Marcel Mauss
Ensaios de Sociologia
or. ed. de Minuit, 1968.
ed. Perspctiva, S. Paulo 1999
1. Sociologia (1901)*
Paul Fauconnet e Marcel Mauss
Palavra criada por Augusto Comte para designar a ciência das sociedades.
Ainda que a palavra seja formada por um radical latino e uma desinência grega e
por esta razão os puristas, por muito tempo, se tenham recusado reconhecê-la,
encontra-se hoje na posse do direito de cidadania em todas as línguas européias.
Procuraremos determinar sucessívamente o objeto da sociologia e o método que
ela emprega. A seguir indicaremos as principais divisões da ciência que se constitui
sob este nome.
Notar-se-á, sem dificuldade, que nos inspiramos diretamente nas idéias
expressas por Dttrkheim em suas diferentes obras. Se, além disso, as adotamos,
não é somente porque nos parecem justificadas por razões teóricas, mas também
porque nos parecem exprimir os princípios pelos quais as diversas ciências sociais,
no curso de seu desenvolvimento, tendem a tornar-se sempre mais conscientes.
1. OBJETO DA SOCIOLOGIA
Pelo fato de a sociologia ser de origem recente e por estar apenas saindo do
período filosófico, ainda acontece contestar-se-lhe a possibilidade. Todas as
tradições metafísicas que fazem do homem um ser à parte, fora da natureza, e
que vêem em seus atos fatos absolutamente diferentes dos fatos naturais,
resistem aos progressos do pensamento sociológico. Mas o sociólogo não precisa
justificar suas pesquisas por meio de uma argumentação filosófica. A ciência
* Artigo tirado da Grande Encyclopédic, vol. 30, Sociedade Anônima da Grande Enciclopédia, Paris. [Trad. bras,
feita a partir das Oeuvres, Paris, Les Editions de Minuit, 1968-69, v. III, pp. 139-177.]
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acidentais e locais determinadas por causas cósmicas, mas também
acontecimentos normais, regularmente repetidos, que interessam a todos os
membros do grupo sem exceção, podem estar totalmente privados do caráter de
fatos sociais. Por exemplo, todos os indivíduos, com exceção dos doentes,
desempenham suas funções orgânicas em condições sensivelmente idênticas; o
mesmo se passa com as funções psicológicas: os fenômenos de sensação, de
representação, de reação ou de inibição são os mesmos em todos os membros do
grupo e são submetidos todos às mesmas leis que a psicologia pesquisa. Mas
ninguém sonha em dispô-los na categoria dos fatos sociais apesar de sua
generalidade. E que não se referem de forma alguma à natureza do agrupamento,
mas derivam da natureza orgânica e psíquica do indivíduo. Por isso são os mesmos,
seja qual for o grupo ao qual o indivíduo pertence. Se o homem isolado fosse
concebível, poder-se-ia dizer que seriam o que são mesmo fora de toda sociedade.
Se, pois, os fatos de que são teatro as sociedades só se distinguissem entre si por
seu grau de generalidade, não haveria fatos dignos de serem considerados como
manifestações próprias da vida social e, por conseguinte, susceptíveis de
constituírem o objeto da sociologia.
No entanto, a existência de tais fenômenos é de tal evidência que pôde ser
assinalada por observadores que não pensavam na constituição de uma sociologia.
Observou-se com freqüência que uma multidão, uma assembléia não sentiam, não
pensavam e não agiam como teriam feito indivíduos isolados; observou-se,
outrossim, que os agrupamentos mais diversos, uma família, uma corporação, uma
nação possuíam um “espírito”, um caráter, hábitos como os indivíduos têm os seus.
Por conseguinte, em todos os casos sente-se perfeitamente que o grupo, a
multidão ou a sociedade têm verdadeiramente uma natureza própria, que ele
determina nos indivíduos certas maneiras de sentir, de pensar e de agir, e que
estes indivíduos não teriam nem as mesmas tendências nem os mesmos hábitos
nem os mesmos preconceitos se houvessem vivido no meio de outros grupos
humanos. Ora, esta conclusão pode ser generalizada. Entre as idéias que teria, os
atos que realizaria um indivíduo isolado, e as manifestações coletivas, há tal
abismo que estas ultimas devem ser referidas a uma natureza nova, a forças sui
generis: caso contrário, permaneceriam incompreensíveis.
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Tomemos, por exemplo, as manifestações da vida econômica das sociedades
modernas do Ocidente: produção industrial das mercadorias, divisão extrema do
trabalho, comércio internacional, associação de capitais, moeda, crédito, renda,
lucro, salário, etc. Pense-se no número considerável de noções, de instituições, de
hábitos que supõem os mais simples atos de um comerciante ou de um operário que
procura ganhar sua vida; é manifesto que nem um nem outro cria as formas que sua
atividade necessariamente assume: nem um nem outro inventa o crédito, o lucro, o
salário, o intercâmbio ou a moeda. Tudo o que se pode atribuir a cada um deles é
uma tendência geral a conseguir os alimentos necessários para proteger-se contra
as intempéries, ou ainda, se se quiser, o gosto pelo empreendimento, pelo ganho,
etc. Mesmo os sentimentos que parecem totalmente espontâneos, como o amor
pelo trabalho, a parcimônia, o luxo, são, na realidade, o produto da cultura social,
visto que não existem entre certos povos e variam infinitamente no interior de
~ma mesma sociedade, de acordo com as camadas da população. Ora, por si sós,
estas necessidades determinariam, para serem satisfeitas, um pequeno número de
atos muito simples que constrastam, da maneira mais pronunciada, com as formas
muito complexas nas quais o homem econômico encerra hoje sua conduta. E não é
somente a complexidade destas formas que dá testemunho de sua origem extra-
individual, mas ainda e sobretudo a maneira pela qual se impõem ao indivíduo. Este
está mais ou menos obrigado a se lhe conformar. Às vezes é a própria lei que o
obriga, ou o costume tão imperativo como a lei. Assim é que, não há muito, o
industrial era obrigado a fabricar produtos de medida e qualidade determinadas,
que ainda agora está sujeito a todos os tipos de regulamentos, que ninguém pode
recusar-se a receber como pagamento a moeda legal pelo seu valor legal. Outras
vezes é a força das coisas contra a qual o indivíduo se faz em pedaços se procurar
insurgir-se contra elas: é o caso do comerciante que quisesse renunciar ao crédito,
do produtor que quisesse consumir seus próprios produtos, numa palavra, do tra-
balhador que quisesse recriar por si só as regras de sua atividade econômica, ver-
se-iam condenados à ruína inevitável.
A linguagem é outro fato cujo caráter social aparece claramente: a criança
aprende, pelo uso e pelo estudo, uma língua cujo vocabulário e cuja sintaxe têm
uma idade multissecular, cujas origens são desconhecidas; que ela recebe, por
conseguinte, totalmente elaborada e que é obrigada a receber e a empregar assim,
sem variações consideráveis. Em vão tentaria criar para seu uso uma língua
original: além de não passar de uma imitação canhestra de algum outro idioma já
existente, tal língua não seria instrumento útil à expressão de seu pensamento;
condená-la-ia ao isolamento e a uma espécie de morte intelectual. O simples fato
de derrogar as regras e os usos tradicionais já se chocaria, na maioria dos casos,
com resistências de opinião muito vivas. Pois uma língua não é somente um sistema
de palavras; tem um gênio particular, implica uma certa maneira de perceber, de
analisar e de coordenar. Por
SOCIOLOGIA
ENSAIOS DE SOCIOLOGIA
conseguinte, pela língua, são as formas principais de nosso pensamento que a
coletividade nos impõe.
Poderia parecer que as relações matrimoniais e domésticas são
necessariamente aquilo que são em virtude da natureza humana, e que basta, para
explicá-las, recordar algumas propriedades muito gerais, orgânícas e psicológicas,
do indivíduo humano. Mas, de~ uma parte, a observação histórica nos ensina que os
tipos de casamentos e de famílias foram e ainda são extremamente numerosos e
variados; ela nos revela a complicação, às vezes extraordinária, das formas do
casamento e das relações domésticas. E, de outra parte, todos nós sabemos que as
relações domésticas não são exclusivamente afetivas, sabemos que entre nós e os
pais, que podemos não conhecer, existem vínculos jurídicos que se constituíram
sem nosso consentimento, sem nosso conhecimento; sabemos que o casamento não
é apenas um acasalamento, que a lei e os usos impõem ao homem que esposa uma
mulher atos determinados, um processo complicado. E evidente que nem as
tendências orgânicas do homem a acasalar-se e a procriar, nem mesmo os
sentimentos de ciúme sexual ou de ternura paterna que aliás se lhe emprestariam
gratuitamente, podem, em nenhum grau, explicar nem a complexidade, nem
sobretudo o caráter obrigatório dos costumes matrimoniais e domésticos.
Da mesma forma, os sentimentos religiosos muito generosos que se costuma
atribuir ao homem e mesmo aos animais respeito ou temor a seres superiores,
—
ENSAIOS DE SOCIOLOGIA
Outra prova pode ser tirada da observação das estatísticas. E sabido que as
cifras que exprimem o número dos casamentos, dos nascimentos, dos suicídios, dos
crimes numa sociedade, são notavelmente constantes ou que, se variam, não é por
desvios abruptos e irregulares, mas geralmente com lentidão e ordem. Sua
constância e sua regularidade são ao menos iguais àquelas dos fenômenos que,
como a mortalidade, dependem sobretudo de causas físicas. Ora, é claro que as
causas que levam tal ou tal indivíduo ao casamento ou ao crime são totalmente
particulares e acidentais; portanto não são estas causas que podem explicar a taxa
do casamento ou do crime numa determinada sociedade. E mister admitir a
existência de certos estados sociais, totalmente diferentes dos estados
puramente individuais, que condicionam a nupcialidade e a criminalidade. Não se
compreenderia, por exemplo, que a taxa de suicídio fosse uniformemente mais
elevada nas sociedades protestantes do que nas sociedades católicas, no mundo
comercial do que no mundo agrícola, se .não se admitisse que uma tendência
coletiva ao suicídio se manifesta nos meios protestantes, nos meios comerciais, em
virtude de sua própria organização.
Existem, pois, fenômenos propriamente sociais, distintos daqueles que
estudam as outras ciências que tratam do homem, como a psicologia; são eles que
constituem a matéria da sociologia. Mas não basta ter estabelecido sua existência
por um certo número de exemplos e por considerações gerais. Desejar-se-ia ainda
conhecer o sinal pelo qual se pode distingui-los, de modo a não correr o risco nem
de deixá-los escapar, nem de confundi-los com os fenômenos que dependem de
outras ciências. De acordo com o que acabamos de dizer, a natureza social tem
como característica precisamente o fato de ser adicionada à natureza individual;
exprime-se por idéias ou atos que, mesmo quando contribuímos para produzi-los,
nos são de todo impostos a partir de fora. Trata-se, pois, de descobrir este sinal
de exterioridade.
Num grande número de casos, o caráter obrigatório que marca as maneiras
sociais de agir e de pensar é o melhor dos critérios que se possa desejar.
Gravadas no fundo do coração ou expressas por fórmulas legais, espontaneamente
obedecidas ou inspiradas por via da coerção, uma multidão de regras jurídicas,
religiosas e morais são rigorosamente obrigatórias. A maior parte dos indivíduos
obedecem-lhes; mesmo aqueles que as violam sabem que faltam a uma obrigação; e,
em todo caso, a sociedade lembra-lhes o caráter obrigatório de sua ordem
infligindo-lhes uma sanção. Sejam quais forem a natureza e a intensidade da
sanção, excomunhão ou morte, perdas e danos ou prisão, desprezo público,
censura, simples notação de excentricidade, em graus diversos e sob formas
diversas, o fenômeno é sempre o mesmo: o grupo protesta contra a violação das
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regras coletivas do pensamento e da ação. Ora, este protesto só pode ter um
sentido: é que as maneiras de pensar e de agir que o grupo impõe são maneiras
próprias de pensar e de agir. Se não tolera que sejam derrogadas, é que vê nelas
as ~~nifestaçõe5 de sua personalidade e que, derrogando-as, diminui-se e destrói-
se esta personalidade. E, além disso, se as regras do pensamento e da ação não
tivessem uma origem social, de onde poderiam vir? Uma regra a qual o indivíduo se
julga sujeito não pode ser obra deste indivíduo: pois, toda obrigação implica uma
autoridade superior ao sujeito obrigado, e que lhe inspira o respeito, elemento
essencial do sentimento de obrigação. Se, portanto, se exclui a jntervençãO de
seres sobrenaturais, SÓ se poderia encontrar, fora e acima do indivíduo, uma
única fonte de obrigação: a sociedade ou, melhor, a totalidade das sociedades de
que é membro.
Aí está, pois, um conjunto de fenômenos sociais facilmente reconhecíveis e
que são de primeira importância. Porque o direito, a moral, a religião formam uma
parte notável da vida social. Mesmo nas sociedades inferiores quase não há
manifestações coletivas que não se enquadrem numa destas categorias. O homem
não tem aí, por assim dizer, nem pensamento nem atividade próprios; a palavra, as
operações econômicas, a própria vestimenta assumem freqüentemente um caráter
religioso, por conseguinte obrigatório. Mas, nas sociedades superíore5~ há um
grande número de casos em que a pressão social não se faz sentir sob a forma
expressa de obrigação: em matéria econômica, jurídicas e mesmo religiosa, o
indivíduo parece amplamente autônomo. Isto não significa que toda coerção esteja
ausente: mostramos atrás os aspectos sob os quais ela se manifestava na ordem
econômica e lingüística, e quão longe estava o indivíduo de poder agir livremente
nestas matérias. Contudo não existe aí obrigação proclamada, nem sanções
definidas; a inovação, a derrogação não são, em princípio, prescritas. Portanto é
mister procurar outro critério que permita distinguir estes hábitos cuja natureza
especial não é menos incontestável, embora menos imediatamente aparente.
Efetivamente, ela é incontestável porque cada indivíduo’ os encontra já
formados e como que instituidos, uma vez que não é o seu autor, que ele os
recebe de fora; são, pois, preestabelecidos. Seja ou não proibido ao indivíduo af
astar-se deles, já existem a partir do momento em que ele se consulta para
saber como deve agir; são modelos de conduta que eles lhe propõem. Por isso
vemo-los por assim dizer, num dado momento, penetrar nele a partir de fora. Na
maior parte dos casos, é por intermédio da educação, quer geral, quer especial,
que se faz esta penetração. Assim é que cada geração recebe da geração mais
velha os preceitos da moral, as regras da polidez usual, sua língua, seus
gostos fundamentais, da mesma forma como cada trabalhador recebe de seus
predecessores as regras de sua técnica profissional. A educação é precisamente
a operação pela qual o ser social é acrescentado em cada um de nós ao ser
individual, o ser moral ao ser animal; é o procedimento graças ao qual a criança é
rapidamente socializada. Estas observações nos fornecem uma característica do
fato social muito mais geral do que a precedente: são sociais todas as maneiras
de agir e de pensar que o indivíduo encontra preestabelecidas e cuja
transmissão geralmente se faz por meio da educação.
Seria bom que um termo especial designasse estes fatos especiais e parece
que a palavra instituições seria o mais apropriado. Com efeito, que é uma
instituição se não um conjunto de atos ou de idéias que os indivíduos encontram
diante de si e que mais ou menos se lhes impõe? Não há razão alguma para
reservar exclusivamente, como de ordinário se faz, esta expressão às disposições
sociais fundamentais. Entendemos, pois, por esta palavra tanto os usos e os modos,
os preconceitos e as superstições como as constituições políticas ou as
organizações jurídicas essenciais; porque todos estes fenômenos são da mesma
natureza e só diferem quanto ao grau. A instituição é, em suma, na ordem social
aquilo que é a função na ordem biológica:
e assim como a ciência da vida é a ciência das funções vitais, da mesma forma a
ciência da sociedade é a ciência das instituições assim definidas.
Mas, dir-se-á, a instituição é o passado; é, por definição, a coisa fixa, não a
coisa viva. Produzem-se novidades a cada instante nas sociedades, desde as
variações cotidianas da moda até as grandes revoluções políticas e morais. Mas
todas estas mudanças são sempre, em graus diversos, modificações de instituições
existentes. As revoluções jamais consistiram na brusca substituição integral de
uma ordem estabelecida por uma ordem nova; nunca são e nem podem ser mais do
que transformações mais cu menos rápidas, mais ou menos completas. Nada vem do
nada: as instituições novas só podem ser feitas com as antigas, porquanto estas
são as únicas que existem. E, por conseguinte, para que nossa definição abrace
todo o definido, basta que não nos atenhamos a uma fórmula estritamente
estática, que não restrinjamos a sociologia ao estudo da instituição suposta imóvel.
Na realidade, a instituição assim concebida não passa de uma abstração. As
verdadeiras instituições vivem, isto é, mudam sem cessar: as regras da ação não
são nem compreendidas nem aplicadas da mesma forma a momentos sucessivos,
mesmo quando as fórmulas que as exprimem permanecem literalmente as mesmas.
São portanto as instituições vivas, tais como se formam, funcionam e se
transformam em diferentes momentos que constituem os f enômenos
propriamente sociais, objetos da sociologia.
Os únicos fatos que poderíamos considerar, não sem razão, como sociais e
que, entretanto, dificilmente entrariam na definição das instituições, são aqueles
que se produzem nas sociedades sem instituições. Mas as únicas sociedades sem
instituições são agregados sociais ou bastante instáveis e efêmeros como as
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multidões, ou então em curso de formação. Ora, pode-se dizer que umas e outras
ainda não são sociedades propriamente ditas, mas somente sociedades em vias de
formação, com a diferença que umas estão destinadas a ir até o fim de seu
desenvolvimento, a realizar sua natureza social, enquanto que as outras
desaparecem antes de se constituírem definitivamente. Portanto, encontramo-nos
aqui nos lindes que separam o reino social dos remos inferiores. Os fenômenos de
que se trata não são propriamente sociais mas em vias de se tornarem sociais. Não
deve, pois, surpreender que não possam entrar exatamente nos quadros de alguma
ciência. Não há dúvida de que a sociologia não pode desinteressar-se deles, mas
nao constituem seu objeto próprio. Além disso, pela análise precedente~ de forma
alguma procuramos descobrir uma definição completa e definitiva de todos os
fenômenos sociais. Basta ter mostrado que existem fatos que merecem ser
designados desta forma e ter indicado alguns sinais pelos quais se podem
reconhecer os mais importantes dentre eles. O futuro certamente substituirá
estes critérios por outros menos defeituosos.
Da explicação sociológica
Assim a sociologia tem um objeto próprio, visto que existem fatos
propriamente sociais; resta-nos ver se satisfaz à segunda das condições que
indicamos, isto é, se há um modo de explicação sociológico que não se confunda
com algum outro. O primeiro modo de explicação que foi metodicamente aplicado
a estes fatos éaquele que por muito tempo esteve em uso naquilo que se
convencionou chamar a filosofia da história. Com efeito, a filosofia da história
foi a forma de especulação sociológica imediatamente anterior à sociologia
propriamente dita. Foi da filosofia da história que nasceu a sociologia: Comte éo
sucessor imediato de Condorcet, e este, mais do que fazer descobertas
sociológicas, construiu uma filosofia da história. O que caracteriza a explicação
filosófica é que ela supõe o homem, a humanidade em geral predisposta por sua
natureza a um desenvolvimento determinado cuja orientação toda se procura
descobrir por uma investigação sumária dos fatos históricos. Por princípiO e por
método ela negligencia, pois, o pormenor para ater-se às linhas mais gerais. Não
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procura explicar por que, em tal espécie de sociedades, em tal época de seu
desenvolvimento, depara com tal ou tal instituição: procura somente pesquisar
em que direção tende a humanidade, assinala as etapas que julga terem sido ne-
cessárias para aproximar-se de tal objetivo.
E inútil demonstrar a insuficiência de tal explicação. Não só deixa de lado,
arbitrariamente, a maior parte da realidade histórica, mas como hoje não é mais
possível sustentar que a humanidade segue um caminho único e se desenvolve num
único sentido, todos estes sistemas encontram-se, só por isso, privados de
fundamento. Mas as explicações que ainda hoje se encontram em certas doutrinas
sociológicas não diferem muito das precedentes, salvo talvez na aparência. Sob o
pretexto de que a sociedade só éformada por indivíduos, procuram na natureza do
indivíduo as causas determinantes pelas quais tentam explicar os fatos sociais. Por
exemplo, Spencer e Tarde procedem desta forma. Spencer consagrou quase todo
o primeiro volume de sua Sociologia ao estudo do homem primitivo físico, emo-
cional e intelectual; pelas propriedades desta natureza primitiva é que explica as
instituições sociais observadas entre os povos mais antigos ou mais selvagens,
instituições que em seguida se transformam no decurso da história, de acordo com
leis de evolução muito gerais. Tarde vê nas leis da imitação os princípios supremos
da sociologia: os fenômenos sociais são modos de ação geralmente úteis,
inventados por certos indivíduos e imitados por todos os outros. Encontra-se o
mesmo procedimento de explicação em certas ciências especiais que são ou
deveriam ser sociológicas. Assim é que os economistas clássicos acham, na
natureza individual do hotno occonomicus, os princípios de uma explicação su-
ficiente de todos os fatos econômicos: como o homem procura sempre a maior
vantagem a preço do menor esforço, as relações econômicas deviam ser
necessariamente tais e tais. Da mesma forma, os teóricos do direito natural
buscam os caracteres jurídicos e morais da natureza humana, e as instituições
jurídicas são, a seus olhos, tentativas mais ou menos felizes para satisfazer os
rigores desta natureza; aos poucos, o homem toma consciência de si, e os direitos
positivos são realizações aproximativas do direito que ele traz em si.
A insuficiência destas soluções aparece claramente desde que se reconheceu
que existem fatos sociais, realidades sociais, isto é, desde que se distinguiu o
objeto próprio da sociologia. Se, de fato, os fenômenos sociais são as mani-
festações da vida dos grupos como grupos, são demasiadamente complexos para
que considerações relativas à natureza humana em geral possam explicá-los.
Tomemos, mais uma vez, como exemplo as instituições do casamento e da família.
As relações sexuais estão sujeitas a regras muito
complicadas: a organização familial, muito estável numa mesma sociedade, varia
muito de uma sociedade para outra; além disso, está estritamente ligada à
organização política, à organização econômica que também apresentam diferenças
características nas diversas sociedades. Se nisto consistem os fenômenos sociais
que se trata de explicar, problemas precisos se colocam: como se formaram os
diferentes sistemas matrimoniais e domésticos? E possível uni-los entre si, dis-
tinguir formas posteriores e formas anteriores, apresentandose as primeiras
como o produto da transformação das segundas? Se isto é possível, como explicar
estas transformações, quais são suas condições? De que modo as formações da
organização familial afetam as organizações políticas e econômicas? De outro lado,
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tal regime domésfico, uma vez constituído, como funciona? A estas perguntas, os
sociÓlogos que pedem unicamente à psicologia individual o princípio de suas
explicações não podem fornecer respostas. Efetivamente, não podem explicar
estas instituições tão múltiplas, tão variadas, a não ser unindo-as a alguns
elementos muito gerais da constituição orgânico-psíquica do indivíduo: instinto
sexual, tendência a posse exclusiva e ciumenta de uma só mulher, amor maternal e
paternal, horror ao comércio sexual entre consangüíneos, etc. Mas semelhantes
explicações são, de saída, suspeitas do ponto de vista puramente filosófico:
consistem simplesmente em atribuir ao homem os sentimentos que sua conduta
manifesta, ao passo que são precisamente estes sentimentos que deveriam ser
explicados; o que se reduz, em suma, a explicar os fenômenos pelas virtudes
ocultas das substâncias, a chama pelo flogisto e a queda dos corpos por sua
gravidade. Além disso, não determinam entre os fenômenos nenhuma relação
precisa de coexistência ou de sucessão, mas os isolam arbitrariamente e os
apresentam fora do tempo e do espaço, separados de todo meio definido. Mesmo
que se considerasse como uma exphcaçao da mono-gamia a afirmação de que este
regime matrimonial satisfaz melhor que outro os instintos humanos ou concilia
melhor que outro a liberdade e a dignidade dos dois esposos, seria ainda
necessário investigar por que este regime aparece em determinadas sociedades e
não em outras, em um certo momento e não em outro do desenvolvimento de uma
sociedade. Em terceiro lugar, as propriedades essenciais da natureza humana são
as mesmas em toda parte, com matizes e graus quase idênticos. Como poderiam
explicar as formas tão variadas que cada instituição assumiu sucessivamente? O
amor paternal e maternal, os sentimentos de afeição filial são sensivelmente
idênticos entre os primitivos e entre os civilizados; entretanto, que diferença
entre a organização primitiva da família e seu estado atual, e, entre estes ex-
tremos, que mudanças se produziram! Enfim, as tendências
17
16 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA
indeterminadas do homem não poderiam explicar formas tão precisas e tão
completas sob as quais se apresentam sempre as realidades históricas. O egoísmo
que pode impelir o homem a apropriar-se das coisas úteis não é a fonte destas
regras tão complicadas que, em cada época da história, constituem o direito de
propriedade, regras relativas à posse e ao usufruto, aos móveis e aos imóveis, às
servidões, etc. E no entanto o direito de propriedade in abstracto não existe. O
que existe é o direito de propriedade tal como é ou foi organizado, na França
contemporânea ou em Roma antiga, com a multidão dos princípios que o
determinam. A sociologia assim entendida só pode, pois, desta maneira, alcançar os
lineamentos inteiramente gerais, quase inapreensíveis por força da indeterminação
das instituições. Se adotarmos tais princípios, deveremos confessar que a maior
parte da realidade social, todo o pormenor das instituições, permanece inexplicado
e inexplicável. Unicamente os fenômenos que a natureza humana em geral
determina, sempre idênticos em seu fundo, seriam naturais e inteligíveis; todos os
traços particulares que dão às instituições, de acordo com os tempos e os lugares,
seus caracteres próprios, tudo aquilo que distingue as individualidades sociais, é
considerado como artificial e acidental; vê-se, nisto, quer os resultados de
invenções fortuitas, quer os produtos da atividade individual dos legisladores, dos
homens poderosos que dirigem voluntariamente as sociedades para objetivos
entrevistos por eles. E somos assim levados a pôr fora da ciência, como
ininteligíveis, todas as instituições muito determinadas, isto é, os próprios fatos
sociais, os objetos próprios da ciência sociológica. Isto significa aniquilar, com o
objeto definido de uma ciência social, a própria ciência social, e contentar-se em
pedir à filosofia e à psicologia algumas indicações muito gerais sobre os destinos
do homem que vive em sociedade.
A estas explicações que se caracterizam por sua extrema generalidade
opõem-se aquelas que poderiam ser chamadas as explicações propriamente
históricas: isto não significa que a história não tenha conhecido outras, mas
aquelas de que vamos falar aparecem exclusivamente nos historiadores. Obrigado
pelas próprias condições de seu trabalho a apegar-se exclusivamente a uma
sociedade e a uma época determinadas, familiar ao espírito, à língua, aos traços de
caracteres particulares desta sociedade e desta época, o historiador tem
naturalmente a tendência a ver nos fatos somente aquilo que bs distingue entre si,
aquilo que lhes dá uma fisionomia própria em cada caso isolado, numa palavra,
aquilo que os torna incomparáveis. Procurando descobrir a mentalidade dos povos
cuja história estuda, é propenso a acusar de incompreensão, de incompetência,
todos aqueles que não viveram, como ele, na intimidade destes povos. Por conse-
guinte, é levado a desconfiar de toda comparação, de toda
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generalização. Quando estuda uma instituição, são seus caracteres mais
individuais que lhe despertam a atenção, aqueles devidos às circunstâncias
particulares nas quais ela se constituiu ou modificou, e ela parece-lhe como que
inseparável destas circunstâncias. Por exemplo, a família patriarcal será uma coisa
essencialmente romana, o feudalismo, uma ~stituiçãO própria de nossas
sociedades medievais, etc. Deste ponto de vista, as instituições só podem ser
consideradas combinações acidentais e locais que dependem de condições
igualmente acidentais e locais. Ao passo que os filósofos e os psicólogos nos
propunham teorias pretensamente válidas para toda a ~humanidade, as únicas
exphcaçoes que os his toriadores julgam possíveis só se aplicariam a uma
sociedade determinada, considerada em certo momento preciso de sua evolução.
Não admitem que haja causas gerais atuantes em toda parte e cuja pesquisa pode
ser utilmente empreendida; assumem a tarefa de concatenar acontecimentos
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particulares com acontecimentos particulares. Na realidade, supõem nos fatos
uma infinita diversidade assim como uma infinita contingência.
A este método estritamente histórico de explicação dos fatos sociais, é mister
primeiramente opor os ensinamentos devidos ao método comparativo: desde logo
a história comparada das religiões, dos direitos e dos costumes revelou a
existência de instituições incontestavelmente idênticas entre os mais diferentes
povos; é inconcebível que se possa assinalar como causa destas concordâncias a
imitação de uma sociedade pelas outras, e no entanto é impossível considerá-las
como fortuitas: instituições semelhantes não podem evidentemente ter em
determinado agrupamentO selvagem causas locais e acidentais, e em determinada
sociedade civilizada outras causas igualmente locais e acidentais. De outro lado,
as instituições de que se trata não são apenas práticas muito gerais que teriam
sido, como se poderia pretender, inventadas naturalmente por homens em
circunstâncias idênficas; não se trata apenas de mitos importantes como aquele
do dilúvio, de ritos como aquele do sacrifício, de organizações domésticas como a
família maternal, de práticas jurídicas como a vingança do sangue; existem
também lendas muito complexas, superstições, usos totalmente particulares1
práticas tão estranhas como as da incubação ou do levirato. Desde que se
constataram estas semelhanças, tornou-se inadmissível explicar os fenômenos
comparáveis por causas particulares de uma sociedade e de uma época; ô espírito
se recusa a considerar como fortuitas a regularidade e a semelhança.
E verdade que a história, se não mostra por que razoes existem instituições
análogas nestas civilizações aparentes, pretende às vezes explicar os fatos
concatenando-os cronologicamente entre si, descrevendo detalhadamente as
eircuns
1Y
totem de clã, cada guerreiro possui seu totem individual, se um se julga parente
dos lagartos, ao passo que outro se sente associado aos corvos, é porque cada
indivíduo constituiu seu próprio totem à imagem do totem do clã.
Vê-se agora o que entendemos com a expressão representações coletivas e
em que sentido podemos dizer que os fenômenos sociais podem ser fenômenos
de consciência, sem ser por isso fenômenos da consciência individual. Vimos
também que gêneros de relações existem entre os fenômenos sociais. Estamos
agora em condições de precisar mais a fórmula que demos acima da explicação
socíológica, quando dissemos que ela ia de um fenômeno social a outro fenômeno
social. Pudemos entrever, pelo que precede, que existem duas grandes ordens de
fenômenos sociais: os fatos de estrutura social, isto é, as formas do grupo, a
maneira pela qual os elementos são aí dispostos; e as representações coletivas
nas quais são dadas as instituições. Isto posto. pode-se dizer que toda
explicação sociológica entra num dos três quadros seguintes: 1.0 ou ela une uma
representação coletiva a uma representação coletiva, por exemplo a com
* Socialiste, em francês, mas o adjetivo é aqui empregado sem qualquer conotação ideológica. (N. da E.)
Li
SOCIOLOGIA
ENSAIOS DE SOCIOLOGIA
posição penal à vingança privada; 2.0 ou une uma representação coletiva a um fato
de estrutura social como àsua causa; assim, vê-se na formação das cidades a causa
da formação de um direito urbano, origem de boa parte de nosso sistema da
propriedade; 3? ou une fatos de estrutura social a representações coletivas que
as determinaram: assim, certas noções míticas dominaram os movimentos
migratórios dos hebreus, dos árabes do Islã; o fascínio que exercem as grandes
cidades é uma causa da emigração dos campônios.
— Pode parecer, é verdade, que tais explicações giram num círculo, visto que as
formas do grupo são aí representadas, ora como efeitos, ora como causas das
representações coletivas. Mas este círculo, que é real, não implica nenhuma
petição de princípios: é o das próprias coisas. Nada é tão inútil como perguntar se
foram as idéias que suscitaram as sociedades ou se foram as sociedades que, uma
vez formadas, deram origem às idéias coletivas. Trata-se de fenômenos
inseparáveis, entre os quais não cabe se estabelecer uma primazia lógica ou
cronológiea.
Portanto, a explicação sociológica assim entendida não merece, em grau
algum, a censura de materialista que às vezes lhe foi assacada. Em primeiro lugar,
ela independe de toda metafísica, materialista ou não. Ademais, na realidade,
atribui uma função preponderante ao elemento psíquico da vida social, crenças e
sentimentos coletivos. Mas, de outro lado, escapa aos defeitos da ideologia. Pois
as representações coletivas não devem ser concebidas como se se desenvolvessem
por si mesmas, em virtude de uma espécie de dialética interna que as obrigaria a
depurarem-se sempre mais, a se aproximarem de um ideal de razão. Se a família, o
direito penal mudaram, não foi em conseqüência dos processos racionais de um
pensamento que, aos poucos, retificaria espontaneamente seus erros primitivos.
As opiniões, os sentimentos da coletividade só mudam se os estados sociais de que
dependem também mudaram. Assim, não éexplicar uma transformação social
qualquer, por exemplo a passagem do politeísmo ao monoteísmo, fazer ver que ela
constitui um progresso, que é mais verdadeira ou mais moral, porque a questão é
precisamente saber o que determinou a religião a tornar-se assim mais verdadeira
ou mais moral, isto é, na realidade, a tornar-se aquilo que se tornou. Os fenômenos
sociais não são mais automotores do que os outros fenômenos da natureza. A
causa de um fato social deve sempre ser procurada fora deste fato. Isto significa
que o sociólogo não tem como objeto encontrar não sabemos que lei de progresso,
de evolução geral que dominaria o passado e predeterminaria o futuro. Não há uma
lei única, universal, dos fenômenos sociais. Há uma multidão de leis de inegável
generalidade. Explicar, em sociologia, como em toda ciência, é, pois, descobrir leis
mais
ou menos fragmentária5~ isto é, ligar fatos definidos segundo ~elaçõe5 definidas.
2. MIITODO DA SOCIOLOGIA
Os ensaios sobre o método da sociologia abundam na literatura sociológica.
Em geral, encontram-se mesclados com todos os tipos de considerações filosóficas
sobre a sociedade, o Estado, etc. As primeiras obras onde o método da sociologia
foi estudado de maneira apropriada são as de Comte e de Stuart Mill. Mas,
qualquer que seja sua importância~ as observações metodologicas destes dois
filósofos ainda conservavam, como a ciência que pretendiam fundar, uma extrema
generalidade. Recentemente, Durkheim procurou definir mais exatamente a
maneira pela qual a sociologia deve proceder no estudo dos fatos particulares.
Sem dúvida, não se trata de formular completa e definitivamente as regras
do método sociológico. Porque um método só se distingue abstratamente da
própria ciência. Ele não se articula e não se organiza a nao ser a medida dos
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progressos desta ciência. Propomo-n05 somente analisar um certo número de
processos científicos já sancionados pelo uso.
Definição
Como toda ciência, a sociologia deve começar o estudo de cada problema por
uma definição. Antes de tudo, émister indicar e delimitar o campo da pesquisa a
fim de saber de que se fala. Estas definições são prévias, e, por isso, provisórias.
Não podem nem devem exprimir a essência dos fenômenos a estudar, mas
simplesmente designá-los clara e distintamente. Todavia, por mais exteriores que
elas sejam, nem por isso são menos mdtspensaveis. Na falta de definições, toda
ciência se expõe a confusões e a erros. Sem elas, no transcurso de um mesmo
trabalho, um sociólogo dará diferentes sentidos a um mesmo termo. Agindo desta
forma cometerá graves equívocos: assim, no que se refere à teoria da família,
muitos autores empregam indiferentemente os termos tribo, aldeia, clã, para
designar uma só e mesma coisa. Além disso, sem definiçoes e impossivel haver
entendimento entre cientistas que discutem sem falar todos do mesmo assunto.
Boa parte dos debates levantados pela teoria da família e do casamento provêm da
ausência de definições: assim, uns chamam monogamia aquilo que outros não
designam com o mesmo nome; uns confundem o regime jurídico que a monogamia
exige com a simples monogamia de fato; outros, ao contrário, distinguem estas
duas ordens de fatos, na realidade muito diferentes.
24 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA
25
SOCIOLOGIA
Naturalmente, definições deste gênero são construídas. Reúne-se e designa-
se nelas um conjunto de fatos cuja similaridade fundamental se prevê. Mas não
são construídas a priori; são o resumo de um primeiro trabalho, de uma primeira
visão rápida dos fatos, cujas qualidades comuns se distinguem. Elas têm sobretudo
como objeto substituir as noções do senso comum por uma primeira noção cien-
tífica. E que, na verdade, é preciso, antes de tudo, desembaraçar-se dos
preconceitos correntes, mais perigosos em sociologia do que em qualquer outra
ciência. Não se deve estabelecer sem exame, como definição científica, uma
classificação usual. Muitas idéias ainda em uso em muitas ciências sociais não
parecem baseadas nem na razão nem nos fatos e devem ser banidas de uma
terminologia racional; por exemplo, a noção de paganismo e mesmo aquela de
feitieismo não correspondem a nada de real. Outras vezes, uma pesquisa séria leva
a reunir aquilo que o vulgo separa, ou a distinguir aquilo que o vulgo confunde. Por
exemplo, a ciência das religiões reuniu num mesmo gênero os tabus de impureza e
os de pureza, porque todos são tabus; ao contrário, distinguiu cuidadosamente os
ritos funerários e o culto dos antepassados.
Estas definições serão tanto mais exatas e mais positivas se nos
esforçarmos mais por distinguir as coisas por seus caracteres objetivos. Chamam-
se caracteres objetivos os caracteres que tal ou tal fenômeno social tem em si
mesmo, isto é, aqueles que não dependem de nossos sentimentos e de nossas
opiniões pessoais. Assim, não é por nossa idéia mais ou menos lógica do sacrifício
que devemos definir este rito, mas pelos caracteres exteriores que apresenta,
como fato social e religioso, exterior a nós, independente de nós. Concebida deste
modo, a definição torna-se um momento importante da pesquisa. Estes caracteres
pelos quais se define o fenômeno social a estudar, ainda que exteriores, nao
correspondem menos aos caracteres essenciais que a análise discernirá. Por isso,
definições felizes podem nos pôr no caminho de importantes descobertas. Quando
se define o crime como um ato atentatório aos direitos dos indivíduos, os únicos
crimes são os atos atualmente tidos como tais: o homicídio, o roubo, etc. Quando o
crime édefinido como um ato que provoca uma reação organizada da coletividade,
é-se levado a compreender na definição todas as formas verdadeiramente
primitivas do crime, em particular a violação das regras religiosas, do tabu, por
exemplo.
Enfim, estas definições prévias constituem uma garantia científica de
primeira ordem. Urna vez estabelecidas, obrigam e ligam o sociólogo. Elas iluminam
todos os seus passos, permitem a crítica e a discussão eficaz. Porque, graças a
elas, todo um conjunto de fatos bem designados se impõe
ao estudo, e a explicação deve levar em consideração todos eles. Afastam-se
assim todas estas argumentações caprichosas em que o autor passa, a seu bel-
prazer, de um assunto a outro, toma suas provas às mais heterogêneas categorias.
Ademais, evita-se uma falha que cometem ainda os melhores trabalhos de
sociologia, por exemplo o de Frazer sobre o totemismo. Esta falha é a de haver
reunido unicamente os fatos favoráveis à tese e em não ter pesquisado suficiente-
mente os fatos contrários. Em geral, não há suficiente preocupação com a
integração de todos os fatos numa teoria; só são reunidos aqueles que se
sobrepõem exatamente. Ora, com boas definições iniciais, todos os fatos sociais
de uma mesma ordem se apresentam e se impõem ao observador, e fica-se na
obrigação de explicar não apenas as concordâncias, mas também as diferenças.
Observação dos Jatos
Como vimos, a definição supõe uma primeira visão geral dos fatos, uma
espécie de observação provisória. E preciso falar agora da observação metódica,
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isto é, daquela que estabelece cada um dos fatos enunciados. A observação dos
fatos sociais não é, como se poderia crer à primeira vista, um puro processo
narrativo. A sociologia deve fazer mais do que descrever os fatos, deve, na
realidade, constituí-los. Em primeiro lugar, como em qualquer outra ciência, em
sociologia não existem fatos brutos passíveis, por assim dizer, de serem
fotografados. Toda observação científica refere-se a fenômenos metodicamente
escolhidos e isolados dos outros, isto é, abstraídos. Os fenômenos sociais, mais do
que todos os outros, não podem ser estudados de uma vez em todos os seus
detalhes, em todas as suas relações. São demasiado complexos para que não se
proceda por abstrações e por divisões sucessivas das dificuldades. Mas a
observação sociológica, se abstrai os fatos, não é menos escrupulosa e cuidadosa
em estabelecê-los exatamente. Ora, os fatos sociais são muito difíceis de serem
captados e desenvedados através dos documentos. E ainda mais delicado analisá-
los, e, em alguns casos, de dar-lhes mensuraçoes aproximativas. São, pois,
necessários processos especiais e rigorosos de observação; são necessários, para
usar a linguagem habitual, métodos críticos. O emprego destes métodos varia
naturalmente com os fatos variados que a soemlogia observa. Assim é que existem
meios diferentes para analisar um rito religioso e para descrever a formação de
uma cidade. Mas o espírito, o método do trabalho permanecem idênticos, e só é
possível classificar os métodos críticos de acordo com a natureza dos documentos
aos quais se aplicam: existem os documentos estatísticos, quase todos modernos,
recentes, e os documentos históricos. Os nume
26 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA
27
rosos problemas levantados pela utilização destes documentos são bastante
diferentes, ao mesmo tempo que bastante análogos.
Em todo trabalho que se apóia em documentos estatísticos é importante,
indispensável, expor cuidadosamente a maneira pela qual se chegou aos dados de
que se lança mão. Porque, no estado atual das diversas estatísticas judiciárias,
econômicas, demográficas, etc., cada documento exige a mais severa crítica.
Consideremos, com efeito, os documentos oficiais, que, em geral, oferecem mais
garantias. Estes mesmos documentos devem ser examinados em todos os seus
detalhes, e é mister conhecer bem os princípios que presidiram sua confecção.
Sem minuciosas precauções, corre-se o risco de chegar a dados falsos: assim, é
impossível usar as informações estatísticas sobre o suicídio da Inglaterra, porque,
neste país, para evitar os rigores da lei, a maior parte dos suicídios são declarados
sob o nome de morte em conseqüência de loucura; a estatística é, assim, viciada
em seu fundamento. Ademais, é mister ter o cuidado de reduzir a fatos
comparáveis os dados de origens diversas de que se dispõe. Por não haverem
procedido desta maneira, muitos trabalhos de sociologia moral, por exemplo,
contêm graves erros. Compararam-se números que não têm de modo algum a
mesma significação nas diversas estatísticas européias. Com efeito, as
estatísticas são baseadas nos códigos, e os diversos códigos não têm nem a mesma
classificação nem a mesma nomenclatura; por exemplo, a lei inglesa não distingue o
homicídio por imprudência do homicídio voluntário. Além disso, como toda
observação científica, a observação estatística deve procurar ser a mais exata e a
mais detalhada possível. Efetivamente, com freqüência o caráter dos fatos muda
quando uma observação geral é substituída por uma análise cada vez mais precisa;
assim um mapa, por distritos, do suicídio em França, leva a observar fenômenos
diferentes daqueles que aparecem num mapa por departamentos.
No que se refere aos documentos históricos ou etnológicos, a sociologia deve
adotar, grosso modo, os processos da “crítica histórica”. Não pode servir-se de
fatos inventados e, por conseguinte, deve estabelecer a verdade das informações
de que se serve. Estes processos de crítica são de um emprego tanto mais
necessário quanto os sociólogos foram censurados com freqüência, e não sem
razão, por sua negligência em empregá-los; utilizaram-se, por exemplo, sem muito
discernimento, as informações dos viajantes e dos etnógrafos. O conhecimento
das fontes, uma crítica severa teriam permitido aos sociólogos dar uma base
incontestável às suas teorias referentes às formas elementares da vida social.
Aliás, pode-se esperar que os progressos da história e da etnografia facilitarão
sempre mais o trabalho, fornecendo informações incontestáveis. A sociologia só
pode espe
SOCIOLOGIA
rar vantagens dos processos destas duas disciplinas. Mas, ainda que o sociólogo
tenha as mesmas exigências críticas do historiador, deve conduzir sua crítica
segundo princípios diferentes, visto que estuda os fatos num outro espírito, em
vista de outro objetivo. Primeiramente, só observa, na medida do possível, os
fatos sociais, os fatos profundos; e sabe-se quão recentes são preocupações
deste gênero nas ciências históricas, onde há falta, por exemplo, de numerosas e
boas histórias da organização econômica mesmo em nossos países. Depois, a
sociologia não faz aos fatos perguntas insolúveis e cuja solução só ofereça, além
disso, escasso valor explicativo. Assim, na ausência de monumentos certos, não é
indispensável datar com exatidão o Ríg-Veda: a coisa é impossível e, no fundo,
indiferente. Não há necessidade de conhecer a data de um fato social, de um
ritual de orações para servir-se dele em sociologia, contanto que se conheçam seus
antecedentes, seus concomitantes e seus conseqüentes, numa palavra, todo o
quadro social que o cerca. Enfim, o sociólogo não pesquisa exelusivamente o
detalhe singular de cada fato. Depois de terem feito sobretudo a biografia de
grandes homens e de tiranos, os historiadores tentam, agora, sobretudo fazer
biografia coletiva. Detêm-se nos matizes particulares dos costumes, das erenças
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de cada grupo, pequeno ou grande. Procuram aquilo que separa, aquilo que
singulariza, e tendem a descrever aquilo que há, de certo modo, de inefável em
cada civilização; por exemplo, crê-se geralmente que o estudo da religião védica é
reservado unicamente aos sanscritistas. O sociólogo, ao contrário, procura
encontrar nos fatos sociais aquilo que é geral e, ao mesmo tempo, aquilo que é
característico. Para ele, uma observação bem conduzida deve dar um resíduo
definido, uma expressão suficientemente adequada do fato observado. Para
servir-se de um fato social determinado não é necessário o conhecimento integral
de uma história, de uma língua, de uma civilização. O conhecimento relativo, mas
exato, deste fato é suficiente para que possa e deva entrar no sistema que a
sociologia quer edificar. Porque, se em numerosos casos é ainda indispensável para
o sociólogo remontar às últimas fontes, a falha não é devida aos fatos, mas aos
historiadores que não souberam fazer sua verdadeira análise. A sociologia exige
observações seguras, impessoais, utilizáveis para quem quer que venha a estudar
fatos da mesma ordem. O pormenor e o âmbito de todos os fatos são infinitos, e
ninguém nunca poderá esgotá-los; a história pura jamais deixará de descrever, de
matizar, de circunstanciar. Ao contrário, uma observação sociológica feita com
cuidado, um fato bem estudado, analisado em sua integridade, perde quase toda
data, exatamente como uma observação de médico, uma experiência
extraordinária de laboratório. O fato social,
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29
cientificamente descrito, torna-se um elemento de ciência, e deixa de pertencer a
tal ou tal país, a tal ou tal época. Está por assim dizer colocado, por força da
observação científica, fora do tempo e fora do espaço.
Sistematização dos Jatos
A sociologia não especula, como não o faz qualquer outra ciência, sobre puras
idéias e não se limita a registrar os fatos. Tende a dar-lhes um sistema racional.
Procura determinar suas relações de modo a torná-los inteligíveis. Resta-nos falar
dos processos pelos quais estas relações podem ser determinadas. Algumas vezes,
aliás mui raramente, encontramo-los por assim dizer inteiramente estabelecidos.
Com efeito, existem em sociologia, como em toda ciência, fatos tão típicos que
basta analisá-los devidamente para descobrir logo certas relações insuspeitadas.
Foi um fato deste gênero que Fison e Howitt encontraram, quando lançaram nova
claridade sobre as formas primitivas da família, explicando o sistema do
parentesco e das classes exogâmicas em certas tribos australianas. Mas, em geral,
não atingimos diretamente, pela simples observação, fatos cruciais. IS necessário,
pois, empregar todo um conjunto de processos metódicos especiais para
estabelecer as relações que existem entre os fatos. Aqui a sociologia se encontra
num estado de inferioridade com relação a outras ciências. A experimentação não
é possível; não se pode suscitar, voluntariamente, fatos sociais típicos para, em
seguida, estudá-los. IS mister, pois, recorrer à comparação dos diversos fatos
sociais de uma mesma categoria em diversas sociedades, a fim de procurar
depreender sua essência. No fundo, uma comparação bem conduzida pode dar, em
sociologia, resultados equivalentes aos de uma experimentação. Procede-se mais
ou menos como os zoólogos, como procedeu particularmente Darwin. Este não
pôde, salvo para uma única exceção, realizar verdadeiras experiências e criar
espécies variadas; teve de fazer um quadro geral dos fatos que conhecia
referentes à origem das espécies; e foi da comparação metódica destes fatos que
deduziu suas hipóteses. Da mesma forma, em sociologia, Morgan, tendo constatado
a identidade do sistema familial iroquês, havaiano, fidji, etc., pôde formular a hi-
pótese do clã por descendência materna. Aliás, em geral, quando a comparação foi
manejada por verdadeiros cientistas, sempre deu bons resultados em matéria de
fatos sociais. Mesmo quando não deixou resíduo teórico, como nos trabalhos da
escola inglesa antropológica, ao menos conseguiu levantar uma classificação geral
de grande número de fatos.
Quanto ao mais, a gente se esforça e é preciso esforçar-se por tornar a
comparação sempre mais exata. Certos
autores, entre outros Tylor e Steinmetz, chegaram mesmo
SOCIOLOGIA
a propor e a empregar, o primeiro a propósito de casamento, o segundo a propósito
da pena e do endocanibalismo, um método estatístico. As concordâncias e as
diferenças entre os fatos constatados são aí expressas em números. Mas os
resultados deste método estão longe de serem satisfatórios, pois se nomeiam
fatos colhidos das sociedades mais diversas e mais heterogêneas, e registrados
em documentos de valor totalmente desigual. Atribui-se assim excessiva
importância ao número das experiências, dos fatos acumulados. Demonstra-se
pouco interesse pela qualidade destas experiências, por sua certeza, pelo valor
demonstrativo e pela comparabilidade dos fatos. Provavelmente é preferível
renunciar a tais pretensões de exatidão, e é melhor ater-se a comparações
elementares, mas severas. Em primeiro lugar, éimportante só aproximar fatos da
mesma ordem, isto é, fatos que entram na definição estabelecida no começo do
trabalho. Assim, será conveniente, na teoria da família, a propósito do clã, reunir
apenas fatos de clã e não reunir com eles informações etnográficas que na
realidade se referem à tribo e ao grupo local, com freqüência confundidos com o
clã. Em segundo lugar, é preciso alinhar os fatos assim reunidos em séries
cuidadosamente constituídas. Em outras palavras, dispõem-se as diferentes
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formas que apresentam segundo uma ordem determinada, seja uma ordem de
complexidade crescente ou decrescente, seja uma ordem qualquer de variação. Por
exemplo, numa teoria da família patriarcal, colocar-se-á a família hebraica debaixo
da família grega, esta debaixo da família romana. Em terceiro lugar, diante desta
série, dispõem-se outras séries, constituídas da mesma maneira, compostas de
outros fatos sociais. E é das relações que se percebem entre estas diversas
espécies que se vêem desprenderem-se as hipóteses. Por exemplo, é possível ligar
a evolução da família patriarcal à evolução da cidade:
dos hebreus aos gregos, destes aos romanos; no próprio direito romano, vê-se o
poder paterno crescer à medida que a cidade se fecha.
Caráter científico das hipóteses sociológicas
Chega-se assim a inventar hipóteses e a verificá-las, com a ajuda de fatos
bem observados, para um problema bem definido. Naturalmente estas hipóteses
não são forçosa-mente justas; bom número daquelas que hoje nos parecem
evidentes serão abandonadas um dia. Mas se não trazem este caráter de verdade
absoluta, trazem todas os caracteres de hipóteses científicas. Em primeiro lugar,
são verdadeiramente explicativas; dizem o porquê e o como das coisas. Aí não se
explica uma regra jurídica como aquela da responsabilidade civil pela clássica
“vontade do legislador ou pelas “virtudes” gerais da natureza humana que teriam
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31
SOCIOLOGIA
racionalmente criado esta instituição. IS explicada por toda a evolução do sistema
da responsabilidade. Em segundo lugar, elas têm este caráter de necessidade e,
por conseguinte, de generalidade que é o da indução metódica e que talvez permita
até, em alguns casos, a previsão. Por exemplo, pode-se quase estabelecer como lei
que as práticas rituais tendem a rarefazer-se e a espiritualizar-se no decurso do
desenvolvimento das religiões universais. Em terceiro lugar, e aí está, em nossa
opinião, o ponto mais importante, tais hipóteses são eminentemente criticáveis e
veríficaveis. Pode-se, num verdadeiro trabalho de sociologia, criticar cada um dos
pontos tratados. Estamos longe desta poeira impalpável dos fatos ou destas
fantasmagorias de idéias e de palavras que o público com freqüência aceita por
sociologia, mas onde não há idéias precisas nem sistema racional nem estudo
cerrado dos fatos. A hipótese torna-se um elemento de discussão precisa; pode-se
contestar, retificar o método, a definição inicial, os fatos invocados, as
comparações estabelecidas; de tal sorte que há aí, para a ciência, progressos
possíveis.
Aqui, é preciso prever uma objeção. Ter-se-ia a tentação de dizer que a
sociologia, antes de se edificar, deve fazer um inventário total de todos os fatos
sociais. Assim, pedir-se-ia ao teórico da família que tivesse feito o exame
completo de todos os documentos etnográficos, históricos, estatísticos, relativos
a esta questão. Devem-se temer tendências deste gênero em nossa ciência. A
timidez diante dos fatos é tão perigosa como a excessiva audácia, as abdicações
do empirismo tão funestas como as generalizações apressadas. Primeiramente, se
a ciência requer exames dos fatos sempre mais completos, em parte alguma exige
um inventário total, aliás impossível. O biólogo não esperou observar todos os
fatos de digestão, em todas as séries de animais, para tentar as teorias da
digestão. O sociólogo deve fazer o mesmo; também ele não tem necessidade de
conhecer a fundo todos os fatos sociais de uma determinada categoria para
elaborar a teoria. Deve passar imediatamente à obra. A conhecimentos
provisórios, mas cuidadosamente enumerados e precisados, correspondem
hipóteses provisórIas. As generalizações feitas, os sistemas propostos, valem
momentaneamente para todos os fatos conhecidos e desconhecidos da mesma
ordem que os fatos explicados. Tem-se a liberdade de modificar as teorias à
medida em que novos fatos chegam a ser conhecidos ou à medida em que a ciência,
todos os dias mais exata, descobre novos aspectos nos fatos conhecidos. Fora
destas aproximações sempre mais cerradas dos fenômenos, só há lugar para
discussões dialéticas ou enciclopédias eruditas, ambas sem verdadeira utilidade,
visto que não propõem explicação alguma. E, além disso, se o trabalho de indução
foi feito com método,
não é possível que os resultados aos quais o sociólogo chega sejam despidos de
toda realidade. As hipóteses exprimem fatos, e, por conseguinte, possuem sempre
ao menos uma parcela de verdade: a ciência pode completá-las, retificá-las,
transformá-las, mas nunca deixa de utilizá-las.
3. DIVISÃO DA SOCIOLOGIA
A sociologia pretende ser uma ciência e ligar-se à tradição científica
estabelecida. Mas não é menos livre face às classificações existentes. Pode
repartir o trabalho de maneira diversa daquela posta em prática até aqui.
Em primeiro lugar, a sociologia considera como seu um certo número de
problemas que, até aqui, dependiam de ciências que não são “ciencias sociais”.
Decompõe estas ciências, abandonando-lhes aquilo que é seu objeto próprio e
retém todos os fatos de ordem exclusivamente social. Assim é que a geografia
tratava até hoje das questões de fronteira, de vias de comunicação, de densidade
social, etc. Ora, estas não são questões de geografia, mas questões de sociologia,
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visto que não se trata de fenômenos cósmicos, mas de fenômenos referentes à
natureza das sociedades. Da mesma forma, a sociologia apropria-se dos resultados
já adquiridos pela antropologia criminal referentes a um certo número de
fenômenos que são, não fenômenos somáticos, mas fenômenos sociais.
Em segundo lugar, entre as ciências às quais ordinariamel]te se dá o nome de
“ciências sociais”, algumas há que, para falar com propriedade, não são ciências.
Não têm mais do que uma unidade fictícia, e a sociologia deve dissociá-las. IS o
caso da estatística e da etnografia, ambas consideradas como formando ciências à
parte, quando não fazem mais do que estudar, de acordo com seus respectivos
processos, os fenômenos mais diversos, na realidade dependentes de diferentes
partes da sociologia. A estatística, como vimos, não é senão um método para
observar fenômenos variados da vida social moderna. Hoje, a estatística estuda,
indiferentemente, fenômenos sociais, morais e econômicos Em nossa opinião, não
deve haver aí estatísticos, mas soeiólogos que, para estudar os fenômenos morais,
econômicos, para estudar os grupos, fazem estatística moral, econômica,
demográfica, etc. O mesmo acontece com a etnografia. Esta tem, como única
razão de sua existência, a tarefa de consagrar-se ao estudo dos fenômenos que se
passam em nações ditas selvagens. Estuda indiferentemente os fenômenos morais,
jurídicos, religiosos, as técnicas, as artes, etc. A sociologia, ao contrário, não
distingue naturalmente entre as instituições das populações “selvagens” e aquelas
das naeões “bárbaras” ou “civilizadas”. Faz entrar em suas definições os fatos
mais elementares e os fatos
32 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA SOCIOLOGIA 33
mais evoluídos. E, por exemplo, num estudo da família ou da pena, ver-se-á
obrigada a considerar tanto os fatos “etnográficos” como os fatos “históricos”,
que são todos da mesma maneira fatos sociais e que só diferem pelo modo como
são observados.
Em contrapartida, a sociologia adota e faz suas as grandes divisões, já
percebidas pelas diversas ciências comparadas das instituições de que pretende
ser herdeira: ciências do direito, das religiões, economia política, etc. Deste ponto
de vista, divide-se com muita facilidade em soeiologias especiais. Mas adotando
esta repartição, não segue servil-mente as classificações usuais que, em sua
maioria, são de origem empírica ou prática, como por exemplo as da ciência do
direito. Sobretudo não estabelece entre os fatos estes compartimentos estanques
que ordinaríamente existem entre as diversas ciências especiais. O sociólogo que
estuda os fatos jurídicos e morais deve, com freqüência, para compreendê-los,
pesquisar os fenômenos religiosos. Aquele que estuda a propriedade deve
considerar este fenômeno sob seu duplo aspecto jurídico e econômico, ao passo
que estes dois aspectos de um mesmo fato são ordinariamente estudados por
diferentes cientistas.
Assim, mesmo ligando-se estreitamente às ciências que a precederam, mesmo
apropriando-se de seus resultados, a sociologia transforma suas classificações. IS
de notar, aliás, que todas as ciências sociais tenderam, nos últimos anos, a
aproximar-se progressivamente da sociologia; tornam-se cada vez mais partes
especiais de uma única ciência. A única diferença é que, quando esta chega ao
estado de verdadeira ciência, com um método consciente, muda profundamente o
próprio espírito da pesquisa e pode conduzir a resultados novos. Por isso, ainda que
numerosos resultados possam ser conservados, cada parte da sociologia não pode
coincidir exatamente com as diversas ciências sociais existentes. Por si mesmas,
elas se transformam, e a introdução do método sociológico já mudou e mudará a
maneira de estudar os fenômenos soclals.
Os fenômenos sociais dividem-se em duas grandes ordens. De uma parte,
existem os grupos e suas estruturas. 1-lá, pois, uma parte especial da soeio!ogia
que pode estudar os grupos, o número dos indivíduos que os compõem e as diversas
maneiras pelas quais são dispostos no espaço: e a morfologia social. De outra
parte, existem os fatos sociais que se passam nestes grupos: as instituições ou as
representações coletivas. Estas constituem, para falar com verdade, as grandes
funções da vida social. Cada urna destas fimçoes, religiosa, jurídica, econômica,
estética, etc., deve ser primeiro estudada à parte e constituir o objeto de urna
sevie de pesquisas relativamente independentes. Deste ponto de vista, há
portanto uma sociologia religiosa, unia sociologia
moral e jurídica, uma sociologia tecnológica, etc. Depois, feitos todos estes
estudos especiais, seria possível constituir uma última parte da sociologia, a
sociologia geral, que teria como finalidade pesquisar aquilo que constitui a unidade
de todos os fenômenos sociais.
BIBLIOGRAFIA
19 Sobre a história da sociologia: Espinas, Sociétés animales (prefácio), 1867. Lévy-Brühl, La
—
philosophie d’Auguste Comte, 1900. — Fouitlée, La science sociale contem poraine, 1855. —Durkheim,
“Les sciences morale.s en Allemagne”, em Rente phílosophique, ano 1887; “La sociologie en France au
XIXe siêcle”, em Revue bleue, maio de 1900. — Bouglé, Les sciences sociales en Allemagne, 1896. —
Groppali, “La sociologie en Amerique”, em A nnales de l’Inst. internat. de sociologie, 1900.
29 Sobre a sociologia em geral: Comte, Cours de philosophie positive (vol. 1V-VI). — Spencer,
Social Statics; Descriptive Sociology, 1874 e seguintes; Principles of Sociology, 1876 e seguintes,
trad. franc., 1887; The Study oÍ Sociology, 1873, trad. franc., 1880, etc. — Schàffle, Bau und Leben
des sozialen Kórpers, 1875-8 1. — Espinas, op. cit., —De Greef, Introduction á la sociologie, 1886-89;
Transformisme social, 1894. — Gumplowicz, Grundiss der Sociologie, 1885 — Tõnnies, Gemeinschaft
and Gesellschaft, 1887. — Tarde, Les bis de l’imitation, 1890-95; Logique sociale, 1895, etc. — Lester
Ward, Dynamic Sociobogy, 1897; Outlines of Sociobogy, 1898. — Small, An Jntroducaion mic
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26/03/2018 Marcel Mauss
Sociobogy, 1897; Outlines oJ Sociobogy, 1898. — Small, An Intraduction to 0w Study of Society, 1894.
— Giddings, Principies of Sociobogy, 1896. — Entre as principais obras da escola organicista estão: No
vicow, La lutte entre les sociétés humaines, 1893; Conscience et volonté soda/es, 1896, etc. — Worms,
Organisme et société, 1896. —Massart et Vandervelde, Parasitisme organique et parasitismc social,
— Demoor, Massart et Vandervelde, Evolution régressive en bio~ bogie et en sociobogie, 1897.
39 Os principais periódicos consagrados à sociologia propriamente dita são os seguintes: Rente
internationale de sociobogie; Annales de l’lnstitut international de sociobogie; Année sociobogique;
Zeitschrijt fiir Sozialwissenschaít; Rivista Italiana di Sociologia; American Journal of Sociobogy.
49 Sobre o método da sociologia: Comte, op. cit., — Stuart Mill, Logique, I.V1. — Durkheim, Règles
de la méthode sociobogique, 1898. — Langlois et Seignobos, Introduction aux étudcs historiques, 1898. —
Tylor, “On a Method of Investigating the Development of Institutions etc.”, em Journal of the
Anthropoborical Institute, XVIII, 1889. — Steinmetz, Studien zur crsten Entwicklung der Strafe,
1893-95 (Introdução). — “Classification des types sociaux”, em Année sociobogiquc, 1900.
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