Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
apresentar a casa como instituição defi- mais igualitárias) se opõem aos Tukano,
nidora de um tipo de sistema social único grupo onde a hierarquização é
parece-lhe inviável no contexto indo- nítida; por fim, do ponto de vista de um
nésio. sistema de alianças, considerando que
Passando às sociedades ameríndias, os grupos das Guianas e Tukano pos-
como lembra Viveiros de Castro, os pro- sam ser pensados como estruturas ele-
blemas de aplicação do modelo multi- mentares, não seria possível defini-los
plicam-se. Se a casa de Lévi-Strauss se como sociedades de casa, mas sim aos
expressa em um idioma do parentesco Kayapó onde os casamentos não são
para “naturalizar” relações hierárqui- dados por regras mecânicas.
cas de outra ordem, devemos confiná-la Portanto, a um só tempo muito es-
aos povos do Noroeste Amazônico, já pecífico e muito vago, o conceito de ca-
que é possível caracterizar os Tukano sa de Lévi-Strauss se aplica de forma
(Hugh-Jones) pela sua marcante hierar- desajeitada aqui e lá, como se extrai
quização, mas não os Kayapó (Lea) e os das análises sobre as duas regiões.
Carib das Guianas (Rivière). Nas Guia- Assim, os autores de About the House
nas, a preeminência das parentelas acabam por rejeitar a utilização do con-
cognáticas e da endogamia de grupos ceito tal como aplicado originalmente –
locais pensados como autônomos suge- uma categoria capaz de descrever um
re a importância da casa como catego- tipo de sistema social, visando ampliar
ria central. Mas aí, contrariamente aos ou complementar as categorias tradi-
Tukano e Kayapó, elas não são pessoas cionais da teoria do parentesco. Alter-
morais, não detêm bens simbólicos ou nativamente, propõem que se tomem as
prerrogativas, apresentando um caráter elaborações de Lévi-Strauss como pon-
fluido. Por outro lado, uma estrutura to de partida para uma concepção mais
elementar de aliança, presente nos holística da casa, visando à construção
casos guianês e Tukano, impediria a de uma antropologia da arquitetura que
utilização do conceito, só compatível poderia se estabelecer em conjunto
com sistemas complexos ou semicom- com uma antropologia do corpo. De fa-
plexos de aliança. Finalmente, a ênfase to, se o idioma da casa parece ocupar
de Lea no aspecto corporado das casas um espaço primordial, já bem estabele-
Kayapó (que são exógamas por defini- cido pelas etnografias, entre os povos
ção e não se ligam por regras de casa- malaio-polinésios, é o idioma da corpo-
mento) acaba por erodir o conceito, já ralidade que parece ocupar esse espaço
que não fica claro, afinal, por que as entre os povos ameríndios, como já no-
casas Kayapó não são linhagens. taram diversos etnólogos americanistas.
Desse modo, a aplicação do modelo E se é verdade que as representações
de Lévi-Strauss recorta os grupos sul- simbólicas da casa e do corpo apresen-
americanos em pelo menos três conjun- tam inúmeras analogias nas duas
tos de oposições, de acordo com o crité- regiões (:36-42) – segundo os autores,
rio que se utilize: se tomamos as casas inclusive, casa e corpo fazem parte de
como pessoas morais, perpétuas e de- um mesmo universo conceitual –, talvez
tentoras de riqueza, elas estão presen- seja o caso de considerá-las em conjun-
tes nos Tukano e Kayapó, mas não nas to, buscando construir um arsenal de
Guianas; se pensarmos na casa como conceitos que permita uma elaboração
instituição capaz de naturalizar hierar- teórica comparativa entre as sociedades
quias, Guianas e Kayapó (sociedades ameríndias e malaio-polinésias. É pre-
RESENHAS 195
ciso deixar claro, por outro lado, que não se trata aqui de uma modalidade de
essa utilização mais “frouxa” do concei- incesto secundária em face de uma de
to de casa traz embutido o risco de “primeiro tipo” (que atinge as relações
inviabilizarmos seu caráter explicativo, entre consangüíneos de sexos diferen-
caindo em um culturalismo vago. Cabe- tes). Com o conceito de incesto de se-
ria perguntar, enfim, se isto nos condu- gundo tipo, Héritier pretende estender
ziria além ou aquém de Lévi-Strauss. a noção de incesto às relações entre
afins de consangüíneos, de maneira a
permitir explicar interdições e conde-
HÉRITIER, Françoise. 1994. Les Deux nações morais que, em distintas épocas
Soeurs et leur Mère. Anthropologie de históricas, e em algumas sociedades
l’Inceste. Paris: Éditions Odile Jacob. atuais, pesam sobre a relação de um
376 pp. homem com duas mulheres aparenta-
das entre si, como duas irmãs ou uma
mulher e sua filha.
Clara Lourido Como vincular, então, essa constru-
Mestranda, PPGAS-MN-UFRJ ção à noção estruturalista de incesto e
ao valor funcional de sua proibição?
Woody Allen-Soon Yi-Mia Farrow, tes- Héritier apresenta seu trabalho como
temunhos judiciais, cartas à revista fe- complementar à teoria de Claude Lévi-
minina Marie-Claire, roteiros de filmes Strauss, a quem dedica o livro. Lembre-
e de um romance não muito conheci- mos que, em La Famille, é justamente o
dos, e até o script de uma novela de te- casamento de um homem com “duas
levisão, abrem e encerram o último li- irmãs” de forma consecutiva – sororato
vro de Françoise Héritier. Assim demar- – ou contemporânea – poliginia sororal
cado, o livro é composto por uma pri- – que Lévi-Strauss toma como exemplo:
meira parte dedicada a fontes históricas a) de que a relação de aliança se esta-
– textos jurídicos hebreus, islâmicos, belece entre grupos e não entre pes-
gregos e romanos, da Igreja Católica e soas; b) de que o pertencimento a um
das legislações francesa e inglesa – e grupo não depende do parentesco de
por uma segunda, que apresenta dados sangue, e sim do social.
etnográficos, principalmente africanos, Na teoria estruturalista, a proibição
centrados nos Samo de Burkina Fasso, do incesto aparece como fundadora do
sobre proibições, crenças e sanções em humano, intervenção primeira e univer-
torno da sexualidade e da reprodução. sal de uma orden extrabiológica na re-
A quantidade e heterogeneidade gulamentação da reprodução dessa es-
dos “exemplos” é o traço distintivo de pécie particular. Essa intervenção inau-
um livro que, no essencial, desenvolve gura, pois, a sociedade em um único
um conjunto de idéias da autora que movimento, ao organizar o intercâmbio
começaram a ser esboçadas há mais de efetuado por dois grupos diferentes de
quinze anos, em artigos como “Symbo- sujeitos também diferentes entre si (por
lique de l’Inceste et de sa Prohibition”, seu pertencimento a cada grupo), mas
de 1979, e, mais tarde, “Inceste”, de equivalentes quanto à sua posição no
1991. grupo de origem (irmã, filha) e no de
O conceito central apresentado é o destino (esposa).
de incesto de segundo tipo. A despeito A noção de equivalência só adquire
do que esta designação parece sugerir, sentido em uma relação de troca. Héri-