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Mabe Bethônico e o

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Colecionador: o exercício

Alberti, Raquel Sampaio (2012) “Mabe Bethônico e o Colecionador: o exercício de olhar


e pensar através de imagens.” Revista :Estúdio. ISSN 1647-6158. Vol. 3, (5): 325-329.
de olhar e pensar através
de imagens
Raquel Sampaio Alberti

Brasil, artista visual. Graduação: bacharelado em Comunicação Social - Publicidade e Pro-


paganda pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), bacharelado em Artes
Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Especialização em Design
Gráfico (UNISINOS). Mestranda em Poéticas Visuais pelo Instituto de Artes, UFRGS (em curso).

Artigo completo submetido em 20 de janeiro e aprovado em 8 de fevereiro de 2012.

Resumo: Esse artigo busca entender como o Title: Mabe Bethônico and the Collector: the
trabalho Mabe Bethônico e o Colecionador exercise of looking and thinking through images
pode ser representativo de um imaginário e Abstract: This paper attempts to under-
investido de desejos de construção e de re- stand how the work Mabe Bethônico and the
construção de memória, resignificando as Collector can be representative of an imagi-
imagens para além da efemeridade do con- nary and invested of desire of construction
sumo e transformando-as em novos objetos and reconstruction of memory, resignifying
de interesse. images beyond the ephemeral nature of con-
Palavras chave: Mabe Bethônico, Mabe Bethôni- sumption and turning them into new objects
co e o Colecionador, coleção, imaginário. of interest.
Keywords: Mabe Bethônico, Mabe Bethônico
and the Collector, collection, imaginary.

Introdução
A artista brasileira Mabe Bethônico começou em 1996 a desenvolver uma
coleção de imagens retiradas de jornais, agrupadas primeiramente em quatro
grandes temas: destruição, corrosão, construção e flores. Com a grande profu-
são de imagens na contemporaneidade, a coleção expandiu-se rapidamente e
foi ficando mais complexa, e Mabe precisou ampliar sua categorização, incluin-
do subdivisões para os temas iniciais.
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Alberti, Raquel Sampaio (2012) “Mabe Bethônico e o Colecionador:
o exercício de olhar e pensar através de imagens.”

Figura 1 – Mabe Bethônico, Mabe Figura 2 – Mabe Bethônico, Mabe


Bethônico e o Colecionador (1996-2006). Bethônico e o Colecionador (1996-2006).

Na ocasião da primeira apresentação do projeto, em Londres, a artista sen-


tiu a necessidade de distanciar-se simbolicamente um pouco do projeto e, para
isso, criou o personagem do Colecionador. A ficcionalização da figura respon-
sável por continuar a seleção das imagens deslocou a autoria para além da ar-
tista e conferiu mais autonomia a coleção. Nesse momento, o trabalho passou a
chamar-se Mabe Bethônico e o Colecionador, ao mesmo tempo título e designa-
ção de autoria.
Em 2002, o projeto foi apresentado em Belo Horizonte e totalmente incor-
porado ao Museu da Pampulha, conquistando completa independência em re-
lação à artista. As pastas contendo as imagens, acondicionadas em caixas de
papelão conforme as categorias determinadas por Mabe, foram postas à dispo-
sição do público no setor de hemeroteca da biblioteca do Museu. E os próprios
funcionários da hemeroteca foram se responsabilizando pela continuidade da
ampliação da coleção, que também recebeu colaborações do público.

1. Coleções
Mabe Bethônico e o Colecionador (Figuras 1 e 2), no momento que se integra
permanentemente ao Museu da Pampulha, nos faz pensar sobre a relação das
obras com as instituições que as abrigam. O projeto é uma coleção dentro de
outra coleção (a de obras do Museu), e a figura do Colecionador, de certa forma,
emula o papel desempenhado pela instituição museológica na seleção do que
vai ou não fazer parte de seu acervo. As categorias em que estão organizadas
as imagens são uma espécie de “texto de apoio”, são como pistas para possíveis
maneiras de como o espectador pode se relacionar com a coleção.
Desde sua concepção, Mabe Bethônico e o Colecionador é desafiador, co-
meçando por sua “leitura”, que não é propriamente confortável. É um projeto
tem foco nas possibilidades ficcionais dos documentos, e isso, somado a sua
possibilidade de permanente mutação, convida a refletir sobre a natureza do
objeto de arte e seu comportamento dentro de uma instituição. Através do re-

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curso da coleção, o obra escreve uma história alternativa para as imagens que a
compõe e dialoga também com o papel que a instituição tem no registro histó-
rico dentro do campo das artes.

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Segundo Walter Benjamin (2009), o ato de colecionar significa trazer para
perto de si algo que tem um lugar e uma existência específica. Esse deslocamen-
to que a coleção promove apaga as referências temporais e o contexto em que a
imagem estava inscrita inicialmente. Dessa forma, cria novas associações na jus-
taposição de imagens de diferentes origens e conteúdos. E essas novas possibi-
lidades de leitura se dão em forma de teia, que se desdobra infinitamente, assim
como se multiplicam as possibilidades de como explorar o conteúdo da coleção.
O Colecionador é uma espécie de coletor compulsivo, como um sorvedor de
imagens. Mas, conforme Elisa Campos (2002), as operações de observar, recor-
tar, classificar e guardar, nesse caso,

não correspondem, no entanto, à rigidez do trabalho do arquivista para


quem o limite de variantes é necessário para racionalizar as opções de consul-
ta, o Colecionador é mais flexível, movediço, tecendo suas tramas temáticas,
permitindo-se voltar atrás para rever e reclassificar uma seqüência que, de
repente, saltou-lhe aos olhos (Campos, 2002).


Essas imagens, distanciadas de suas funções originárias, também fazem
com que a coleção sejam a antítese do consumo. Ou seja, quando o Colecio-
nador toma posse de uma imagem e a traz para coleção, ele também a desloca
de sua condição de mera possessão e a coloca à disposição de uma nova rede
de conexões e correspondências. A imagem é testemunha de seu uso para a
comunicação massiva mas, fora de seu contexto e também compulsivamente
acumulada, ela reencontra sua eficácia.
Colecionar é guardar para poder em outro momento lançar um novo olhar
sobre o que se guardou. E a medida que a coleção cresce, cada olhar é novo, e
é modificado pelas novas relações que se pode fazer. Assim, através da apro-
priação e deslocamento dessas imagens, a coleção ajuda também a dar conta e
explicitar como a proliferação de imagens veiculadas pelos meios de comunica-
ção ilustram nosso imaginário contemporâneo.

2. Imaginário e memória
“Não é a imagem que produz o imaginário, mas o contrário” (Maffesoli, 2001).
O imaginário é uma construção histórica de um grupo, país ou comunidade, e é
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Alberti, Raquel Sampaio (2012) “Mabe Bethônico e o Colecionador:
o exercício de olhar e pensar através de imagens.”

Figura 3 – On Kawara, Date Paintings (em Figura 4 – On Kawara, Date Paintings (em
andamento desde os anos 1960). andamento desde os anos 1960).

ele quem determina a existência de determinados conjuntos de imagens. E ele


é alimentado pela tecnologia, já que as imagens só existem através da técnica.
Para Maffesoli, o criador (ou o artista) só é criador se ele consegue captar o que
circula na sociedade. E as tecnologias de comunicação (como os jornais, por
exemplo) auxiliam imensamente nesse processo, uma vez que o ‘imaginário,
enquanto comunhão, é comunicação.’
E qual sentido de se colecionar imagens em um mundo onde cada vez mais elas
têm um caráter efêmero (e tão abundante que beira a exaustão)? Em The man who
never threw anything away (1989), Ilya Kabakov lança um olhar sobre essa ques-
tão, também através de um personagem, o homem que nunca jogou nada fora.
Kabakov diz que privar-se desses ‘testemunhos’ seria privar-nos de nossa pró-
pria memória. Na memória, todas as coisas tem igual importância e as conexões
entre os pontos relacionados a nossas recordações compreendem toda história
de nossa vida. Se nos privássemos de todos os objetos que acionam essas memó-
rias, seria como eliminar todo o passado e, num certo sentido, deixar de existir.
Na série de trabalhos entitulada Date Paintings (Figuras 3 e 4), o artista japo-
nês On Kawara pinta sobre telas de tamanhos pré-determinados a data do dia
em que está executando a pintura. Ele segue algumas regras, e uma delas é que
a tela precisa ser começada e finalizada no mesmo dia. Depois, é acondiciona-
da em uma caixa de papelão feita à mão juntamente com um recorte de jornal
do local onde Kawara estava naquele dia. As Date Paintings questionam sobre
o tempo e o registro de sua passagem – e o recorte de jornal funciona como um
documento, um testemunho do dia em que cada pintura foi executada. Além
disso, nos oferece mais uma imagem representativa daquele momento.
Cláudia Maria Perrone e Selda Engelman, no artigo “O Colecionador de
memórias” (2005), afimam que
Podemos estabelecer um olhar póstumo sobre o nosso presente e, assim, adivi-
nhar o que está sendo criado todo o dia como memória afetiva e sensibilida-

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de. A coleção e o colecionador constituem um jogo de concentração e disper-
são de fragmentos-objetos, uma obra inacabada e inacabável, um labirinto
com milhares de passagens que constituem as incursões criticas do coleciona-
dor (Perrone & Engelman, 2005).

Revista :Estúdio. ISSN 1647-6158. Vol. 3, (5): 325-329.


Assim, Mabe Bethônico e o Colecionador lança o olhar sobre o que estamos
criando como memória no dia-a-dia, mas propõe um movimento para além do
simples olhar para as imagens que chegam a nós. Nos reapresenta esses recor-
tes do cotidiano e nos permite vê-los como novos e criarmos, nós mesmos, no-
vas vias de aproximação, novas histórias a que elas possam pertencer, sem dei-
xar de ser um testemunho contundente do imaginário de onde elas emergem.

Conclusão
Mabe Bethônico e o Colecionador é uma coleção dinâmica, que lança um
olhar resignificador sobre as imagens que são geradas compulsivamente pelas
mídias de comunicação. Cada espectador que entra em contato com o trabalho
reaviva suas memórias pessoais, enquanto se relaciona e resignifica a coleção
de imagens. Portanto, podemos dizer que essa coleção é investida de desejos de
construção e de reconstrução de memória, e reverte o valor de uso das imagens
para além da efemeridade do pronto-consumo, permitindo transformá-las em
novos objetos de interesse e permitindo também que possamos fazer leituras
mais ricas e pessoais.

Referências Kabakov, Ilya (1989) The man who


Campos, Elisa (2002) Mabe Bethônico. never threw anything away. In: Ilya
[Consult. 2012‑01‑18]. Disponível em Kabakov: Ten Characters. London:
http://www.ufmg.br/museumuseu/ Institute of Contemporary Arts. ISBN:
colecionador/colecionador/news_002.html 9780905263472.
Chiarelli, Tadeu (2002) Catálogo da exposição Maffesoli, Michel (2001) O imaginário é uma
Apropriações/Coleções. Porto Alegre: realidade (entrevista). Porto Alegre: Revista
Santander Cultural. FAMECOS nº 15.
Cooke Lynne. On Kawara. [Consult. Perrone, Cláudia Maria & Engelman, Selda
2012‑01‑18]. Disponível em http://www. (2005) O colecionador de memórias. Porto
diacenter.org/exhibitions/introduction/86 Alegre: Revista Episteme, nº 20.

Contatar o autor: raquelalberti@terra.com.br

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