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A MORTE DE DEUS E O NIILISMO EM NIETZSCHE

Friedrich Nietzsche estabelece como um dos objetivos centrais de sua filosofia


um projeto que visa mudar as bases da cultura do Ocidente: o projeto de
transvaloração dos valores. Esse projeto proposto por Nietzsche tem como
objetivo uma mudança radical nos valores que fundamentam a civilização
ocidental: “Por fim uma nova exigência se faz ouvir. Enunciemo-la, esta nova
exigência: necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor
desses valores deverá ser colocado em questão” (GM/GM, prólogo, §6). Quais
são esses valores que Nietzsche questiona? Principalmente os valores do
cristianismo, por serem os que norteavam a moral européia desde que Roma
tornou-se Cristã. Os valores cristãos, segundo Nietzsche, são valores que
negam a vida e o mundo terreno e por isso conduziram o Ocidente a um estado
adoecimento.

É na esteira desse projeto que Nietzsche desenvolve uma etapa importante do


seu pensamento. Na seção 125 de sua Gaia Ciência, Nietzsche, pela boca de
uma personagem – o “homem louco” – pronuncia uma das frases mais
emblemáticas da história da filosofia: “Deus morreu!”. O anúncio da morte de
Deus não é aqui uma constatação metafísica. É o anúncio do fim de um
processo, uma constatação histórica da decadência de um conceito, uma
noção inventada pelo homem que se constituiu, em um determinado momento
histórico, como fundamento moral da civilização ocidental. “Todas as grandes
coisas perecem por obra de si mesmas” (GM/GM III, § 27), e não foi diferente
com Deus, para Nietzsche. Deus morre como fundamento da moral em
decorrência das exigências do desenvolvimento histórico do próprio ocidente.
Segundo o próprio Nietzsche, o que “venceu verdadeiramente o Deus cristão”
foi

A própria moralidade cristã, o conceito de veracidade entendido de


modo sempre mais rigoroso, a sutileza confessional da consciência
cristã, traduzida e sublimada em consciência científica, em asseio
intelectual a qualquer preço. Ver a natureza como prova de bondade
e proteção de um Deus, interpretar a história para a glória de uma
razão divina, como permanente testemunho de uma ordenação moral
do mundo e de intenções morais últimas, explicar as próprias
vivências como durante muito tempo fizeram os homens pios, como
se fosse tudo previdência, tudo aviso, tudo concebido e disposto para
a salvação da alma: isso agora acabou, isso tem a consciência contra
si, as consciências refinadas o vêem como indecoroso, desonesto,
como mentira, feminismo, fraqueza, covardia – devemos a este rigor,
se devemos a algo, o fato de sermos bons europeus e herdeiros da
mais longa e corajosa auto-superação da Europa (GM/GM,§ 357).

Deus está morto como fundamento, como verdade eterna, como sentido último
da existência. É, talvez, o mais perfeito diagnóstico da cultura e do espírito do
Ocidente. A morte de Deus é fruto de “uma educação para a verdade que dura
dois mil anos”, afirma Nietzsche (GM/GM III, § 27). O próprio Ocidente cristão
carregou dentro de si o germe dessa “catástrofe” e “por fim se proíbe a mentira
de crer em Deus” (GM/GM III, § 27). A morte de Deus, porém, traz um perigo
para o próprio Ocidente: o niilismo. Levada às últimas consequências, a morte
de Deus pode facilmente levar ao ‘desespero: “Não vagamos como que através
de um nada infinito? Não sentimos na pelo como que o sopro do vácuo?”
(FW/GC, 125).

No niilismo, a realidade perde, a princípio, seu valor, pois os


fundamentos metafísicos que pretendiam assegurá-la perderam sua força. O
homem encontra-se, assim, sem rumo, sem solo e sem um além-mundo
verdadeiro. Tudo se torna mais perigoso depois da morte de Deus. O niilismo
não é apenas a negação dos valores platônicos e cristãos. O homem do
niilismo ainda precisa de fundamentos e justamente aí é que está o perigo.
Quando o “homem louco” anuncia a morte de Deus é a ateus que ele o faz, e é
nesse momento, ao ver a admiração no rosto “daqueles que não acreditavam
em Deus” que esse perigo se deixa entrever:

‘Nunca houve ação mais grandiosa e aqueles que nascerem depois


de nós, pertencerão, por causa dela, a uma história mais elevada do
que o foi alguma vez toda essa história’. O insensato se calou depois
de pronunciar estas palavras e voltou os olhos para seus ouvintes:
também eles se calaram e o fitaram com espanto. Finalmente jogou a
lanterna no chão, de tal modo que se partiu e se apagou. E então
disse: ‘Chego cedo demais, meu tempo ainda não chegou’ (FW/GC,
125).
O vazio da morte de Deus é assustador e magnífico; desesperador e
desafiador ao mesmo tempo:

E agora, pequeno navio, toma cuidado! De teus lados está o oceano;


é verdade que nem sempre brame e às vezes sua toalha se estende
como seda e ouro, um sonho de bondade. Mas, virão horas em que
reconhecerás que ele é infinito e que não existe nada mais terrível
que o invinito (FW/GC, §124).

Se por um lado há o perigo do desmoronamento de tudo que sobre a crença


em Deus estava construído e alicerçado, por outro lado, abre-se a possibilidade
a implementação de novos valores, da realização do projeto nietzschiano de
transvaloração dos valores. Se o referencial não está mais no além, no
transcendente, cabe-nos viver de acordo com este mundo. Se a moral cristã
promovia uma negação do mundo, agora deve-se afirmar que o mundo não
vale menos que o “Reino de Deus”, que o “mundo das idéias”. Abre-se ao
homem a liberdade de criar seus próprios valores fundamentados numa vida
imanente, afirmativa.

De fato, nós, filósofos e ‘espíritos livres’, ante a notícia de que ‘o


Velho Deus morreu” nos sentimos como iluminados por uma nova
aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto,
pressentimento, expectativa – enfim o horizonte nos aparece
novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos
podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é
permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o
nosso mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve
tanto ‘mar aberto’“ (FW/GC, §343).
BIBLIOGRAFIA

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral: Uma polêmica. 2. ed. São


Paulo: Companhia das Letras, 1998. 179 p.

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. 2. ed. São Paulo: Escala, 2000. 287 p.

TUDE DE MELO NETO, João Evangelista . 10 lições sobre Nietzsche. 1. ed.


Petrópolis: Vozes, 2017. 128 p.

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