz a julgar, na falta de
um dispositivo de lei, segundo a eqüidade ou outros padrões.
59. O ponto fraco dessa teoria é que se funda num conceito muito discutível
como aquele de espaço vazio, ou de esfera juridicamente irrelevante. É
que há três modalidades normativas: a do comando, a do proibido e a do
permitido. Para sustentar a tese do espaço jurídico vazio é preciso
excluir o permitido das modalidades jurídicas: o que é permitido
coincidiria com o que é juridicamente indiferente.
60. Se, então, não existe um espaço jurídico vazio, significa que existe
apenas o espaço jurídico cheio. Justamente a partir dessa constatação
teve início a segunda teoria, que, em reação à escola do direito livre,
procurou elaborar criticamente o problema da completude. Em síntese, a
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61. O raciocínio seguido por essa corrente é o seguinte: “uma norma que
proíbe fumar exclui a proibição, ou seja, permite todos os outros
comportamentos, exceto fumar”. Todos os comportamentos não
compreendidos na norma particular são regulados por uma norma geral
exclusiva, ou seja, pela regra que exclui (por isso é exclusiva) todos os
comportamentos (por isso é geral). O problema dessa tese é que ela
desconsidera a possibilidade de os ordenamentos jurídicos possuírem
uma norma geral inclusiva, como aquela que prescreve que, em caso de
lacunas, o juiz deve recorrer às normas que regulam casos semelhantes
ou a matérias análogas. Isso revela, no final das contas, que o
ordenamento jurídico, é incompleto.
63. Para finalizar, esclarecemos que aqui nos ocupamos apenas dos
problemas que nascem dentro de um ordenamento jurídico. Existem
outros problemas que decorrem das relações entre ordenamentos
jurídicos, que nascem, portanto, fora de um ordenamento jurídico
específico. Esse é um problema até agora pouco tratado, do ponto de
vista da teoria geral do direito, e esse estudo mereceria considerações
que não cabem nesta oportunidade, seja pelo tempo, seja pelo espaço.