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29/03/2018 Crime sem vítima?

 ­ Juíza Gláucia Falsarella Foley — TJDFT ­ Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios

Crime sem vítima? ­ Juíza Gláucia Falsarella
Foley
Artigo publicado na edição do dia 7/3/2017 do jornal Correio Braziliense e no site do
TJDFT, página Imprensa ­ Artigos
por ACS — publicado em 07/03/2017 09:55

Glaúcia Falsarella Foley*

A criminalização do consumo pessoal de drogas é inconstitucional porque, ao punir conduta de natureza
estritamente  individual  e  inofensiva  a  terceiros,  o  art.  28  da  Lei  11.343/2006  afronta  os  princípios  da
inviolabilidade  da  intimidade  e  da  vida  privada,  da  lesividade  e  da  garantia  à  liberdade  individual
consagrados  na  Constituição  Federal.  A  adequada  interpretação  do  art.  28  —  adquirir,  guardar,  ter  em
depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo
com  determinação  legal  ou  regulamentar  —  demanda  a  compreensão  de  qual  o  bem  jurídico  que  a
norma pretende proteger.

Nesse  sentido,  a  prática  de  quaisquer  das  condutas  ali  previstas  será  adequada  à  norma  penal  se,  e
somente  se,  a  motivação  do  agente  for  o  consumo  próprio  da  substância  entorpecente.  Caso  a  conduta
tenha  qualquer  traço  de  alteridade,  sugerindo  que  a  ação  do  sujeito  transcendeu  a  esfera  pessoal  e
envolveu  terceiros,  o  agente  responderá  por  crime  mais  grave.  E,  nessa  hipótese,  caberá  ao  Ministério
Público o oferecimento da denúncia por tráfico de drogas e não por uso próprio.

Muito  embora  a  Lei  11.343  anuncie  que  seu  objetivo  é  a  proteção  da  saúde  pública,  o  bem  jurídico
tutelado pelo art. 28 é exclusivamente a saúde individual do usuário. É o que diz literalmente a norma. A
justificativa ideologicamente construída para a criminalização da conduta é a de que o consumo pessoal
de  entorpecentes  enseja  expansibilidade  de  perigo  abstrato  à  saúde  pública.  A  partir  dessa  premissa  de
lógica  duvidosa,  consolidou­se  uma  infundada  ilação  da  existência  de  nexo  de  causalidade  entre  um
comportamento que se limita à esfera da subjetividade e a ofensa ao interesse público.

Em outras palavras, se o tipo penal em análise só existe se a ação for voltada para o consumo pessoal, o
âmbito da lesão é estritamente individual, não podendo a sua interpretação ser alargada em detrimento
das garantias individuais. A alegada má influência exercida por um usuário a seus pares deve se limitar
aos  debates  no  âmbito  da  saúde  pública,  jamais  podendo  servir  de  fundamentação  para  a  intervenção
penal, que não opera com meras suposições.

Criminalizar  conduta  no  presente  com  vistas  exclusivamente  a  prevenir  danos  incertos,  eventuais  e
futuros  não  é  compatível  com  o  direito  penal.  Sob  a  ótica  de  uma  política  criminal  bastante  restrita,
cunhou­se a máxima de que a penalização do consumo individual é essencial para o combate ao tráfico
de drogas. A mera opinião (a doxa platônica), sem qualquer lastro em estudos multidisciplinares sobre o
fenômeno  do  uso  de  drogas  pela  humanidade,  transformou­se  em  verdade  científica  e  o  proibicionismo
passou a ser hegemônico.

A  adoção  de  tal  premissa,  contudo,  traz  graves  consequências  para  o  direito  penal,  na  medida  em  que
implica  admitir  a  responsabilidade  de  natureza  objetiva,  além  de  reproduzir  a  lógica  –  felizmente
estranha  ao  nosso  ordenamento  jurídico  —  de  punir  a  vítima  (o  usuário)  para  alcançar  o  criminoso  (o
traficante).  É  evidente  a  violação  aos  direitos  fundamentais  da  pessoa  —  autonomia  e  liberdade  —
quando há intervenção estatal nas chamadas zonas livres do direito penal (Arthur Kaufmann). Não pode
haver relevância penal nesse sagrado espaço da subjetividade e da liberdade.

A  política  criminal  não  deve  ser  manejada  como  instrumento  de  educação  moral,  tampouco  servir  de
ferramenta  para  ditar,  fiscalizar  e  punir  condutas  consideradas  avessas  aos  costumes  temporariamente
hegemônicos. O direito penal só deve ser acionado quando o resultado dessa ofensa afeta negativamente
o  interesse  de  terceiros.  Daí  por  que  não  se  pune  a  prostituição,  a  autolesão,  a  tentativa  de  suicídio,  os
danos a bens patrimoniais próprios, a ofensa moral a si mesmo, dentre outros.
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29/03/2018 Crime sem vítima? ­ Juíza Gláucia Falsarella Foley — TJDFT ­ Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios
danos a bens patrimoniais próprios, a ofensa moral a si mesmo, dentre outros.

Estaríamos dispostos a correr o risco de aceitar a criminalização de um cidadão baseados em julgamento
moral de que suas opções individuais acarretam danos prováveis para a sociedade? Apesar de legítima a
preocupação  com  os  efeitos  do  consumo  de  entorpecentes,  uma  sociedade  democrática  e  generosa  deve
respeitar,  acolher  e,  quando    for  o  caso,  cuidar  dos  cidadãos  que  —  por  inúmeras  razões,  todas  de
natureza  estritamente  pessoal  —  deles  façam  uso.  Adotar  uma  ideologia  proibicionista,  bélica,  punitiva,
criminalizando  e  estigmatizando  os  usuários  parece  ir  na  contramão  da  sociedade  livre  e  fraterna  que
todos nós desejamos construir.

*juíza de Direito e coordenadora do Programa Justiça Comunitária do TJDFT e membro da Associação
dos Juízes para a Democracia

  

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